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Untitled

Jun 17th, 2018
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  1. *CAPÍTULO UM*
  2.  
  3. Aulas de português eram um saco. Gabriel sempre achara aulas em geral um saco, mas as de português, para ele, superavam todas as expectativas. Inclinando sua cadeira pra trás, ele se equilibrava enquanto o olhar vazio sondava alguma região próxima à professora que lecionava diante do quadro, fazendo com que parecesse que ele estava prestando atenção. Seus braços estavam cruzados, e ele estava praticamente imóvel: uma verdadeira pose de “ser humano focado no professor, sedento por conhecimento”. Apesar da imponente pose de aluno focado, sua mente não tão brilhante viajava quilômetros distante, pensando em tudo que um adolescente de 15 anos podia pensar, menos na aula de português.
  4.  
  5. - Gabriel? - a voz da professora o remove abruptamente de seu transe. O burburinho constante na sala para repentinamente, o que nunca era bom sinal. Ele olha para os lados e pisca várias vezes, confuso, até finalmente perceber que a professora o encarava, com uma das sobrancelhas erguidas formando um olhar inquisitivo que fazia com que Gabriel se sentisse acuado. Toda a sala também mantinha os olhares na sua direção. A expectativa no ar aumentava rapidamente, quase se tornando palpável. Os seus colegas o observavam da mesmo maneira que uma plateia observa atentamente um mágico prestes tirar um coelho da cartola em sua melhor e mais famosa apresentação. Para a infelicidade de Gabriel, ele não era um mágico, e mesmo que fosse, não haviam cartolas por perto. Aquela situação era altamente constrangedora, pois ele sentava no fundo justamente para não chamar atenção, já que não tinha amigos além de seu pai e sua mãe. Apesar disso, a senhora Mafra, professora de português, havia usado seu olhar detector de alunos distraídos no fundo da sala, e por algum motivo deduzido de que evidentemente um aluno que não estava prestando atenção na aula seria perfeito para responder uma de suas perguntas.
  6.  
  7. - Humm... Sinto muito senhora Mafra. - diz ele, se recuperando vagarosamente do momento de viagem mental. - Poderia repetir? - emenda ele, quando percebe que todos o olhavam, mas ninguém dizia ou fazia nada conclusivo. Gabriel fazia o possível para ocultar o tom de desespero na voz, e manter o olhar firme - na medida do possível - nos olhos da professora. O peso dos outros vinte olhares de seus colegas o fazia querer enfiar o rosto em seu moletom e sumir. Ele sabia que havia falhado miseravelmente em aparentar confiança, e tinha certeza de que a senhora Mafra também havia notado isso. O pior é que ela parecia apreciar o momento, e sorria de canto, como um felino de grande porte prestes a dar o bote em um antílope indefeso.
  8.  
  9. - Distraído novamente, senhor Gabriel? - Retruca a senhora Mafra - Presumo que sim. Isso explicaria suas notas vermelhas. Seu pai vai adorar ver isso. - Ela continua sem abrir espaço para chances de defesa da parte dele, com o tom de deboche escancarado em sua voz aguda. Imediatamente, Gabriel sente o rosto ferver, consequência de um calor que vinha de algum lugar dentro de seu peito e subia por suas bochechas, tornando sua face vermelha como as notas que sabia que iria receber ao final do período letivo corrente. A professora de português era conhecida por sua rispidez com os alunos, sempre procurando construir momentos aonde pudesse pegar um aluno no flagra em alguma atividade não digna de uma de suas esplendorosas - como ela chamava - aulas de português. Com Gabriel, isso parecia ser mais frequente. Talvez porque ele realmente era um péssimo aluno, distraído e pouco participativo, e isso abria oportunidades para vários desses “momentos’.
  10.  
  11. Ele tenta formular um pedido de desculpas, sem sucesso, enquanto ela visivelmente percebe - e se deleita - com sua agonia. Mas, como em um golpe inesperado de misericórdia, ela redige a pergunta a um dos alunos da frente, que absorviam o conteúdo avidamente através das lentes grossas de seus óculos de fundo de garrafa. As risadinhas dos outros colegas eram evidentes ainda que tentassem ocultá-las, e acabam contribuindo ainda mais para piorar a lastimável e vergonhosa situação dele, que deita sobre a sua mesa e veste seu capuz, deixando apenas os olhos de fora, fuzilando a professora que sorri de maneira exagerada para o aluno que havia respondido com precisão cirúrgica sua pergunta. Gabriel odiava português e agora, mais do que nunca, odiava a senhora Mafra. Também odiava os garotos da frente que sempre respondiam às perguntas dela de maneira brilhante e as garotas que cochichavam, olhavam disfarçadamente pra ele, e riam entre si.
  12. Pelo resto da aula, Gabriel conseguia apenas manter o olhar semi-escondido na professora que parecia - Gabriel esperava - ter esquecido que ele existia. Os minutos restantes de aula demoram o suficiente para parecerem horas. Mas finalmente, o sinal que indicava o fim do período e da aula (pois português era sua última aula do dia), finalmente soa em todo sua glória aguda. A maioria de seus colegas sai correndo apressada, ansiosa para ir para casa. Gabriel arruma suas coisas e coloca na sua mochila de qualquer maneira. Neste dia em especial, a mochila era terrivelmente pesada por conta da enorme quantidade de livros que ele tinha que carregar para a aula. Exigência besta, na opinião dele. De que adiantava levar os livros se os professores concentravam sua aulas em cargas exageradamente grandes de conteúdo escrito no quadro negro, com a intenção de que os alunos copiassem? Mas como tudo mais naquela escola era besta e idiota, Gabriel havia parado de se importar, e apenas obedecia para evitar chamar mais atenção, ou pior, confusão.
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  14. Conforme caminha para fora da sala, ele coloca uma das mãos no bolso, e encontra uma última bala de hortelã. Como era sua bala favorita, esta se revela uma pequena alegria em meio todos aqueles dias torturantes que eram as aulas naquela que deveria ser a melhor escola do bairro. “Dias ruins demais para um adolescente de quinze anos.” - Pensava ele consigo mesmo. A passos apressados pelos corredores já vazios da escola, ele ruma a saída mais próxima, a fim de pegar o ônibus de sempre para casa, aonde colocaria alguma comida quente no estômago naquele dia particularmente frio. Porém, as coisas não correm como planejado. Na verdade, os acontecimentos desviavam tanto de seus planos que ele se perguntava se deveria começar a planejar o contrário do que queria que acontecesse, e assim, aumentar drasticamente a taxa de sucesso em suas atividades diárias. Três garotos do último ano o encurralam em um corredor. Gabriel os reconhece ao primeiro olhar, pois eram “famosos” na escola, justamente por infernizar a vida já conturbada de alunos do primeiro ano, como ele. Seus nomes eram João, Roberto e o terceiro era conhecido apenas como Marreco, devido à sua voz rouca e falhada que lembrava o grasnado do animal.Os três eram membros do time de futebol da escola, e todos eles haviam repetido uma boa dose de anos, de modo que eram pelo menos, quatro anos mais velhos que Gabriel. Não havia para onde correr nem como se esconder, já que os brutamontes haviam fechado suas saídas e feito um semi círculo contra a parede, de modo que às costas de Gabriel havia uma parede de cimento, e na sua frente e lados, paredes de carne e osso. Ele jamais conseguiria compreender como esses garotos do time do futebol conseguiam ficar tão imensos.
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  16. - E aí, otário. Trouxe meu dinheiro? - Brada João, com sua voz grossa. João era o maior dos três, com uma notável carreira de encrencas na escola, e tinha um aparente gosto por roubar dinheiro de alunos dos anos anteriores, que para evitar olhos roxos sempre cediam o dinheiro sem discussão. Gabriel jamais andava com dinheiro, pois nunca comprava comida na escola, e usava o passe estudantil para o ônibus.Gabriel se perguntava as vezes o que ele fazia com o dinheiro, já que era de conhecimento geral que a família de João era uma das mais ricas das redondezas.
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  18. - Não tenho dinheiro... - Gabriel retruca, com a voz minguando gradualmente. Havia cogitado centenas de coisas corajosas e desafiadoras para se dizer e consequentemente, remover o sorriso tosco que João e os outros três tinham no rosto. Mas infelizmente, aquilo não era um blockbuster hollywoodiano de superação, e Gabriel decididamente não era um protagonista maneiro, daqueles que desafiava - e vencia - os valentões da escola e seu reinado de terror pelos corredores das instituições de ensino.
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  20. - Não? Pois eu só acredito em mim mesmo. - João se abaixa, e com a ajuda dos outros dois brutamontes, e sem um aviso prévio levanta Gabriel pelas pernas, sacudindo-o para ver se algo de valor caía de seus bolsos. Inevitavelmente, seu celular não tão moderno escorrega do bolso largo da calça e se espatifa com tudo no chão. O som de “crec” que ele faz, somado à visão da bateria voando para longe do celular, parece fazer também um “crec” em seu peito. Gabriel não era pobre, mas também não era rico, e seus pais estavam passando por algumas limitações financeiras por conta de alguns negócios terem ido meio mal na empresa de seu pai, e também pelos constantes tratamentos necessários para a saúde da sua mãe. Se aquele celular quebrasse, significava que ele ficaria um bom tempo sem telefone, que era uma das suas principais distrações diárias.
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  22. A decepção no olhar de João se torna visível, quando ele percebe que Gabriel realmente não tinha um tostão no bolso, porém aquilo não era consolo para Gabriel, já que provavelmente João faria algo agressivo para compensar o lucro zero proveniente de sua investida diária. Ele e seus “capangas” largam Gabriel no chão, que cai em um ângulo estranho. Imediatamente, ele sente em seu ombro direito uma pontada aguda. De início, ele tenta ocultar a careta de dor que aparece involuntariamente em seu rosto, mas isto se torna impossível com as ondas crescentes de dor. Ele sente uma lágrima rolar por suas bochechas, e inevitavelmente, seu choro chega ao conhecimentos do trio de valentões.
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  24. - Ih, olha ali. O bebê tá chorando, viu isso? - Diz João, entre risadas visivelmente forçadas, para Marreco e Roberto, que aquiescem divertidamente, rindo como bobos da corte da piada sem graça que um rei conta. Gabriel sente uma vontade estranha de rir quando ouve Marreco, cujas risadas pareciam os grunhidos de um porco. Por sorte, ele reprime este desejo repentino, que provavelmente resultaria em consequências ainda mais dolorosas para Gabriel. João se aproxima, agora de maneira violenta, e agarra Gabriel pela gola, colocando-o em pé. - Traz dinheiro amanhã, viu? Otário. - Dito isso, ele larga novamente o garoto no chão de maneira abrupta, e sai caminhando e rindo, até que João, Marreco e Roberto sumirem de vista por uma das várias esquinas do corredor.
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  26. Gabriel faz o possível para enxugar as lágrimas dos olhos, enquanto coloca a bateria em seu celular novamente. Secar as lágrimas havia se revelado um gesto inútil, pois estas brotam ainda mais abundantes ao perceber que o celular não ligava, e nem dava sinais de que iria. Ele coloca o aparelho no bolso mesmo assim, e se escora na parede ainda sentado, em silêncio. “Como pode a escola deixar que isso aconteça com os alunos?” - Ele sabia a resposta para esta pergunta. João era filho de ninguém mais ninguém menos que o diretor da escola, e na única vez em que a diretoria havia sido confrontada sobre os pais que apareciam com os filhos que ostentavam olhos roxos e acusações contra João e os outros valentões, esta havia retrucado que não haviam provas, e que definitivamente não poderiam expulsá-los somente baseados em “palavras de outros alunos”. Ele realmente odiava João e os outros dois. Pra ser sincero, ele odiava toda aquela escola, e metade do bairro também. Aquela instituição estava se provando um verdadeiro inferno, e ele se pega pensando novamente se havia feito algo para merecer aquilo. Este pensamento era mais frequente do que ele gostaria que fosse. Seus devaneios são interrompidos por Zé, o zelador, que vindo da esquina por onde os três brutamontes haviam saído, carregava um espanador, uma vassoura e um balde, de prontidão para deixar o ambiente o mais apresentável possível para os alunos do turno vespertino. Contudo, aquilo sempre parecia um gesto em vão, pois de tarde estudavam os alunos do ensino fundamental, e estes faziam mais bagunça e sujeira do que haveria se um tornado passasse por dentro dos corredores.
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  28. Seu Zé era um senhor já de idade, provavelmente com seus setenta e tantos anos. Apesar disso, sempre parecia alegre e disposto a manter a escola limpa para os alunos que insistiam em sujá-la. Com seus passos curtinhos comuns em pessoas de idade avançada, ele se aproxima de Gabriel, coçando sua careca que reluzia sob as luzes do corredor bem iluminado.
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  30. - O que faz aí, meu rapaz? Não acho que o chão seja um bom lugar para ficar, ainda mais nesse frio, Vai acabar ficando gripado. - Diz ele, com o ar inocente que parecia ser comum a todos os idosos. Gabriel achava intrigante como pessoas de idade avançada sempre se preocupavam com a possibilidade de os mais jovens ficarem gripados com o frio. Provavelmente deveria ser alguma espécie de bônus no pacote “Idade avançada”, como em uma daquelas propagandas de televisão.
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  32. - Ah, nada demais, já estou indo... - Retruca Gabriel educadamente entre algumas fungadas, já se levantando a fim de ir para o ponto de ônibus aonde sempre ia. “O lado bom de chorar durante o inverno é que pensam que suas fungadas são gripe.” - Pensa ele, consternado. O velho homem o observa com um ar de intensa curiosidade. Gabriel se perguntava se ele sabia das coisas que aconteciam por aquele corredor. “Provavelmente sabe.” - Pensa ele. “E não faz nada, como todos os outros que poderiam fazer alguma coisa”. Gabriel fecha a cara e sai caminhando corredor afora. Ao longe, ainda escuta a voz de Seu Zé, baixinha. “Faça algo você mesmo.”. Gabriel para por um momento, pensando ter ouvido coisas. Se vira e vê que o senhor ainda o encarava, e volta a caminhar, de dentes trincados. Como poderia fazer algo contra três garotos com o dobro do seu tamanho? Era impossível, e seu Zé acabara de se provar tão idiota quanto o resto da escola, que Gabriel tanto odiava.
