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Avdluna

GT SENTIDO DA VIDA

Oct 1st, 2017
117
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Never
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  1. PRÓLOGO:
  2. >oi, eu sou o… bem, isso não importa
  3. >tudo o que você precisa saber é que minha vida é um saco
  4. >eu tenho depressão
  5. >mas não como esses frutinhas, suicidas de facebook
  6. >eu realmente tinha depressão
  7. >uma vez um professor meu com quem eu conversava muito me disse que eu tinha um tal “niilismo existencial”
  8. >é o nome para o que eu sinto
  9. >mas essa história não é sobre isso
  10. >é sobre como minha vida mudou para sempre
  11. >era uma sexta-feira qualquer de 2004
  12. >eu tinha 16 anos e era o meu primeiro emprego
  13. >eu trabalhava em uma locadora
  14. >meu sonho era ser um cineasta
  15. >por enquanto, aquele era o melhor emprego para mim
  16. >eu ficava o dia inteiro assistindo filmes
  17. >as vezes eu precisava parar para atendente clientes
  18. >mas nada que me incomodasse, afinal é o meu trabalho
  19. >em um desses dias, uma garota apareceu lá
  20. >ela era bonita, bem bonita, mas eu não dei muita atenção para isso
  21. >era só mais uma cliente, já passei da fase de me apaixonar por pessoas aleatórias que nunca vou ver outra vez
  22. >enfim
  23. >faltava apenas 7 minutos para eu fechar a locadora
  24. >algumas pessoas, principalmente mulheres, amam demorar pra caralho enquanto escolhem um filme
  25. >então eu não só não liguei para a beleza dela, como não gostei que ela aparecesse
  26. >tava pensando o quê?
  27. >que eu ia olhar os lindos cabelos loiros dela, os olhos azuis e a pele clara e lisa, e sentiria uma atração inexplicável por ela?
  28. >vai tomar no cu
  29. >isso aqui não é um livro adolescente
  30. >para minha surpresa ela foi bem rápida
  31. >pegou três DVD’s
  32. >isso era bom
  33. >não pude deixar de notar que ela trocou os adesivos dos DVD’s por outros
  34. >caso você seja um juvenil de bosta, deixa eu explicar:
  35. >em algumas locadoras os DVD’s tinham adesivos
  36. >cada adesivo tinha uma cor, na minha locadora eram 3
  37. >o adesivo dourado, o prata e o vermelho
  38. >o dourado era 9 reais, o prata 6, e o vermelho 3
  39. >quase não tinham DVD’s com adesivos dourados
  40. >a maioria era vermelho, e alguns pratas
  41. >quanto melhor fosse o filme, mais chances do adesivo dele ser dourado
  42. >quando ela trouxe os DVD’s, logo saquei tudo
  43. >ela não sabia, mas eu conhecia praticamente cada um daqueles filmes
  44. >ela tinha pego 3 filmes bem antigos
  45. >Luzes da Cidade, Cantando na Chuva e Último Tango em Pariz
  46. >TODOS OS TRÊS ERAM DVD’S DE ADESIVOS DOURADOS
  47. >estavam com adesivos vermelhos
  48. >ela sequer se deu ao trabalho de disfarçar, colocar pelo menos um dourado
  49. >se fossem ao menos prata, mas vermelhos?
  50. >um filme com Charlie Chaplin, outro com Genne Kelly e outro com Marlon Brando
  51. >TODOS OS TRÊS VERMELHOS? AH, VSF!
  52. >eu tive que prender a risada
  53. >-27 reais, moça – eu disse, colocando em uma sacola
  54. >-não,9 reais! - ela respondeu
  55. >-daria, se fossem filmes com adesivos vermelhos.
  56. >ela apontou para um dos DVD’s, motrando o adesivo
  57. >-eu vi você trocando os adesivos
  58. >-eu não tr…
  59. >antes que ela terminasse eu apontei para uma câmera
  60. >depois apontei para o monitor no meu balcão
  61. >ela se calou, ficou meio sem graça
  62. >ela ficou MUITO sem graça, na verdade
  63. >-olha, eu não queria te constranger, mas…
  64. >-não, tá tudo bem, desculpa por isso.
  65. >porra
  66. >ela realmente parecia muito bolada
  67. >ou era uma ótima atriz
  68. >o que não me surpreendia, já que era aparentemente uma cinéfila
  69. >porra de novo
  70. >eu realmente fiquei com pena dela
  71. >-tá tudo bem, ninguém precisa saber… - eu disse, piscando o olho para ela
  72. >ela me olhou estranho, acho que não tinha entendido
  73. >-hum, vejamos o que temos aqui… - eu disso ironicamente, olhando para os DVD’s – olhe só! 3 DVD’s com adesivos vermelhos.
  74. >ela riu
  75. >o sorriso dela era lindo
  76. >-são 9 reais, moça.
  77. >ela tirou o dinheiro da bolsa
  78. >eu entreguei a sacola para ela
  79. >-posso saber em quais DVD’s você colocou os adesivos dourados?
  80. >ela não respondeu
  81. >agora tinham 3 filmes horríveis custando 27 reais na nossa locadora
  82. >-tá bem… já tem cadastro?
  83. >-Ágata Vila-Flor
  84. >-hum, vida longa à Portugal! - respondi ironicamente enquanto procurava no computador
  85. >ela estava devendo outros 13 filmes
  86. >puta que pariu, qual é o problema dessa garota?
  87. >eu simplesmente ignorei, não sei dizer o motivo
  88. >-tudo bem, você tem o final de semana inteiro
  89. >-obrigado – ela respondeu, e foi embora
  90. >mas antes que ela passasse pela porta, eu chamei sua atenção novamente
  91. >-como você sabia?
  92. >ela se virou para mim
  93. >-sabia o quê?
  94. >-como você sabia que eu não ia falar dos 13 filmes que você não devolveu?
  95. >ela simplesmente sorriu e foi embora
  96. Depois do fim de semana…
  97. >segunda-feira
  98. >aguardei ela chegar para entregar os DVD’s, mas ela não apareceu
  99. >é claro que eu esperava por isso
  100. >na hora de fechar, pensei em esperar um pouco
  101. >no dia que ela tinha pegou os DVD’s era bem tarde
  102. >mas depois de dez minutos eu desisti e fui embora
  103. >terça-feira
  104. >eu pensei que talvez ela aparecesse
  105. >mas acho que ela não estaria disposta a pagar multa por atraso
  106. >quer dizer, ela não tinha nem 27 reais para os 3 filmes que pegou naquela noite
  107. >imagina pagar a multa de atraso de todos os 13 filmes?
  108. >era um real por dia, e o primeiro filme que ela alugou foi há 1 mês
  109. >fico me perguntando como meu avô deixou isso acontecer (era ele que tomava conta da locadora antes de mim, na verdade a locadora é dele)
  110. >agora ele está muito doente pra isso, mas não vem ao caso
  111. >quarta-feira
  112. >eu já tinha desistido
  113. >ela definitivamente era uma ladra de filmes
  114. >ainda assim algo me fez esperar 10 minutos novamente
  115. >eu sentia que ela apareceria... senti errado
  116. >desisti e fui emborra
  117. >à noite, nenhuma novidade
  118. >apenas eu trancado no meu quarto assistindo uma sitcom para amenizar meus problemas psicológicos de merda
  119. >durante a manhã eu estudava
  120. >no colégio a professora de Português me passou uma atividade
  121. >eu tinha que fazer a resenha de um livro
  122. >ela escolheu um livro para cada aluno
  123. >mas não os entregou
  124. >era para a gente arranjar os livros
  125. >um sortudo ficou encarregado de fazer a resenha de Eu, Robô
  126. >eu manjo muito de ficção científica
  127. >mas fiquei encarregado de fazer a resenha de um livro chamado 1984
  128. >de um tal de George Orwell
  129. >não conhecia, mas ela falou que era um misto de romance com ficção científica
  130. >que merda
  131. >eu procurei pelo livro na biblioteca do colégio, mas não encontrei
  132. >agora eu tinha que achar essa porra
  133. >tinha uma biblioteca perto do colégio, provavelmente eu o encontraria lá
  134. >do colégio fui direto para a biblioteca
  135. >chegando lá, algo intrigante aconteceu
  136. >eu encontrei ninguém menos do que ela: a ladra de filmes
  137. ...
  138. >eu me aproximei dela, ela ainda não tinha me visto
  139. >estava folheando um livro de frente para uma prateleira
  140. >- você também rouba livros? - perguntei, a pegando de surpresa
  141. >ela continuou de costas para mim, e colocou o livro de volta na prateleira
  142. >- você demorou de me achar! - ela disse, se virando
  143. >- você queria que eu te encontrasse? - eu perguntei, intrigado
  144. >- claro que não! - ele negou, com um tom de deboche – mas eu sabia que você iria tentar.
  145. >- se quer saber, não te encontrei aqui intencionalmente.
  146. >- não?
  147. >- não, preciso pegar um liv…
  148. >nesse momento eu percebi que o livro que ela colocou na prateleira era justamente o que eu estava procurando: 1984, de George Orwell
  149. >ela percebeu que eu fiquei olhando para ele, então ela o pegou novamente
  150. >- você quer isso? - ela perguntou rindo
  151. >- é, era ele que eu tava procurando. Vai roubar primeiro?
  152. >- é uma biblioteca, eu não preciso roubar.
  153. >- você não devolve os filmes.
  154. >- mas devolvo os livros, e quer saber? Eu não te devo satisfação nenhuma.
  155. >ela simplesmente foi até a bibliotecária com o livro
  156. >- ei, o livro! - eu gritei
  157. >- eu vi primeiro… - ela disse, piscando o olho para mim antes de falar com a bibliotecária
  158. >bem, eu não podia simplesmente tomar dela
  159. >tecnicamente ela tinha o direito de pegar o livro, ela viu primeiro
  160. >eu precisava pensar em algo
  161. >então decidi segui-la
  162. >assim que ela saiu da biblioteca eu saí também
  163. >tentei manter distância durante todo o percusso
  164. >ela seguiu por um caminho que passava por um parque
  165. >depois ela deu a volta por um condomínio próximo
  166. >tinha um campo verde enorme
  167. >tinha muito verde pela frente, e depois do verde tinha a areia, as pedras e o mar
  168. >ela estava saindo da cidade
  169. >e pior, pela pista
  170. >eu a segui, mas se ela olhasse para trás me veria
  171. >não tinha onde eu me esconder, eu não ia me esgueirar por árvores feito um imbecil
  172. >o “passeio” deve ter durado meia-hora
  173. >no meio do caminho ela finalmente teve a ideia de olhar para trás
  174. >- você consegue chegar lá sem morrer? Tá suando e respirando igual a um porco há uns quize minutos.
  175. >ela sabia o tempo todo que eu estava seguindo ela
  176. >eu devia ter previsto isso
  177. >- não quer saber por que eu tô te seguindo?
  178. >- não, eu não ligo pra você.
  179. >um bom tempo depois finalmente chegamos no litoral
  180. >eu não fui até as pedras, pois a água estava batendo nelas e eu ia me molhar
  181. >mas ela foi até lá, mesmo com o livro
  182. >- cuidado para não molhar o livro! - eu gritei, irritado
  183. >- isso não é problema seu. - ela respondeu
  184. >ela conseguia ser mais irritante que qualquer pessoa que eu já conheci
  185. >mas eu tinha um bom plano
  186. >ou ao menos um que ia servir por agora
  187. >tentaria chantagear ela com a dívida dos DVD’s
  188. >- você tá me ouvindo? - gritei
  189. >- não! - ela gritou de volta
  190. >não sei se ela pensou que isso seria engraçado
  191. >tanto faz, eu simplesmente fui para mais perto dela
  192. >- eu preciso do livro. - eu disse
  193. >- é, eu também.
  194. >- sério, eu tenho uma atividade no colégio valendo ponto, e preciso dele.
  195. >- não tô te ouvindo direito, por que você não vem mais pra perto?
  196. >eu me aproximei ainda mais, por algum motivo, mesmo sabendo que ela só tava curtindo com a minha cara
  197. >- por favor, eu preciso desses pontos.
  198. >ela se levantou da pedra onde estava sentada
  199. >- vem aqui pegar…
  200. >- eu não vou jogar esse tipo de jogo!
  201. >- foi o que eu pensei – ela disse, se sentando outra vez
  202. >aquilo soou como um desafio para mim
  203. >tomei coragem e fui até lá
  204. >- é assim que vai ser? - eu perguntei
  205. >ela se levantou rindo, e me encarou esperando que eu tentasse pegar o livro
  206. >eu fui na direção dela, e ela fez a coisa mais doida que alguém já ousou fazer comigo
  207. >ela simplesmente me empurrou e eu caí no mar
  208. >mas tinha um problema: eu não sei nadar
  209. >eu comecei a me debater na água, enquanto subia e descia várias vezes
  210. >não era o que eu estava planejando para a minha sexta-feira
  211. >há uma semana ela tinha trocado adesivos de DVD’s da locadora em que eu trabalho, e eu achei isso radical
  212. >ela ficou rindo de mim, talvez achou que eu estivesse sendo dramático
  213. >ou talvez ela só fosse uma psicopata do caralho
  214. >felizmente ela não era, pois quando percebeu que era sério, parou de rir no mesmo momento
  215. >ela se jogou na água e me ajudou
  216. >que ótimo, agora eu fui salvo pela pessoa que eu pretendo tomar um livro
  217. >se eu tinha algum resto de dignidade, eu perdi naquele momento
  218. >- você tá bem? - ela perguntou
  219. >eu não consegui responder
  220. >- é, acho que eu vou ter que fazer respiração boca a boca…
  221. >nesse momento meu coração disparou
  222. >- brincadeira! - ela disse rindo, e então deu um murro na minha barriga
  223. >eu tossi e depois cuspi toda a água que tinha engolido
  224. >- se as pessoas soubessem que isso funciona, os filmes de romance iriam perder a magia – ela disse se levantando.
  225. >o quê? Você pensou que iríamos nos apaixonar depois dela salvar minha vida?
  226. >eu já te avisei que isso não é um romance clichê
  227. >mas o fato de que eu entrei em uma euforia anormal quando ela sugeriu respiração boca-a-boca me deixou intrigado
  228. >mas acho que não tem problema nenhum com isso, ela era bonita e ia me beijar
  229. >não é como se eu sentisse algo por ela ou coisa assim
  230. >enfim
  231. >depois disso eu me levantei e olhei para a minha roupa
  232. >eu definitivamente preferia ter morrido afogado
  233. >eu tava completamente encharcado
  234. >- você não sabe nadar… - ela comentou, rindo
  235. >- você acha? - eu disse, enquanto parti para cima dela para pegar o livro de novo
  236. >diplomacia não é o forte dela, eu devia saber
  237. >ela fugiu de mim por um tempo, e parecia estar se divertindo com isso
  238. >até que eu finalmente a agarrei pelo braço
  239. >qualquer pessoa que visse aquilo pensaria que era um casal curtindo
  240. >nesse momento nos encaramos olho no olho
  241. >só então eu percebi o quanto ela era bonita
  242. >é óbvio que eu já tinha reparado que ela era bonita, mas… ela era MUITO bonita
  243. >mas eu esqueci isso no mesmo momento, porque para meu desespero ela simplesmente jogou o livro no mar
  244. >- você não fez isso… - eu olhava para o mar, incrédulo
  245. >eu percorri de uma biblioteca até uma porra de praia, por um livro que ela tinha acabado de jogar na água
  246. >- você deve querer muito esses pontos… - ela disse rindo, enquanto olhava para o mar também
  247. >por um momento eu tive vontade de matar ela
  248. >bem, ninguém tava vendo, então seria uma bela oportunidade
  249. >- por que? - eu perguntei olhando para ela, desesperado
  250. >ela deu de ombros
  251. >- você é sempre assim tão… monótono?
