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Mar 23rd, 2018
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  1. /cc/
  2. >tava lá eu, sentadão, saboreando minha cerva
  3. >porra mano fazia tempo que eu não tomava uma cervinha gelada dessas
  4. >entre goles de cerveja, eu repetia pela milhonésima vez a história que a Sophia tanto gostava de ouvir
  5. >ela adorava os detalhes do que eu fiz com o Playboy
  6. >cada vez que eu mencionava o barulho dos dedos dele quebrando
  7. >ou o grito de dor dele quando eu arrancava seus dentes com um alicate
  8. >o olho dela brilhava
  9. >era quase assustador
  10. >terminei logo a porra daquela história, já não aguentava mais falar disso
  11. >”mas eu tenho que te dizer uma coisa menina, você tem coragem mesmo hein” eu falei
  12. >”entrar na toca do lobo dessa forma, não é pra qualquer um”
  13. >ela me olhou, ainda saboreando a dor do Playboy
  14. >”você sabe que eu não fiz isso sem planejar milhares de vezes, Yuri”
  15. >”não é só porque eu não sou pm com 30 kilos de bíceps em cada braço que eu não possa ser perigosa” ela falou
  16.  
  17. >porra, Deus me livre
  18. >eu sinceramente tenho medo dessas coisas
  19. >um meliante armado dá pra você alvejar, se tiver a técnica e a paciência
  20. >agora mulher vingativa irmão, não é pra qualquer um
  21. >”de qualquer forma, foi uma coisa perigosa que você fez, Sophia. Eu nem sei porque deixei você fazer isso” falei, virando o resto da minha latinha
  22. >”quem disse que eu preciso da sua autorização pra fazer o que eu quero, caveira? “ ela respondeu, cheia de ironia, enquanto ia levantando pra me buscar outra cerveja
  23. >”seu namorado, antes de morrer, me pediu pra ficar de olho em você” eu falei, abrindo o jogo com ela
  24. >porra, se tu esperava que eu fosse falar isso cheio de delicadeza e carinho você tá lendo o gt do cara errado
  25. >eu jogo limpo porra, comigo não tem espaço pra dúvida nem pra trololó
  26. >dei o papo reto
  27. >”você é inteligente mas gosta demais de se arriscar, poderíamos ter feito aquilo de outra forma”
  28. >ela me deu a cerveja, e percebi que o rosto dela tinha mudado de feição
  29. >deu pra ver que falar do Caneta ainda machucava ela
  30. >”ele pode até ter te pedido isso, Yuri” ela falou
  31. >”mas eu sei que se ele tivesse vivo e vocês estivessem em um tiroteio, você o mataria sem pensar duas vezes”
  32. >porra, a menina estava certa
  33. >é foda, eu nem tinha como negar
  34. >”ele me mataria também, se precisasse” respondi
  35. >”bom, o plano deu certo e é isso que importa” ela falou, tentando esconder o desconforto com aquele assunto
  36. >”além disso, não é pra falar sobre ele que eu te chamei aqui” ela disse, se sentando e tomando uma cerveja comigo
  37. >eu ainda não conseguia me acostumar com essa nova Sophia
  38. >eu nunca fui muito de conversa com ela, não sou de bater papo com vizinho
  39. >ela sempre tinha sido amiga da Juliana, vivia indo lá em casa
  40. >e quando eu olhava pra cara dela, sempre via uma menina quietinha, inocente, quase infantil de tão certinha
  41. >hoje em dia ela tinha uma malícia nos olhos
  42. >tava tão diferente que mal dava para reconhecer
  43. >”então diga, o que você quer?” perguntei
  44. >”bom, eu quero te informar que, agora que eu terminei a faculdade de Medicina, eu tava procurando onde trabalhar né”
  45. >”de preferência algum lugar diferente, que atenda meus interesses” ela começou a explicar
  46. >”hm, já sei” eu a interrompi
  47. >”você quer que eu arranje uma vaga pra você no hospital da PM?”
  48. >”não quero nenhum favor seu, Yuri” ela respondeu
  49. >”já consegui o trabalho que eu queria”
  50. >”e onde é?” perguntei
  51. >ela me olhou nos olhos e respondeu
  52. >”vou ser voluntária nos Médicos Sem Fronteiras. Eles abriram mais de 200 vagas para a minha especialidade”
  53. >”estou viajando semana que vem para o Líbano”
  54. >”vou passar seis meses lá”
  55. >fiquei encarando ela, sem acreditar
  56. >irmão, que tipo de doente mental faz uma coisa dessas?
  57. >a menina quer ir pro meio do Oriente Médio brincar de soldado?