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  34. Gabriel chega no ponto de ônibus e descobre que este não estava vazio, o que significava que o ônibus ainda não havia passado. “Pelo menos isso” - pensa ele. “Uma fresta de sol em meio às nuvens.”. Ele puxa os fones de ouvido e conecta no celular, apenas para lembrar frustrado que o celular não ligava, e guardar o fone. Antes que pudesse praguejar consigo mesmo, vê o ônibus se aproximando. Junto de mais umas pessoas, Gabriel adentra o mesmo, e tateia os bolsos à procura de seu passe estudantil. Uma pontada de desespero atinge seu rosto ao perceber que o passe não estava ali. “O corredor!” - pensa ele. Era evidente que o passe havia caído de seus bolsos ao ser sacudido pelo trio de idiotas. Agora ele não tinha como pagar a passagem, e olha suplicante para a cobradora, que parece entender de prontidão a situação. Geralmente a cobradora era uma gentil senhora chamada Lídia, mas esta não estava presente, provavelmente de férias ou doente, e havia sido substituída por esta outra de nariz adunco e um semblante explicitamente venenoso. Para a tristeza de Gabriel, ela dá indícios de ser da mesma espécie que a sua professora de português, senhora Mafra. Ele sente um calafrio percorrer sua espinha ao ser impassivelmente avaliado pelo olhar agudo e criterioso da cobradora, que varre seu magro corpo adolescente da cabeça aos pés. “Será que ela tem um detector de dinheiro embutido nos olhos?” - Pensa Gabriel, arrepiado.
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  36. - Não vai pagar? - Indaga ela com uma voz exageradamente anasalada e enjoada, semelhante àquela presente em mulheres ricas que passeavam com seus poodles pelas calçadas dos bairros mais ricos, ostentando frondosos vestidos rosados. Àquela altura, os passageiros do ônibus já haviam tido sua atenção trazida para o evento ali, e Gabriel, que estava encostado na roleta, se sente em um segundo round da mesma “batalha” que havia tido de manhã na sala de aula de português.
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  38. - Eu... perdi meu passe. Será que poderia passar? Só hoje, eu pego esse ônibus sempre, prometo que amanhã eu... - Ele começa a falar baixinho, em um tom ameno de quem queria que a discussão fosse ouvida pela menor quantidade de pessoas possível, mas de prontidão é cortado pela mulher, que indica com o dedão para que ele desça, agora que o ônibus havia parado.
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  40. - Claro, sim. Todos sempre perdem o passe. - Diz ela sem se preocupar com o volume da voz. Provavelmente tinha prazer em expor a desgraça alheia, ou simplesmente não se importava mesmo. Gabriel percebe que seria inútil discutir e salta para fora do veículo. “Ótimo” - pensa ele, enquanto ela ainda reclamava por suas costas “esses adolescentes acham que somos idiotas”. Gabriel revira os olhos e pisa firme na calçada. Conhecia aquele lugar, e sabia que teria uma bela caminhada até seu destino. “Estou há quatro quilômetros de casa, morrendo de fome, e sem celular para avisar meus pais.”. Provavelmente seus pais estariam preocupados, pois eram relativamente protetores. Não o suficiente a ponto de não deixar que ele fosse sozinho pra escola, mas o suficiente para bombardeá-lo com centenas de perguntas caso houvesse a menor alteração imprevista em sua rotina. Logo que começa seu trajeto pela calçada bem cuidada, o ar fresco atinge seu rosto, e ele agradece subconscientemente por ser uma das pessoas que gostava de frio. Ajeita o capuz na cabeça e segue caminhando. A rua lhe parecia muito mais vazia hoje, e as poucas pessoas que pareciam circular corajosamente a pé no frio do inverno, o faziam encolhidas em seus cachecois e casacos grossos.
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  42. Algo lhe incomodava, mas ele não sabia o que era. Em busca de uma distração, ergue o olhar que mantinha baixo até então, para a frente, e vasculha o seu trajeto em busca de algo visualmente interessante. A rua estava absolutamente cinzenta, até mesmo os poucos carros que andavam por ali eram cinzas. Os prédios naquela região todos eram de alguma cor escura já desbotada, de modo que contribuiam para a paisagem sem graça, dando-lhe um ar lúgubre, como uma daquelas mansões de filmes assombrados. E, como se fosse uma coroa gótica, o ceu acinzentado mantinha-se impassível sobre aquela cena quase monocromática.
  43. Gabriel estremece ao perceber que era apenas mais um penduricalho vivo naquele cinza desinteressante, talvez o mais sem graça de todos. “Eu odeio essa porcaria de cidade.” - Pensa ele, mais pesaroso do que bravo. Algo dentro de seu subconsciente chega à conclusão de que não valia mais a pena ser seletivo: era mais fácil e rápido odiar todo mundo. Seus olhos encontram refúgio em uma coisa colorida na paisagem: um semáforo. A luz vermelha indicava que os pedestres não podiam atravessar, mas os carros que eram poucos, sim. Gabriel observa a luz brilhante por um momento, mas logo seus olhos focam atrás dela, mais especificamente em um outdoor que anunciava um daqueles kits de construção caseira que os pais de família tanto pareciam admirar, e que rendiam mesas assimétricas que geralmente eram motivo de piada entre os tios no almoço de domingo. Mas isso não importava a Gabriel, o que lhe chama atenção é o slogan, que o surpreende o suficiente para que ele repita o mesmo duas vezes, em voz baixa:
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  45. “Faça algo você mesmo.”.
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  48. *CAPÍTULO DOIS*
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  51. Para a sorte - ou azar - de Gabriel, seus pais não estavam em casa quando ele chegou. Isso significava que ele não seria impiedosamente bombardeado de perguntas preocupadas, mas também significava que ele teria que arranjar algo para comer. Gabriel tinha uma coisa em comum com a maioria das pessoas de sua idade: era terrível na cozinha. Certa vez havia tentado quebrar um ovo, e havia quebrado o dedo, mas isso era outra história. Em uma busca rápida, ele encontra pão, queijo e presunto, e decide fazer uma torrada. Em alguns minutos, ele estava confortavelmente sentado no sofá da sala, com um enorme copo de refrigerante e uma torrada pela metade, que ele mordia entediadamente. Instalado assim, conseguia esquecer momentaneamente das agruras de sua vida adolescente. Seu momento de distração é interrompido pela porta que se abre abruptamente, e para a qual ele vira uma sobrancelha erguida. Eram seu pai e sua mãe com sacolas cheias de verduras. Aparentemente, haviam feito as compras do mês. Gabriel lança um olhar mais atento e suspeito para as sacolas, e percebe que eram verduras demais. Ele torce o rosto de leve, pois também assim como a maioria das pessoas de sua idade, detestava verduras.
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  53. - Sim, sim, levarei para doutor João. - Seu pai fala, em tom agitado, se dirigindo para sua mãe. Aquele nome era tudo que Gabriel não queria ouvir, e lhe joga memórias horríveis de mais cedo na cabeça. Apesar do nome igual, doutor João nada tinha a ver com o outro João que Gabriel detestava. Ele atendia sua família há mais de onze anos, seu pai lhe dissera uma vez. “Já parou para pensar na quantidade de confiança que depositamos na mão de um médico, Gabriel?” - Indagara seu pai, pensativo, quando sua mãe fora internada com pneumonia ano passado. Obviamente, na posição do adolescente distraído que era na época, Gabriel não havia parado para pensar nisso, mas assentira mesmo assim. Sua mãe sofria de problemas constantes de respiração que no ano anterior, haviam evoluído para complicações que quase resultaram em sua morte. Hoje em dia ela estava bem, mas nunca se sabia quando ela podia piorar, e seu pai a levava constantemente para checkups gerais com o doutor João. Gabriel decide que tentaria falar com seu pai sobre os problemas que o incomodavam na escola depois que ele estivesse menos ocupado.
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  55. Gabriel termina sua torrada e seu refrigerante e vai para a cozinha para lavar seu prato engordurado na pia. Ele passa pelo corredor que conectava a sala com a cozinha e percebe seus pais falando em um tom exasperado, muito mais do que o normal. Gabriel não se intromete, nunca se intrometia, na verdade. Ultimamente o ar de tensão em sua casa era tão pesado que as vezes ele jurava que era palpável. E ele ainda tinha a péssima notícia do falecimento de seu celular para dar a seus pais. Ele enxágua, ensaboa e seca a pouca louça que havia sujado em sua refeição simples, e se retira em silêncio para fazer algo em seu quarto, que ficava no último cômodo à direita do único andar da casa. Ele tranca a porta atrás de si, como costumava fazer, e se senta na cama. O silêncio ali era pesado, e com esse peso a angústia trazida pelo rumo que sua vida adolescente tomava o assolava. Ele se joga para trás, a cabeça no travesseiro. Pega seu celular para surfar um pouco pelas redes sociais, mas acaba se lembrando que ele havia sido quebrado. Em um acesso de raiva repentino, Gabriel aperta o celular com toda sua força, e acaba esmagando a tela, e por fim todo o aparelho já fragilizado pelas rachaduras e partes parcialmente quebradas. Instantaneamente, se sente culpado, pois agora seria mais difícil de provar para seus pais de que não havia sido o culpado pela demolição de seu telefone.
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  57. Gabriel se levanta e senta defronte ao computador, que já estava ligado. Ele sempre deixava o computador ligado, pois algumas semanas atrás havia baixado um programa responsável por minerar dinheiro virtual em sua carteira cibernética. Com árduos dois meses de mineração, levando a capacidade de processamento do computador ao máximo, Gabriel se orgulhava de ter feito incríveis dois reais e quarenta centavos. Ele checa o programa e percebe que este havia parado de funcionar. Ele fecha o mesmo para que o computador não fique lento, e abre o navegador para checar as redes sociais. “Foto, foto, foto...” - ele desliza o scroll do mouse rapidamente, passando reto pelas dezenas de notificações de amigos e amigos de amigos que haviam trocado a foto de perfil, ou postado fotos com o namorado/namorada, comemorando os felizes quinze dias de namoro. Ele achava engraçado como a proporção de juras de amor eterno feitas era grande em relação às que realmente duravam. Uma voz em seu subconsciente lhe acusa de ter inveja, pois eles tinham alguém com quem postar foto. Ele afasta este pensamento e dá play em um vídeo de uma entrevista com o técnico do time de futebol que havia sido campeão nacional recentemente. Gabriel gostava de futebol, sendo até mesmo ávido participantes de redes online de apostas sobre os resultados. Ele põe os fones de ouvido e presta atenção na entrevista.
  58. “Você é torcedor desse mesmo time há anos, sem ter visto ele ganhar nada. Como se sente quebrando o jejum de trofeus novos?” - Pergunta o repórter, segurando um enorme microfone da melhor maneira que podia próximo à boca do técnico, que aparentava seus cinquenta e tantos anos.
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  60. “É o que sempre dizem por aí: Se quer algo bem feito, faça algo você mesmo.” - Retruca o técnico, em um tom confiante e ameno.
  61.  
  62. Gabriel franze a testa repentinamente, arregalando os olhos ao mesmo tempo. Aquilo era uma coincidência enorme, pelo menos ele esperava que fosse isso, e não uma entidade de outro mundo lhe pregando uma peça psicológica. Ele volta o vídeo várias vezes para essa mesma frase, a fim de confirmar que as palavras do homem realmente haviam sido aquelas.
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  64. - Mas que... - Gabriel estava sem palavras. Ele sai da frente do computador e deita na cama novamente. Pode ser que estivesse fazendo tempestade em copo da água. Afinal, aquela era uma frase comum, sendo até mesmo era parte de um famoso ditado popular, aquele mesmo que o técnico havia citado. Enquanto seu cérebro funciona a mil bolando complicadas teorias da conspiração, dignas de alguém que passava várias horas por dia navegando por fóruns de discussão variada, ele decide que não tiraria conclusões precipitadas, e sim, consultaria alguém que era mais velho e portanto, mais sábio: seu pai.
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  66. Gabriel se levanta de um salto da cama, sua mente contente por ter algo em que pensar que não fosse os péssimos acontecimentos de mais cedo. Ele abre a porta correndo e passa a toda velocidade pelo corredor, notando que já eram três horas da tarde. Parte de si fica transtornado em como o tempo havia passado rápido. Ele entra na cozinha e se depara com seu pai anotando várias coisas furiosamente em várias folhas espalhadas pela mesa redonda. Sua mãe não estava, e Gabriel deduz de que ela havia ido descansar por conta de recomendação médica. Gabriel senta à frente do pai, eufórico, e se inclina sobre os cotovelos, a fim de chamar mais atenção.
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  68. - Pai, pai! Preciso te contar uma coisa! - Gabriel mal conseguia conter o tom de ansiedade em sua voz, que é bruscamente refreado quando o pai levanta o rosto enfurecido.
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  70. - Não tenho tempo agora, Gabriel, por favor não me incomode. Não vê que estou trabalhando? - Diz o pai, mantendo o rosto erguido tempo o suficiente apenas para soltar aquela frase de maneira ríspida. Ele volta a anotar furiosamente, e Gabriel percebe que ele não queria mesmo ser incomodado.
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  72. Arrasado, o garoto levanta da cadeira e madeira e arrasta os pés pelo corredor. Agora, com a euforia trazida pelas três coincidências tendo sido abruptamente refreadas, a ideia realmente lhe parecia idiota. Mas no fundo, era apenas uma desculpa para conseguir uma oportunidade de conversar com seu pai, com quem não falava direito há várias dias por conta do excesso de trabalho dele. Seu pai era seu melhor amigo, e era com quem ele compartilhava as experiências boas e ruins que tinha na escola. Se seu pai não tinha nem mesmo cinco minutos para ele, então não tinha mais como serem amigos. A tristeza que assolava Gabriel logo se torna em raiva, e Gabriel trinca os dentes. Ele abre a porta e fecha com força, trancando-a atrás de si, e se joga na cama, enterrando o rosto no travesseiro. Logo sente as lágrimas molharem seu rosto e o travesseiro. “Ele é só mais um como os outros. Ele também não se importa. Eu odeio ele, eu odeio todo mundo.” - Pensa ele, se referindo ao pai, e logo depois ao mundo todo. E assim, recoberto de raiva e tristeza, o garoto cai no sono na companhia de lágrimas e pensamentos confusos e agressivos.