  252. >- monótono? Você acha que só porque eu não roubo DVD’s e jogo livros no mar eu sou monótono?
  253. >- se eu fosse você, eu teria depressão…
  254. >okay, eu entendo que ela não teve a intenção
  255. >mas doeu tanto quanto aquele murro na barriga
  256. >ela percebeu que eu fiquei mais sério depois que ela falou isso
  257. >- você não tem depressão, tem?
  258. >eu respirei fundo
  259. >- é melhor juntar dinheiro, sua ladra maluca! - eu disse apontando o dedo na cara dela – porque você tem uma multa muito cara para pagar lá na locadora
  260. >- eu não vou pagar nada e você sabe disso.
  261. >-vamos ver! - eu disse, e fui embora
  262. >eu estava com muita raiva dela
  263. >ela tinha ultrapassado todos os limites
  264. >falar da minha depressão foi o fim da picada
  265. >- ei, idiota! - ela gritou, mas eu não olhei para trás
  266. >ela tentou me acompanhar
  267. >- sai de perto de mim! - eu disse, apontando para longe
  268. >- eu sei onde conseguir outro livro daquele.
  269. >eu parei
  270. >meu orgulho não queria deixar, mas eu precisava do livro
  271. >- eu tô ouvindo – disse, cruzando os braços
  272. >- em outra biblioteca – ela disse rindo
  273. >- você é uma idiota…
  274. >segui meu caminho, me concentrando em não quebrar meu código de honra: não bater em mulheres
  275. >- você é um bebê chorão! - ela gritou, já longe
  276. >- essa foi a coisa mais imatura que eu ouvi em anos! - gritei de volta
  277. >- chorar é mais imaturo ainda!
  278. >eu ignorei, apenas segui meu caminho
  279. >eu tinha o fim de semana para conseguir outro exemplar de 1984
  280. >mas aquilo não ia sair barato, literalmente não, ela ia pagar por isso… e pelos DVD’s
  281. ...
  282. >sábado de manhã
  283. >estou em minha cama olhando para o teto
  284. >somos 7 bilhões
  285. >em um universo de uma vastidão… do caralho
  286. >que existe há… muito tempo
  287. >muito tempo mesmo
  288. >e que provavelmente vai existir por mais tempo ainda
  289. >eu não sou nada
  290. >eu morrerei e serei esquecido por todos
  291. >cairei no limbo do universo
  292. >as pessoas que me amam vão superar, e seguir em frente
  293. >e quando elas morrerem, não terá sobrado nada de mim nesse mundo
  294. >nem mesmo as lembranças, pois não tem ninguém mais vivo que se lembre de mim
  295. >ah, a propósito: bom-dia
  296. >niilismo existencial, sabe como é
  297. >enfim
  298. >eu tinha que encontrar um exemplar de 1984
  299. >e falar com meu avô sobre a ladra
  300. >minha cabeça doía só de me lembrar dela
  301. >finalmente criei ânimo para levantar
  302. >antes mesmo de tomar café fui falar com meu avô
  303. >-, temos um problema lá na locadora.
  304. >- o que aconteceu? Algo deu errado?
  305. >- não, não, não é isso. Bem, é que… tem um cadastro lá, de uma pessoa, e ela tem 13 filmes que pegou há muito tempo, e ainda não devolveu. E ela p…
  306. >antes de terminar, lembrei que não podia falar que ela pegou mais 3, pois eu tinha acobertado isso
  307. >- e ela… ela não aparece pra devolver, sabe?
  308. >- qual o nome do cadastro?
  309. >- Ágata Vila-Flor.
  310. >meu avô riu
  311. >- ah, não se preocupe com isso!
  312. >- quê? M-mas, por que?
  313. >- apenas deixe isso pra lá, não vale seu tempo. Vá se divertir garoto, hoje é sábado!
  314. >aquilo foi estranho pra caralho
  315. >eu tinha que fazer algo a respeito
  316. >ela tinha que pagar pelas merdas que fez
  317. >mas agora não tinha nada que eu pudesse fazer, pelo visto
  318. >o melhor a ser feito era eu tratar de providenciar o livro
  319. >tinham outras 2 bibliotecas na minha cidade, todas bem longe
  320. >tudo bem que eu fui parar fora da cidade no dia anterior, mas na verdade esse era um bom motivo para eu não fazer nada parecido hoje
  321. >estava extremamente cansado
  322. >resolvi que ia jogar tudo pro alto
  323. >passei a manhã inteira assistindo uns desenhos que estavam passando na televisão
  324. >depois passaram alguns programas chatos até que eu encontrei um daqueles filmes oitentistas de ação bem mal-dirigidos
  325. >fiz isso até dar meio-dia
  326. >almocei tranquilamente, como se nada estivesse acontecendo
  327. >foda-se a resenha daquele livro idiota
  328. >foda-se os filmes que a ladra roubou
  329. >depois do almoço fui para meu quarto novamente
  330. >joguei video-game por horas à fio
  331. >até que uma pedra caiu no chão do meu quarto
  332. >só tinha uma explicação: alguém jogou ela na janela
  333. >eu fui olhar na janela e uma pedra acertou meu olho
  334. >puta que pariu
  335. >era a ladra de filmes
  336. >- Rapunzel, jogue suas lindas traças para mim! - ela disse, sempre com aquele tom de deboche dela
  337. >- que porra cê tá fazendo aqui? Aliás, como você sabe onde eu moro?
  338. >- você vai descer ou não?
  339. >eu não respondi, apenas fechei as janelas
  340. >de repente eu ouvi do meu quarto alguém batendo na porta da casa
  341. >era ela de novo
  342. >antes que eu pudesse gritar pro meu avô não atender, já era tarde demais
  343. >- pois não? - meu avô perguntou, inocente
  344. >- oi, eu sou uma amiga do seu neto, ele tá ai?
  345. >- ah sim, claro, minha jovem! Pode ir entrando…
  346. >puta que pariu… puta que pariu duas vezes
  347. >- ele está enfonado naquele quarto dele, fique à vontade.
  348. >- obrigado – ela respondeu com um sorriso gentil para ele
  349. >que garota encantadora
  350. >ou ao menos deve ter sido isso que meu avô pensou
  351. >mas eu sei bem o que essa maluca é
  352. >eu fiquei encostaod na porta, esperando ela subir as escadas
  353. >- seu avô é um fofo – ela respondeu, e passou por mim entrando no quarto
  354. >- sim, pode entrar! - eu falei ironicamente, e entrei no quarto também
  355. >ela fechou a porta e jogou uma mochila na cama
  356. >- o que você tá fazendo aqui? - eu perguntei
  357. >ela se sentou na minha cama e olhou ao redor
  358. >- seu quarto é legal, e você tem uma televisão nele
  359. >- você não respondeu minha pergunta
  360. >- isso é um PlayStation? - ela disse, ligando meu console
  361. >- eu estou esperando uma resposta…
  362. >- aposto que eu ganho de você em qualquer jogo! - ela disse
  363. >-, legal, agora me diz o que você veio fazer aqui.
  364. >ela foi até a mochila e pegou um livro
  365. >era o livro que eu precisava, 1984
  366. >ela me entregou o livro na mão
  367. >- se você pensa que isso muda alguma coisa…
  368. >eu fui interrompido
  369. >mas dessa vez não por uma das maluquices dela
  370. >quer dizer, de certa forma sim
  371. >ela simplesmente me beijou
  372. >foi um beijo bem longo, e eu demorei pra assimilar o que tava acontecendo
  373. >quando finalmente pensei em reagir ela parou
  374. >- tá legal, o que foi isso?
  375. >- você beija mal – ela disse, pegando o joystick para jogar
  376. >- mas eu nem tava… esquece! Você é maluca!
  377. >ela riu, enquanto começou a jogar
  378. >- Final Fantasy é coisa de frutinha, não tem nada melhor aí não?
  379. >que idiota, FF é uma das melhores sagas de jogos que existem
  380. >ela pegou meu disco de Metal Gear Solid
  381. >- isso sim é um jogo bom!
  382. >eu não sabia como mandá-la embora
  383. >eu tinha esse direito, eu sei que sim
  384. >mas era muito estranho, como falar “vai embora do meu quarto”?
  385. >ainda mais pra uma garota
  386. >uma garota que tinha acabado de me beijar
  387. >decidi que simplesmente ia ver onde isso ia parar
  388. >péssima ideia, 18:00h da noite e ela ainda não tinha ido embora
  389. >- esse livro não é roubado, é? - eu perguntei, segurando-o
  390. >- você não devia estar fazendo uma resenha dele?
  391. >- não, eu faço amanhã.
  392. >- não, você faz hoje. Amanhã vamos sair!
  393. >- o quê? Como assim, você não me convidou pra lugar nenhum, e nem eu… droga, dá pra você me explicar o que tá acontecendo?
  394. >- você é divertido, e eu quero sair com você, é isso. Não é óbvio?
  395. >eu respirei fundo
  396. >qual é o problema dessa garota?
  397. >ela fugiu de mim por uma semana
  398. >quase me matou afogado
  399. >e agora entra no meu quarto, me beija, joga meus jogos e praticamente ordena que eu saia com ela?
  400. >eu queria ter o auto-confiança dela
  401. >nem sei o motivo, mas simplesmente fui fazer a resenha do livro
  402. >as vezes eu parava pra observar ela jogando
  403. >ela era muito boa nisso
  404. >mas que porra! Há algumas horas atrás eu estava planejando fazer ela pagar uma multa caríssima e me vingar da raiva que ela me fez passar
  405. >e agora ela tá sentada na minha cama
  406. >eu bem que podia jogar ela da janela e dizer que foi um acidente
  407. >na verdade eu deveria ter feito isso, como descobri mais tarde
  408. >pois deu a hora do jantar e ela ainda estava lá
  409. >- O jantar tá na mesa! - minha mãe gritou da sala de jantar
  410. >eu nem tinha visto ela chegar
  411. >- finalmente! Eu já tava com fome – ela disse, e largou o joystick de lado
  412. >ela ia jantar na minha casa
  413. >ela… ia… jantar… na… minha… casa
  414. >puta que pariu pela terceira vez
  415. >eu demorei pra sair do quarto
  416. >conseguia ouvir ela falando com minha mãe
  417. >ela tinha um carisma do caralho
  418. >dava pra ver que as duas estavam se entendendo super bem
  419. >tipo, nem foi como “quem é essa garota que eu nunca vi antes?
  420. >quando eu desci, as duas estavam conversando sobre Casablanca
  421. >um filme muito bom inclusive, recomendo
  422. >minha mãe também gostava de filmes antigos, por causa do meu avô
  423. >meu pai passou o jantar inteiro me olhando com aquele jeito tipo “boa, filhão!
  424. >eles tavam pensando que ela era a minha namorada
  425. >- então, há quanto tempo vocês se conhecem? - minha mãe perguntou
  426. >- há umas duas semanas, e ele passou esse tempo todo tentando me conquistar – ela disse, me olhando de um jeito desafiador
  427. >minha mãe riu, meu pai continuava minha olhando igual a um idiota
  428. >meu avô agia como se nada estivesse acontecendo
  429. >aquela seria uma longa noite
  430. >e eu tentava achar um motivo pra não gritar “EU NÃO CONHEÇO ESSA DOIDA, ELA SIMPLESMENTE ENTROU NA MINHA VIDA E FEZ UM MONTE DE MALUQUICE E EU NÃO QUERO VER ELA NUNCA MAIS! ALGUÉM FAZ ALGUMA COISA!
  431. >se bem que de alguma forma, agora eu já não estava tão desesperado assim
  432. >meu avô por algum motivo não se importa com os filmes
  433. >e eu desconfio que ele já conheça ela
  434. >e apesar de eu não estar muito afim de ver a cara dela, acho que a minha raiva passou
  435. >eu consegui fazer a redação, no fim das contas
  436. ...
  437. >por sorte, não aconteceu nenhum desastre no jantar
  438. >apesar de que ela fez parecer que eu sou louco por ela para os meus pais
  439. >depois disso, ela finalmente foi embora
  440. >minha mãe foi fazer um daqueles comentários constrangedores
  441. >- ela é muito bonita e inteligente, você deve gostar muito dela.
  442. >eu ignorei, fui direto falar com meu avô em particular
  443. >- certo,, me explica o que tá acontecendo… - eu falei
  444. >- o quê? Como assim?
  445. >- você conhece ela de algum lugar? Por que você não liga pro registro com os 13 filmes não devolvidos?
  446. >- você se importa mesmo com isso?
  447. >- bom, sim, né…
  448. >ele riu
  449. >- sabe, quando eu era jovem, eu ia para o cinema assistir as matinês de faroeste que tinham no domingo - disse meu avô, sentando-se em sua poltrona
  450. >aquilo ia ser interessante, pelo visto
  451. >- mas eu não tinha dinheiro para assistir essas matinês todo domingo. Então eu ia até o porteiro, dizia que meu pai estava lá e precisava falar com ele, entrava e assistia.
  452. >- e ele caia nisso? – eu perguntei, achando aquilo ridículo
  453. >- claro que não! - ele respondeu rindo – Mas ele não se importava, ele deixava por pura vontade.
  454. >à essa altura, já tinha entendido onde ele queria chegar
  455. >- quando essa garota apareceu pela primeira vez, há mais ou menos um mês, eu a vi trocando os adesivos dos filmes – ele continuou – eu ia chamar a atenção dela, mas então eu vi a cena mais bonita em todo o tempo que trabalhei ali: ela tinha pego um filme do Charles Chaplin. Uma garota de uns 16 anos, em pleno século XXI, pegando um filme de Chaplin!
  456. >eu estava começando a me sentir mal por querer fazer ela pagar a multa
  457. >- eu não sei qual a condição financeira dessa garota, mas acontece que ela ama cinema, e ela faz o que faz, por causa disso, exatamente como eu fazia. Eu sou o porteiro agora, entende? Eu sei o que ela faz, mas eu também sei o motivo. E isso faz com que eu não me importe.
  458. >- então ela pode pegar filmes à vontade?
  459. >- é, ela pode. Apenas faça parecer que você não sabe, isso é importante.
  460. >- certo.
  461. >- agora, como eu já tinha dito, vá se divertir. É sábado!
  462. >meu avô sorriu e então se levantou, indo para o seu quarto
  463. >- boa noite.
  464. >- boa noite, vô.
  465. >agora eu me sentia um idiota
  466. >um completo idiota
  467. >essa é provavelmente a garota mais incrível (e maluca) que eu já conheci
  468. >a verdade é que eu não mereço ela
  469. >eu não mereço a amizade dela
  470. >eu não mereço a atenção que ela me dá
  471. No dia seguinte…
  472. >eu acordei um pouco mais tarde
  473. >ai lembrei que tinha uma garota maluca que podia aparecer a qualquer momento pra sair comigo
  474. >então não dediquei alguns minutos à refletir sobre minha insignificância dessa vez
  475. >simplesmente levantei e fui me arrumar correndo
  476. >quando desci para a sala pra tomar café, ela já estava lá
  477. >- você demorou muito! - ela disse, chateada
  478. >eu podia ter respondido de um jeito bem grosseiro, mas prometi a mim mesmo que ia tentar ser razoável com ela
  479. >vai que ela age de um jeito menos doido se eu fizer isso
  480. >talvez ela só faça isso porque sabe que me incomoda, então se eu fingir que não ligo, talvez ela pare
  481. >eu ia tomar café, mas sei que ela não iria esperar, então simplesmente fui com fome
  482. >afinal é isso que os idiotas fazem
  483. >enfim
  484. >ela pegou um ônibus e eu simplesmente a segui
  485. >- pra onde a gente tá indo? - eu perguntei, quando me sentei ao lado dela
  486. >ela deu de ombros
  487. >- espera aí, você não sabe?