  58. >”presta atenção Sophia, eu aceitei o negócio do playboy porque você tinha um motivo, vingar o Caneta”
  59. >”mas isso que você está querendo fazer agora é loucura e eu não vou permitir” falei, com firmeza
  60. >”você não tem que permitir nada, Yuri. Tem que aceitar, só isso” ela respondeu
  61. >”garota, de onde tu tirou essa ideia doentia? De boa”
  62. >”você já parou pra pensar que existem pessoas que gostam de você e que se importam com você?”
  63. >”e que você tem responsabilidades para com estas pessoas? E que não pode arriscar sua vida a toa?”
  64. >”Yuri, a única pessoa que eu amava e que me correspondia morreu a mais de um ano”
  65. >”não tem mais nada pra mim aqui. Eu vou pra um lugar onde eu possa realmente viver e fazer algo de útil”
  66. >”não quero passar o resto da minha vida trabalhando no consultório e gastando dinheiro com coisas fúteis”
  67. >”quero fazer algo que faça a diferença” ela falou, convicta
  68. >eu percebi que ela não ia mudar de ideia então foda-se
  69. >não vou ficar dando murro em ponta de faca
  70. >”muito bem Sophia, você é adulta e faz o que quiser da sua vida” eu respondi
  71. >”mas me diz uma coisa. O que o Caneta fez de tão especial pra você se apaixonar tanto assim?” eu perguntei, sem entender
  72. >eles ficaram tão pouco tempo juntos, eu não conseguia compreender esse fascínio que ela tinha por ele
  73. >ela se levantou e disse “ele me ensinou a lição mais importante de todas”
  74. >”não podemos esperar que os outros sejam fortes por nós. Nós é que temos que ser fortes” ela falou, enquanto virava e ia embora
  75. (Parte I)
  76. >acordei de madrugada, com o celular tocando baixinho do meu lado
  77. >5:30 da manhã, já era hora de fardar e ir pro batalhão
  78. >levantei meio com preguiça mais foda-se e fui me vestir
  79. >enquanto eu colocava a farda, olhei pra Ju
  80. >a minha guerreirinha
  81. >a missão que o meu irmão Costa tinha colocado na minha vida
  82. >eu ainda não tinha esquecido do sacrifício dele nem da missão que ele tinha me passado
  83. >ele salvou a minha vida
  84. >se não fosse o sacrifício dele, eu também teria entrado em depressão e me matado
  85. >mas ele me fez viver, para proteger o bem maior dele
  86. >a Juliana e o filho dele, o Rodrigo
  87. >o moleque tinha nascido a um mês
  88. >grandão igual o pai
  89. >dei um beijo na testa dos dois, antes de sair
  90. >mas de uns tempos pra cá, comecei a ficar preocupado
  91. >afinal, quem eu estava enganando?
  92. >a Juliana não precisava de mim, tinha dinheiro pra cuidar muito bem do Rodrigo sozinha
  93. >poderia estar com um cara muito mais rico
  94. >não precisava mais da minha proteção
  95. >o que eu estava fazendo ali?
  96. >será que eu estava atrasando a vida dela e do Rodrigo?
  97. >será que eu estava atrapalhando ao invés de ajudar?
  98. >passei o dia no quartel pensando nessas coisas enquanto a gente fazia nossos treinamentos
  99. >treinamos periodicamente pra não perder nosso condicionamento
  100. >e, recentemente, com as implantações das UPPs, o BOPE estava sendo cada vez menos requisitado
  101. >resultado: treinávamos mais do que qualquer outra coisa
  102. >eu gostava de treinar artes marciais, dar porrada (e tomar, ocasionalmente) é bem relaxante
  103. >no final do dia, saí do batalhão de carro e fui voltando pra casa, como de costume
  104. >mais um dia normal para o caveira encostado
  105. >foi aí que meu telefone deu aquele bip
  106. >era uma mensagem no whatsapp
  107. >mermão eu odeio essa porra, fica dando bip toda hora
  108. >tu manda mensagem vagabundo responde com carinha
  109. >enfia essa carinha no seu cu, filho da puta
  110. >mas dessa vez era coisa séria
  111. >um número desconhecido me mandou uma mensagem
  112. >”Me encontre no Bar do Adão na Aires Saldanha, em Copacabana”
  113. >não sabia quem era, mas fui
  114. >adoro o pastel do bar do Adão
  115. >mas deixei a Glock de prontidão pra caso fosse algum marginal de tocaia
  116. >cheguei lá, o bar estava mais ou menos vazio
  117. >tinha um casal de namorados em um canto
  118. >uma mãe com o filho pequeno em outro
  119. >uma gringa assistindo TV, provavelmente sem entender nada
  120. >e um homem de terno sentado no fundo, em um lugar afastado e quieto
  121. >com uma cara de sério, cabelos grisalhos
  122. >adivinha qual desses provavelmente tinha me chamado?