  73. Ainda era apenas três e meia da tarde, mas Gabriel termina por cair no sono, em uma tentativa desesperada de escapar da vida real.
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  75. ...
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  77. Gabriel acorda de cara amassada, com os cabelos desgrenhados. Não fazia ideia de quanto tempo havia dormido, mas uma verificada rápida na janela do quarto revela que o ceu ainda ostentava uma bonita e redonda lua. Ele checa o relógio do computador e percebe que eram três horas da manhã de sábado. “Eu dormi doze horas?” - pensa ele, transtornado. Aquilo nunca havia acontecido, Gabriel costumava dormir de seis a oito horas por dia. Uma força maior (o ronco do seu estômago) o distrai dos pensamentos e ele sai silenciosamente pela casa, em direção à geladeira. Ele vê um bonito bife com arroz e molho guardado em uma panela ao abrir a geladeira, e uma pontada de raiva o atinge ao perceber que seus pais sequer haviam se dado ao luxo de acorda-lo para o jantar. Gabriel adorava bife, e eles sabiam disso. Parece que estavam pouco se lixando para ele, e que não davam a mínima para como ele se sentia. Gabriel reforça para si mesmo em como odiava seus pais, João e os seus dois capangas, a escola e tudo mais. Porém, sua consciência tempestuosa é acalmada pelo belo cheiro do bife que esquentava no microondas, e que ele come avidamente junto do arroz e do molho. Seus pais provavelmente estavam dormindo, então ele faz o menor barulho possível ao limpar a louça e voltar ao seu quarto. Era muito cedo ainda, e seus pais geralmente estavam de pé às sete ou oito horas da manhã para ir ao mercado antes que a fila tomasse proporções grandes demais. Ele senta na cadeira do computador por alguns instantes e bufa para si mesmo ao perceber que havia esquecido de reiniciar o programa que minerava moedas virtuais. Segundo as contas dele, naquelas doze horas sem minerar, ele havia perdido a chance de adquiriu... quatro centavos. Ele abre o programa e desliga o monitor do computador, deitando-se na cama logo em seguida. Havia dormido a tarde inteira e mais da metade da noite, mas seus olhos ainda pesavam. “O que está acontecendo comigo?” - É seu último pensamento, antes de cair em um sono sem sonhos, incomodações nem perspectivas novamente.
  78.  
  79. ...
  80.  
  81. Horas depois, Gabriel abre os olhos abruptamente. Raios insistentes de sol agora invadiam seu quarto desarrumado. Ele sente um pouco de culpa, pois sua mãe havia lhe dito que arrumasse o quarto no dia anterior. Gabriel passa pelo computador para checar seu programa de mineração de moedas, e olha para o relógio. “07:36” - Seus pais provavelmente estavam fora, no mercado. Gabriel vai para a sala a fim de assistir televisão e aguardar o retorno deles, para tomar café da manhã. Inconscientemente, ele treina algumas faces de marra para ostentar durante a refeição, para que seus pais soubessem o quanto ele lhes odiava. Agora atirado no sofá, ele pega o controle remoto e liga a televisão. Estranhamente, os noticiários que de praxe transmitiam as tragédias e eventos importantes da semana não estavam aparecendo na televisão. Em seu lugar, uma tela de “Sem sinal” era mostrada, e nenhum som. Provavelmente a emissora estava com problemas, ou talvez a antena estivesse danificada por algum motivo. Nesse caso, Gabriel aguardaria seu pai retornar para que arrumasse a mesma. Ele vai por todos os canais, e finalmente acha um que estava passando uma reprise de desenho animado que apresentava um coiote que tentava insistentemente pegar um papa-léguas azul em uma de suas armadilhas engenhosas. Tristemente (para o coiote) e felizmente (para o papa-léguas), as armadilhas sempre apresentavam alguma falha, e o papa-léguas escapava, geralmente resultando em alguns ferimentos gravíssimos para o coiote, que parecia se curar no próximo quadro sem maiores sequelas.
  82. Como o desenho era engraçado, Gabriel acaba por se distrair assistindo, até que a sessão do desenho acabe, as nove horas da manhã. Ele se levanta e olha para o relógio na parede da sala. “09:00” - Pensa ele, ligeiramente preocupado. Ele pensa em pegar o celular para ligar para o celular de seu pai, mas se lembra de que este havia sido demolido pelos valentões na escola. Por sorte, eles tinham um telefone doméstico, e Gabriel usa ele para discar o número do pai. Ele ouve o telefone chamar, mas o que lhe deixa pior é que ele ouve o toque do telefone do pai, que estava no balcão da cozinha. Seu pai não havia saído com o telefone, nem sua mãe. Eles nunca faziam isso, pois era a única maneira de contatarem Gabriel quando saíam. Bufa para si mesmo, e afasta os pensamentos nebulosos, pensando que provavelmente eles haviam pegado alguma fila no mercado. Isto não era comum a esse horário de sábado, mas podia acontecer. Ele vai para o computador e se senta na cadeira confortável. Abre as redes sociais após fechar o programa de mineração e acessa as páginas de algumas pessoas famosas cujas postagens ele apreciava. Ele passa cerca de dez minutos navegando entre as páginas, apenas para descobrir que nenhuma delas havia postado nada hoje. A postagem mais recente em seu feed de notícias era do time de futebol para qual ele torcia, que havia anunciado a contratação de um novo jogador às três da tarde de ontem. “Perto do horário que eu dormi.”
  83. Afastando a crescente preocupação, ele abre campo minado no computador, e joga distraidamente. Seus cliques eram nervosos, e ele acaba apenas perdendo vez após outra. “Nove e meia.” - Pensa ele, ao levar os olhos para o canto da tela, aonde o relógio, alheio aos acontecimentos fora da vida virtual, mostrava as horas. Gabriel levanta da cadeira e caminha em círculos pela sala, até que decide investigar a rua. Saindo pela porta, ele percebe que o dia estava bonito, com o ceu bem azul e um sol que iluminava a rua e as árvores. Sabiás cantavam alegremente na figueira do quintal, e o pé de hortênsias perto da figueira havia florescido, exibindo belas e frondosas flores azuis.
  84. Apesar do clima e ambiente agradável na rua, não havia ninguém. Não haviam pessoas praticando ciclismo na ciclovia, não havia carros circulando com famílias inteiras em direção a algum lugar divertido, e não haviam idosos passeando de mãos dadas, enquanto curtiam o agradável sol da manhã.
  85.  
  86. Não havia ninguém.
  87.  
  88. O horário já passava das dez horas da manhã, e nem sinal do seus pais. Nem sinal dos seus vizinhos, e nem sinal de ninguém. Ele caminha a passos apressados para uma praça geralmente movimentada da cidade, aonde sempre haviam idosos fazendo exercícios devido à presença de vários equipamentos do gênero. Ele caminha pelo meio da rua, na esperança de que um carro apareça a toda velocidade e buzine para que ele saia do caminho, o que não acontece. Ele vira a última esquina e avista a praça vazia. Mercados estavam todos vazios, muitos deles com as portas ainda abertas. Gabriel passa reto pela praça e adentra um mini mercado, aonde já havia vindo inúmeras vezes comprar utensílios, temperos e alimentos que sua mãe esquecera e pedira para ele de última hora. Vazio. Desesperadamente, ele finge roubar um pacote de bolachas, na esperança de que alguém visse pelas câmeras de segurança e viesse o parar. Isso também não acontece, e ele sai intacto do mercado com um pacote de bolachas. Estava com fome, mas o estômago embrulhado pela preocupação o impediria de comer sem devolver tudo da pior maneira possível.
  89. Ele sai do mercado com a face exibindo transtorno, e para novamente no meio da rua. A cidade grande aonde ele morava era sempre agitada e barulhenta, mas hoje ela ostentava um silêncio lúgubre.
  90.  
  91. E este silêncio era ensurdecedor.
  92.  
  93.  
  94.  
  95. *CAPÍTULO 3*
  96.  
  97. Gabriel havia voltado para casa, angustiado. O relógio já marcava quatro horas da tarde e não havia sinal de seus pais e de ninguém. Ele havia preparado um sanduíche com queijo e presunto, mas não conseguiu como devido à ansiedade que embrulhava seu estômago mais intensamento do que se ele tivesse comido algo estragado. Pela quarta vez no dia, ele senta diante do computador. Seu programa de mineração de moedas virtuais não estava mais rendendo, pois ele funcionava baseado nas transações virtuais do mundo todo. Aquilo havia feito Gabriel estremecer diante da possibilidade de o mundo todo ter sumido, e ele ser o único ser humano restante, como em um filme. Conforme o tempo passava e nenhuma postagem nova era feita, os algoritmos inteligentes das redes sociais buscavam postagens cada vez mais antigas para mostrar a Gabriel, e ele se vê olhando para notícias e “novidades” de quatro dias atrás. Ele se levanta novamente e faz outro sanduíche, que termina por não comer. Quando larga o sanduíche intacto em cima da mesa, percebe que o outro sanduíche também estava ali. Ficar sozinho o estava deixando biruta. Ele vai até a sala e liga e desliga a lâmpada algumas vezes, e um pensamento lhe ocorre. “Por quanto tempo terei luz?” - Ficar sem luz era uma perspectiva assustadora, mas ele esperava que ainda esta ainda durasse bastante. Gabriel volta para seu quarto e pega da estante alguns livros pequenos que gostava, sendo “O Pequeno Príncipe” seu favorito. Ele queria ler na esperança de que quando acabasse, seus pais surgissem magicamente pela porta, e assim, apesar da angústia, ele mergulha nas páginas repletas de histórias.
  98.  
  99. Oito horas.
  100.  
  101. O despertador no quarto de seus pais toca. Oito horas da noite era o horário que sua mãe tinha que tomar um remédio, e para que ninguém esquecesse, aquele despertador havia sido encarregado de lembrá-los. Gabriel é desperto de sua leitura e corre até o despertador, desligando-o. Ele senta na cama de seus pais e ergue os olhos para a cabeceira, aonde um retrato de Jesus era mantido, retratado com as mãos erguidas, como que distribuindo algo para quem estivesse encarando o quadro.
  102.  
  103. - Se você existe mesmo, por favor me ajude. - Gabriel nunca havia acreditado em religião alguma. Isso era uma frustração para seus pais, que sempre o convidavam para ir na igreja com eles. Mas se vendo sem esperanças, ele decide apelar para o quadro.
  104. E, como no fundo sempre suspeitara, nada acontece.
  105. Ele se levanta para checar o celular do pai e da mãe, a fim de ver se alguém os havia contatado. Para seu desespero, os celulares haviam ficado sem bateria, e ele rapidamente os coloca para carregar. Gabriel olha pela janela da sala para descobrir que já era noite. Um vento forte varria as calçadas e a rua vazia, derrubando folhas e galhos menores de árvore. Uma olhada para o ceu mostra a lua quase totalmente encoberta, e nenhuma estrela. “Um temporal está por vir” - Gabriel pensa consigo mesmo. Ele sai pela casa fechando todas as janelas e portas, a fim de proteger-se, e vai para seu quarto novamente, deitando-se na cama e se cobrindo até o pescoço com o grosso cobertor de penas. Esporadicamente, ele lança uma olhadela para a lâmpada acesa, assustado com a perspectiva de ela apagar repentinamente, e não se acender nunca mais. Com o temporal iminente, isto se tornava uma realidade ainda mais próxima.
  106.  
  107. Ele fecha os olhos, procurando cair no sono. Alguns minutos depois, ele já começa a ouvir os primeiros pingos de chuva na janela. Pelo barulho que faziam, eram pingos grossos, típicos de uma chuva forte. Com os primeiros relâmpagos, a luz da lâmpada vacila, falha que é acompanhada pelo coração assustado do garoto. Um relâmpago muito alto soa no ceu. “Se os cachorros não tivessem sumido, provavelmente estariam escondidos de medo.” - O pensamento lhe ocorre repentinamente. Ele não tinha animais de estimação, mas em sua vizinhança, estes eram abundantes. Gabriel se lembra de ter desejado silêncio várias vezes, quando os cães aparentemente decidiam latir todos ao mesmo tempo diante da presença possivelmente nociva do carteiro. Contudo, agora isto era o que ele menos queria, já que aquele silêncio permanente e opressor parecia lhe deixar surdo. Um outro “crac” muito alto ecoa no ceu, proveniente de um relâmpago. Este, porém, causa danos reais. Gabriel ouve um outro barulho muito alto na rua, e as luzes todas se apagam ao mesmo tempo. Pelo jeito, o raio havia atingido um transformador central, e agora a luz se fora. Era o que ele mais temia, estaria fadado a ficar no escuro agora. No breu do seu quarto, a escuridão parecia dançar a seus olhos, criando a impressão de algumas sombras serem maiores e mais escuras que outras. Seu psicológico já negativamente afetado, começa a inventar formas horrendas no escuro. Criaturas com garras que se esticavam na direção dele. Por sorte, porém, ele tinha seu cobertor, e como todos sabem, cobertores são a arma mais efetiva contra criaturas mal intencionadas durante a noite. Ciente disso, Gabriel se cobre até a cabeça e fecha os olhos com força. Como era inverno, e o clima estava frio, não havia perigo de ele suar ali debaixo. Então, após algumas horas passadas, ele adormece, novamente sem ser assolado por nenhum sonho ou pesadelo.
  108.  
  109. Sete e dezesseis da manhã.
  110.  