  488. >- com certeza ele vai parar em algum lugar interessante uma hora ou outra… - ela me disse, como se fosse a coisa mais normal do mundo
  489. >passamos um bom tempo no ônibus, até que passamos pelo museu de arte da cidade
  490. >- é, aqui é um bom lugar! - ela disse, e se levantou
  491. >eu me levantei também
  492. >saltamos do ônibus e fomos para o tal museu
  493. >a gente passou a tarde inteira olhando quadros
  494. >alguns eram até legais
  495. >ela parecia não ligar muito, como se só estivesse matando tempo
  496. >desconfiei que ela estivesse esperando por algo
  497. >já estava ficando tarde quando ela foi falar com um dos seguranças
  498. >- onde é o banheiro aqui?
  499. >o rapaz apontou a direção
  500. >ela passou por mim e fez sinal para eu segui-la
  501. >eu olhei pro segurança e ele não tinha reparado
  502. >ela entrou no banheiro feminino e me puxou pelo braço
  503. >- tá maluca? Eu não vou entrar no banheiro feminino.
  504. >- relaxa, ninguém vem em banheiros de museus.
  505. >finalmente ela conseguiu me puxar pra dentro do banheiro
  506. >ficamos nós dois sozinhos lá
  507. >- a gente vai…
  508. >- o quê? – ela perguntou, sem entender direito
  509. >é, pelo visto não
  510. >simplesmente ficamos ali por um tempo
  511. >- por que exatamente estamos aqui?
  512. >- por que vamos transar.
  513. >- n-nós o q…
  514. >ela riu
  515. >- eu tô bricando, a gente tá esperando o museu fechar.
  516. >- mas por que?
  517. >- porque vamos ficar aqui escondidos.
  518. >- os seguranças ficam aqui mesmo depois de fechar, não?
  519. >- eu não tinha pensado nisso… - ela confessou – mas acho que se a gente ficar aqui não tem problema, eu não vi nenhumA segurança.
  520. >nisso ela tava certa
  521. >quando finalmente deu o horário, pode ver quando começaram a desligar todas as luzes
  522. >ela mesmo desligou a luz do banheiro
  523. >pude ouvir quando um cara comentou com o outro
  524. >- foi você que desligou a luz do banheiro feminino?
  525. >- não.
  526. >- deve ter sido o Cabeça.
  527. >“cabeça” talvez tenha sido o apelido mais estranho que já ouvi
  528. >mas por sorte, ficou por isso mesmo
  529. >eu não conseguia ver mais ela, mas ela me puxou
  530. >- certo, agora sim nós vamos transar – ela falou bem baixinho, no meu ouvido.
  531. >dessa vez ela não parecia estar brincando
  532. >eu tinha 16 anos, eu devia estar pronto pra isso
  533. >mas qualquer pessoa se sente fora de órbita com ela
  534. >ela toma a atitude muito rápido
  535. >ela domina você
  536. >eu não estava conseguindo agir como um alpha
  537. >decidi que não ia me deixar intimidar
  538. >se isso era algum tipo de teste, eu ia passar
  539. >opa, opa, opa, amigo! Pode guardar esse seu pau de volta pra suas calças
  540. >não, eu não vou narrar como foi
  541. >esse não é um daqueles GT’s pornográficos
  542. >nenhum desses romances de merda onde a “pitanguinha” morre de câncer ou algo do tipo
  543. >nós transamos pra caralho no banheiro de um museu de arte
  544. >isso já é o bastente para você
  545. >enfim
  546. >no dia seguinte tivemos que esperar o museu abrir para sairmos
  547. >por algum milagre ninguém desconfiou de nada
  548. >ela me acompanhou até a minha casa
  549. >como se a mocinha fosse eu
  550. >dessa vez ela não entrou
  551. >- bem, eu tô atrasado pro colégio, obrigado! - eu disse
  552. >- foi a sua primeira vez ontem?
  553. >- o quê?
  554. >- é, foi a sua primeira vez ontem…
  555. >- a sua não?
  556. >- sim, foi a minha primeira vez também. Mas é que… você transou pela primeira vez e tá chateado por causa do colégio?
  557. >ela tinha razão
  558. >eu devo parecer bem idiota pra ela
  559. >- tem razão, desculpa por isso, é que…
  560. >- é que você é um idiota! - ela disse, me interrompendo
  561. >ela ficou séria de repente
  562. >acho que eu magoei ela
  563. >tinha sido a primeira vez dela
  564. >era pra ser uma coisa especial, e eu com meu egoísmo falando de estar atrasado pro colégio
  565. >fiz besteira, fiz besteira, fiz besteira
  566. >- desculpa, eu não…
  567. >de repente ela começou a rir
  568. >- você tinha que ver a sua cara! - ela disse me dando um empurrão de leve – Até mais, “atrasado pro colégio”.
  569. >eu não consegui falar nada
  570. >puta que pariu
  571. >eu sei que eu já perguntei isso
  572. >mas qual o problema dela?
  573. ...
  574. >durante as aulas eu só conseguia pensar nela
  575. >aquela criatura tinha que ser estudada
  576. >estudada por mim, de preferência
  577. >acho que eu estava começando a gostar dela
  578. >o que prova que talvez eu não seja tão diferente dela
  579. >eu devo ser retardado também
  580. >enfim
  581. >passei a aula com a mente longe da sala
  582. >e eu nem tava pensando em como eu vou morrer e ser esquecido nesse emaranhado de pessoas insignificantes que passaram pela Terra
  583. >pela primeira vez eu não me importava com nada disso
  584. >eu tinha algo melhor para pensar agora
  585. >quando o alarme tocou, eu acho que nunca me senti tão feliz
  586. >é tão bom saber que tem alguém esperando por você
  587. >alguém que, assim como você, deve estar contando os minutos pra te ver
  588. >Ágata talvez seja a melhor coisa que aconteceu comigo nos últimos anos
  589. >assim que cheguei em casa, vi dois tênis femininos
  590. >tênis? O que será que ela tava aprontando agora…
  591. >subi as escadas e fui pro meu quarto
  592. >ela tava lendo meu diário
  593. >sim, um diário
  594. >você não precisa falar o quanto isso é ridículo
  595. >- você tem um diário, isso é fofo! - ela disse, enquanto lia
  596. >- me devolve isso! - eu estendi a mão pra ela me entregar
  597. >- o que é esse tal niilismo existencial?
  598. >eu tomei o diário e guardei em uma gaveta do meu criado-mudo
  599. >- me responde, o que é niilismo existencial?
  600. >- não é nada, esquece isso. Você não devia mexer nas minhas coisas…
  601. >finalmente parei pra observá-la
  602. >ela tava usando roupa pra caminhada
  603. >eu preferi nem perguntar nada
  604. >à essa altura do campeonato já tinha desistido de entender ela
  605. >- e então, vamos fazer alguma coisa hoje? - eu perguntei, interessado
  606. >- eu só vim jogar! - ela disse, ligando meu PlayStation
  607. >eu fiquei em pé, parado, a vendo jogar
  608. >um pensamento passou pelo meu cérebro subitamente
  609. >deu vontade de fazer algo bem louco
  610. >algo que eu nunca imaginei que faria… com ela
  611. >a ladra de filmes
  612. >a garota que quase me matou afogado
  613. >que quase arruinou meu trabalho de colégio
  614. >que me fez passar vergonha na frente dos meus pais
  615. >e que… transou comigo no banheiro de um museu de arte
  616. >acho que essa coisa que estou sentindo agora
  617. >é exatamente o que ela sente toda vez que faz alguma doidera
  618. >agora eu entendo
  619. >- Á-Ágata… - eu falei, gaguejando
  620. >- que é? – ela perguntou distraída, enquanto jogava
  621. >eu respirei fundo
  622. >fechei o olho
  623. >- você quer namorar comigo?
  624. >um silêncio pairou
  625. >eu não queria abrir os olhos pra não ver se ela estivesse rindo de mim ou algo do tipo
  626. >até que eu cansei de esperar com todo aquele drama adolescente e olhei pra ela
  627. >ela ainda tava jogando
  628. >- Ágata, você me ouviu?
  629. >- Fala.
  630. >eu respirei fundo
  631. >talvez essa nem tenha sido uma boa ideia
  632. >ainda bem que ela não ouviu
  633. >isso parece ter sido algum tipo de sinal
  634. >também, onde eu tava com a cabeça?
  635. >melhor simplesmente esquecer isso
  636. >namorar com ela deve ser um caos completo
  637. >sinceramente, não sei de onde tirei isso
  638. >enfim
  639. >ela continuou jogando, e eu continuei vendo ela jogar
  640. >depois de um tempo, ela voltou a puxar assunto
  641. >- então… o que é esse tal niilismo existencial?
  642. >- esquece isso.
  643. >- deve ser uma parada pesada. É tipo alguma crise de identidade?
  644. >- esquece isso, okay?
  645. >ela não respondeu
  646. >acho que fui muito frio com ela
  647. >- você é um depressivo chato pra caralho, sabia? - ela contra-atacou
  648. >- tá bom, desculpa, mas não precisa falar assim!
  649. >- não, é sério! Você tá sempre chateado, reclamando, e… e… criticando as coisas, fala sério! Sabe o que eu acho? Eu acho que você devia curtir mais a vida. Carpe Diem, sabe?
  650. >- Carpe Diem… – eu retruquei, achando aquilo ridículo.
  651. >- é sério, você quer terminar como o Neil de Sociedade dos Poetas Mortos? Porque é isso que vai acontecer, e ele nem era depressivo, ele só era frustrado…
  652. >eu não respondi
  653. >na verdade eu não tinha uma resposta
  654. >apenas me calei e esperei que ela fizesse o mesmo… e ela fez
  655. >mas logo depois ela se levantou
  656. >- eu tô indo…
  657. >-?
  658. >- se anima um pouco, quando você não estiver ocupado demais sendo o baixo-estima em pessoa, talvez a gente passe mais tempo junto!
  659. >- que é isso…
  660. >ela me deu um abraço e falou bem baixinho no meu ouvido
  661. >- eu ouvi você me pedir em namoro…
  662. >então foi embora
  663. >e eu fiquei ali parecendo um idiota
  664. Algum tempo depois…
  665. >eu tava no ônibus escolar, voltando do colégio, quando a vi
  666. >ela estava entrando em uma casa
  667. >finalmente eu tinha descoberto onde aquela maluca morava
  668. >já tinha se passado 3 dias desde a última vez que conversamos
  669. >acho que ela realmente queria que eu simplesmente desse um jeito na minha depressão
  670. >não me surpreendi que ela não saiba como isso funciona
  671. >nem que na verdade ela só estava piorando as coisas
  672. >afinal quando eu tô com ela, eu não tô deprimido, nem nada do tipo…
  673. >eu posso até ser chato e tedioso, mas se isso é um problema, por que ela começou com tudo isso, afinal?
  674. >ela já tinha percebido como eu era desde a vez que eu a encontrei na biblioteca
  675. >no fundo, ela estava errada
  676. >mas não adianta eu falar isso pra mim mesmo
  677. >assim que cheguei em casa, almocei, me arrumei e fui para a casa onde eu tinha visto ela entrar
  678. >bati na porta três vezes, e pra minha surpresa, quem atendeu foi meu professor de Física
  679. >o meu professor preferido
  680. >o professor que me explicou o que é niilismo existencial
  681. >o professor que eu confiava e a única pessoa com quem eu conversava regularmente
  682. >- você por aqui? - ele me perguntou, espantado
  683. >Ágata apareceu na porta
  684. >- entre! - ele disse – essa aqui é a minha filha, a Ágata.
  685. ...
  686. >meu chão caiu
  687. >Ágata era filha do meu professor de Física
  688. >como assim?
  689. >eu entrei na casa, mas ainda estava meio desnorteado
  690. >- oi, eu sou a Ágata, prazer lhe conhecer! - ela disse, apertando minha mão
  691. >que… porra… foi… essa?
  692. >- p-prazer, eu sou o…
  693. >- então, o que traz aqui? – disse ele, me interrompendo
  694. >- eu vim falar com o senhor sobre algumas coisas…
  695. >- ah, precisando de alguém com quem conversar, heim? Bem, acho que uma conversa não faz mal, aceita uma xícara de café, ou quem sabe de chá?
  696. >- n-não, obrigado, eu tô bem.
  697. >- certo… - ele disse, sentando-se no sofá junto comigo
  698. >- então… eu andei lendo sobre o niilismo existencial, e eu queria saber: em algum momento, eu vou aprender algo sobre isso que me conforte sobre a morte?
  699. >parece uma pergunta estúpida, e é
  700. >mas lembrem-se que eu estava improvisando
  701. >quanto eu bati nessa porta, eu não esperava encontrar meu professor
  702. >- garoto, se você está em busca de conforto sobre a morte, acho que está procurando isso no lugar errado. Compre uma bíblia!
  703. >- o q-quê?
  704. >- uma bíblia, é claro! - ele continuou – onde nos é prometido um paraíso fantástico depois da morte, com ceias em uma cidade cheia de preciosidades… uma utopia esplêndida!
  705. >- bem, eu sou ateu.
  706. >- é, eu sei. E como um ateu, já deveria ter se acostumado com o fato de que um dia você vai morrer, e não tem nada a ser feito sobre isso, por enquanto.
  707. >não pude deixar de perceber que Ágata estava prestando muita atenção na conversa
  708. >- está na hora de você encarar a realidade, e se ela não lhe cai bem, pare de pensar nisso! - sugeriu meu professor
  709. >- mas como?
  710. >- se distraia com outras coisas… eu não sei, um hobbie talvez. Uma meta, um sonho, um objetivo, algo que te mova, que te deixe tão focado que você não tenha tempo pra pensar em coisas desagradáveis. Eu coleciono charutos, e sou professor, meu sonho é fazer uma descoberta científica.
  711. >aquilo realmente fazia sentido
  712. >sem dúvidas foi a minha conversa mais esclarecedora com ele
  713. >mas Ágata parecia tão interessada quanto eu
  714. >por um segundo até desconfiei que era isso que ela fazia
  715. >todas essas loucuras eram pra suprir uma possível depressão
  716. >muito improvável
  717. >ou será que não?
  718. >- Terra chamando! - brincou meu professor
  719. >eu despertei dos meus devaneios
  720. >- bem, obrigado, professor, muito obrigado mesmo! Eu… tenho que ir, até mais.
  721. >- era só isso? Certo, então… se cuida, garoto.
  722. >- obrigado… ah, e thcau, ÁGATA.
  723. >com isso eu me despedi e fui embora
  724. >passei o caminho inteiro de volta pra casa refletindo sobre o que o professor me disse
  725. >mas também intrigado com Ágata
  726. >ela sabia onde eu morava
  727. >ela estava me esperando enquanto eu procurava por ela
  728. >a sensação que eu tinha é que ela me conhecia muito antes de eu conhecê-la
  729. >eu não sabia o que pensar
  730. >mas sendo filha do meu professor, ela sabia muito mais sobre mim do que eu imaginava
  731. >bem, eis uma distração boa: refletir sobre tudo isso
  732. No dia seguinte…
  733. >no colégio, mais uma vez eu estava distraído demais
  734. >meu rendimento escolar caiu bastante desde que isso tudo começou
  735. >mas sinceramente, eu não me importava nem um pouco
  736. >porém, dessa vez teria aula de Física
  737. >foi uma aula normal, exceto que dessa vez eu não esperei todos saírem pra ficar conversando com o professor
  738. >graças àquele acontecimento de ontem, meu papo com ele estava em dia
  739. >quando voltei do colégio, torci pra que ela estivesse na minha casa
  740. >e por sorte… ela estava
  741. >Ágata estava conversando com meu avô sobre cinema mudo
  742. >a conversa acabou assim que eu cheguei
  743. >- bem, eu vou dar privacidade para os pombinhos… - brincou o meu avô.