  123. >fui lá sentar com o cara
  124. >”presta atenção irmão, eu recebi a tua mensagem então me diz aí, sem gracinha”
  125. >”por que você me chamou aqui e o que você quer? “
  126. >o maluco sorriu, com uma cara estranha lá
  127. >”você é exatamente o que eu estava procurando, Sargento Yuri” ele falou
  128. >caralho, quem é esse cara e como ele sabia meu nome?
  129. >cheguei perto dele e falei
  130. >”olha só vovô, presta bem atenção no que eu vou te falar”
  131. >”eu tenho mais o que fazer do que ficar aqui batendo papo com maluco”
  132. >”então acho bom você desembuchar ou eu vou colocar tanto chumbo no seu corpo que você seu apelido no asilo vai ser Homem de Ferro”
  133. >o cara continuou sorrindo
  134. >”você é feliz com a sua vida, sargento?” ele perguntou
  135. >”com a sua mulher, que ganha mais que você”
  136. >”com a sua carreira no BOPE, que está congelada”
  137. >”com a bandidagem do Rio, que cada vez mata mais e mais policiais, seus irmãos de farda”
  138. >”você está satisfeito com isso?” ele perguntou
  139. >”é claro que não” eu respondi, intuitivamente
  140. >”muito bem, sargento. Eu vim aqui para te oferecer uma oportunidade”
  141. >”uma oportunidade de fazer diferente”
  142. >”estou ouvindo” eu disse, meio desconfiado
  143. >”antes de mais nada, deixa eu me apresentar. Me chamam de Duque, sou diretor do centro assuntos extraordinários da ABIN”
  144. >eu conhecia esse nome, ABIN
  145. >a agência brasileira de inteligência
  146. >a equivalente à CIA do Brasil
  147. >”nós temos acompanhado seu desempenho há anos, você é um policial excepcional e cheio de recursos”
  148. >”recursos?” eu perguntei, sem entender o que aquele coroa tava querendo dizer
  149. >”sim, claro. Nós ficamos sabendo da sua jogada com aquela menina, a Sophia” ele disse
  150. >meus olhos arregalaram na hora
  151. >caralho, como esses filhos da puta sabem disso? Só eu e ela sabíamos daquele plano de matar o playboy
  152. >”a propósito, não se preocupe, temos uma célula no Líbano e vamos monitora-la para garantir o bem estar dela” ele disse, com aquela voz mansa dele
  153. >”enfim, precisamos de homens como você para realizar uma missão especial”
  154. >”que missão especial é essa?” perguntei, curioso
  155. >”sargento, o que vocês fazem aqui no Rio de Janeiro é enxugar gelo”
  156. >”você mata um bandido hoje, amanhã tem dois na rua. Vocês apreendem um fuzil hoje, amanhã tem três no crime”
  157. >”você já pensou em terminar com todo esse problema de uma só vez? Cortando o mal pela raiz e poupando a cidade de mais décadas e décadas de violência?”
  158. >”isso é impossível” eu respondi
  159. >”não, não é. Nossos agentes rastrearam o homem que repassa drogas e armas para as maiores facções criminosas no Brasil”
  160. >”caso algo aconteça com esse homem, o baque será tremendo em toda a estrutura da criminalidade brasileira”
  161. >”é tudo uma questão de estratégia, uma intervenção cirúrgica que permitirá que o crime desabe como um castelo de cartas” ele falou
  162. >porra, a ideia era genial
  163. >eu abri minha boca para fazer uma pergunta, mas antes que eu pudesse falar, ele se levantou
  164. >”bem, eu já falei demais. se você quiser saber mais, estarei esperando pelo seu contato. Você tem 24 horas para dizer se quer ir”
  165. >“mas, se não for do seu interesse, basta não me responder. Não vou insistir nem voltarei a te procurar”
  166. >”você tem meu número. Estarei aguardando”
  167. >ele foi embora do restaurante, entrando num carro preto e saindo pelas ruas de Copacabana
  168. >eu tinha 24 horas para decidir
  169. >mas na minha cabeça, eu já tinha a resposta
  170. (Parte II)
  171. >já era noite
  172. >a Juliana tinha colocado o Rodrigo pra dormir
  173. >porra o pirralho é enjoado pra cacete, só quer saber de ficar assistindo peppa
  174. >ela tava lá, me esperando na cama
  175. >um daqueles raros momentos onde um casal com filho pode transar
  176. >e eu lá, na varanda, com a porra do telefone na mão
  177. >”vem pra cama amooor” ela disse, tentando não acordar o bebê
  178. >porra, é foda, eu não podia abandonar minha família assim
  179. >mas eu ainda tinha aquele espírito de polícia, de moleque