  111. Gabriel acorda repentinamente, em um salto. Ainda estava escuro lá fora, então ele fica momentaneamente desnorteado. “Acordei de madrugada?” - Pensa ele, já se dirigindo à janela para averiguar. O dia estava escuro, mas não pelo horário, e sim pelas enormes e agressivas nuvens de chuva que cobriam o ceu, como uma máscara colocada a fim de combinar com a complicada situação do garoto. Ele tateia até a porta e toca no interruptor para acender a luz, apenas para lembrar que não tinha mais luz. Agora ele estava ralado. Fazia mais de vinte e quatro horas que não via uma alma viva além de si mesmo. Ele se arrasta até a geladeira, desanimado e cansado, apesar das mais de oito horas de sono que havia tido. Ele suspeitava que seu cansaço era psicológico, pelo nível de tensão da situação em que ele estava, e que este cansaço refletia para seu corpo adolescente.
  112. Gabriel abre a geladeira, e um cheiro ruim invade seu nariz, origem do qual ele logo descobre: uma salada de brócolis havia sido deixada na porta da geladeira, e como havia faltado luz, esta havia extraviado. O resto dos alimentos provavelmente também, como nata, manteiga e leite. O cheiro estava se tornando insuportável, então ele fecha a porta para que a casa toda não fique empesteada com o veneno aromático que emanava da geladeira. Ele senta no sofá, sacando o controle remoto e tentando ligar a televisão instintivamente, apenas para arrancar de si mesmo um suspiro frustrado. Ele escora a cabeça pra trás, olhando para o pequeno lustre (ou o que conseguia ver dele, naquele escuro). “Estou condenado a morrer de ócio” - Logo sua barriga ronca, e ele completa o pensamento: “E fome”.
  113.  
  114. Gabriel tem a brilhante ideia de checar os telefones celulares de seus pais, mas este se revela um gesto inútil, pois não havia nenhuma mensagem nos aplicativos de conversa, nenhuma notificação nas redes sociais e nenhuma chamada perdida. Em contrapartida, ambos os celulares estavam cheios de notificações sobre compromissos agendados que aconteceriam nos dias seguintes, e que Gabriel sabia que eles não poderiam atender pelo simples fato de terem sido aparentemente erradicados da face da terra. Este logo seria o destino de Gabriel, conforme sua barriga insistentemente insistia em lembrar. A não ser que...
  115.  
  116. “Faça algo você mesmo.” - A frase bombardeia sua cabeça de repente e ecoa pelas paredes de seu crânio por vários segundos. É isso! Gabriel precisava descobrir por si próprio o que havia acontecido, e como ele faria para resolver aquela enrascada. Teria que descobrir por quê todos haviam sumido, para onde haviam ido e também - não menos importante - por quê ele havia sido o único (aparentemente) a ser deixado para trás. Um pensamento amargo invade sua cabeça, também de supetão.
  117.  
  118. “Não seria a primeira vez que sou deixado pra trás, não é papai?” - Ele se pega novamente desanimado. Mas antes que este desânimo pudesse lhe consumir, ele decide se levantar e organizar suas coisas. Uma olhadela no celular de seu pai revela que ainda havia sinal da operadora, o que significa que havia luz alimentando a enorme torre de rádio central, cerca de cem quilômetros adiante. Gabriel decide que era para lá que ele iria, pois havia chance de outras eventuais pessoas terem tido a mesma ideia. Ele corre para o quarto e pega sua mochila, esvaziando-a dos materiais escolares, e colocando utensílios que poderiam ser necessários, como um canivete suíço enferrujado que existia em seu quarto há mais tempo do que Gabriel conseguia se lembrar, uma pequena lanterna que havia ganhado de presente de uma tia distante há alguns meses, seu livro de geografia devido aos mapas importantes que haviam ali dentro, e tudo mais que julgasse útil. Por fim, enfia o que consegue de moletons em cima de tudo e coloca a mochila nas costas. Ele passa na sala e tira as pilhas do controle remoto, levando-as consigo. Também pega os celulares de seus pais para levar, e desliga-os para que não consumam bateria a toa. Ele dá uma última checada na geladeira na esperança de encontrar algo que não estivesse fétido ou podre, mas falha miseravelmente: o cheiro havia se tornado insuportável, e isto era o suficiente para que ele deduzisse que toda a comida havia ficado intragável. Nos armários havia apenas enlatados, como pimenta e algumas sardinhas, que ele termina por não pegar. Decide que passaria em um dos mercados no caminho e acumularia lanches e outros alimentos para consumir em sua árdua e quilométrica jornada.
  119.  
  120. Após garantir de que todas as janelas da casa estavam fechadas, e trancar a porta com a chave, Gabriel finalmente inicia sua viagem em busca de uma alma viva.
  121.  
  122. Dez e meia da manhã.
  123.  
  124. Uma garoa fraca caía como um manto molhado sobre os cabelos dele, que logo haviam sido cobertos pelo capuz. Gabriel se amaldiçoa por não saber dirigir, o que não era de fato sua culpa, pois tinha apenas quinze anos. Ele pensa em entrar em alguma das casas para pegar uma bicicleta “emprestada”, mas não consegue. Aquilo seria roubo, mesmo que os donos tivessem sumido pra sempre. O ceu ainda reinava mau-humorado acima dele. Gabriel esperava que a chuva não recomeçasse, pois ficar encharcado naquele frio seria uma gripe quase certa, ou no pior dos casos, uma pneumonia. De qualquer maneira, provavelmente significaria em muitos dias enfermo, já que não havia ninguém para lhe ajudar a se curar. Este pensamento é o suficiente para que ele vista quatro camadas grossas de roupas sobre seu corpo magrelo. A fome estava ficando cada vez mais difícil de ignorar. Pelos seus cálculos, o último alimento em seu estômago já datava de mais de quinze horas atrás. Mas Gabriel estava prestes a dar um jeito nisso, quando vira a esquina da praça central, para entrar no mesmo supermercado aonde buscava as coisas pedidas no último minuto antes do almoço por sua mãe. Ele ainda achava errado roubar, mas a fome falava mais alto que a ética, nesse caso. Gabriel percebe com alívio que as prateleiras estavam cheias, e de prontidão ele pega vários pacotes de bolacha, salgadinho e garrafas da água, refrigerante e outras bebidas que ele sequer sabia o que era. Obviamente, não caberia tudo na sua mochila já cheia, então ele decide encher um carrinho de compras com alimento do tipo, pois sua jornada seria longa, e sua fome, insistente. Ele começa a organizar itens o mais simetricamente o possível, pois assim caberia mais. Quando o carrinho é cheio até em cima, ele sai pelo mercado em busca de algo para cobrir o mesmo das intempéries, e encontra uma lona de plástico à venda, daquelas que se usa para... bem, para o que quer que seja que lonas sirvam. Ele cobre o carrinho com ela, dobrando-a ao meio uma vez, pois era muito grande. Por fim, amarra uma cordinha por baixo do carrinho, a fim de prender a lona, e empurra sua mina de ouro alimentícia pelo corredor, a fim de testar.
  125.  
  126. Estava incrivelmente pesado.
  127.  
  128. Gabriel arfa constantemente para empurrar o carrinho por alguns metros, não poderia continuar assim. Contudo, não queria se dar ao luxo de se desfazer de alimentos preciosos, pois cem quilômetros de viagem, segundo seus cálculos, lhe renderiam pelo menos três dias completos de caminhada. Isso, claro, se não chovesse, houvesse terremotos, nevascas, invasão alienígena, ou uma de suas pernas desaparecesse misteriosamente. Nada disso era provável, mas tampouco era o sumiço de toda a população mundial. A essa altura, ele já estava contabilizando todas as possibilidades, mais negativas do que positivas.
  129.  
  130. Meio-dia.
  131.  
  132. Gabriel havia terminado por se desfazer das coisas mais pesadas que havia colocado no carrinho, como um saco de arroz de cinco quilos, que não fazia ideia do por quê de ter posto ali, já que não sabia cozinhar. Agora, Gabriel mascava um chiclete, enquanto empurrava o ainda razoavelmente pesado carrinho pelas ruas irregulares, em direção à saída da cidade, e à auto-estrada. “Açúcar = energia” - Havia pensado ele, quando viu chicletes sortidos em uma cestinha no balcão. Eram do tipo vários por um punhado de centavos, então não eram a melhor coisa do mundo, mas eram alguma coisa para mastigar em sua jornada solitária.
  133. Conforme ele se aproximava do trevo que ligava as ruas da cidade com a auto-estrada, a redução no número de construções era evidente. Casas bonitinhas davam lugar à árvores diversas, que enfeitavam a rua que agora estava mais bem asfaltada. Mais perto do trevo, ele avista uma oficina. Ele não se lembrava da existência de nenhuma oficina ali, e aquilo era intrigante, pois Gabriel costumava lembrar bem de todos os lugares que passava de carro com o pai. A rodinha de seu carrinho contra o asfalto emitia um barulho bem alto, ao qual ele havia se habituado com os minutos constantes empurrando o mesmo. Este barulho havia repentinamente se tornado mais alto aos ouvidos de Gabriel, conforme ele se aproxima da oficina. Um sexto sentido desenvolvido especialmente para esta ocasião lhe dava uma sensação irritante de que havia algo errado. Quanto mais ele se aproxima, mais detalhes ele consegue ver da recém surgida oficina, e o que mais lhe aterroriza, é uma cadeira de balanço, que balançava ritmadamente na frente da mesma.
  134. Gabriel afasta as mãos do carrinho e deixa este a cerca de cem metros da oficina. Ainda mascando o chiclete, ele ajeita o capuz na cabeça e encara a oficina e a cadeira de balanço. Era uma cena digna de filmes de terror: um garoto sozinho no mundo, diante de uma oficina, em frente da qual uma cadeira de balanço ia e voltava em seu eixo, num ritmo lento e viciante para quem estava olhando. Ele se aproxima a passos muito cautelosos, havia se armado com a coisa mais perigosa e ameaçadora que encontrara: um guarda-chuva da Hello Kitty.
  135.  
  136. - Alguém aí? - Gabriel havia procurado o tom de voz mais ameaçador e imponente o possível, tentando soar como se fosse um leão, e eventuais seres na oficina, sua presa. Não havia nem chegado perto, assemelhando-se mais a um esganiçado ganido de um filhote de cachorro chamando pela mãe.
  137.  
  138. Ninguém responde.
  139.  
  140. Agora já a menos de vinte metros, ele conseguia ver que de fato havia alguém na cadeira. Será que estava dormindo? Por quê não havia lhe respondido? Ele dá mais alguns passos vacilantes, segurando sua ameaçadora arma da maneira mais firme o possível, com suas mãos que tremiam violentamente. Ele não sabia se pelo frio ou pelo medo e expectativa. Suspeitava que pelos dois.
  141.  
  142. - Olá?
  143.  
  144. Agora perto o suficiente para identificar que de fato era uma pessoa se balançando ali, ele fala olhando diretamente para a forma que ia pra lá e pra cá na cadeira, quase imóvel. O guarda-chuva rosa agora estava apontado diretamente para o alvo, de prontidão para cutucar o ser caso se aproximasse demais. Gabriel sente a tensão crescer conforme o tempo passava, e a pessoa ali não lhe respondia. Ele estava bem perto agora, e tinha certeza de que havia sido ouvido. Será que havia morrido? Gabriel esperava que não, nunca havia visto uma pessoa morta, e agora seria uma péssima hora para ver uma.
  145.  
  146. “Faça algo você mesmo.”.
  147.  
  148. Gabriel decide fazer algo. Agora já a menos de cinco metros, havia identificado que era uma garota ali na cadeira, e que ou estava dormindo, ou havia partido desta para melhor. Ele se aproxima com muito cuidado, levantando a mão que segurava o guarda-chuva gradual e lentamente. Ele suava por baixo do capuz, tamanho era seu nervosismo. A respiração estava presa há mais segundos do que ele gostaria de ter contado, e a ponta decorada pela Hello-Kitty estava a centímetros do rosto coberto pelos compridos cabelos castanho-claro que ele agora via com clareza.
  149.  
  150. - BUUH! - A garota se levanta, rápida como um raio, e grita alegremente. As mãos levantadas e a proximidade repentina fazem Gabriel soltar o ar todo de uma vez, em um susto dos grandes, e cair pra trás, sentado no chão sujo.
  151.  
  152. - AAAH MAS QUE DROGA! - Ele coloca a mão no peito, o coração estava terrivelmente acelerado, só não mais acelerado que sua respiração. Pelo jeito, ele havia a prendido por tempo demais, e sua cabeça agora girava de leve. Ele tentava focar o rosto da garota, mas a tontura dificultava essa tarefa. Contudo, Gabriel podia ver que ela ria alegremente, apontando para ele. Ela mal conseguia se conter, mas ele não via graça na situação.
  153.  
  154. - Você... devia ter visto... sua cara... - Diz ela, explodindo em risadas novamente, e pausando diversas vezes entre as palavras para retomar o fôlego. Gabriel se vê com a dignidade ferida. Agora recuperado da tontura, e com a respiração mais normalizada, ele se levanta, sacudindo a sujeira de suas roupas. Um pouco de lama havia se acumulado em seu traseiro, e esta não poderia ser limpada com tanta facilidade, o que o deixa irritado, pois a lama era molhada, e ficar molhado naquele frio não era boa ideia. Por sorte, ele havia trazido outras calças em sua mochila, e não tarda a abri-la para pegar uma delas e trocar.
  155.  
  156. - O que está fazendo? - Ela se aproxima curiosa, e espia por cima de seu ombro.
  157.  
  158. - Vou trocar a roupa que sujou por SUA causa. - Ele coloca uma ênfase propositalmente exagerada no pronome, para que ela se sentisse culpada. Todavia, isto não parece surtir efeito, e ela volta a rir da situação de antes. Gabriel revira os olhos e ignora ela. Estava preocupado em não pegar uma gripe, e corre para dentro da oficina para se trocar. Após uma rápida inspeção para garantir que ela estava vazia, Gabriel tira suas calças, ficando apenas de cuecas, e coloca calças limpas. Estremecendo momentaneamente pelo contato do tecido frio com a pele, ele olha para trás e percebe que havia deixado o carrinho com os mantimentos sozinhos com a garota de sanidade mental duvidosa. “Essa não.” - Ele corre com a calça suja na mão e dá de cara com ela escorada no carrinho, comendo um dos pacotes de bolacha que ele reconhece como seus. Não exatamente seus, já que ele não havia pago por eles, mas isso não vinha ao caso agora.