  744. >- tá tudo bem,, eu vou conversar com ela lá no quarto…
  745. >ele riu, acho que entendeu esse “conversar” errado
  746. >nós dois subimos
  747. >- okay, tenho muita coisa pra perguntar e pouco tempo, tenho que ir pra locadora.
  748. >- se você quer saber o motivo de eu fingir não te conhecer, é que não tem como eu te conhecer. Quando eu venho te ver, eu digo pro meu pai que estou indo visitar uma amiga. Ele é bem superprotetor…
  749. >- ah, certo…
  750. >- e se eu quero namorar com você? Sim, eu quero, mas com uma condição.
  751. >- qual? - eu nem me dei ao trabalho de pensar no assunto
  752. >- você vai fazer o máximo que puder pra se livrar de toda essa crise existencial e problemas com a morte. Vai fazer o que meu pai disse, vai tentar estipular metas e tudo mais…
  753. >- eu vou, eu prometo que eu vou.
  754. >- vamos fazer isso juntos. - ela me disse, e então me abraçou
  755. >nos beijamos, e aquele beijo consolidou nossa relação
  756. >a relação instável e caótica de um depressivo e uma inconsequente
  757. >talvez tenha sido assim que o Big-Bang aconteceu
  758. >enfim, galera
  759. >não se preocupe, essa história tá longe de terminar
  760. >mas agora teremos um longo salto de tempo
  761. >mas antes um breve resumo do que aconteceu durante esse intervalo de tempo
  762. >eu me apeguei muito à Ágata
  763. >ela passou a ficar comigo na locadora
  764. >e ela tomou coragem pra enfrentar o pai e contou toda a verdade
  765. >a princípio meu professor se afastou um pouco de mim
  766. >mas aos poucos ele fez exatamente o que pedia para que eu fizesse: se conformar com o que não podia mudar
  767. >nós nos reaproximamos
  768. >e digamos que ele é o melhor sogro do mundo
  769. >sobre eu e Ágata: ela continuou sendo a caixinha de surpresas que sempre foi
  770. >nosso relacionamento nunca caiu em uma rotina
  771. >e acredito que foi isso que o manteve firme
  772. >ela não me aguentaria se não acontecesse pelo menos uma coisa de incrível em nossos dias
  773. >mas nem tudo são flores
  774. >a verdade é que lidar com depressão não é tão simples assim
  775. >quando eu estava com ela, esse tipo de pensamento nem ousava dar as caras
  776. >mas sem ela a história era outra
  777. >era como se ela fosse meu antidepressivo
  778. >e sobre as metas e objetivos: eu não conseguia pensar em nada
  779. >bem, foi isso o que aconteceu demais
  780. >ao menos deu tudo certo
  781. 2 anos depois…
  782. >isso mesmo, 2 anos depois
  783. >eu continuo depressivo? Sim
  784. >ela continua louca? Também
  785. >meu sogro ainda é super legal? Com certeza
  786. >mas a boa e velha locadora já não faz tanto sucesso
  787. >a pirataria, infelizmente, é muito mais viável para as pessoas
  788. >e eu não as culpo por isso
  789. >mas meu avô não estava disposto a embarcar nesse ramo
  790. >então seu sonho de viver apenas compartilhando seu amor pelo cinema com outras pessoas não sobreviveu à era da pirataria
  791. >por outro lado, ele já não estava doente como antes
  792. >ela tinha sérios problemas de saúde, por isso eu passei a tomar conta da locadora
  793. >mas agora ele estava pronto pra outra
  794. >porém nada disso foi necessário, pois meus pais passaram a sustentar ele
  795. >ele tinha tudo o que precisava, sem necessidade de esforço
  796. >e podia usar seu tempo livre pra cuidar de sua saúde
  797. >nem tudo são flores, mas também nem tudo é 100% ruim
  798. >enfim
  799. >como todos os relacionamentos, o meu tinha altos e baixos
  800. >e nesse momento, eu estava passando por um desses “baixos”
  801. >para acabar com isso de uma vez por todas, eu finalmente resolvi ter uma dessas conversas de casal que todos nós amamos, não é mesmo?
  802. >aproveitei um dia em que ela foi dormir lá em casa
  803. >parece que não teria sexo dessa vez
  804. >e sim muito diálogo seguido de gelo
  805. >ninguém falou que era pra ser fácil
  806. >- afinal, o que tá acontecendo? - perguntei, quando estávamos na cama
  807. >- como assim?
  808. >- ah, sério? A gente vai jogar esse joguinho? Você tá diferente, não te vejo assim desde que seu cachorro morreu
  809. >ela me olhou séria
  810. >- foi mal por te lembrar disso
  811. >- cala a boca! - ela me disse e começou a arrancar a roupa
  812. >é, eu devia ficar feliz
  813. >ela só queria sexo
  814. >mas, nunca pensei que diria isso: não era a hora
  815. >eu segurei os braços dela
  816. >- Ágata, é sério, você tá diferente. O que tá rolando?
  817. >- vai por mim, você quer fazer sexo.
  818. >- não, eu não quero, eu quero entender o que…
  819. >- não, você não sabe, mas a melhor coisa que você pode fazer nesse exato momento é transar comigo.
  820. >- mas…
  821. >ela voltou a tirar a roupa e… é, isso mesmo
  822. >sem conversas, sem esclarecimento
  823. >quer saber? Do que eu tô reclamando, afinal?
  824. >pois é, tivemos uma longa noite de sexo e depois fomos dormir
  825. >quando eu acordei ela não tava mais
  826. >mas ela deixou um bilhete
  827. >eu peguei para ler
  828. >basicamente, ele dizia: sinto muito por isso, mas eu estou indo para um lugar onde você dificilmente me encontraria. Você sabe como eu sou, e acho que estávamos começando a cair na rotina, e isso eu não posso aceitar. Estou partindo em busca de coisas novas, talvez eu volte, mas não vou exigir que espere por mim, seria pedir demais.
  829. >porra Ágata!
  830. >hoje não, eu tô cansado
  831. >não é um bom dia pra uma crise de casal
  832. >okay, hora de resolvermos esse draminha
  833. >peguei o carro do meu pai emprestado e fui falar com meu sogro
  834. >vi o carro dele chegando
  835. >ele saiu do carro e me olhou espantado
  836. >- não acha que chegou tarde demais?
  837. >- tarde demais pra quê? - eu perguntei
  838. >- que diabos! Ágata me falou que você era ruim em entender as coisas, mas isso é bem pior… você é um lesado.
  839. >- O QUE TÁ ACONTECENDO, AFINAL?
  840. >- eu acabei de levar a sua namorada no aeroporto.
  841. >- como é que é?
  842. >- Por Newton! O que você sabe, afinal?
  843. >- ela só me deixou esse bilhete…
  844. >eu entreguei para ele
  845. >- é, pelo visto ela não te contou muito… - ele disse guardando o bilhete
  846. >- essa ida ao aeroporto, ela vai visitar algum parente de um estado distante?
  847. >- “estado distante”? Ela foi pra Alemanha!
  848. ...
  849. >uma semana depois do ocorrido
  850. >dia do meu aniversário
  851. >tinha acordado cedo, mas ainda não tinha me levantado da cama
  852. >mas dessa vez eu não parei para refletir sobre minha inexistência
  853. >eu já tinha deixado de fazer isso há muito tempo
  854. >eu estava pensando na Ágata
  855. >no que ela fez
  856. >eu vivo perguntando isso, mas lá vai…
  857. >qual o problema dela?
  858. >2 anos e eu ainda não sabia responder
  859. >de todas as loucuras que ela fez, essa é inexplicável
  860. >ele já roubou meu avô
  861. >quase destruiu meu trabalho escolar
  862. >quase me matou afogado
  863. >transou comigo no banheiro de um museu de arte
  864. >mas eu acho que você se lembra de tudo isso
  865. >a questão é: até onde ela pode ir?
  866. >até onde chega a loucura dela?
  867. >ela ao menos podia ter esperado pra comemorar meu aniversário
  868. >mas isso não importa agora
  869. >não que não importe, você sabe
  870. >mas hoje é meu aniversário
  871. >eu tenho que dar meu máximo pra não parecer um americano na época da Grande Depressão pra minha família
  872. >desci pra tomar café e ninguém me deu feliz aniversário
  873. >e não tinha nenhum parente meu exceto por maus pais e meu avô
  874. >o que significa que eles vão fazer uma festa surpresa
  875. >ou seja, eu tenho a manhã e a tarde inteira pra sair
  876. >e claro, a primeira parada seria a casa do meu sogro
  877. >assim que cheguei, ele já me recebeu com um presente
  878. >- feliz aniversário! - ele me disse, me abraçando
  879. >- valeu… - eu disse, já tentando abrir a embalagem
  880. >- não, não abra agora. - ele disse, e me convidou pra sentar
  881. >fiquei curioso
  882. >era uma caixinha bem pequena e fina, não caberia quase nada ali
  883. >eu balancei e não fazia barulho
  884. >ele voltou com biscoitos e café
  885. >- não, obrigado, eu já tomei café.
  886. >ele deu de ombros e colocou tudo na mesa de centro
  887. >- o senhor já sabia que eu viria?
  888. >- é, eu imaginei que sim… você precisa conversar comigo, afinal.
  889. >- preciso?
  890. >- não?
  891. >- é, tem razão… - eu confessei
  892. >- e então, o que vai ser hoje? Acha que aniversários são entediantes e insignificantes?
  893. >- em parte sim, mas não é sobre isso. - resolvi me render e peguei um dos biscoitos.
  894. >-tô ouvindo… - ele disse, depois de beber mais um pouco do café.
  895. >resolvi pegar minha xícara de café também
  896. >-é sobre a Ágata.
  897. >nesse momento ele parou de beber e olhou pra mim
  898. >-eu, eu não sei o que fazer, eu não sei o que esperar, sabe? Tipo, ninguém é treinado pra isso! Algumas mulheres terminam com você, outras te traem, outras te irritam, mas… ela foi pra Alemanha!
  899. >-é, ela é bem excêntrica.
  900. >eu o observei
  901. >ele não parecia se importar muito
  902. >-o senhor não parece estar incomodado com isso.
  903. >ele bebeu mais um pouco do café
  904. >-ela fez a escolha dela, eu não posso controlar tudo. Ela escolheu o que queria, tá na hora de você fazer isso também…
  905. >-como assim?
  906. >-tá brincando? Você não tem controle nenhum da sua própria vida, qual foi a última vez que fez algo inesperado… sem influência da Ágata?
  907. >aquilo fazia sentido
  908. >eu sempre vivi uma rotina bem medíocre
  909. >-hoje é seu aniversário de 18 anos, por que você não faz algo que não podia fazer antes, pra variar?
  910. >-não consegui pensar em nada assim, eu já dirijo, sabe… acho que isso é tudo. Ultimamente só tenho pensado nela…
  911. >-você gosta muito dela, não é? - ele perguntou, sorrindo
  912. >-tá brincando? Ela é a pessoa que eu mais amo, o sentido da minha vida, o…
  913. >-espera aí, o que você disse? - ele perguntou, se posicionando melhor na cadeira como se quisesse prestar mais atenção
  914. >-que eu… gosto dela?
  915. >-não, não, você disse que ela era… ?
  916. >eu não respondi
  917. >senti medo de ter falado algo de errado
  918. >ele tava me olhando estranho
  919. >-vamos lá! Você disse que ela era?
  920. >-a pessoa que eu mais amo…
  921. >-e… ?
  922. >-o… o sentido… da minha vida?
  923. >-isso é verdade?
  924. >-bom… sim.
  925. >-então o que você tá fazendo a 11 mil quilômetros da Alemanha?
  926. >touché
  927. >eu não tinha uma resposta convincente
  928. >-bem, você espera que eu vá pra Alemanha? Eu não esse dinheiro, e nem sei falar alemão, e… droga, como diabos eu iria pra Alemanha? Isso é loucura.
  929. >-eu sei.
  930. >-então é isso?
  931. >-isso o quê?
  932. >-isso é tudo?
  933. >-bem, é o meu melhor: se você liga tanto pra ela, corra atrás dela.
  934. >-ela pode estar em qualquer lugar.
  935. >-em qualquer lugar DA ALEMANHA.
  936. >-a Alemanha é bem pequena, você devia ver. Você coloca um pé na frente de outro e já viajou pra uma cidade vizinha.
  937. >-ainda assim, seria difícil encontra-la.
  938. >-ninguém falou que seria fácil.
  939. >nisso ele tinha razão
  940. >-certo, então…
  941. >-quer mais biscoitos? - ele perguntou, se levantando pra pegar a bandeja
  942. >-não, obrigado, eu tenho que ir.
  943. >-boa sorte, então! - ele disse, levando a bandeja pra cozinha
  944. >-obrigado.
  945. >depois disso, fui embora
  946. >fui direto pro litoral
  947. >onde ela quase me matou afogado há dois anos atrás
  948. >, fiquei observando o mar batendo nas pedras
  949. >as pedras onde ela lia 1984
  950. >eu nunca cheguei a falar o que achei do livro pra vocês
  951. >eu achei o livro genial
  952. >mas isso não importa muito agora
  953. >enquanto olhava para aquela paisagem, as coisas que meu sogro falaram ecoavam na minha mente
  954. >eu fiquei ali durante toda a manhã
  955. >voltei pra casa afim de almoçar
  956. >ainda nenhum parente meu
  957. >-você demorou, onde estava? O almoço já tá pronto há um tempo, deixa eu esquentar. - disse minha mãe, voltando pra cozinha
  958. >eu fui falar com meu avô
  959. >-e então, como você tá? - eu perguntei
  960. >-me diz você… - ele respondeu, sorrindo
  961. >-bem, eu podia estar melhor.
  962. >-ainda pensando nela, não é?
  963. >eu hesitei por um momento
  964. >mas eu devia perguntar isso
  965. >a opinião do meu avô tinha muito mais importância pra mim hoje
  966. >desde aquela conversa sobre matinês de faroeste e DVD’s roubados
  967. >-o senhor acha que eu devia ir atrás dela?
  968. >-eu não posso decidir por você, é sua responsabilidade.
  969. >-eu sei, eu sei, mas… se fosse o senhor, o que faria?
  970. >-à essa altura? Acho que já estaria lá na Polônia.
  971. >-Alemanha.
  972. >-é, dá no mesmo.
  973. >por que todo mundo acha que eu deveria fazer a maior loucura da minha vida?
  974. >NINGUÉM vai falar que isso não é uma boa ideia?
  975. >o dia passou rápido
  976. >eu saí mais uma vez, fiquei andando pela cidade
  977. >quando voltei, para a minha “surpresa” tinha uma festa de aniversário me esperando
  978. >tentei ser legal com todos, eles não tinham culpa de nada
  979. >...
  980. >mas não posso dizer que não fiquei aliviado quando tudo aquilo acabou
  981. >um monte de gente que eu só vejo umas 3 vezes por ano agindo como se eu fosse a pessoa
  982. mais querida da família
  983. >ao menos ganhei presentes
  984. >muitos presentes
  985. >mas só tinha curiosidade pelo presente que o meu professor me deu
  986. >já era meia-noite
  987. >eu estava na minha cama, olhando para o teto
  988. >quando finalmente resolvi abrir o presente
  989. >eu sentia que seria algo importante
  990. >ele não me daria um presente qualquer
  991. >se eu o conheço bem, aquilo era um livro de filosofia
  992. >já estava imaginando alguma coisa do Nietzsche
  993. >acho que é assim que se escreve
  994. >mas quando abri, minha maior surpresa
  995. >ISSO sim era uma surpresa
  996. >acho que nunca me surpreendi tanto na minha vida
  997. >uma pilha de euros e uma passagem para Berlim
  998. >no dia seguinte, eu acordei cedo
  999. >queria deixar tudo pronto
  1000. >eu tinha que pegar meu vôo às 16:00h
  1001. >sim, ele me deu uma passagem para o dia seguinte
  1002. >por que eu não estou surpreso?