  180. >sentia saudade pra caralho da época do GAT, eu e Costa dando prejuízo pra vagabundagem
  181. >porra, eu ia fazer isso
  182. >ia aceitar o convite do coroa, do duque
  183. >mas não ia ser só por mim
  184. >ia ser pelo Costa também
  185. >tamo junto irmão
  186. >liguei pro número que ele me deu lá
  187. >”finalmente hein, achei que nunca iria ligar” o velho respondeu, do outro lado da linha
  188. >”to dentro do bagulho Duque, o que eu faço agora?” perguntei
  189. >”você vai vir pra Brasília pra ser integrado à equipe. Esteja no aeroporto de Jacarepaguá amanhã às 9 da manhã”
  190. >”não conte nada a ninguém, nem à sua mulher”
  191. >”não se atrase” ele terminou, antes de desligar
  192. >voltei pra dentro do quarto, e a Ju tava me olhando com a carinha de safada
  193. >ela ainda era uma mulher muito bonita, apesar da gravidez
  194. >”eu acho que você é viado, Yuri... você fica mais tempo marcando paintball com os caras do batalhão do que comigo” ela falou, dando risada
  195. >”era isso que você tava fazendo no celular? Ou tava vendo putaria pelo whatsapp? Já falei pra você sair desses grupos hein”
  196. >”não era nada disso, Juliana” eu respondi, meio sério
  197. >ela sentou e veio pra perto de mim
  198. >”que foi amor, o que houve?” ela perguntou, de um jeito carinhoso
  199. >eu odeio mentir, especialmente pra ela
  200. >ela sabia disso, e por isso confiava em mim incondicionalmente
  201. >mas dessa vez não ia ter jeito, eu ia ter que enganar, mesmo odiando
  202. >”vai ter um curso novo de combate urbano no BOPE e eu me inscrevi, vou ficar um tempo fora” falei
  203. >ela me olhou por um tempo, até abrir um sorrisão
  204. >”que bom amor!” ela disse, me abraçando “fico feliz, você é tão comprometido com o trabalho”
  205. >”se precisar de qualquer coisa me fala, estou aqui pra te apoiar” ela disse
  206. >porra, a mina é foda, olha que moral
  207. >”mas e o Rodrigo? Tu vai conseguir cuidar de boa?” perguntei, meio preocupado
  208. >”ah, deixa disso Yuri. Como se você trocasse as fraudas dele né” ela falou, deitando de novo na cama
  209. >”agora vem dormir porque você precisa descansar pra ficar bem pro curso” ela disse, me puxando
  210. >deitei abraçado com ela mas, aquela noite, eu não consegui dormir direito não parceiro
  211. >no dia seguinte, tomei café da manhã com ela pela primeira vez em um tempão
  212. >coloquei meus equipamentos numa mochila e me arrumei, com uma roupa à paisana
  213. >na hora de ir, fui dar um beijo no Rodrigo e depois na Ju
  214. >ela me segurou pelo braço e disse, bem séria
  215. >”eu sei que você vai fazer a coisa certa, amor. Tô sempre aqui, do seu lado”
  216. >me deu um beijo e depois praticamente me empurrou pra fora
  217. >ela me conhecia pra caralho, sabia que eu não ia conseguir sair sozinho
  218. >mas ela me ajudou, então eu fui
  219. >não vou mentir, eu não conseguia tirar aquela mina da cabeça
  220. >no final das contas, ela era a última pessoa que ainda tava ali pra mim
  221. >e ela sempre tava do meu lado, me incentivando
  222. >nessas horas você tem que ser forte, não tem jeito
  223. >peguei o carro e dirigi até o aeroporto de Jacarepaguá, conforme o que o Duque falou
  224. >lá, já tinha um avião particular esperando por mim
  225. >embarquei e ele decolou, rumo a Brasília
  226. >passei a viagem inteira pensando na Ju, no Costa, na nossa família
  227. >imaginando como seria se ele ainda tivesse vivo
  228. >nós curtindo o Rodrigo crescer, comendo churrasco na beira da piscina ao som de raça negra
  229. >mas fazer o quê irmão
  230. >a Sophia falou algo que é muito verdadeiro
  231. >não podemos esperar que os outros sejam fortes pra gente
  232. >nós temos que ser fortes nós mesmos
  233. >antes que eu pudesse perceber, o avião desceu em Brasília
  234. >pra minha surpresa, já havia uma equipe lá me esperando
  235. >uns caras de terno preto e óculos escuros, todos armados
  236. >parecia aquele filme lá do Will Smith, homens de preto
  237. >porra, eu olhei aquilo e dei mó risadão
  238. >um dos caras não gostou, veio me perguntar
  239. >”tem alguma coisa engraçada aqui?”