  159.  
  160. - Ei, minhas bolachas! - Ele corre meio desengonçado, após tropeçar em uma pedra no caminho. Ao chegar perto dela, ele já estica o braço para recuperar a posse do pacote de bolachas de morango que ela havia “afanado”. Para sua surpresa, ela não reage.
  161.  
  162. - São suas? Você tem uma fábrica ou algo do tipo? - Indaga ela, com um olhar que expressava nada mais do que genuína curiosidade. Gabriel não esperava por essa, e se vê pensativo.
  163.  
  164. - Bem, na verdade... eu as peguei de um mercado e... eu estava com fome, e, hum... - Ele procura as desculpas rapidamente, sem chegar a uma conclusiva. Ela parece entender sua situação e dá de ombros.
  165.  
  166. - Tudo bem, eu entendo. - Diz ela, se escorando no carrinho novamente e olhando o horizonte, para aonde Gabriel sabia que ficava a torre de rádio: seu principal objetivo. Agora que as coisas haviam se acalmado, Gabriel percebe que havia uma série de lacunas naquilo ali. Quem era ela? Por quê estava na oficina? Pra onde ela iria? Ele decide que a segunda era a mais importante.
  167.  
  168. - Ei, o que você estava fazendo aqui? Você mora na oficina? Estava perdida? - Pergunta ele, no tom mais confortador que consegue expressar. Quando ela se afasta do carrinho, ele se debruça sobre a empunhadura do mesmo.
  169.  
  170. - Como posso estar perdida se não tenho para onde ir? Ah, claro que não. Quem moraria em uma oficina? Isto é um absurdo. Eu trabalho aqui. Conserto coisas, sabe? - Ela diz, sorridente, ainda olhando pro horizonte. - A propósito, meu nome é Layla. E você? - Ela desvia o olhar do horizonte para olhar pra ele enquanto pergunta.
  171.  
  172. - Conserta coisas... hum... Prazer, Layla. Me chamo Gabriel. - Até agora, ela não parecia ter dado sinal de saber que todo mundo havia sumido, e Gabriel não sabia como tocar no assunto. Porém, não podia perder a oportunidade. - Aonde... aonde foi todo mundo? Sabe porque todos sumiram? - Pergunta ele, confuso. Aquelas palavras lhe soam muito estranhas na boca, quase como se ele estivesse falando a maior de todas as besteiras do mundo. E quem sabe não estivesse mesmo?
  173.  
  174. - Sumiram? - Ela aparenta dúvida por um momento, mas logo depois assente, com o semblante exibindo esclarecimento instantâneo. - Aaaah sim. Sumiram. Pois é, por quê será? - Ela coloca a mão no queixo, fazendo uma cara de confusão exageradamente evidente. Gabriel sente vontade de rir daquilo, mas se segura. - Então, Gabriel. Para onde planeja ir? - indaga ela, o observando com os olhos que Gabriel havia identificado serem de um verde muito bonito.
  175.  
  176. Gabriel pondera o que havia escutado por um momento. Se a situação não fosse tão estranha, ele juraria que ela estava escondendo algo. Talvez estivesse. “Será que ela é uma alienígena que sumiu com todos os seres humanos? Se sim, por quê está me poupando, se é que vai me poupar?” - O pensamento lhe ocorre subitamente, e ele estreita os olhos pra ela. Aquilo provavelmente era um absurdo, mas o que naquela história não era de fato, um enorme absurdo? Ela poderia ser uma alienígena, ou uma pessoa na mesma situação que ele. Em ambas as situações, não faria sentido esconder para onde estava indo.
  177.  
  178. - Bem... há uns cem quilômetros daqui, seguindo pela auto-estrada, tem uma torre de emissão de rádio. Eu sei que ela está funcionando, pois ainda há sinal de telefonia no celular do meu pai. Essas torres devem precisar de pouca manutenção, para funcionarem sem que ninguém cuide por dias assim. - Ele diz, analisando a reação dela, que parecia absorver suas palavras como uma esponja nova.
  179.  
  180. - É uma boa ideia. Eu vou com você. - Ela diz, empurrando ele com o quadril para ficar ao seu lado, de modo que ambos pudessem empurrar o pesado carrinho. Gabriel fica surpreso, mas no fundo sabia que aquela ajuda seria bem vinda, principalmente pois empurrar aqueles mantimentos pelo pouco que havia empurrado havia se revelado bem difícil, e ainda havia muito caminho pela frente.
  181.  
  182. Gabriel consulta um relógio que havia ajeitado no pano que ficava por cima do carrinho de modo a sempre saber as horas rapidamente, e suspira. Eram dezoito e trinta e quatro, e no inverno, aquilo significava que tinham apenas meia hora de sol. Tendo isso em mente, provavelmente era melhor passar a noite na oficina, e continuar pela manhã.
  183.  
  184. - Layla, eu acho que é melhor ficarmos aqui hoje. - ele olha para ela, e para o relógio. Layla segue seu olhar para os ponteiros e depois olhar para o ceu, assentindo.
  185.  
  186. - Tem razão. Acho melhor aproveitarmos essa última noite com um teto sobre as cabeças. - Ela dispara, em um tom lúgubre. Gabriel não havia pensado naquilo. Deveria ter arranjado uma barraca ou algo do tipo, pois dormir ao relento não seria nada agradável no inverno, e ainda poderia chover, ou cair granizo. Layla o ajuda a colocar o carrinho para dentro da oficina, em um canto separado. Ele checa os interruptores para o caso de a luz ainda funcionar ali. Como suspeitava, a falta recorrente do temporal havia sido geral. Ele se põe a examinar com mais cuidado a oficina, passando os olhos e os dedos pelas diversas ferramentas que haviam ali. Tornos, chaves de fenda, chaves inglesas, martelos... “É estranho uma oficina dessas à beira de uma estrada. Geralmente são borracharias e...” - Seus pensamentos são interrompidos por um “CRAC” alto atrás de si. Ele se assusta e se vira de um salto, apenas para ver que Layla se concentrava em arrancar algumas tábuas de uma parede aos fundos.
  187.  
  188. - O que está fazendo? - Devido à sanidade duvidosa previamente confirmada, Gabriel suspeita que ela estava tentando demolir a oficina, e se aproxima, com um martelo ainda em mãos.
  189.  
  190. - Vou fazer uma fogueira ué. - Ele dá um tapa em sua própria testa. “É claro. Uma fogueira. Como nos programas de sobrevivência.”.
  191.  
  192. - Vou separar um lugar para acendermos sem que viremos churrasco - retruca ele, já isolando uma área no centro da construção para acender o fogo sem que corressem o risco de incendiar todo o local. “É claro, os programas de sobrevivência!” - Por vezes, Gabriel assistia estes programas na televisão, quando não tinha nada melhor ou mais divertido passando. Ele se concentra em lembrar o que os apresentadores diziam sobre fogueiras. “São importantes... se manter aquecido.... purificar água, mas...” - Algo lhe incomodava, como se uma agulha estivesse cutucando seu cérebro sem que ele visse. “Mas...” - Mas o quê? Pensa ele, enquanto afasta qualquer coisa minimamente inflamável da área aonde acenderiam a fogueira. Os especialistas sempre falavam que uma fogueira tinha um lado bom e um lado ruim, este último era o que incomodava Gabriel, mas que ele não conseguia lembrar com exatidão. Ele termina de arrumar a área e olha para a rua, aonde a escuridão já se tornava senhora, e a luz apenas uma empregada, obedecendo às ordens da patroa, enquanto se retirava para seu apertado cômodo no canto da casa. E então, um estalo ocorre na cabeça agitada do garoto. As fogueiras traziam vários benefícios, como calor e aconchego. Estes benefícios interessavam a eles, e...
  193.  
  194. Ao que quer que estivesse lá fora.
  195.  
  196. Gabriel mantém os olhos fixos na escuridão que caía. Não conseguia ver mais que alguns poucos metros além da porta da oficina. Sua mente preocupada pensa ver diversos vultos na rua, alguns reais até demais. Gabriel esfrega os olhos e sacode a cabeça com força. Os vultos haviam ido embora. Por enquanto.
  197.  
  198.  
  199. 21:26
  200.  
  201. Após ter fechado a porta da oficina alegando frio, Gabriel havia se reunido com Layla ao redor do aconchegante calor do fogo. Eles haviam usado algumas ferramentas de Layla para fazer espetos com os marshmallows que Gabriel havia trazido no carrinho. Layla parecia animada, mas Gabriel, por sua vez, não escondia a surpresa.
  202.  
  203. - Aonde foi que aprendeu a acender fogueiras tão bem? - Gabriel nunca havia acendido uma fogueira de verdade - apesar de adorar acampar com seu pai -, mas tinha certeza que mesmo se tivesse acendido algumas dezenas, não teria sido capaz de o fazer tão rápida e precisamente como Layla havia feito. Ela havia pego um pouco de serragem do canto para a onde varria a sujeira durante o dia, colocado um graveto entre elas e girado a toda velocidade entre as mãos, e logo um foco de fogo havia se iniciado, que ela não tardou em alimentar com as tábuas previamente reunidas.
  204.  
  205. - Eu gosto de acampar. - Ela retruca, dando de ombros. Aquilo era uma agradável coincidência. Ele e Layla pareciam ter muitos gostos em comum, sendo o apreço por acampar apenas um deles. Porém, algo em Layla ainda o deixava com a pulga atrás da orelha, como o fato de que ela não parecia se preocupar com o sumiço das pessoas do mundo todo. Gabriel ainda não estava com sono, então decide que iria tentar descobrir um pouco mais sobre ela antes de dormir no amontoado de roupas que convenientemente Layla tinha em um canto, e que eles haviam espalhado e organizado para pelo menos parecer uma cama.
  206.  
  207. - Layla, você disse que trabalha aqui na oficina. O que exatamente você faz? - indaga Gabriel, cauteloso. Não sabia até que ponto Layla era extrovertida, e até que ponto ela responderia suas perguntas sem maiores problemas. Algo lhe diz que deveria ter sido mais cauteloso, mas a ansiedade por respostas, somada a curiosa e interessante personalidade de Layla, o fizeram jogar a cautela pelos ares.
  208.  
  209. - Bem, sim. Eu conserto de tudo... objetos, paredes... - Sua voz vai ficando mais baixa, enquanto ela se arrasta delicadamente para o lado dele, se sentando. A boca dela estava a centímetros de seu ouvido agora, de modo que ele conseguia sentir sua respiração quente. Gabriel sente o rosto ferver ainda mais intensamente do que havia fervido na última aula com a senhora Mafra. Mentalmente, sua única preocupação era não ficar tão vermelho, ou pelo menos esconder da melhor maneira possível caso ficasse, enquanto ela continua a falar. - Memórias, sonhos... - Ela dá uma risadinha e se afasta um pouco, abraçando os joelhos e olhando para ele com o canto do olho. - Vou consertar você também. - Diz ela, desta vez, sem a menor menção de sorrisos ou risadas.
  210.  
  211. - Mas... eu não estou quebrado... - A confusão em Gabriel agora era maior do que seu medo de aparentar vergonha. Aparentemente, Layla era completamente doida.
  212.  
  213. - Ainda não, mas lhe falta uma peça, uma peça tão importante que pode ser que você quebre a qualquer momento sem ela. - Ela o analisava fixamente, como se ele fosse uma mercadoria e ela uma compradora em busca do produto com menor número de falhas possível.
  214.  
  215. - Uma... qual peça? - Pergunta ele, curioso. Ele se ajeita para encarar os astutos olhos verdes dela, sentindo-se quase invadido. Ela não responde de imediato, em vez disso, fica apenas o olhando, até que alguns segundos depois, ela dá uma risadinha e engatinha até o amontoado de roupas próximos ao fogo, aonde dormiriam.
  216.  
  217. - Deixa pra lá, você vai descobrir. - Diz ela entre risadinhas, enroscando-se em várias peças de roupa diferentes, de modo que ao fim do processo, ela fica parecendo uma grande bola de tecidos. - Boa noite, Gabriel. - Diz ela, com a voz abafada pelas incontáveis camadas de linho e algodão.
  218.  
  219. - Boa noite, Layla. - Gabriel encara o amontado de roupas que agora era Layla por alguns segundos, reprimindo uma repentina vontade de rir. Ele volta o olhar para o fogo, alimentando-o com mais algumas tábuas grandes, esperando que ele queimasse por algumas horas. Em poucos minutos, a respiração de Layla se torna ritmada, e Gabriel sabia que ela estava dormindo. Ele abaixa o olhar para o fogo e sua mente se perde nas formas dançantes que oscilavam entre laranja, amarelo e vermelho.
  220.  
  221. “Pai... mãe... para onde foram?” - Gabriel tinha muitas perguntas. Neste ponto, sentia até mesmo falta de João e seus dois capangas, Roberto e Marreco. Podiam ser uns covardes irritantes e idiotas, mas pelo menos com sua existência, Gabriel não estaria sozinho nesse mundo tão grande. Pelo menos agora tinha Layla, que se revelara uma companhia razoavelmente agradável.
  222.  
  223. A oficina que aparecera aparentemente do nada, a garota que parecia esconder coisas, o sumiço das pessoas, tudo isso incomodava Gabriel, mas uma pergunta batucava entre as paredes de seu crânio desde o princípio, desde que ele decidira fazer algo ele mesmo. Ele achava, que respondida esta, todas as outras se responderiam sozinhas. Geralmente ele não confiava nos seus planos, pois eles sempre davam errado, mas uma dúvida que ardia em sua alma assim como o fogo ardia nas madeiras à sua frente, lhe dava uma certeza firme de que dessa vez estava correto.
  224.  
  225. Por quê Gabriel não havia sumido também?
  226.  
  227.  
  228.  
  229. *CAPÍTULO 4*
  230.  