  1003. >enfim
  1004. >passei a manhã inteira arrumando as minhas coisas
  1005. >não sei quanto tempo passaria lá
  1006. >peguei todas as minhas roupas
  1007. >coisas que eu ia precisar se eu demorasse lá, etc.
  1008. >quando deu 12:00h, não queria almoçar, mas meu avô me disse que eu ia precisar
  1009. >nunca pensei que odiaria ter que comer uma lasanha
  1010. 14:57
  1011. >- bem, hora de irmos! - disse meu avô
  1012. >- pensei que minha mãe iria
  1013. >- seus pais estão trabalhando, eles não têm tempo pra gente e a gente não tem tempo pra
  1014. eles.
  1015. >- tá bem cedo, vai dar 15:00h agora.
  1016. >- é, mas aeroportos são…
  1017. >meu avô parou por um momento
  1018. >- aeroportos são demorados… - a voz dele saiu estranha
  1019. >-, o senhor tá bem?
  1020. >-, eu só senti uma dorzinha no peito. Coisa de velhos!
  1021. >nós dois entramos no carro
  1022. >bem, eu não tinha carteira de motorista
  1023. >ir até o aeroporto seria arriscado, mas eu preciso
  1024. >eu já tinha combinado com meu avô que ele iria comigo
  1025. >fomos o caminho inteiro ouvindo folk
  1026. >- okay, hora de testarmos seu inglês… - ele disse, tirando um dicionário do porta-luvas
  1027. >- não precisa, vô…
  1028. >- você sabe alemão?
  1029. >- não.
  1030. >- foi o que eu pensei.
  1031. >- por que o senhor tem um dicionário no porta-luvas? - eu perguntei, dividindo a atenção
  1032. entre ele o volante
  1033. >- esse carro já foi um táxi, as vezes tinham turistas.
  1034. >fazia sentido
  1035. >mas eu não sabia que ele era taxista
  1036. >enfim
  1037. >ficamos ensaiando perguntas e respostas em inglês
  1038. >- how you doin’? - ele me perguntou
  1039. >por que cê está fazendo isso?
  1040. >- isso o quê?
  1041. >- esse sotaque alemão
  1042. >- vai ser difícil você entender um alemão falando inglês, eu acho
  1043. >- para com isso! - eu pedi, rindo
  1044. >os minutos depois disso foram tranquilos
  1045. >continuamos ensaiando, mas dessa vez sem o sotaque alemão
  1046. >de repente… blitz
  1047. >um dos policiais me pararam
  1048. >ele olhou bem pra minha cara
  1049. >de repente, bateu o desespero
  1050. >eu não conseguia disfarçar o meu nervoso
  1051. >o policial tava me olhando como se estivesse pensando “que porra tá acontecendo aqui?
  1052. >- algum problema, senhor policial? - eu consegui falar, depois de um tempo
  1053. >- ele continuou me encarando
  1054. >- moleque, quantos anos você tem?
  1055. >- d-dezoito, senhor.
  1056. >eu me apressei e mostrei minha carteira de identidade pra ele
  1057. >- documentação, por favor.
  1058. >eu apontei pra carteira de identidade
  1059. >ele respirou fundo
  1060. >- A CARTEIRA DE MOTORISTA, GAROTO!
  1061. >obviamente, eu não estava com a carteira de motorista
  1062. >afinal eu não tinha uma
  1063. >então tive que improvisar
  1064. >- um momento, seu policial…
  1065. >fiquei procurando pelo carro
  1066. >- é, parece que não tá aqui.
  1067. >ele entortou a boca
  1068. >- sai do carro, garoto.
  1069. >- m-mas…
  1070. >- sai… do… carro.
  1071. >meu avô se apressou em puxar a carteira e puxou 50 reais
  1072. >- isso resolve o problema? - perguntou meu avô, com a mão trêmula
  1073. >o policial ficou encarando meu avô
  1074. >EU fiquei encarando o meu avô
  1075. >puta que pariu
  1076. >a gente ia ser preso por suborno
  1077. >o policial respirou fundo
  1078. >mas para a minha surpresa, ele puxou o dinheiro
  1079. >- vai longo, garoto.
  1080. >eu acelerei e saí dali o mais rápido que pude
  1081. >essa foi por pouco
  1082. >eu comecei a rir
  1083. >mas não era um riso feliz, era um misto de nervoso com alívio
  1084. >meu avô começou a rir também
  1085. >a gente tava rindo histericamente no carro
  1086. >até que ele começou a tossir
  1087. >eu desviei o olhar da pista por um momento pra olhar ele
  1088. >ele parecia estar mal
  1089. >- o senhor tá bem?
  1090. >ele não respondeu, continuou tossindo
  1091. >puta que pariu outra vez
  1092. >até que ele finalmente respirou fundo
  1093. >- é, eu tô bem.
  1094. >dois sustos em menos de 2 minutos, aquilo era demais pra mim
  1095. >- você tossiu por tipo, um tempão.
  1096. >- foi a empolgação… ai!
  1097. >ele levou a mão ao peito
  1098. >-?
  1099. >ele fez uma expressão de dor
  1100. >era melhor isso ser uma brincadeira
  1101. >-, para com isso, é sério!
  1102. >ele ficou com a cabeça baixa, apertando a mão contra o peito
  1103. >- vô… VÔ!
  1104. >eu não vi alternativa
  1105. >fui pra contra-mão e girei o carro na direção contrário
  1106. >iríamos para o hospital
  1107. 15:34
  1108. >eu estava na sala de espera do hospital
  1109. >- com licença, onde tem um telefone aqui? - perguntei para uma enfermeira
  1110. >ela apontou pro corredor
  1111. >- obrigado!
  1112. >eu liguei e avisai para os meus pais que o meu avô estava no hospital
  1113. >quando voltei para a minha cadeira uma médica veio falar comigo
  1114. >- o seu avô vai ficar bem.
  1115. >senti um alívio enorme… pela terceira vez hoje
  1116. >- eu posso falar com ele? - perguntei
  1117. >- eu aconselho você a não fazer isso, ele precisa de repouso e…
  1118. >“aconselho” não signfica “não permito”, logo eu posso
  1119. >a ignorei completamente e entrei na sala
  1120. >ela não me seguiu
  1121. >lá estava meu avô, no leito
  1122. >- essa foi por pouco, heim? - ele brincou
  1123. >- eu pensei que você ia… - nesse momento eu comecei a lacrimejar
  1124. >desisti de falar e fui abraçar ele
  1125. >foi um abraço longo
  1126. >- desculpa por estragar sua viagem.
  1127. >- o senhor não tem culpa.
  1128. >enxuguei minhas lágrimas
  1129. >- ei, não fique assim, ainda dá tempo.
  1130. >- tá brincando?
  1131. >- enquanto não for 16:00h, você ainda tem uma chance
  1132. >- eu não vou deixar o senhor aqui…
  1133. >- já avisou aos seus pais?
  1134. >- sim, mas…
  1135. >- então vá, garoto. Eu vou ficar bem.
  1136. >eu não precisei pensar duas vezes
  1137. >sai correndo daquele lugar na mesma hora
  1138. >mas tinha um problema
  1139. >eu não ia conseguir passar por outra blitz
  1140. >fiquei dentro do carro, sem ligá-lo, apenas pensando no que fazer
  1141. >se ao menos meu sogro estivesse aqui
  1142. >exato
  1143. >meu sogro
  1144. >eu sou um gênio, não sou?
  1145. >não responda
  1146. >é, você não pode
  1147. >enfim
  1148. >fui para a casa dele o mais rápido que pude
  1149. >quase bati o carro 3 vezes
  1150. >estacionei em cima do jardim dele
  1151. >assim que ele viu o carro saiu da casa
  1152. >- que porra você tá fazendo aqui, o vôo são às 16:00h! Você tem um bom motivo pra estar
  1153. aqui?
  1154. >- meu avô teve um infarto, eu tive que levá-lo para o hospital!
  1155. >- é, isso é um bom motivo.
  1156. >- precisamos ir para o aeroporto agora, eu não posso, não tenho carteira de motorista e
  1157. passei por uma blitz por pouco e…
  1158. >- não dá mais tempo…
  1159. >- mas…
  1160. >- não dá. Esquece.
  1161. >eu respirei fundo e me sentei ali, na grama do jardim dele
  1162. >ele se sentou ao meu lado
  1163. >- desculpa por isso, essa passagem deve ter sido cara.
  1164. >não foi culpa sua
  1165. >ele me deu um tapa de leve nas minhas costas
  1166. >- eu tenho muito azar…
  1167. >- ah, para de drama! Eu compro outra!
  1168. >- o senhor não prec…
  1169. >- cala a boca e vem, garoto, nós precisamos ir para o aeroporto
  1170. ...
  1171. >nós fomos para o aeroporto no carro dele
  1172. >ele comprou uma passagem para mim novamente
  1173. >para hoje mesmo, às 18:00h
  1174. >não tem muito o que falar sobre isso
  1175. >não aconteceu nada relevante
  1176. >ele me deixou na sala de embarque
  1177. >- boa sorte na sua procura. - ele me disse
  1178. >- o senhor tem alguma ideia de onde ela pode estar?
  1179. >- tudo o que eu sei é que ele tá em Berlim. Você conhece ela, existem alguns lugares onde
  1180. provavelmente ela pode estar…
  1181. >- é, faz sentido…
  1182. >até que me surgiu uma pergunta
  1183. >- por que a Alemanha? - eu perguntei pra ele.
  1184. >- isso você vai ter que perguntar pra ela.
  1185. >- se eu encontra-la, vou perguntar...
  1186. >- QUANDO você encontra-la, vai perguntar. - ele corrigiu
  1187. >nos despedimos e então chegou a hora de partir
  1188. >quando meu vôo foi anunciado, eu queria que meu avô estivesse comigo
  1189. >era a minha primeira viagem de avião
  1190. >mas eu não estava tão empolgado com isso
  1191. >estava mais empolgado em chegar na Alemanha
  1192. >se eu estivesse só a passeio, aquele seria um dia incrível
  1193. >viajar de avião pela primeira vez, e melhor: para o exterior
  1194. >acho que encontrar Ágata era muito mais importante
  1195. >a viagem durou umas 13 horas
  1196. >poderia ter durado menos, mas o vôo teve conexão com Frankfurt antes de parar em Berlim
  1197. (vôos com conexão são mais baratos)
  1198. >impressionante como o aeroporto de lá era bem mais bonito
  1199. >mas nada disso importa
  1200. >eu sei exatamente o que você quer saber
  1201. >pois bem, lá vamos nós
  1202. >o primeiro dia foi puro descanso
  1203. >eu me hospedei em um hotel
  1204. >e fiquei assistindo televisão na cama
  1205. >no dia seguinte, era hora de começar a agir
  1206. >falei com a recepcionista do hotel
  1207. >perguntei sobre lugares interessantes para ir na cidade
  1208. >com preferência a lugares que tem a ver com cinema
  1209. >ela me passou uma lista de todos os cinemas e onde eles ficavam
  1210. >mas algo que ela me disse, me fez ter a certeza que eu encontraria Ágata
  1211. >haveria um Festival de Cinema lá, o BerlinAle
  1212. >eu já tinha ouvido falar antes
  1213. >seria dentro de uma semana
  1214. >ela me aconselhou a comprar logo o ingresso pro filme que eu queria, porque eles iriam se esgotar logo
  1215. >eu fui no mesmo dia
  1216. >o ingresso para cada filme custava 11 euros
  1217. >eu decidi que escolheria apenas um filme
  1218. >Ágata com certeza assistiria mais de um, o pai dela tinha dinheiro, ela com certeza veio aqui
  1219. com bastante grana
  1220. >então por mais que eu só escolhesse um, tinha uma enorme chance de eu encontra-la lá
  1221. >resolvi apostar no filme que ia abrir o festival
  1222. >com certeza ela estaria nele
  1223. >o nome do filme era Snow Cake
  1224. >era um romance britânico/canadense, não quis saber muito sobre ele
  1225. >eu descobriria assistindo
  1226. >com o ingresso comprado, agora só me restava esperar
  1227. >decidi que iria curtir Berlim
  1228. >conhecer o local
  1229. >afinal era a minha primeira viagem internacional
  1230. Na noite seguinte…
  1231. >soube de um clube próximo
  1232. >onde tocava folk
  1233. >e eu como amante de folk, decidi ir
  1234. >tinha um cara cantando músicas do Bob Dylan
  1235. >me senti meio deslocado, sozinho naquela mesa
  1236. >gostaria que a Ágata estivesse ali
  1237. >estava tocando a música preferida dela, “Mr. Tambourine Man”
  1238. >eu não conseguia ficar triste
  1239. >eu estava empolgado demais pra isso
  1240. >mas naquele momento eu só me sentia um peixe fora d’água
  1241. >eu não era alemão
  1242. >é mais fácil quando você tá acompanhado, sabe?
  1243. >enfim
  1244. >fiquei distraído pensando em como era uma bela coincidência estar tocando a música preferida
  1245. >até que o cantor falou algo (em inglês, claro) que me intrigou
  1246. >- muito bem, gostaria de agradecer pela sugestão, essa música é realmente maravilhosa e
  1247. uma das melhores do Dylan. Agora eu vou cantar uma música muito especial para mim, do
  1248. Joni Mitchell, se chama ‘Big Yellow Taxi’
  1249. >alguém tinha sugerido aquela música
  1250. >eu automaticamente me levantei da mesa e olhei ao redor
  1251. >algumas pessoas ficaram olhando para mim
  1252. >até que alguém que estava me encarando parou de me olhar subitamente assim que eu me
  1253. virei para ela
  1254. >cabelos loiros, a única pessoa que também estava sozinha
  1255. >só podia ser ela
  1256. >ela tinha recomendado a música
  1257. >eu fui em sua direção
  1258. >ela deu uma breve olhada, e percebeu
  1259. >logo depois se levantou e foi embora
  1260. >eu fui atrás dela
  1261. >ela começou a acelerar o passo
  1262. >eu acelerei o passo também
  1263. >- Ágata! - eu gritei
  1264. >ela começou a correr
  1265. >eu tive que correr também
  1266. >ela atravessou a rua correndo
  1267. >eu fiz o mesmo e quase fui atropelado
  1268. >de repente ela passou por um beco escuro
  1269. >eu continuei seguindo-a
  1270. >fomos parar em uma rua que parecia uma grande feira
  1271. >tinham várias barracas e várias pessoas
  1272. >eu acabei a perdendo de vista na multidão
  1273. >decidi apenas andar na direção que tinha visto ela
  1274. >fui me batendo entre várias pessoas
  1275. >até que finalmente a alcancei
  1276. >eu a peguei pelo braço
  1277. >ela parou e se virou pra mim
  1278. >- você demorou de me achar! - ela disse sorrindo e então piscou o olho
  1279. >aquela frase, ela já tinha me dito
  1280. >no dia da biblioteca
  1281. >2 anos atrás
  1282. >aquilo me derrubou
  1283. >eu não sei o motivo, mas isso mexeu comigo
  1284. >eu fiquei fraco, minha mão trêmula
  1285. >eu acabei soltando ela
  1286. >- aproveite Berlim, amor.