  240. >aí eu tive que responder
  241. >”po amigão, eu sou do BOPE e vou falar pra vocês, deixa a roupa preta pra gente porque em vocês fica ridículo”
  242. >comecei a gargalhar
  243. >mas aí vi que ninguém riu, então calei a boca
  244. >a viagem de carro foi curta, logo estávamos na sede da ABIN
  245. >um prédio alto e bonito, com uns vidros pretos, coisa bacana mesmo
  246. >os seguranças me levaram até uma sala no subsolo
  247. >”aqui você vai receber maiores informações sobre a operação”
  248. >eu abri a porta e entrei na sala
  249. >era uma sala relativamente pequena e bem escura, com um projetor lançando a imagem de um mapa em um quadro
  250. >em volta, várias cadeiras ocupadas por soldados
  251. >e em pé, um homem um pouco mais baixo que eu, magro e de pele morena, que aparentemente estava explicando a situação
  252. >ele olhou pra mim e falou “você deve ser o sargento Yuri?”
  253. >respondi que sim
  254. >”eu sou o tenente Fontes, oficial em comando dessa equipe” ele disse, se apresentando
  255. >fiz a continência e o cumprimentei
  256. >”a vontade, sargento. Na sala são seus companheiros, os sargentos Hotel, Golf, Victor, Sierra, Delta, Bravo, Alpha e Whisky”
  257. >era óbvio que esse não era o nome dos caras, ele pegou a inicial de cada nome e usou o alfabeto militar para preservar a identidade deles
  258. >deu pra ver que os caras aqui realmente eram profissionais
  259. >me sentei numa cadeira vazia e ele começou a falar
  260. >”o nosso alvo se chama Pedro Juan Caballero, um ex coronel do Exército Paraguaio que mora nesta fazenda, a 60 km da fronteira com o Paraná” ele apontou no mapa a localização da fazenda
  261. >”esse homem é a peça chave na articulação dos criminosos brasileiros com os produtores internacionais de maconha e cocaína, fora o tráfico ilegal de armas, pessoas e animais”
  262. >”nossa missão é mata-lo, da forma mais discreta e eficiente possível para evitar que as autoridades brasileiras possam ser identificadas como autoras da ação”
  263. >”se nossa identidade for revelada, podemos causar um estado de guerra entre o Brasil e os outros países, portanto, sigilo é fundamental”
  264. >”vamos de avião até Foz do Iguaçu, onde pegaremos helicópteros que nos levarão ao local da ação e nos retirarão de lá”
  265. >”tudo isso ocorrerá durante a noite, a duração máxima da operação será de exatos 30 minutos, ou seja, temos 30 minutos para entrar, executar o alvo e nos evadirmos do local”
  266. >”quem não tiver nos helicópteros nesse tempo será deixado para trás”
  267. >”alguma dúvida?” ele perguntou
  268. >um dos guerreiros levantou a mão: “e quanto à segurança do coronel Caballero?”
  269. >”nossos agentes informam que o local é protegido por cerca de 20 seguranças que se revezam em turnos”
  270. >”não deve ser difícil dominá-los de surpresa para executar o coronel”
  271. >”existe alguma precaução para o caso de dano colateral?” outro perguntou
  272. >explicando, dano colateral é como os militares chamam a possibilidade de civis serem atingidos em uma operação militar
  273. >”por questão de segurança, qualquer pessoa que esteja no local deve ser executada, inclusive não-combatentes” o tenente respondeu
  274. >”como não há mais dúvidas, os senhores estão liberados. Sgt Yuri, por favor, me acompanhe” ele disse, me chamando para falar com ele
  275. >fui junto dele, na direção oposta do resto da tropa
  276. >ele me guiou por um corredor enquanto ia falando comigo
  277. >”sinceramente, sargento, eu não sei por que você foi incluído na nossa equipe”
  278. >”especialmente na véspera de uma operação desse vulto”
  279. >”nossa equipe já está formada a tempo e tem um padrão técnico muito elevado”
  280. >”quero me garantir de que não vou ter nenhum tipo de surpresa negativa ao seu respeito”
  281. >eu o acompanhei, ouvindo toda aquela baboseira
  282. >quando ele terminou, pedi permissão pra falar
  283. >”tenente, com todo o respeito, eu acho que sei porque fui chamado”