  231. Gabriel podia deduzir que o sol ainda não havia nascido, pois nenhum raio de luz se arriscava pelas frestas grandes da oficina de madeira. O som de coisas sendo remexidas o havia acordado, e ele logo cava seu caminho por entre a enorme montanha de tecidos em que havia feito um casulo aquecido para passar a noite. Ao sair de seu “casulo”, ele dá de cara com uma luz forte, que ele logo descobre ser a fogueira, que havia sido revivida por Layla. Ele pisca várias vezes para se acostumar e engatinha até o lado dela. O cheiro agradavelmente forte de café invadia suas narinas, e ele inspirava fundo para senti-lo melhor.
  232.  
  233. - Que horas você acordou? - Indaga Gabriel baixinho, para Layla. Não havia motivo para acordar tão cedo, e segundo a lógica de Gabriel, quanto mais descansados estivessem para o início de sua jornada, melhor seria. - E aonde arranjou café? - emenda ele, agora confuso. Gabriel tinha certeza de que não tinha pego café no mercado.
  234.  
  235. - Bom dia pra você também, cara amassada. - Ela retruca, com uma risadinha, enquanto estica uma xícara de café pra ele, que ele agarra de bom grado. O contato da porcelana aquecida pelo café com suas mãos geladas era muito bem vindo. - Eu tenho café aqui, oras. Ou acha que vou todo dia ao mercado? - Ela emenda com outra risadinha, enquanto beberica um gole do café.
  236. Aquilo ficava cada vez mais estranho. Qualquer ônibus que passasse ali a levaria para o centro da cidade, aonde mercados não eram raridade, e ela poderia comprar alimentos frescos. Mas o que era ainda mais estranho: por quê ela dormia na oficina? Aquilo não fazia sentido para Gabriel. Ele decide deixar de lado, enquanto adiciona mais aquela dúvida na caixinha de “Coisas suspeitas sobre Layla”, no fundo do seu subconsciente.
  237.  
  238. Gabriel vai com a xícara de café até o carrinho, e pega algumas bolachas recheadas, para dividir com Layla. Um pensamento lhe ocorre: Ela não tinha respondido sua pergunta sobre o horário em que havia ido dormir. Talvez não importasse, mas tudo que ela fazia parecia contribuir para reforçar a suspeita que Gabriel tinha sobre Layla estar escondendo algo. Ele observa ela enquanto ela enfia uma bolacha inteira na boca, tendo dificuldades para mastigar. Era uma garota muito bonita, com longos cabelos castanhos que lhe caíam pelos ombros, e olhos verdes muito claros. Parecia ter pouco menos de um metro e setenta - mais ou menos a altura de Gabriel - e era magra como ele. Gabriel, por sua vez, era um garoto de aparência muito comum. Olhos escuros e um cabelo preto sempre bagunçado, pois a vida era curta demais para pentear os cabelos.
  239.  
  240. Alguns raios de sol mais corajosos se arriscavam pelas frestas entre as madeiras da parede da oficina. Subitamente, Gabriel sente vontade de levantar e avançar, mas sabia que era melhor fazer as coisas com calma. Ele toma seu último gole de café e esfrega as mãos para se livrar dos farelos da bolacha. Layla joga o pacote vazio no lixo e estende a mão para pegar a xícara vazia dele, já se dirigindo a uma pia no canto, aonde ela passa uma água nas xícaras e seca com um pano muito sujo que tinha ali. Gabriel franze a testa, mas não diz nada. Se ele fosse morrer por algum motivo, naquela história toda, certamente não seria por tomar café em uma xícara que havia sido secada com um pano sujo de óleo de oficina.
  241.  
  242. - Vamos? - Pergunta Layla alegremente, abrindo a porta da oficina e permitindo que o sol contaminasse o local por completo. O calor que ele trazia era bem vindo, e Gabriel agradece aos ceus pela existência do sol. Aquilo não era comum, e Gabriel percebe que havia agradecido aos ceus mais nos últimos dias do que em todos os meses anteriores. Ele assente para Layla, concordando, e coloca o capuz sobre a cabeça já empurrando o carrinho com esforço até a beira da estrada. Ele havia se esquecido de como aquilo estava pesado, e logo se vê com a respiração ofegante de um adolescente magro e sedentário que não estava acostumado a fazer exercícios por mais de dez minutos ao dia.
  243. Layla se aproxima por trás dele e tira seu capuz. Em resposta, Gabriel se vira lentamente para encará-la, confuso.
  244.  
  245. - Por quê fez isso? - Ele indaga, já fazendo menção de colocar o capuz novamente, enquanto ela se põe a seu lado para ajuda-lo a empurrar o carrinho.
  246.  
  247. - Seu cabelo é bonito. - Ela retruca indiferente. - Gosto dele. - Ela emenda, e Gabriel sente novamente o calor que vinha do seu peito deixar sua face vermelha. Se ele não estava acostumado a ser o centro das atenções, estava acostumado ainda menos a ser elogiado. E isso era ainda mais raro quando vindo do sexo oposto, pois as experiências de Gabriel com mulheres eram apenas conversas com sua mãe, e ocasionais visitas de tias distantes que apareciam uma vez por ano para apertar suas bochechas magras.
  248. Ele dá espaço para que ela fique a seu lado, e juntos eles começam a empurrar o carrinho na direção do trevo que conectava a cidade com a estrada interestadual.
  249.  
  250. 09:13.
  251.  
  252. Gabriel olha para o reloginho que mantinha cuidadosamente colocado no topo do carrinho, sobre os alimentos, e suspira. Ainda tinham três horas até o meio dia, que era o horário que ele e Layla haviam combinado de parar para descansar. Eles seguiam para leste, na direção da torre de rádio, e o sol batia em seus olhos, de modo que ambos caminhavam com a face enrugada e os olhos semicerrados. Após alguns comentários de Layla sobre como o dia estava bonito, e grunhidos de Gabriel em resposta, ambos haviam ficado em silêncio, e a jornada era regida apenas pelo som constante das rodinhas do carrinho de supermercado no asfalto, que havia se tornado uma espécie de mantra permanente em seus ouvidos. Gabriel decide que o tempo passaria mais rápido se conversassem. Quando ele se preparava para puxar algum assunto, Layla parece ter lido sua mente, e se adianta.
  253.  
  254. - Por quê você nunca sorri? - ela dispara, lançando um olhar curioso pra ele. Gabriel fica surpreso, pois não se lembrava de alguém algum dia ter lhe feito aquela pergunta. Ele abre a boca para falar, mas percebe que não sabia a resposta, então retruca com a primeira coisa que lhe vem a mente.
  255.  
  256. - Não tenho motivos para isso, eu acho. - seu tom de voz era baixo, com medo de receber uma resposta dura, talvez. - Minhas notas são terríveis, há garotos que batem em mim e em outros na escola, e roubam nosso dinheiro, eles até quebraram meu celular... Não tenho amigos além de meus pais, e ultimamente, nem mesmo eles tenho conseguido chamar de amigos. - Os frequentes “vai ficar tudo bem” e “relaxa, é temporário” o haviam ensinado que de nada adiantava se abrir com outras pessoas, mas antes que ele pudesse impedir, a enxurrada de palavras havia jorrado de sua boca, e não havia nada que ele pudesse fazer a respeito.
  257.  
  258. Após seu desabafo, um silêncio se faz. Silêncio entre aspas, claro, pois o som das rodinhas do carrinho de supermercado contra o asfalto já havia se tornado parte de sua jornada, e de suas vidas. Layla mantinha o olhar fixo pra frente, com a testa franzida e o nariz empinado. Gabriel reconhece aquela expressão. Era a expressão que ele mesmo fazia quando estava pensativo. O sol batia no rosto dela, e Gabriel por um momento tem a impressão de estar olhando para um anjo ou algum outro tipo qualquer de criatura divina - bondosa e pura demais para aguentar o humor taciturno dele. Repentinamente, ela toma ar para falar, e quando o faz, sua voz é suave e apenas ligeiramente mais alta que o irritante som das rodas do carrinho no asfalto.
  259.  
  260. - Sabia que existem mais de vinte músculos responsáveis pelo sorriso no seu rosto? - diz ela, lançando um olhar de canto pra ele. Aquilo era um ditado popular que Gabriel já havia ouvido dezenas de vezes de sua mãe quando franzia a testa.
  261.  
  262. - É, mas dizem que há mais de quarenta responsáveis pelo ato de franzir a testa. - ele rebate no ar quase triunfante comum a pessoas que gostavam de usar ditos populares em conversas e discussões, como se estes fossem um argumento imbatível que instantaneamente lhes concedia a vitória no combate verbal. Após isso, Layla para de caminhar e segura o carrinho consigo, fazendo com que Gabriel pare também. Ela vira pra ele, sorridente, e passa o dedo nas dobrinhas de sua testa franzida.
  263.  
  264. - Vemos aqui que os quarenta músculos de sua testa estão malhados o suficiente, senhor ranzinza. É hora de exercitar os músculos do sorriso. Já viu o que acontece com quem pula o dia da perna na academia? Então. - ela emenda entre risadinhas que desfazem as dobras na testa de Gabriel. Ele faz um pequeno “o” surpreso com a boca, pois aquilo fazia sentido. Sua mente começa a trabalhar a toda velocidade imaginando a si mesmo com uma testa super musculosa e o resto da face magro e atrofiado. Não era uma cena bonita. Contudo, Gabriel não se deixaria vencer tão facilmente.
  265.  
  266. - E você? Pretende deixar os músculos de sua testa franzida atrofiem? - ele encara ela, agora de braços cruzados e uma sobrancelha erguida. Para sua surpresa, ela ri ainda mais alto.
  267.  
  268. - Pois saiba, senhor ranzinza, que eu sei franzir a testa muito melhor do que você, auto-proclamado especialista do mau humor. - após isso, ela prende a respiração e força uma careta com a testa muito franzida, que ornamentada em sua face angelical, parecia uma escultura grega antiga cujo escultor havia ficado com pressa de terminar. Gabriel encara ela por alguns segundos em silêncio, enquanto ela prendia a respiração e ficava ligeiramente vermelha, até que ela solta todo o ar de supetão, novamente se desfazendo em risadas alegres.
  269.  
  270. Gabriel sente algo estranho, vindo de dentro do seu estômago. Um calor que contaminava seus órgãos internos, aquecendo-o mais do que qualquer fogueira, agasalho ou lareira jamais poderiam. E quando essa sensação chega à sua garganta, Gabriel descobre o que era.
  271.  
  272. Antes que pudesse recuperar seu semblante taciturno, Gabriel se vê estranhando o som da própria risada, o qual não ouvia provavelmente há mais de semanas ou até mesmo meses.
  273. Era estranho rir, e era mais estranho ainda rir de algo bobo como uma careta, mas Gabriel estava rindo, e não se arrependia. Lágrimas brotam em seus olhos, e ele se apoia no carrinho para recuperar o fôlego. Layla mal conseguia respirar entre as risadas, e parecia se deleitar ainda mais olhando para o rosto vermelho e sorridente dele.
  274.  
  275. Quando finalmente ambos se acalmam um pouco, Layla enfia a mão no bolso e tira um pequeno colar, cujo pingente era uma concha simples, provavelmente recolhida de uma praia qualquer. Não era valiosa nem bonita, era apenas uma concha.
  276.  
  277. - Rápido, deixa eu colocar! - Layla coloca o cordão por sobre sua cabeça e este cai como uma luva em seu pescoço magro. Layla observava, pensativa. - Não vale quase nada de dinheiro, mas sempre que você olhar pra ele, vai se lembrar de agora, um momento em que estava feliz. - Ela emenda em um sussurro.
  278. Gabriel pega a concha e coloca na palma da mão, observando-a distraído. Não haviam padrões bonitos ou ondulações majestosas. Era apenas uma concha mesmo, pelo menos pra quem olhava de fora. Mas agora, ela significava mais para Gabriel do que as outras pessoas poderiam deduzir ou enxergar. Era uma memória, uma memória boa, que ele levaria pra sempre consigo. Ele guarda o colar dentro de sua camiseta e ergue o olhar para Layla. Em menos de vinte e quatro horas de convivência, ele se sentia quase tão próximo dela como se sentia de seus pais. Pode ser que finalmente Gabriel estivesse provando o verdadeiro sabor da amizade.
  279.  
  280. 15:21
  281.  
  282. Gabriel e Layla haviam roído guloseimas, falado amenidades e empurrado o carrinho a tarde toda. Pelos cálculos de Gabriel, eles conseguiriam fazer uns vinte e cinco quilômetros naquele dia. Atrás de si, ele já não enxergava mais a oficina ou o trevo. Já havia andado o suficiente para voltar, mas não o suficiente para dizer que estava perto de chegar. Gabriel já havia tirado o moletom e estava apenas de camiseta. A temperatura não era nada alta, mas mesmo o sol de inverno aliado ao esforço de empurrar o carrinho pesado eram suficientes para arrancar gotas de suor do garoto. Layla, por sua vez, não parecia sofrer do mesmo mal, e seguia tranquilamente com seu bonito casaco rosa. Eles estavam cansados, e ainda haviam quase três horas de luz disponíveis no dia.
  283.  
  284. - Deveríamos descansar um pouco... meia hora talvez. - diz Gabriel, com a respiração pesada proveniente do esforço feito durante o dia todo. Layla observa ele por alguns momentos e termina por assentir. Eles levam o carrinho até o acostamento, aonde a sombra de uma enorme figueira era grande o suficiente para abrigar eles e o carrinho. Gabriel se senta com uma perna por cima da outra, escorado no tronco da figueira. Antes que pudesse se dar conta, ele arranca um daqueles capins mais finos e põe na boca, mordiscando de leve. Era um hábito que não tinha, mas naquela situação não fazia muito sentido se importar com isso. Ele estava virado na direção sul, de onde tinham vindo. Layla, por sua vez, estava virada na direção da torre, que é para onde iam. Os olhos de Gabriel pesavam, mas não era hora de dormir. Suas pálpebras, porém, discordavam dessa afirmação, e aliados à gravidade, faziam um grande esforço pra baixo, que Gabriel insistia em combater com nada mais que sua força de vontade. Layla estava não falava nada, e o silêncio aliado à brisa fresca e à sombra da figueira, logo colocam Gabriel naquele estado semiconsciente aonde a mente cria imagens e sons, porém você sabe que não são reais pois uma parte de seu cérebro ainda funciona.