  1287. >ela me deu um beijo, então deu as costas e foi embora
  1288. >eu demorei pra assimilar as coisas
  1289. >eu queria encontrá-la
  1290. >mas eu não esperava que isso realmente acontecesse
  1291. >eu estava paralisado
  1292. >quando finalmente consegui voltar a reagir
  1293. >ela já estava bem longe
  1294. >e assim eu a perdi mais uma vez
  1295. PARTE 9:
  1296. >terceiro dia
  1297. >eu estava em um misto de emoções
  1298. >me sentia triste
  1299. >decepcionado comigo mesmo por não conseguir segura-la
  1300. >puto pelo que ela faz
  1301. >acho que não pergunto isso já há algum tempo
  1302. >QUAL O PROBLEMA DELA?
  1303. >agora eu sabia que ele esperava por mim
  1304. >ou ao menos sabia que eu iria procurar por ela
  1305. >isso, parece que ela sabia
  1306. >mas como?
  1307. >por que diabos ela acha que eu viajaria pra Alemanha por causa dela?
  1308. >e o fato de que ela fugiu de mim me deixou perturbado
  1309. >pensei até mesmo em desistir
  1310. >pra quê procurar por alguém que vai fugir?
  1311. >talvez eu devesse amarrar ela
  1312. >é uma boa ideia
  1313. >enfim
  1314. >aquilo também abriu meus olhos
  1315. >talvez eu não precisasse esperar até o BerlinAle
  1316. >ela estava em um clube próximo do hotel
  1317. >o que significa que talvez ela morasse próximo dali
  1318. >quem sabe estivesse até hospedada em um hotel vizinho
  1319. >OU ATÉ MESMO O MEU HOTEL
  1320. >as possibilidades eram enormes
  1321. >e eu não sabia por onde começaram
  1322. >mas prometi para mim mesmo que ia viver Berlim
  1323. >se eu tivesse que reencontrá-la, seria no BerlinAle
  1324. >fui sair, conhecer a cidade
  1325. >fiz isso durante o dia todo
  1326. >quarto dia
  1327. >voltei ao clube de folk
  1328. >o mesmo cantor
  1329. >fiquei no bar do clube
  1330. >bebi um monte de coisa com nome alemão
  1331. >uma mulher se sentou do meu lado
  1332. >ela falou algo em alemão
  1333. >- não falo alemão – respondi, em inglês
  1334. >- um estrangeiro?
  1335. >- é.
  1336. >- de onde você é, bonitão?
  1337. >- Brasil.
  1338. >- ouvi dizer que os brasileiros tem um…
  1339. >- nós não vamos transar
  1340. >ela se levantou sem me dar nem mais uma palavra
  1341. >o barmen riu
  1342. >- dia difícil, amigo? - ele perguntou
  1343. >eu fiz que sim com a cabeça
  1344. >ele não falou mais nada
  1345. >acho que ele não sabia falar inglês muito bem
  1346. >deve ter decidido não arriscar
  1347. >melhor assim
  1348. >não tava muito afim de conversa
  1349. >quarto dia
  1350. >eu fui em alguns museus
  1351. >até esperei acabar encontrando ela em um deles
  1352. >mas o mais próximo disso que cheguei foi confundir ela com todas as loiras que apareciam na
  1353. minha frente
  1354. >e acredite: tem MUITAS loiras na Alemanha
  1355. >quinto dia
  1356. >faltavam 3 dias pro festival
  1357. >eu resolvi ir para o clube outra vez
  1358. >no caminho, algo interessante aconteceu
  1359. >eu ouvi uma conversa em português
  1360. >eram um casal
  1361. >eu dei a volta para falar com eles
  1362. >- dá licença, vocês são brasileiros?
  1363. >- a gente é de Portugal! - disse a mulher, bem simpática
  1364. >- puxa, ouvir uma palavra que não tenha um “s”, um “w” e um “h” é revigorante!
  1365. >nós três rimos
  1366. >- és novo aqui? - o homem perguntou
  1367. >- eu tô aqui há 5 dias, totalmente perdido.
  1368. >- estávamos indo para o Keiser. - perguntou o homem
  1369. >- é um clube próximo daqui. - explicou a mulher
  1370. >- eu tava indo pra lá também! - contei
  1371. >- a propósito, meu nome é Manuel! - disse o homem
  1372. >- e o meu é Isabela. - ela acrescentou
  1373. >um português chamado Manuel
  1374. >nossa, por essa eu não esperava
  1375. >bem original
  1376. >enfim
  1377. >eu me apresentei e nós fomos para o clube
  1378. >conversamos bastente
  1379. >eu falei sobre o festival
  1380. >mas não falei sobre a Ágata pra eles
  1381. >não queria falar sobre isso
  1382. >- a gente veio pra cá exatamente por causa do BerlinAle! - disse Emanuel
  1383. >- mas vou aproveitar para apresentar Berlim pra ele… - explicou ela
  1384. >- você já esteve aqui antes? - eu perguntei
  1385. >- sim, eu já morei aqui. Estou sendo a guia dele. - ela comentou, rindo
  1386. >- que legal…
  1387. >depois de muita conversa, eu comecei a sentir sono de decidi ir embora
  1388. >- bem, eu vou indo.
  1389. >- mas já? - lamentou Manuel
  1390. >- é, eu preciso ir.
  1391. >- onde estás hospedado? - perguntou Isabela
  1392. >- no hotel mais próximo daqui.
  1393. >- ah, o Schwazer. Nós estamos lá também! - contou Manuel
  1394. >- nós vamos para uma ópera amanhã - contou Isabela – queres vir conosco?
  1395. >- claro, eu aceito!
  1396. >- então, nos encontramos na saída do Hotel às 19:00h? - perguntou Manuel
  1397. >- 19:00h, vou estar lá.
  1398. >e assim nos despedimos
  1399. >sexto dia
  1400. >passeei mais um pouco por Berlim
  1401. >até dar o horário que eu deveria me arrumar
  1402. >a ópera era uma releitura de Assim Falou Zaratustra
  1403. >eu não entendia de óperas e nem livros que não fossem de ficção científica
  1404. >mas conhecia essa
  1405. >pois o tema da peça baseada no livro Assim Falou Zaratustra era o mesmo de 2001: Uma
  1406. Odisséia no Espaço é esse
  1407. >o preço do ingresso foi bem salgado
  1408. >eu tinha que racionar meu dinheiro, eu tinha bem pouco
  1409. >e não fazia ideia de quanto tempo ficaria em Berlim
  1410. >enfim
  1411. >fomos para a sala e ficamos conversando
  1412. >até que as luzes se apagaram
  1413. >(você deveria ouvir o tema de 2001: Uma Odisséia no Espaço agora)
  1414. >as cortinas vermelhas se abriram
  1415. >canhões de luz apontaram para o palco
  1416. >uma melodia surgiu
  1417. >ela começa bem baixa
  1418. >e vai aumentando
  1419. >de repente eu não pude deixar de notar
  1420. >uma mulher inconfundível no palco
  1421. >sim, no palco
  1422. >Ágata estava no palco da ópera
  1423. PARTE 10:
  1424. >a voz dela era linda
  1425. >angelical
  1426. >eu não sabia que ela sabia cantar
  1427. >eu não acreditava no que eu tava vendo
  1428. >eu não entendia como tava acontecendo
  1429. >seria um delírio?
  1430. >eu estou tão obcecado que estou vendo ela em todas as partes?
  1431. >mas parecia tão real
  1432. >tinha que ser real
  1433. >ERA real
  1434. >lá estava ela, cantando
  1435. >com uma voz perfeita
  1436. >a mais bonita que eu já tinha ouvido
  1437. >a ópera foi muito interessante
  1438. >era legal ver o livro ganhar vida de um jeito tão expressivo
  1439. >mas nada disso importa
  1440. >no fim de tudo, todos aplaudiram de pé
  1441. >eu não
  1442. >eu não sabia como reagir
  1443. >mas de repente soube
  1444. >- eu preciso ir. - disse para o casal de portugueses
  1445. >sai correndo para falar com um assistente de palco
  1446. >o casal me seguiu, acho que estranharam o que eu fiz
  1447. >- eu posso falar com aquela atriz ali?
  1448. >ele não entendeu
  1449. >não entendia inglês
  1450. >o casal chegou
  1451. >- vocês sabem falar alemão? - perguntei pra eles
  1452. >- sim. - respondeu Isabele
  1453. >- pergunta pra ele se eu posso falar com aquela atriz ali.
  1454. >ela perguntou
  1455. >ele respondeu algo pra ela
  1456. >- ele disse que vai avisá-la
  1457. >isso acabavam com o meu plano
  1458. >lá se vai meu elemento surpresa
  1459. >com certeza ela iria embora assim que ele contasse que alguém queria falar com ela
  1460. >eu simplesmente desisti
  1461. >nem expliquei nada pro casal
  1462. >apenas fui embora
  1463. >os dias que se passaram foram normais
  1464. >mas não saia da minha cabeça
  1465. >como eu sempre a encontrava?
  1466. >e… que diabos ela tava fazendo em uma ópera?
  1467. >desde quando ela sabe cantar?
  1468. >mais e mais perguntas, nenhuma resposta
  1469. No dia do Festival…
  1470. >oitavo dia
  1471. >eu me arrumei e fui para o BerlinAle
  1472. >era o grande dia
  1473. >não tinha escapatória
  1474. >ela estaria lá com certeza
  1475. >cheguei em cima da hora
  1476. >por sorte me deixaram entrar
  1477. >quando o filme começou, eu só olhava ao redor
  1478. >quem liga pra Snow Cake?
  1479. >mas cansei de olhar ao redor
  1480. >havia vários pontos que eu não conseguia ver e que ela poderia estar
  1481. >eu não ia ficar andando feito um maluco pela sala
  1482. >resolvi assistir o filme
  1483. >até que ouvi uma discussão
  1484. >vinha de lá de trás
  1485. >eu olhei
  1486. >tinha uma mulher discutindo com o segurança
  1487. >a mulher tinha um crachá, ela deveria trabalhar lá
  1488. >engraçado, ela … não
  1489. >não
  1490. >puta que pariu
  1491. >não
  1492. >ela se parecia muito com Ágata
  1493. >de repente o homem a expulsou de lá
  1494. >eu fui atrás dela
  1495. >mesmo não tendo certeza que era ela
  1496. >ela passou pelo corredor andando em passos pesados
  1497. >parecia estar irritada
  1498. >eu corri para alcançá-la
  1499. >resolvi que iria gritar por ela
  1500. >eu queria surpreendê-la, mas foi mais forte que eu
  1501. >- Ágata!
  1502. >ela parou e se virou
  1503. >- você é bom nisso! - ela respondeu
  1504. >eu a segurei
  1505. >dessa vez a segurei bem forte
  1506. >mas forte do que deveria
  1507. >- Ágata, eu juro pra você… - eu disse, já com os olhos lacrimejando – se você fugir dessa vez,
  1508. eu não vou te procurar de novo.
  1509. >- eu preciso ir.
  1510. >- Ágata, eu falo sério…
  1511. >- eu realmente preciso ir.
  1512. >- se você realmente quer tanto que eu fique, me dê um motivo.
  1513. >- eu te amo.
  1514. >- eu também, idaí?
  1515. >- idaí? Qual é a porra do seu problema?
  1516. >- por que você acha que eu estou fazendo isso? Eu te amo mais do que você pode imaginar.
  1517. >- você é louca… - eu tava começando a sentir raiva daquilo tudo
  1518. >- você é um depressivo sem perspectiva de vida!
  1519. >essa doeu
  1520. >- eu sou a única coisa de boa que já aconteceu na sua vida.
  1521. >essa também
  1522. >- me diga uma coisa: quantas coisas incríveis você têm feito ultimamente?
  1523. >- você não vai me dizer que…
  1524. >- você tá na Alemanha! Algum dia já se imaginou fazendo isso?
  1525. >eu a soltei
  1526. >- você só foi em clubes folk, andou de avião pela primeira vez, foi em museus…
  1527. >- você me viu nos museus?
  1528. >- é claro que eu te vi nos museus, eu te vi em toda parte.
  1529. >eu recuei
  1530. >aquilo era demais pra mim
  1531. >que porra tava acontecendo?
  1532. >- você não entende? - ela perguntou com uma expressão de decepção – você foi em uma
  1533. ópera, você foi no BerlinAle! Você tá no corredor do maior festival de cinema da Alemanha.
  1534. Tudo isso por mim. POR MIM! Porque eu fui embora.
  1535. >- Ágata…
  1536. >- eu sou o sentido da sua vida. Procurar por mim é o sentido da sua vida.
  1537. >- Ágata… você é doente.
  1538. >- pare pra pensar, todo esse tempo. Se2 anos atrás você não tivesse me conhecido,
  1539. provavelmente você já teria se matado!
  1540. >- VOCÊ NÃO PRECISA FAZER NADA DISSO! - eu rosnei
  1541. >acho que ela se assustou um pouco, mas eu já não me importava
  1542. >- MEU AVÔ TEVE UM INFARTO, EU DEIXEI MEU AVÔ NO HOSPITAL POR CAUSA DE VOCÊ! EU
  1543. VIAJEI PRA OUTRO PAÍS POR CAUSA DE VOCÊ! TUDO ISSO POR CAUSA DE UM JOGUINHO?
  1544. PRA ADICIONAR UM SENTIDO À MINHA VIDA? NÃO TINHA UM JEITO MAIS FÁCIL DE FAZER
  1545. ISSO?
  1546. >- não.
  1547. >- É CLARO QUE TEM, PORRA! POR QUE A ALEMANHA? POR QUE?
  1548. >- porque aqui é o meu lugar. Entenda, aqui…
  1549. >- VAI SE FODER, VOCÊ É MALUCA!
  1550. >eu não queria mais saber
  1551. >eu não queria mais saber o motivo dela estar na Alemanha
  1552. >eu não queria saber como caralhos ela conseguiu cantar em uma ópera
  1553. >eu não queria saber o motivo dela fugir
  1554. >nem como ela estava em todos os lugares que eu estava
  1555. >até mesmo no Clube Folk
  1556. >eu só queria ir embora dali
  1557. >beber alguma coisa e descansar
  1558. >e então eu dei as costas para ela e fui embora
  1559. >eu estava decidido: voltaria para o Brasil no dia seguinte
  1560. ...
  1561. >nono dia em Berlim
  1562. >eu refleti sobre tudo o que ela falou pra mim
  1563. >era pura maluquice
  1564. >não tinha como justificar
  1565. >tudo bem que não deu tempo dela falar tudo
  1566. >mas acho que ouvi o bastante
  1567. >antes de ir comprar minha passagem fui para um dos museus que tinha ido antes
  1568. >era o que eu mais tinha gostado
  1569. >me sentia observado
  1570. >algo me dizia que ela estaria ali
  1571. >ela sempre estava
  1572. >ela me seguia, pelo visto
  1573. >puta que pariu
  1574. >pela milésima vez, qual o problema dela?