  284. >”fui chamado porque precisam de um soldado de verdade na operação, entendeu? Um cara que entenda do assunto” falei, abrindo o jogo
  285. >o tenente parou e me olhou, com uma cara de surpreso
  286. >ao contrário da PM, os caras do Exército levam a hierarquia a ferro e fogo
  287. >não existe isso de sargento responder tenente
  288. >isso explica a cara de bunda do tenente lá
  289. >como eu não sou do Exército, falei mesmo, foda-se
  290. >”presta atenção tenente, eu sou caveira, eu tenho bastante experiência em troca de tiro e ação de alto risco”
  291. >”todos aqui temos uma formação especializada na área de combate de...” ele começou a falar
  292. >cortei o trololó dele rapidinho
  293. >”sim, sim, tenho certeza que as suas credenciais são impressionantes tenente, mas com certeza eu tenho mais operações nas costas do que você tem anos de vida”
  294. >”então vamos deixar uma coisa bem clara aqui entre a gente, ok? Você está no comando da operação, mas eu vou ajudar a guiar porque essa é a minha área e é o que eu faço”
  295. >”e eu espero que nós estejamos entendidos, porque não quero ouvir mimimi durante o tiroteio, fui claro?” perguntei
  296. >ele já ia me responder, mas nós chegamos à porta e uma voz nos mandou entrar
  297. >entramos
  298. >era o escritório do Duque
  299. >ele tava sentado atrás de uma mesa grande, de madeira
  300. >aquelas mesas bonitas que os manda chuva colocam o pé em cima nos filmes de hollywood
  301. >não, ele não tava com o pé em cima da mesa
  302. >em um canto da sala, tinha uma mesinha e uns sofás em volta
  303. >e sentados nos sofás tinha uma constelação
  304. >uns 5 ou 6 generais
  305. >era tanta estrela nos ombros daqueles caras que o escritório mais parecia o planetário
  306. >quando entramos, eles se retiraram. O tenente fez mó pose, ele é todo cheio de coisa com esse negócio de etiqueta militar
  307. >eu fiquei parado, nem muito reto nem muito relaxado, e aparentemente os generais não ligaram muito
  308. >depois de esvaziarem a sala, o Duque olhou bem pra cara do tenente e perguntou
  309. >”qual é o relatório da missão Serafim, tenente?”
  310. >”conforme o planejado senhor, a equipe já foi reunida e informada da operação, amanhã iremos para Foz do Iguaçu e depois de amanhã o alvo já estará morto”
  311. >falou com aquela voz monótona de militar que parecia um robô
  312. >”excelente” o Duque respondeu. “ tenho mais uma missão para você, tenente”
  313. >”depois de eliminar o alvo, preciso que você fotografe a casa, colete documentos, computadores, celulares, tudo”
  314. >”e retorne esse material para análise posterior”
  315. >”é imprescindível que você colete o máximo de material possível, entendido?”
  316. >”sim senhor” ele respondeu, com aquela cara de Capitão América
  317. >”além disso, quero que o sgt Yuri seja designado como subcomandante da missão”
  318. >”tenho fé na experiência e na capacidade do sgt”
  319. >”alguma dúvida?”
  320. >o tenente ficou com cara de cu, mas tinha que acatar
  321. >”não senhor” ele responde, dessa vez com bem menos entusiasmo
  322. >”dispensado” Duque respondeu
  323. >eu virei pra ir embora junto com o tenente, mas antes o Duque falou
  324. >”você fica”
  325. >eu me virei e encarei o coroa
  326. >”já conseguimos localizar a Sophia no Líbano e eu mandei pessoalmente destacar alguns homens para cuidar da segurança dela” ele me disse
  327. >pfff, como se aquela menina precisasse de segurança
  328. >mas fiquei aliviado, eu ainda estava preocupado com a loirinha
  329. >”além disso, estamos monitorando sua família também para garantir que nada de ruim aconteça na sua ausência” ele falou
  330. >”Duque, olha só, com todo respeito, eu não entendi que porra é essa ainda” eu falei
  331. >ele se reclinou contra a cadeira, um pouco espantado, e esperou eu explicar
  332. >”você nem me conhece, aí vem, me chama para uma missão super secreta, cuida da minha família e ainda me promove para subcomandante da missão?”