  285. Sua cabeça cansada recupera, revive e aumenta memórias que ele gostaria que fossem enterradas pra sempre.
  286.  
  287. No seu sonho semi-lúcido, João, Roberto e Marreco o perseguiam por corredores muito semelhantes aos corredores de sua escola, exceto pelo fato que pareciam não ter fim. Em seu sonho, os três brutamontes pareciam ter mais de dez metros e algumas toneladas, de modo que seus passos pesados deixavam enormes buracos no chão e faziam um estrondo ensurdecedor. João carregava em suas enormes mãos imensas ferramentas cirúrgicas, incluindo uma seringa cuja agulha era maior que a cabeça de Gabriel. Ele não sabia para quê elas seriam usadas, mas não queria ficar para descobrir, então fazia o possível para correr o mais rápido que conseguia. Apesar de seus esforços, a distância que ele cobria com dez passos os brutamontes percorriam facilmente em apenas um, e logo estavam na cola dele.
  288. João dá um salto e pisa com força no chão, e isto causa um mini terremoto forte o suficiente para fazer Gabriel se desequilibrar e cair com tudo no chão. Não haviam mais esperanças. Ele se vira para observar os três gigantes que agora formavam um semi círculo diante de si, enquanto Gabriel se arrasta lentamente pra longe deles.
  289.  
  290. - Olha o bebê chorão. Não vai chorar? - A voz de João era grave e distorcida, e os corredores pareciam ficar muito mais escuros conforme ele falava. Roberto e Marreco emitiam grunhidos indistinguíveis e grotescos, que Gabriel logo deduz serem risadas forçadas. - Pois eu vou fazer você chorar. - João se aproxima lentamente, com a ponta da seringa avançando na direção do rosto de Gabriel. Apesar da escuridão, a agulha reluzia ameaçadoramente, e Gabriel sente as lágrimas quentes rolarem sobre suas bochechas.
  291.  
  292. - Não, não, por favor... - Gabriel fecha os olhos com força, pois a visão da agulha se aproximando de seu rosto era terrível demais para conceber. - Não, não, não, não - ele repete insistentemente, como se aquilo fosse impedir o brutamontes de dez metros. De torturá-lo com uma seringa. Os três riam grotescamente, deleitando-se com o desespero dele, e em um último gesto inútil de defesa, Gabriel coloca as mãos diante do rosto para se proteger. Com os olhos semicerrados, ele vê o gigantesco João abrir a boca para falar algo, mas em vez da voz grave e distorcida, soa uma voz que apesar de soar urgente, era suave e delicada.
  293.  
  294. - Acorda, acorda, Gabriel.. ACORDA! - Gabriel sente um tapa muito forte em seu rosto e abre a boca, sem emitir nenhum som. Ele leva a mão ao rosto e olha magoado para todos os lados, piscando freneticamente. Ao seu lado, ele vê Layla, que parecia preocupada. Gabriel sacode a cabeça um pouco. Havia sido apenas um sonho, um pesadelo, na verdade. Ainda assim, nada daquilo havia sido real. Ele suspira aliviado. O alívio era tanto que ele sequer consegue ficar bravo com Layla por ter dado um tapa monstruosamente forte em seu rosto.
  295.  
  296. - O que foi...? - Ele pergunta, com a voz ainda grogue. Aos poucos ele começa a se lembrar dos momentos antes de adormecer. Eles haviam combinado de parar por meia hora. Uma olhada rápida no ceu revela um sol que estava prestes a se por, tornando o ambiente escura. Conforme percebe que Layla não respondia, ele olha para o rosto dela, e percebe que ela alternava olhares preocupados entre ele, e a parte da estrada de onde tinham vindo. Gabriel não entende de início, então se levanta e vai até o meio da estrada para ver melhor. Ainda não estava completamente escuro, mas estava escuro o suficiente para que as sombras de árvores se unissem em uma grande massa negra diante de seus olhos, formando um horizonte de escuridão que parecia avançar na direção dele. A vista era de certo modo, hipnotizante, de modo que Gabriel fica encarando-a tempo suficiente para quase se convencer de que ela realmente estava se aproximando.
  297.  
  298. - Gabriel, temos que sair daqui. - o pânico na voz de Layla era quase palpável, e é transferido para o subconsciente de Gabriel quando ela o pega pela manga e o arrasta na direção do tronco da árvore. - Rápido, suba! - Ela sobe agilmente pelo tronco da figueira e estende a mão pra ajuda-lo a fazer o mesmo.
  299.  
  300. - Layla, isso não é hora de brincar, temos que arranjar abrigo para passar a noite e... - ela lança um olhar tão ameaçador para ele, que ele se cala instantaneamente. Aquele olhar lembrava os que sua mãe lhe lançava quando ele não ia recolher o lixo rápido o suficiente, e a lembrança é o suficiente para lhe fazer obedecer. Ele agarra a mão surpreendentemente forte dela e também sobe na árvore, se alojando em um galho. Ele cruza os braços e olha para Layla, que observava atentamente o horizonte que ficava cada vez mais negro.
  301.  
  302. - O que está acontecendo? Por quê diabos subimos aqui? Temos que proteger os mantimentos, senão estamos lascados... - ela se vira abruptamente quando ele começa a falar, e põe os dedos nos lábios, emitindo um sonoro “shhhhhhhhhhhhhhhh”. Gabriel não vê outra saída a não ser ficar quieto e observá-la.
  303.  
  304. Conforme os minutos passam, um zunido baixo começa a ecoar nos seus ouvidos. Ele coça as orelhas repetidamente, imaginando que era coisa da sua cabeça. Mas o som não ia embora, em vez disso, só crescia, ao ponto de ficar quase ensurdecedor. Layla se afasta de seu observatório improvisado e se aproxima dele, indicando para fazer silêncio absoluto. Aparentemente, ela também ouvia o zunido, pois havia colocado as duas mãos de modo a cobrir os ouvidos.
  305.  
  306. - Layla, o que houve...? - ele sussurra, e quando ela novamente não dá sinais de responder, ele se desloca pela árvore, ignorando os protestos dela, e vai para o observatório improvisado aonde ela anteriormente havia ficado.
  307.  
  308. Gabriel não havia sido vítima de uma alucinação pós-sonho. A escuridão realmente estava se aproximando, a uma velocidade alarmante. Árvores, a estrada e tudo mais pelo caminho era consumido por um mar negro que avançava em forma de cone pela estrada vazia. Conforme a massa escura se aproxima, ele percebe que havia algo à frente dela. Não apenas uma, mas dezenas de formas humanoides flutuavam diante da escuridão, que parecia emanar deles. O coração de Gabriel estava acelerado a ponto de ele ouvi-lo batendo em sua caixa toráxica. Aquilo definitivamente era sobrenatural. Não que todas as pessoas do mundo sumirem repentinamente fosse algo recorrente no cotidiano, mas aquilo parecia ser muito, muito pior.
  309.  
  310. Quando a massa escura e as formas humanoides chegam na parte da estrada próxima à figueira aonde eles se encontravam, esta desacelera, fazendo com que o mar de escuridão também desacelerasse. Quatro das formas se destacam do grande grupo e se aproximam do carrinho com os mantimentos. Estavam a menos de seis metros de Gabriel, e ele agora podia identificar detalhes nos seres, e eles eram sobrenaturalmente assustadores. Eles mediam cerca de três metros, e aonde deveria ser seus pés não havia nada, de modo que eles flutuavam pelo chão sem emitir nenhum som. Uma espécie de manto negro cobria todo o seu corpo, e eles não tinham braços. No lugar do rosto, sua face apenas afundava para dentro de si mesma, deixando um relevo profundo e vazio. De relance, Gabriel percebe que havia dois pontos mais escuros que o resto da face, que provavelmente eram seus olhos, mas ele realmente não queria chegar mais perto para saber.
  311.  
  312. Layla não emitia nenhum som, nem mesmo parecia respirar. Ou talvez Gabriel não estivesse escutando pelo simples fato que o zunido antes ignorável agora estava ensurdecedor. Gabriel tinha que se esforçar para escutar seus próprios pensamentos. “Por favor, seja lá o que vocês forem, deixem nós e o carrinho em paz.” - para a infelicidade dele, as quatro formas rodeiam o carrinho, e ele simplesmente some no meio delas, fazendo o coração de Gabriel pular uma batida de tão nervoso. Elas se viram para o resto do grupo que as aguardava, e três delas começam a se afastar. Uma, porém, olha diretamente para onde Gabriel estava, na figueira, e assim fica, por quase um minuto. Seu rosto vazio mirava exatamente na direção do rosto de Gabriel, e o mundo parece parar. As dezenas de outras formas que estavam à frente da onda de escuridão olham para o ser que encarava Gabriel, e depois seguem seu olhar. Eram vários rostos sobrenaturais vazios olhando na direção dele, e isso tornava o ar tão pesado e denso que Gabriel encontrava dificuldades para respirar. Não que ele estivesse respirando muito, pois estava prendendo a respiração pelo que já parecia uma eternidade. Seu rosto suava violentamente. Uma gota mais gorda se forma em sua testa e escorre lentamente até a ponta do nariz, e acaba pingando lá embaixo, no chão, caindo em uma folha seca e fazendo um barulho que em outra situação seria inaudível, mas naquele minuto que parecia infinito, soa aos ouvidos de Gabriel como um prédio sendo demolido, ou uma bomba sendo detonada.
  313. O ser que estava mais próximo não estava alheio àquilo, e seu rosto vazio repentinamente se volta para o local aonde a gota havia caído. Não havia esconderijo agora, Gabriel e Layla estavam condenados. O ser flutua lentamente na direção de onde o pingo havia caído, não mexendo em uma folha nem galho seco do chão. Ao chegar no local imediatamente abaixo de Gabriel, ele para pelo que parecia outra eternidade, olhando para onde a gota havia caído. A mão nervosa de Gabriel sobe por seu peito e instintivamente vai ao colar, procurando algo substancial para agarrar. Quando esta toca o pingente de concha simples, imediatamente Gabriel lembra do momento onde horas antes ele e Layla haviam rido de uma careta boba, e de como estavam alegres. Imediatamente, ele se sente bem mais tranquilo. Ele e Layla eram as últimas pessoas no mundo, aparentemente, e haviam se tornado amigos. Não havia maneira melhor de morrer, pelo menos não naquele momento, e pelo menos ele morreria lembrando de um momento alegre, e na companhia de quem havia sido responsável por arrancar seu fôlego com risadas.
  314. A criatura levanta o rosto vazio para Gabriel, mas surpreendentemente, parece não enxergá-lo. Ela então se afasta, flutuando para aonde o resto do grupo a encarava. Ela se junta às outras formas escuras, se tornando indistinguível naquela massa negra, e a onda começa a avançar pela estrada novamente, se afastando de Gabriel e Layla. Conforme eles vão, o zunido também vai abaixando, e Gabriel aos poucos consegue ouvir sua respiração, a de Layla e a brisa suave que batia nas folhas da figueira. Mesmo após o zunido ter ido embora por completo e as criaturas não estarem mais a vista, Gabriel e Layla ficam um bom tempo em silêncio sem se mover, talvez em uma expectativa silenciosa de que a massa escura e os seres estranhos estivessem logo ali escondidos, esperando que eles se pronunciassem.
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  317. 21:35
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  320. Já faziam algumas horas do ocorrido assustador e sobrenatural, mas Gabriel ainda se sentia tenso e nervoso, olhando constantemente para todos os lados, como se uma das sombras fosse se destacar repentinamente e avançar sobre ele e Layla. Eles haviam perdido tempo e o carrinho com todos os mantimentos por causa daquilo, e haviam decidido em conjunto - e em silêncio - dormir em cima da árvore, tamanho era o medo. Porém, pior do que perder tudo isso, era o fato de terem perdido a segurança e o bom humor que aos poucos vinha conquistando e envolvendo os dois. Gabriel suspeitava que agora o resto da viagem seria um tormento psicológico regado por um medo constante de serem alcançados por aquelas criaturas terríveis. Ele não fazia ideia do que elas eram capazes de fazer com uma pessoa, mas também não tinha vontade de descobrir. Elas haviam sumido misteriosamente com o carrinho, e isso era suficiente para ele querer a maior distância possível delas.
  321. Nenhuma palavra havia sido trocada entre os dois desde que as criaturas haviam ido embora. Mas o silêncio não era tenso, pois cada um deles estava perdido em seus próprios pensamentos. Gabriel havia se equilibrado entre dois galhos que formavam uma espécie de forquilha, e se mantinha escorado, atento. Os olhos viajavam rapidamente da esquerda para a direita da estrada, passando reto por Layla, e varrendo toda a extensão de asfalto até aonde os olhos alcançavam naquela noite sem lua. Gabriel estava absorto em suas preocupações e medos, que iam desde como sobreviver sem os mantimentos, até como se esquentar na noite que já estava gélida, e que ele sabia que seria muito mais dali a algumas horas. Layla quebra o silêncio pesado repentinamente, e Gabriel se assusta devido aos nervos estarem à flor da pele, mas logo se acalma e volta o olhar ainda nervoso pra ela.
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  323. - Gabriel? - sua voz era baixa e trêmula, e parecia quase sumir aos poucos conforme ela fala. Gabriel espera alguns segundos, mas ela não fala mais nada. Agora emergido do mergulho que havia dado nas profundezas de sua mente, Gabriel percebe que aquele silêncio não era bom. Se estava desconfortável para ele que estava acostumado a passar dias inteiros em silêncio e sozinho, ele sequer podia imaginar quão ruim era pra ela que tinha uma natureza muito mais extrovertida, alegre e falante. Agora com os olhos fixos nela, ele percebe quão pequena e delicada ela parecia ali, alojada entre dois galhos. Parecia tão frágil que a qualquer momento poderia se quebrar, e em nada lembrava a Layla radiante e sorridente de doze horas mais cedo. Talvez realmente fosse, de tanto que tremia com aquela temperatura baixa.
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  325. Gabriel não podia deixá-la assim.