  1575. >depois do museu, fui comer alguma coisa qualquer no Clube de Folk em vez de almoçar
  1576. >fui pro hotel, arrumei tudo e peguei um táxi
  1577. >sim, eu estava completamente decidido a ir embora
  1578. >estava farto daquela palhaçada
  1579. >deixei meu avô no hospital e não tenho contato com minha família há 9 dias (chamadas
  1580. internacionais custam caro)
  1581. >tudo por causa de uma maluca
  1582. >onde eu tava com a cabeça
  1583. >não tinham mais passagens para hoje
  1584. >eu comprei pro dia seguinte
  1585. >teria que ficar lá por mais tempo
  1586. >não tive ânimo nem de ir pro Clube de Folk
  1587. >só fiquei na minha cama
  1588. >olhando para o teto como nos velhos tempos
  1589. >eu tinha até as 14:00h para aproveitar um pouco de Berlim
  1590. >mas a verdade é que eu não queria ver aquela cidade nunca mais na minha vida
  1591. >eu não posso dizer que eu não queria mais ver a Ágata
  1592. >no fundo eu amava ela e não posso mentir sobre isso
  1593. >mas ao mesmo tempo não sei se conseguiria olhar na cara dela sem sentir raiva
  1594. >resolvi que só ia visitar o Clube de Folk pela última vez e revisitar o museu
  1595. >e foi isso que eu fiz
  1596. >depois peguei minhas coisas no hotel e peguei um táxi
  1597. >mas claro, nada na minha vida é simples
  1598. >teve uma porra de engarrafamento
  1599. >no começo parecia ser um probleminha
  1600. >mas o tempo foi passando
  1601. >e não parecia dar nenhum sinal de que iria acabar
  1602. >então eu decidi que nada iria atrapalhar minha volta para o Brasil
  1603. >eu simplesmente saí do táxi e comecei a andar pela calçada
  1604. >eu não sei como pretendia chegar no aeroporto
  1605. >mas eu simplesmente comecei a andar
  1606. >eu nem sabia o caminho direito
  1607. >essa viagem definitivamente mexeu comigo
  1608. >que porra eu tô fazendo da minha vida?
  1609. >2 anos atrás eu era um cara no balcão de uma locadora
  1610. >agora eu tô tentando ir para um aeroporto em Berlim a pé depois de sair de um táxi por
  1611. causa do engarrafamento
  1612. >eu provavelmente ia me atrasar pro meu vôo
  1613. >se é que eu ia conseguir chegar
  1614. >enfim
  1615. >claro que tinha que acontecer algum milagre, não é mesmo?
  1616. >é sobre isso que essa história é
  1617. >esse tipo de coisa que não deveria acontecer
  1618. >mas acontece
  1619. >- você consegue chegar lá sem morrer? Tá suando e respirando igual a um porco há uns quinze minutos
  1620. >aquela voz irreconhecível
  1621. >eu olhei pra trás, mas não a vi
  1622. >- do seu lado, imbecil!
  1623. >eu olhei pra pista
  1624. >ela estava em um dos carros do engarrafamento
  1625. >- como você sab…
  1626. >- eu não sabia, não dessa vez.
  1627. >- eu quero saber pra onde você tá indo?
  1628. >- eu não sei, você quer?
  1629. >eu respirei fundo
  1630. >a quem eu vou enganar?
  1631. >claro que eu queria
  1632. >- pra onde você tá indo?
  1633. >- pro aeroporto.
  1634. >- puta que pariu… - eu disse, rindo
  1635. >mas não era um riso de alegria, era… sei lá
  1636. >só era inacreditável
  1637. >- então, vai entrar no carro ou não?
  1638. >- por que eu entraria?
  1639. >- porque é o único jeito de você chegar no aeroporto.
  1640. >- primeiro: você me daria carona? E segundo: você não parece estar me uma posição muito
  1641. melhor que a minha, tá no engarrafamento.
  1642. >- só entra no carro… - ela disse, com voz de tédio
  1643. >eu não sei o que passou pela minha cabeça, mas eu entrei
  1644. >e então ela fez a… quer dizer, UMA DAS coisas mais malucas que eu já vi
  1645. >não tem como superar essa ida à Alemanha
  1646. >enfim
  1647. >ela jogou o carro na calçada e segui por ela até passar por todo o engarrafamento
  1648. >o engarrafamento tinha sido causado por um acidente entre 2 carros
  1649. >e quase que a gente se junta à eles
  1650. >- FICOU MALUCA?
  1651. >ela riu
  1652. >bem, se eu sobrevivesse à ela chegaria no aeroporto rápido
  1653. >- você deve ter perguntas.
  1654. >- Ágata, por favor, não…
  1655. >- okay. - ela deu de ombros
  1656. >quando chegamos no aeroporto, ela não saiu do carro
  1657. >- não vamos… nos despedir?
  1658. >- pensei que estivesse com raiva de mim. - ela respondeu
  1659. >- raiva? Eu te mataria, se pudesse.
  1660. >- aham…
  1661. >eu saí do carro
  1662. >- então é assim que acaba?
  1663. >- claro que não… - ela disse rindo – você vai voltar!
  1664. >e com isso partiu com o carro
  1665. >“você vai voltar” o caralho
  1666. >eu nunca mais vou olhar na cara dela
  1667. >e nem voltar pra essa cidade
  1668. ...
  1669. >finalmente de volta ao Brasil
  1670. >foi mais fácil do que eu pensei
  1671. >curioso, por algum motivo eu senti saudade de Berlim
  1672. >era uma cidade bonita
  1673. >os museus eram bem legais
  1674. >e aquele Clube de Folk é… esquece
  1675. >eu não ia voltar nunca mais lá
  1676. >quando cheguei, o primeiro lugar que fui foi a minha casa
  1677. >ver se estava tudo bem com meu avô
  1678. >assim que cheguei ele percebeu e se levantou da poltrona
  1679. >- então você voltou da sua aventura, heim?
  1680. >eu só dei um abraço nele
  1681. >não falei nada, não precisava
  1682. >tudo que eu queria era saber se ele estava bem e ele estava
  1683. >ele também não perguntou, provavelmente esperando que eu mesmo começasse a falar
  1684. >mas eu passei o dia inteiro no quarto
  1685. >o teto nunca foi tão interessante
  1686. >também chorei muito, a quem vou enganar?
  1687. >mas estava feito
  1688. >de noite, achei que seria uma boa ideia ver meu sogro
  1689. >ex-sogro, pelo visto
  1690. >mas ainda assim era meu eterno professor e amigo
  1691. >e só ele sabia o que falar pra eu me sentir melhor
  1692. >assim que parei com o carro do meu pai lá ele saiu para ver
  1693. >- olha só, se não é o nosso turista!
  1694. >acho que ele percebeu meu mau-humor e ficou sério também
  1695. >- o que aconteceu? - ele perguntou
  1696. >- a sua filha… ela é maluca!
  1697. >ele começou a prender a risada
  1698. >isso me irritou
  1699. >- meu avô teve um infarto, o carro do meu pai quase foi apreendido, eu tive que viajar pra
  1700. outro país… pra ela falar que era tudo um jogo! UM JOGO!
  1701. >- acho que ela não se expressou muito bem, né…
  1702. >- o que o senhor sabe sobre isso?
  1703. >ele respirou fundo
  1704. >- não vai entrar?
  1705. >eu não respondi, mas entrei
  1706. >sentei no mesmo sofá que tenho sentado há muito tempo
  1707. >trocando a sala de aula vazia pela sala de estar dele
  1708. >ele sentou na mesma poltrona
  1709. >como se ela substituísse sua mesa
  1710. >- e então? O que o senhor sabe?
  1711. >- bem… tudo.
  1712. >eu tentei falar “o quê?, mas acho que não saiu nada
  1713. >- é claro que eu não sei o que aconteceu lá na Alemanha, mas…
  1714. >- o senhor sabia que era só uma idiotice dela?
  1715. >- idiotice?
  1716. >- é, idiotice. Ela disse que queria… - nessa hora eu tive que respirar fundo – ela disse que só
  1717. queria me distrair.
  1718. >- você é bem lento…
  1719. >- quê?
  1720. >- será que você não percebe? Essa viagem foi a melhor coisa que você fez em anos.
  1721. >- não, não foi.
  1722. >- sim, foi! E você sabe disso, só tá mentindo pra si mesmo porque tem raiva dela agora.
  1723. >- o senhor tá de acordo com tudo isso?
  1724. >- me diga, o seu avô está bem?
  1725. >- sim, mas ele quase…
  1726. >- o carro está lá fora, pelo visto. Não foi apreendido, ou foi?
  1727. >- por pouco… não.
  1728. >- o que você fez lá?
  1729. >- saí para alguns lug…
  1730. >- “alguns lugares”? Acho que você pode fazer melhor do que isso!
  1731. >- bem, eu saí pra alguns museus…
  1732. >ele sorriu
  1733. >- o que mais?
  1734. >- fui… em uma peça de teatro.
  1735. >- mais alguma coisa?
  1736. >- fui pro BerlinAle.
  1737. >- pro BerlinAle, é? Se eu não me engano esse é o paraíso alemão dos cinéfilos.
  1738. >só agora, falando pra ele, eu percebi o quanto essa viagem foi incrível
  1739. >- okay, a viagem foi boa.
  1740. >ele riu
  1741. >- mas não justifica! Eu a amo e ela fugiu de mim, fugiu pra outro país, e quando eu a
  1742. encontrei, ela fugiu de novo.
  1743. >- ela te ama também.
  1744. >- então por que ela foge?
  1745. >- por que ela te ama, e esse é o fardo dela?
  1746. >- esse é o quê?
  1747. >eu tinha achado aquilo ridículo
  1748. >- o fardo dela. Ela está disposta a ficar longe de você, se isso significa acrescentar algo à sua
  1749. vida.
  1750. >- e como isso acrescenta algo à minha vida?
  1751. >- encontrá-la é sua meta, é seu objetivo, é seu sonho, sua distração. Exatamente como eu te
  1752. disse 2 anos atrás, com ela sentada nesse sofá… - ele disse, apontando pro espaço onde ela
  1753. ficava
  1754. >- ela não precisava fazer assim.
  1755. >- não, mas você sabe como ela é. Ela ama a Alemanha, e pensou que se tivesse que ficar
  1756. longe de você, que fosse lá. Lá tem muita coisa interessante, o próprio BerlinAle, além de que
  1757. Nietzsche…
  1758. >- ela não precisa ir pra Alemanha, ela nem precisava ficar longe de mim.
  1759. >- precisava.
  1760. >- tem jeitos melhores pra acrescentar sentido à vida de alguém.
  1761. >- quais? Vocês estão juntos há dois anos. Há dois anos, se me lembro bem, você prometeu a
  1762. ela que iria se livrar dessa sua crise existencial ridícula.
  1763. >- não é tão fácil assim…
  1764. >- não é! - ele concordou – e por isso ela fez do jeito dela.
  1765. >- então qual é o plano? Fugir e esperar que eu passe tempo demais procurando ela pra não
  1766. me preocupar em me matar de depressão? Por que enquanto eu tivesse ela, eu jamais faria
  1767. isso, agora…
  1768. >- enquanto você estivesse com ela, você não tentaria fazer isso. Mas sem ela, você COM
  1769. CERTEZA não faria isso. Você precisava ficar vivo, precisava ter foco, pois um dia talvez ela
  1770. voltasse, um dia talvez vocês se reencontrassem por mero fruto do acaso.
  1771. >- isso é loucura!
  1772. >- você já disse isso antes.
  1773. >eu parei pra pensar por alguns segundos
  1774. >era muita coisa pra assimilar
  1775. >- me diga, qual foi a última vez que você se sentiu incomodado com a sua “morte iminente
  1776. vindo a cavalo para você”?
  1777. >eu não respondi, ainda precisava pensar mais
  1778. >- como… como ela sabia?
  1779. >- sabia o quê?
  1780. >- como ela sabia que eu iria atrás dela?
  1781. >ele riu
  1782. >- ela sabia.
  1783. >- mas como? E se eu não fosse? Eu pensei nisso, na verdade, eu ia fazer isso.
  1784. >- mas não fez, você foi.
  1785. >- mas e se eu não fosse?
  1786. >- então ela não iria.
  1787. >- quê?
  1788. >ele se levantou da poltrona
  1789. >- eu vou pegar café, você quer?
  1790. >- COMO ASSIM “ELA NÃO IRIA”?
  1791. >- acho que isso foi um “não…”
  1792. >ele foi na cozinha, depois de um tempo voltou com uma xícara de café
  1793. >então se sentou novamente na sua poltrona
  1794. >- como… assim… “não iria”?
  1795. >- ela foi pra Alemanha depois de você.
  1796. >aquilo me deixou ainda mais irritado
  1797. >eu fui pra outro país atrás de alguém que estava na mesma cidade que eu
  1798. >ficamos em um silêncio desconfortável por um tempo
  1799. >- é muita coisa pra assimilar, eu sei, mas…
  1800. >- por que o senhor deixou tudo isso acontecer? O senhor pensaria em algo melhor, em algo…
  1801. menos doido. O senhor pensaria!
  1802. >- garoto…
  1803. >ele deu um gole no café
  1804. >- a ideia foi minha.
  1805. ...
  1806. >eu poderia ficar extremamente surpreso
  1807. >poderia ficar extremamente irritado
  1808. >poderia gritar
  1809. >poderia sair dali naquele exato momento
  1810. >e pensei seriamente em fazer tudo isso
  1811. >mas recebi uma ligação
  1812. >- um momento. - eu disse pra ele, antes de atender
  1813. >era a minha mãe
  1814. >- alô?
  1815. >- onde você tá?
  1816. >- oi, eu tô na…
  1817. >- vem pra cá agora!
  1818. >a voz dela estava estranha
  1819. >- tá bom, o que ac…
  1820. >ela desligou na minha cara
  1821. >- eu preciso ir… - disse para ele
  1822. >- tudo bem.
  1823. >me levantei do sofá e saí
  1824. >- nos vemos mais tarde? - ele perguntou antes de eu passar pela porta
  1825. >eu não respondi
  1826. >chegando perto de casa, vi uma ambulância
  1827. >o meu avô estava sendo levado em uma maca
  1828. >eu corri na direção dele, minha mãe me parou
  1829. >- o que tá acontecendo?
  1830. >ela não respondeu, estava chorando
  1831. >ela apenas me abraçou, meu pai se aproximou de mim
  1832. >- vamos no carro.
  1833. >meu pai não estava chorando, mas parecia abalado
  1834. >- o que tá acontecendo, afinal?
  1835. >- ele teve um infarto, que droga! Vamos logo. - respondeu meu pai
  1836. >nós entramos no carro e fomos para o hospital
  1837. >aquele foi um dia tenso
  1838. >nunca irei me esquecer
  1839. >os momentos esperando no corredor
  1840. >a minha mãe chorando o tempo todo
  1841. >meu pai sério
  1842. >e eu me sentindo culpado por pensar em outras coisas
  1843. >por algum motivo não estava surpreso com isso também
  1844. >acho que minha capacidade de se surpreender já tinha acabado
  1845. >Ágata fez isso
  1846. >não sei dizer se é algo bom
  1847. >enfim
  1848. >ainda assim estava preocupado com meu avô, claro
  1849. >nesses últimos 2 anos eu me aproximei muito mais dele
  1850. >antes nossa relação era bem mais morna
  1851. >embora fosse melhor do que com o resto da minha família
  1852. >óbvio que eu queria que ele ficasse bem
  1853. >e então eu a vi a médica saindo da sala
  1854. >cada passo que ela dava pelo corredor parecia ser o primeiro de muitos
  1855. >ela não chegava nunca
  1856. >o corredor ficava maior
  1857. >mas eu não estava ansioso
  1858. >isso foi bom
  1859. >a demora fez com que eu me preparasse
  1860. >os segundos eternos que ela passou vindo na nossa direção foram o suficiente
  1861. >o semblante dela dizia tudo: estava preparada para dar uma má notícia
  1862. >quando ela chegou, eu já estava de luto
  1863. >apenas imaginava como a minha mãe iria lidar com isso
  1864. >- nós tentamos de tudo... - ela começou
  1865. >puta que pariu
  1866. >ela não podia ao menos tentar ser autêntica?