  333. >”tem alguma coisa aqui que tu não me contou, e eu não gosto de segredos” eu falei, com firmeza
  334. >o coroa me encarou por uns momentos, e depois cedeu
  335. >”sim, Yuri, tem algo que você deve saber”
  336. >”o tenente Fontes é um militar excepcional, foi um sacrifício trazê-lo para a minha equipe, tive que fazer um esforço tremendo”
  337. >”a carreira dele é brilhante, mas existe um problema”
  338. >”problema?” perguntei
  339. >”sim, uma complicação. Ainda não sei se posso confiar 100% na lealdade do tenente. Por isso chamei você e te promovi”
  340. >”sua missão é ficar na cola dele e garantir que ele não vá querer pular o muro. Se necessário for, precisarei que você use força letal”
  341. >”ué, mas por quê ele faria isso?” perguntei
  342. >o cara parecia 100% devoto à missão, eu sinceramente não esperava essa
  343. >”as missões aqui mudam muito as pessoas. Mas você já cumpriu mais missões que qualquer um e sei que posso confiar no seu julgamento”
  344. >”quero que você seja o meu homem de confiança, Yuri. A missão que eu to te dando é dolorosa, eu sei, mas se nós pudermos confiar um no outro, vamos nos dar muito bem”
  345. >”e você vai ter todo o prestígio que quiser, sua carreira voltará a ter aquele brilho que ela tinha no começo. Sei que isso é importante para você”
  346. >realmente era
  347. >o cara sabia pra caralho de mim mesmo
  348. >mas ele trabalhava pra uma agência de inteligência né, o que eu esperava?
  349. >o maluco devia saber até a cor da minha cueca
  350. >”certo chefia, pode confiar em mim, vou cumprir a missão direitinho”
  351. >o velho abriu um sorriso meio estranho
  352. >”você é um rapaz inteligente, Yuri”
  353. >”você vai ver, nós dois vamos lucrar muito com isso tudo” ele falou
  354. >pedi permissão e fui embora
  355. >a missão já tava certa, e não tinha mais dúvida do que fazer
  356. >era chegar lá e descer o dedo nos malandros
  357. >e nisso, modéstia à parte, eu sou bom pra caralho
  358. (Parte III)
  359. >depois de aterrissarmos em Foz do Iguaçu, seguimos direto para uma guarnição militar na cidade
  360. >começamos a nos equipar, enquanto os caras abasteciam o helicóptero
  361. >irmão, antes de mais nada, tu tem que entender uma coisa
  362. >eu gosto de trocar tiro pesadão, entendeu? Gosto de ir pro tiroteio bem armado
  363. >quando cheguei na reserva de armamento (que foi colocada à nossa disposição) eu fiquei de bobeira
  364. >o armamento do BOPE era de melhor qualidade, admito
  365. >mas os brinquedos ali eram bem masculinos também
  366. >tinha munição que penetra titânio irmão, titânio
  367. >eu nem sei que porra de metal é esse mas só pelo nome já dá pra sentir a moral
  368. >tinha uns coletes de alta qualidade também, capacete de kevlar com go-pro, camelback e NVG
  369. >vai, pesquisa essa porra aí no Google viadinho
  370. >e granada, muita granada
  371. >porra, adoro granada, no BOPE a gente não pode usar porque usar granada em favela é sacanagem
  372. >mas dessa vez eu enchi o cu de granada, porra, ia estourar todo mundo, quero ver perna voando
  373. >depois de nos equiparmos, subimos nos helicópteros e partimos pra missão
  374. >aquele friozinho na barriga de quem tá prestes a trocar tiro
  375. >fui no mesmo helicóptero que o tenente lá
  376. >dava pra ver que ele ainda tava nervoso, apesar de tudo
  377. >”fica calmo cara, vai dar tudo certo” eu disse pra ele
  378. >ele balançou a cabeça
  379. >”o plano tá bem elaborado, a execução vai ser direitinho, vai dar tudo certo mesmo” ele repetiu, tentando internalizar aquela porra
  380. >”esquece o plano, viado” eu falei
  381. >ele me olhou
  382. >”esquece o plano? Como assim esquece o plano?” ele perguntou, sem entender porra nenhuma
  383. >”mermão, no tiroteio não existe essa de plano. É você, o cara e quem acertar o tiro primeiro ganha”
  384. >”esquece essa porra de plano bem elaborado e se preocupa em acertar seus tiros na cabeça dos caras que vai ficar tudo bem”
  385. >ele respirou fundo e concordou
  386. >é foda, esses caras passam 5 anos na Academia Militar tendo aula teórica em sala de aula e dando tiro em manequim
  387. >a gente no BOPE pode ter bem menos instrução que eles, mas em termo de prática irmão, não tem quem se compare
  388. >o plano realmente tava excepcional, a formação do cara era muito boa mesmo
  389. >mas na hora do tiroteio você pode ter até 50 anos de treino nas costas, se não tiver a cabeça no lugar vai fazer merda
  390. >”dois minutos pra chegarmos” o piloto do helicóptero falou
  391. >preparamos as armas e respiramos fundo
  392. >era o último suspiro antes do mergulho