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  327. Ela havia o ajudado mais cedo, fazendo-o rir e afastando as lembranças horríveis que esporadicamente vinham à tona na sua cabeça, também havia o ajudado ontem, dando-lhe abrigo e acendendo uma fogueira para se aquecerem. Ele se dá conta que Layla era sua primeira amiga de verdade, a única que não havia dado a mínima para seus defeitos e sua personalidade taciturna, penetrando por suas resistências e aversões à socialização para encontrar um motivo dentro dele para que ele pudesse rir, assim como ela.
  328. Era hora de ele retribuir, pelo menos um pouco. Gabriel se desloca habilmente pelos galhos na direção dela, alojando-se ao seu lado da maneira mais confortável que consegue. Ele ainda estava preocupado com o que quer que pudesse surgir dos dois lados da estrada escura, e não muito raramente, seus olhos ainda varriam o breu à procura de eventuais sombras que não se estivessem se comportando como... sombras. Mas Layla agora era sua maior preocupação, pois era a única pessoa no mundo além dele, e também porque era sua amiga. Agora ao lado dela, ele não tinha muita certeza do que fazer. Provavelmente deveria abraçá-la, mas ele era muito envergonhado para isso. Sequer conseguia abraçar sua mãe sem ficar vermelho, quem dirá uma garota ainda meio desconhecida da sua idade. Além do mais, o comportamento feminino ainda era um mistério para ele, de modo que ele era permanentemente receoso das eventuais reações do sexo oposto à suas atitudes.
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  330. “Faça algo você mesmo.”
  331.  
  332. Após alguns segundos de indecisão, ele decide fazer algo.
  333.  
  334. - Hey, tudo bem? - ela não olhava para ele, e sim fixamente para frente, ainda trêmula. - Faz alguma ideia do que eram aquelas coisas? - ele emenda, esperançoso. Ela não responde, pelo menos não de imediato, e ele sente uma pontada de culpa que ele não sabia de onde vinha. Agora ligeiramente desconcertado, Gabriel passa as mãos distraidamente em um galho próximo da figueira, e uma ideia lhe ocorre. Ele arranca uma folha da figueira com um “tec” baixinho. Layla percebe seus movimentos e o olha, agora mais curiosa do que triste.
  335.  
  336. - O que está fazendo? - indaga ela em um tom meio duvidoso. Sua voz ainda tremia.
  337.  
  338. - Você já vai ver. - Gabriel coloca a mão por baixo do moletom e arranca um fio solto do blusão de lã que vestia por baixo. Na escuridão, ele faz o possível para passar a linha por um buraquinho que ele havia feito na folha com um graveto. Após uma boa quantidade de tentativas falhas, ele finalmente consegue, e por fim une as duas pontas do fio em um nó cego. Era um colar. Horrível e mal feito, mas era um colar. Ele tira o capuz dela e coloca delicadamente por cima da sua cabeça, deixando a folha pender pelo peito dela.
  339.  
  340. - Não é tão bonito ou legal como o que você me deu, mas o que vale é a intenção. - diz Gabriel, agora envergonhado de tão tosca que sua ideia parecia diante do olhar inquisitivo dela. Para sua surpresa, ela se estica e o abraça com força. Layla solta o abraço, mas não se afasta dele. Em vez disso, se aninha em seu peito. Aquilo era surpreendentemente bom. Gabriel tentava se convencer que era apenas pela troca de calor corporal, mas falhava miseravelmente. Na escuridão quase total, ele percebe um sorriso nela, e que ela havia entendido o seu presente rudimentar. Era o colar mais simples da história, mas por trás tinha o mesmo significado do colar que ela havia lhe dado. “Missão cumprida, eu acho”, pensa ele, tentando desesperadamente se distrair da presença aconchegante dela em seu peito.
  341.  
  342. 23:49
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  344. Apesar de o clima entre os dois agora estar mais ameno, a noite ainda estava só começando. Gabriel suspeitava que não seria capaz de dormir por conta da memória horrível dos acontecimentos de mais cedo, então decide de que pelo menos Layla deveria desfrutar de uma boa noite de sono.
  345. Agora, com a mente mais desanuviada, as preocupações atingem Gabriel como um tapa na cara. O carrinho com os mantimentos havia sumido, levado misteriosamente pelas criaturas de cara afundada. Ele não havia saído tantas vezes da cidade aonde nascera e morava até hoje, então as estradas eram para ele, desconhecidas. Ele esperava que houvessem pelo menos postos de gasolina no caminho, pois estes sempre tinham lojas que vendiam guloseimas a preços altíssimos, mas que convenientemente, Gabriel não precisaria pagar para ter. Seu olhar desce para Layla ainda aninhada em seu peito, cuja respiração agora havia se tornado ritmada, sinal claro de que estava dormindo. “Por quê será que ela só me acordou ao cair da noite?” - o pensamento ocorre a Gabriel repentinamente. Eles haviam combinado de parar apenas por cerca de trinta minutos. Ainda assim, ela havia deixado que ele dormisse por mais de duas horas, e acordado-o quando a noite já estava por cair. Será que ela havia dormido? Gabriel achava que não, pois ele se lembrava de que quando haviam parado, Layla estava agitada e enérgica, ao contrário dele, que estava terrivelmente cansado e sonolento. Pode ser que ele estivesse fazendo tempestade em copo da água, mas aquilo não era a primeira coisa estranha que ele havia notado na garota de cabelos castanhos. De todo modo, ele adicionaria aquilo à lista interna de coisas suspeitas sobre Layla. Essa lista crescia rapidamente, e ele suspeitava de que provavelmente conseguiria encher um livro até chegarem na torre de rádio.
  346.  
  347. Ah, a torre de rádio.
  348.  
  349. Gabriel tinha fé de que lá teriam respostas para todos os seus problemas. Ele sabia que a torre ainda funcionava, Gabriel ligava o celular de seu pai esporadicamente para verificar se o sinal ainda estava funcionando, e não havia se decepcionado. Pelo menos não até agora. “Sorte que não deixei os celulares no carrinho” - pensa ele consigo mesmo, e em um momento repentino de pânico, leva a mão que não estava por cima de Layla até o bolso direito do casaco, aonde havia deixado o aparelho. Não consegue reprimir um suspiro de alívio ao ver que ele ainda estava ali. O gesto não passa despercebido por Layla, que se remexe delicadamente, ainda dormindo. Ele fica estático por alguns segundos para ter certeza de que não tinha acordado ela, e se põe a pensar sobre a torre de rádio. Gabriel havia estabelecido a torre de rádio como objetivo pois, segundo sua lógica, outras eventuais pessoas que não haviam sumido também poderiam ter a mesma ideia de convergir para aquela espécie de “ponto de referência”. Mas agora que ele realmente havia parado para pensar de cabeça fria, haviam várias falhas em sua ideia. Outras pessoas poderiam ter esperado apenas um dia lá e ido embora por terem se cansado de esperar, de modo que ao chegar lá Gabriel daria de cara na parede. Outra coisa que o incomodava desde o primeiro dia daquilo tudo era que se houvessem outras pessoas nas redondezas, elas certamente teriam checado as redes sociais, e acabariam dando de cara com Gabriel, pois os algoritmos das redes sociais fariam as usuários restantes convergirem uns para os outros. Isso às vezes fazia Gabriel pensar que aquela jornada era inútil, e que ele não poderia parar agora.
  350. De qualquer jeito, já havia ido longe demais para voltar, e nem faria sentido dar meia volta agora, pois não havia nada às suas costas diferente do que ele encontraria na estrada à sua frente. Apenas casas e lojas vazias, carros abandonados e silêncio.
  351. “Na verdade” - pensa ele, consternado - “agora temos uma coisa a mais.”. Gabriel tinha certeza de que por muito tempo, não conseguiria esquecer daquelas criaturas, e do forte medo que elas haviam lhe imposto. Mas agora que ele havia parado para pensar, tinha uma outra coisa estranha naquele acontecimento. Ele se lembrava - com calafrios - que a criatura mais próxima havia ido embora repentinamente, apesar de tê-lo visto claramente em cima da árvore. Ele não fazia ideia do por quê, mas era bom que descobrisse logo para caso tivessem outro desses encontros desagradáveis. Perdido em pensamentos, Gabriel acaba caindo no mundo dos sonhos.
  352.  
  353. *** CAPÍTULO 5 ***
  354.  
  355. 05:58
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  357. Gabriel abre os olhos vagarosamente.
  358.  
  359. - Só mais cinco min... - Ele desperta por completo de repente, quando sente algo molhado em seu cabelo. Ao passar a mão, ele se dá conta que não era algo molhado em seu cabelo, e sim seu cabelo todo molhado. por conta da chuva que havia caído sorrateiramente durante a noite toda. Gabriel estava encharcado, assim como Layla que alheia a situação, dormia tranquilamente em seu peito. - Layla, acorde. - Ele sacode ela delicadamente, acordando-a. O sol ainda não havia nascido, portanto estava relativamente escuro.
  360.  
  361. - O que foi? - retruca Layla, com a voz ainda grogue de sono. Ela se afasta dele e esfrega os olhos. O vazio frio que fica no peito de Gabriel é evidente pra ele, e ele começa a tremer involuntariamente.
  362.  
  363. - M-melhor ir-ir-irmos andan-dando - responde ele, já batendo o queixo e pulando habilmente do galho. Ele acaba escorregando e caindo meio torto no chão, e afunda o joelho direito em uma poça de lama. - Aaaah, mas que droga. - Aquilo era um problema ainda maior agora que o carrinho havia sido roubado pelas criaturas da noite passada. Agora que a noite havia passado e o sol não demoraria a nascer, aquilo tudo parecia mais um sonho do que algo real. Na verdade, Gabriel ainda tinha a esperança de que nada daquilo fosse real. Ele escuta o baque de Layla que pula da árvore logo atrás dele, pousando graciosamente e se mantendo limpa. Ela também tremia um pouco de frio.
  364.  
  365. - Precisamos nos secar. Se ficarmos andando por aí nesse frio, com as roupas molhadas, teremos uma pneumonia antes mesmo de chegarmos à metade do caminho - ela diz rapidamente, logo tendo um acesso de tosse depois. Aparentemente, ela já estava Gripada, e Gabriel se pergunta quanto tempo demoraria para ficar também.
  366.  
  367. - Sim, você tem razão. Uma fogueira talvez, mas não aqui. Está tudo molhado. Sugiro que sigamos a estrada. Com sorte, acharemos um posto de gasolina com coisas que possamos aproveitar. - responde Gabriel. Ele se surpreende com o bom senso que acompanhava suas palavras nos últimos dias. Pode ser que a dificuldade da situação o estivesse fazendo amadurecer em alguns aspectos. Seu pai lhe disse uma vez que você sempre pensa pelo menos duas vezes em algo quando pessoas que você ama dependem de sua situação. Um calafrio lhe percorre. Será possível que ele amava Layla com apenas dois dias de convivência?
  368. Layla meneia a cabeça e ambos seguem pelo acostamento da estrada, na direção de antes. Segundo os cálculos de Gabriel, eles já haviam avançado pelo menos vinte e cinco quilômetros. Ele pretendia avançar trinta hoje, mas seria difícil se eles continuassem molhados e tossindo. Uma gripe causaria um atraso irremediável em seu avanço, e Gabriel também queria evitar ficar parado a partir de hoje, pois ficar a mercê daquelas criaturas horrendas novamente não estava em seus planos.
  369.  
  370. 08:21
  371.  
  372. Algumas horas de caminhada haviam se passado. A estrada ainda estava molhada pela chuva que havia caído durante a noite, e poças de água pequenas eram encontradas aqui e ali, conforme andavam. Gabriel e Layla avançavam muito devagar, quase se arrastando. Era difícil caminhar normalmente quando todo o seu corpo tremia de frio. O sol havia nascido, mas o sol de inverno não oferecia tanto calor assim, e mesmo esse pouco calor que lhes era trazido era anulado pelas roupas molhadas e pela brisa congelante que soprava, fazendo o tecido encharcado colar em sua pele e levar calafrios terríveis até os seus ossos. Gabriel se concentrava em ignorar o frio. Ele havia lido em algum lugar que o frio era psicológico. “Deve ser psicológico pra quem está em um lugar quente, agasalhado e bebericando uma deliciosa xícara de chocolate quente.” - pensa ele, taciturno. Layla havia se abraçado nele, e ambos se arrastavam estrada à frente apoiados um no outro. Ela tosse algumas vezes, e ergue o olhar pra ele. Para sua surpresa, ela ri.
  373.  
  374. - Você tá fazendo aquilo de novo! - Dispara ela com a voz rouca.
  375.  
  376. - Aquilo o quê? - pergunta Gabriel, genuinamente confuso e desconcertado pela proximidade de seus rostos.
  377.  
  378. - A testa. Você franze a testa quando está de mau humor. - Layla retruca alegremente. Era impressionante a Gabriel como ela parecia conseguir manter um bom humor em situações como aquela.
  379.  
  380. - Ora, estamos encharcados, tremendo de frio. Você está gripada, e fomos visitados por algo que mais pareciam os emissários do demônio em pessoa. Como eu poderia estar de bom humor? - Gabriel se lembra de que havia planejado perguntar para Layla se ela sabia algo sobre as criaturas. Não fazia sentido ela saber, mas Layla em si não fazia muito sentido para Gabriel, e sua cota de coisas duvidosas sobre Layla crescia em proporções alarmantes, então não custava nada perguntar. - Layla, você faz ideia do que eram aquelas coisas? - Gabriel emenda, abaixando o tom de voz de maneira automática. Layla comprime os lábios por um momento, pensativa.
  381.  
  382. - Sim, eu faço. - ela faz uma pequena pausa. - Quando criança eu sonhava com criaturas exatamente iguais àquelas. Eu desenhava-as em papéis, mas quando eu mostrava para alguém, achavam “engraçadinho”, tanto quanto um desenho de criança pode ser. Porém, um dia, eu as vi de verdade. Meus pais moravam comigo, sabia? Eles que fizeram aquela oficina. Ele consertava tudo. Objetos, pessoas... Mas tudo acabou. Estas criaturas entraram pela porta da oficina durante uma noite, e levaram meus pais embora. Simples assim. - Ela parecia muito triste, porém um ar de conformação se fazia presente nela.
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