  1867. >- mas o paciente não apresentou melhoras. - completou
  1868. >- ele... ? - minha mãe estava enxugando as lágrimas
  1869. >- sinto muito, ele não resistiu. - confirmou a médica
  1870. >eu me levantei sem falar com ninguém
  1871. >nem mesmo fui consolar minha mãe
  1872. >apenas entrei na sala
  1873. >lá estava o meu velho
  1874. >o homem que me apresentou ao cinema
  1875. >completamente inerte
  1876. >ainda de olhos abertos
  1877. >eu não os fechei
  1878. >apenas o encarei por alguns instantes
  1879. >a médica veio atrás
  1880. >- você está bem? - ela perguntou
  1881. >eu não respondi
  1882. >fiquei ali, olhando nos olhos dele
  1883. >e juro: pude ouvir em alto e bom som
  1884. >"Por que está aqui, quando deveria estar tão longe?"
  1885. >não, ele não falou nada
  1886. >claro que não
  1887. >era apenas eu
  1888. >mas ouvir aquilo com a voz dele, e não com a minha fez a pergunta ter mais sentido
  1889. >porém dessa vez eu não sairia correndo atrás de Ágata
  1890. >eu não o deixaria no hospital sozinho
  1891. >não outra vez
  1892. >fiquei até o final
  1893. >vi o corpo ser levado
  1894. >e só então senti que era hora de voltar pra casa
  1895. >mas a pergunta ainda ecoava na minha mente
  1896. >isso me mantinha distraído o suficiente pra eu não pensar sobre como não tive a chance de
  1897. me despedir
  1898. >quando não se tem a chance de uma despedida clichê, é sempre mais dolorido
  1899. 2 dias depois...
  1900. >o funeral foi simples
  1901. >como ele gostaria que fosse
  1902. >o enterro tinha muitas pessoas
  1903. >a família inteira veio
  1904. >o enterro não foi no dia seguinte justamente por isso
  1905. >para ter tempo de que todos viessem
  1906. >muitas pessoas tentavam me consolar
  1907. >mas eu não precisava
  1908. >ainda assim fui gentil com todos
  1909. >no fundo, eu estava bem
  1910. >a única coisa que me chateava era saber que poderia ter feito melhor
  1911. >2 anos era muito pouco
  1912. >tantas coisas que eu poderia ter dito antes
  1913. >feito antes
  1914. >e o que mais doía era que eu tive a chance
  1915. >eu não fiz pelo simples fato de que não quis
  1916. >de repente notei alguém ali deslocado
  1917. >me encarando
  1918. >esse não era da família
  1919. >era o meu ex-sogro
  1920. >o meu ex-professor de Física
  1921. >o meu ex-conselheiro
  1922. >acho que eram os melhores nomes para defini-lo
  1923. >ele se aproximou de mim
  1924. >eu pensei em simplesmente ir embora
  1925. >mas eu fiquei curioso pra saber o que ele iria dizer
  1926. >pra minha surpresa não disse nada
  1927. >apenas ficou olhando para o túmulo
  1928. >as pessoas foram embora
  1929. >até que só restamos eu e ele
  1930. >nós dois ali, olhando para o túmulo do meu avô
  1931. >começou a chover, mais clichê impossível
  1932. >esperei que ele dissesse algo
  1933. >as vezes ele quase abria a boca
  1934. >tinha certeza que ele iria dizer "sinto muito"
  1935. >então me agilizei
  1936. >- você sente muito, eu sei.
  1937. >ele sorriu
  1938. >- não sinto.
  1939. >- o quê?
  1940. >- eu não sinto muito... - ele olhou pra mim – eu não me importo.
  1941. >é, isso foi bem franco
  1942. >- e você também não.
  1943. >- claro que me importo!
  1944. >- não, não se importa. Isso te incomoda um pouco, mas não ao ponto de te deixar triste.
  1945. >no fundo ele estava certo
  1946. >- era um homem velho, um bom homem, mas velho. Uma hora ou outra aconteceria.
  1947. >eu não confirmei, mas também não neguei
  1948. >- além do mais, você é muito ocupado assombrado pela própria morte, pra se preocupar com
  1949. a morte alheia.
  1950. >- não preciso de você me lembrando o quanto eu sou babaca.
  1951. >- é, não precisa. Então vamos pular essa parte...
  1952. >- o que você quer?
  1953. >- você vai pra Alemanha.
  1954. >nesse momento eu me retirei
  1955. >ele foi atrás de mim
  1956. >- escuta!
  1957. >- eu não vou pra Alemanha! - gritei sem olhar pra trás
  1958. >- ao menos me ouça!
  1959. >- por favor, é o enterro do meu avô!
  1960. >- você precisa ir...
  1961. >nesse momento eu parei e me virei pra ele
  1962. >eu estava com raiva
  1963. >agora sim eu estava irritado
  1964. >- ah, é? Pra quê? Pra encontrar a sua filha maluca? Pra correr atrás de alguém que vai fugir de
  1965. novo?
  1966. >- é, isso aí.
  1967. >- muito engraçado!
  1968. >dei as costas novamente
  1969. >- você vai, e você sabe disso. E dessa vez, quando você encontra-la, ela não vai fugir de você!
  1970. >- como você sabe? - perguntei, ainda andando
  1971. >- é o que ela quer.
  1972. >eu parei novamente
  1973. >- e por que ela fugiu?
  1974. >- eu não sei, vai ver ela queria que você continuasse procurando. Ou vai ver você tá fazendo
  1975. do jeito errado.
  1976. >- como assim?
  1977. >- talvez... você não deva encontra-la, talvez ela deva.
  1978. >- então eu vou ficar onde estou.
  1979. >- não, existe algo.
  1980. >eu enfim resolvi ouvi-lo
  1981. >- "algo"?
  1982. >- algo que você não entendeu...
  1983. >eu respirei fundo
  1984. >- você sabe exatamente o que é, não é? - perguntei
  1985. >ele riu
  1986. >- é, eu sei.
  1987. >- vai me dizer?
  1988. >- não.
  1989. >voltamos para perto do túmulo
  1990. >- não vou ficar aqui por muito tempo, não trouxe um guarda-chuva...
  1991. >à essa altura estávamos encharcados
  1992. >pensei em algo que queria perguntar
  1993. >- como acha que ela sempre sabia onde eu estava?
  1994. >- não tem muito mistério, ela procurava você, você procurava ela.
  1995. >- mas em 1 ocasião, fui eu quem a encontrei.
  1996. >ele não me disse nada, estava esperando que eu continuasse
  1997. >- no teatro, ela estava no palco. Como diabos?
  1998. >- ela sempre quis ser atriz, deve ter conseguido o papel. Você sabe, ela gosta de cinema,
  1999. teatro é como cinema... só que mais vivo.
  2000. >- faz sentido, mas parece muita coincidência.
  2001. >- é, parece mesmo? O que você foi fazer no teatro?
  2002. >- um casal de portugueses me convidou...
  2003. >ele riu
  2004. >- são os tios dela. Ela deve ter pedido pra eles fazerem isso...
  2005. >fazia sentido
  2006. >eles estavam indo para o mesmo lugar que eu
  2007. >o Clube de Folk onde eu a encontrei pela primeira vez lá
  2008. >eu os encontrei primeiro
  2009. >era tudo uma encenação
  2010. >eles me levarem até lá para encontra-la
  2011. >impressionante como eu sou feito de idiota com tamanha facilidade
  2012. >- e então, você vai pra Alemanha?
  2013. >- eu não sei, eu preciso pensar sobre essa... "coisa" que você falou. O que eu estou fazendo
  2014. de errado.
  2015. >- não vai descobrir aqui... - ele disse, me entregando outra passagem
  2016. >coloquei no meu casaco rápido para não molhar
  2017. >- eu a procurei em cinemas, sabe. Em teatros também...
  2018. >- não a procure, viva Berlim. Viva a sua vida. Deixa acontecer.
  2019. >aquilo parecia loucura
  2020. >e era
  2021. ...
  2022. >"veni, vidi, vici"
  2023. >essa frase, segundo dizem, foi proclamada por Júlio César
  2024. >"vim, vi, venci"
  2025. >por que isso importa?
  2026. >eu não sei, mas importa
  2027. >se não importasse, não estaria escrito no cantinho da minha passagem com caneta vermelha
  2028. >foi ele
  2029. >ele me disse que não contaria o que era o tal "algo" que eu não entendi
  2030. >mas aparentemente ele me deu uma dica
  2031. >isso ecoava na minha cabeça o tempo todo
  2032. >enquanto eu olhava para o teto
  2033. >em um apartamento... em Berlim
  2034. >1 ano já se passou
  2035. >muita coisa mudou desde então
  2036. >consegui um emprego como estagiário em uma emissora de TV nacional
  2037. >nada extraordinário, eu só faço organizar as fitas com arquivos e colocar adesivos
  2038. >adesivos com nome das filiais da emissora
  2039. >para saber o que vai pra onde, sabe?
  2040. >acho que isso é o suficiente pra um cara de 19 anos
  2041. >diferente da primeira vez que visitei Berlim, não a encontrei mais
  2042. >não a encontrei em lugar nenhum
  2043. >mas as vezes me sentia observado
  2044. >nos primeiros meses eu ainda achava que a encontraria por aí em algum lugar aleatório
  2045. >mas depois percebi que não seria assim
  2046. >eu era pequeno e o mundo era grande
  2047. >ela era tão pequena quanto eu
  2048. >eu só a encontrava antes porque ela queria
  2049. >resolvi fazer o que o pai dela sugeriu
  2050. >resolvi viver
  2051. >e foi a melhor coisa que já fiz
  2052. >Berlim é um lugar fantástico
  2053. >"veni, vidi, vici"
  2054. >o que aquilo queria dizer, afinal?
  2055. >foi em uma manhã indo pro estúdio que eu entendi
  2056. >eu encontrei um colega de trabalho
  2057. >ele estava de carro, perguntou se eu queria uma carona
  2058. >é claro que eu aceitei
  2059. >foi uma conversa longa
  2060. >conversamos sobre um monte de coisa que não importa agora
  2061. >também vimos alguns monumentos no caminho
  2062. >entre eles o Siegessäule
  2063. >- dá pra ver os buracos de balas da época da Segunda Guerra Mundial se a gente chegar bem
  2064. perto. - disse meu amigo, enquanto dirigia
  2065. >eu não sei o motivo dele ter falado isso
  2066. >mas por algum motivo fiquei interessado
  2067. >- o nome dele, o que significa?
  2068. >ele riu
  2069. >- as vezes eu esqueço que você não é alemão. É algo como Obelisco da Vitória.
  2070. >o assunto morreu ali
  2071. >mas eu continuei pensando no tal monumento
  2072. >"Obelisco da Vitória"
  2073. >talvez porque ter sido feita pra comemorar uma vitória em uma guerra
  2074. >talvez por ter uma estátua da deusa romana Vitória no topo
  2075. >ou talvez as duas coisas
  2076. >o dia no trabalho foi normal
  2077. >uma vez ou outra me peguei distraído pensando no tal monumento
  2078. >enfim
  2079. >quando eu acordo, passo um bom tempo olhando pro teto, como nos velhos tempos
  2080. >é sempre legal ter um assunto pra pensar
  2081. >nem me preocupo com niilismo existencial
  2082. >droga, isso realmente funcionava
  2083. >nem me lembro a última vez que parei pra me preocupar sobre minha insignificância
  2084. >mas não era como eu estivesse "curado" ou algo do tipo
  2085. >eu só controlava a coisa, sabe?
  2086. >enfim, funcionava
  2087. >foi na manhã seguinte que as coisas ficaram claras para mim
  2088. >olhando para o teto
  2089. >"veni, vidi, vici"
  2090. >"vim, vi, venci"
  2091. >"Obelisco da Vitória"
  2092. >"Vitória"
  2093. >"vici"
  2094. >"venci"
  2095. >por que caralhos meu colega falaria sobre um monumento histórico?
  2096. >então eu sorri, olhando pro teto
  2097. >era tudo sobre isso, não é mesmo?
  2098. >eu não estava fazendo errado em procurá-la
  2099. >eu só não estava procurando do jeito certo
  2100. >tinha que ser do jeito dela
  2101. >sempre tem que ser do jeito dela
  2102. (ouçam isso: https://www.youtube.com/watch?v=u-Y3KfJs6T0)
  2103. >5 horas da manhã
  2104. >uma neblina tomava conta de Berlim
  2105. >eu peguei um casaco
  2106. >me sentia seguido outra vez
  2107. >como não me sentia há muito tempo
  2108. >estava frio lá fora
  2109. >naquela manhã não fui trabalhar
  2110. >fui até o tal "obelisco da vitória"
  2111. >olhei bem pra ele
  2112. >- está vendo os buracos deixados pelas balas? - disse uma voz que eu conhecia, vindo de trás
  2113. >eu me virei
  2114. >e lá estava ela
  2115. >meu coração acelerou
  2116. >eu sorri, e nem queria sorrir
  2117. >sorri porque tinha vencido
  2118. >sorri porque aquilo tinha acabado
  2119. >"veni, vidi, vici"
  2120. >"vim, vi, venci"
  2121. >vim para a Alemanha
  2122. >vi o Obelisco da Vitória
  2123. >venci o joguinho dela
  2124. >- todo esse tempo, era isso que eu precisava fazer, não é?
  2125. >ela sorriu de volta
  2126. >- você demorou pra entender
  2127. >- a frase... ela estava nas outras passagens?
  2128. >- e no dinheiro.
  2129. >- é, eu não tinha percebido... e nem sei se teria entendido se percebesse.
  2130. >um silêncio pairou naquele lugar
  2131. >éramos apenas eu e ela ali, na neblina
  2132. >no frio de Berlim às 5 horas da manhã
  2133. >- você me fez atrasar pro trabalho.
  2134. >- é, eu já te atrasei antes.
  2135. >- atrasou... - eu disse rindo
  2136. >esse tipo de coisa me fazia lembrar que a vida é um ciclo
  2137. >- o meu colega... você pediu que ele me desse a carona, não é?
  2138. >ela não respondeu
  2139. >- também pediu que ele falasse sobre o Obelisco.
  2140. >- isso importa?
  2141. >demorei pra falar mais alguma coisa
  2142. >queria apenas aprecia-la ali
  2143. >- então é isso? Acabou? Você é minha?
  2144. >ela se aproximou de mim
  2145. >- Ágata... nós vamos ficar juntos dessa vez?
  2146. >- isso depende...
  2147. >ela se aproximou de mim
  2148. >nos beijamos
  2149. >foi um beijo bem longo, eu não queria que acabasse
  2150. >como na primeira vez
  2151. >então ela me olhou nos olhos
  2152. >não pude perceber quando sua boca se abriu para falar algo, mas pude ouvir
  2153. >- o universo é grande?
  2154. >- bastante. - respondi
  2155. >- e como você se sente sobre isso?
  2156. >eu sabia que eu não podia errar a resposta
  2157. >eu sabia que aquilo seria o que decidiria se ela ficaria ou não
  2158. >e também sabia que não podia mentir
  2159. >e só agora eu entendia
  2160. >entendia que aquela era a decisão da minha vida
  2161. >durante todo esse tempo
  2162. >eu por várias vezes me perguntei o motivo dela fazer tudo isso
  2163. >e quando ela disse que era pro meu bem, eu achei aquilo absurdo
  2164. >quando as coisas ficaram claras pra mim, eu achei um absurdo também
  2165. >mas não era
  2166. >eu só não tinha entendido o suficiente
  2167. >ela estava fazendo certo
  2168. >parecia loucura, mas era o certo
  2169. >e eu como sempre, agia como o cara chato
  2170. >o cara que reclamava de tudo
  2171. >mas agora, agora eu entendia
  2172. >e por isso eu venci
  2173. >obrigado, Ágata
  2174. >você é o sentido da minha vida
  2175. >"veni, vidi, vici"
  2176. FIM
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