  393. >quando o helicóptero pousou, já descemos nos movimentando
  394. >não descemos atirando igual em filme de hollywood, isso não existe
  395. >progredimos na disciplina, como manda o figurino
  396. >cercamos o local e identificamos onde os seguranças estavam posicionados
  397. >”executar ação.... AGORA” o tenente falou, pelo rádio
  398. >simultaneamente, todos os elementos da equipe atacaram os seguranças ao mesmo tempo
  399. >não teve chance dos caras reagirem
  400. >os soldados ficaram na contenção enquanto eu e o tenente entrávamos na casa
  401. >vasculhamos o local à procura do coronel Caballero
  402. >ele estava na sala, mas correu pro segundo andar
  403. >com uma pistola na mão, ele tentou dar um tiro na gente, mas errou
  404. >acertei um na perna do filho da puta e ele subiu as escadas mancando
  405. >subimos atrás dele rápido, ele tava atravessando um corredor em direção a uma porta
  406. >antes que ele pudesse dar mais um passo eu e Fontes alvejamos ele
  407. >o cara ficou igual uma peneirinha, todo furado
  408. >fomos até o corpo dele e verificamos a morte
  409. >o tenente tirou as fotos, e continuamos vasculhando a casa
  410. >no quarto que ele ia, estava a mulher e os dois filhos dele
  411. >os três apavorados, nos olhando
  412. >eu olhei pro tenente, e vi a cara dele
  413. >ele não ia ter coragem
  414. >”vira” eu falei pra ele, e ele se virou
  415. >olhei de volta para os civis e desci o dedo neles
  416. >sim, matei pessoas desarmadas. Matei também os funcionários da casa que eu encontrei
  417. >até o cachorro do cara eu matei
  418. >missão não se discute irmão, se você não gostou da minha atitude, enfia a hipocrisia no seu cu
  419. >minha profissão é essa, matar
  420. >se eu mato bandido, por que não vou matar os caras lá?
  421. >no final das contas é a mesma coisa, os dois sangram igual, morrem igual
  422. >é a lei do cão, quem sobrevive é o mais forte
  423. >Sophia já tinha entendido isso... tava na hora do tenente também começar a entender
  424. >nós começamos a coletar as informações que o Duque pediu
  425. >porra, o lugar tava cheio de pasta, documento, computador, pendrive, essas porras
  426. >o Fontes saiu correndo atrás de tudo isso igual um maluco
  427. >eu fui investigar de novo o corpo do coronel, e achei um celular
  428. >liguei o celular e tava desbloqueado
  429. >”hmmm” falei, achando interessante
  430. >abri a porra do whatsapp, aquela merda
  431. >e fui ver as mensagens
  432. >vi um número que me era familiar
  433. >caralho, que porra é essa
  434. >era o número do Duque
  435. >CARALHO
  436. >fui passando, tinha o número de vários outros caras importantes
  437. >gente no Ministério da Justiça
  438. >juízes brasileiros
  439. >militares
  440. >puta que pariu
  441. >chamei o Fontes na hora, e mostrei tudo pra ele
  442. >ele leu, perplexo
  443. >e caiu sentado no chão
  444. >”porra Yuri”
  445. >”isso não é uma missão contra o tráfico” ele falou
  446. >”é uma queima de arquivos”
  447. >o Duque nos tinha mandado pra cá pra matar o cara que poderia incriminar ele e metade do governo do Brasil
  448. >filho da puta
  449. >nessa hora, ouvimos o barulho dos helicópteros novamente
  450. >olhamos pela janela e eles estavam indo embora, com o resto da equipe dentro
  451. >”porra” o Fontes falou, puto. “eles só deviam ir embora depois de meia hora, caralho! Ainda estão faltando oito minutos!”
  452. >eu olhei para o monte de flagrante que nós tínhamos e falei, no ouvido dele
  453. >”vamos sair logo daqui. Não vai demorar muito pra chegar mais gente e nós não podemos ser vistos”
  454. >”a fronteira fica a 60km daqui, Yuri” ele me disse, irritado
  455. >”então é melhor nós começarmos a andar” eu respondi, pegando as coisas no chão, botando em uma mochila e puxando ele pra fora da casa
  456. >saímos do local e rumamos em direção a uma velha estrada de barro que saía da fazenda
  457. >”você sabe pra onde estamos indo, pelo menos?” eu perguntei pra ele, sussurrando
  458. >naquele momento, não podíamos nos dar o luxo de falar alto
  459. >éramos apenas dois, e sem muita munição
  460. >”sim, eu estudei bastante os mapas da região. Essa estrada vai levar a gente até Foz do Iguaçu”
  461. >”mas não podemos andar pelo meio da estrada, senão vamos ficar muito expostos. Vamos pelo mato” ele disse
  462. >ai meu caralho
  463. >fomos pela merda do mato
  464. >aquele matagal de merda, cheio de lama e mosquito
  465. >mosquito
  466. >mosquito
  467. >não era pouco mosquito, meu amigo
  468. >e não é esse mosquitinho fofo que tem no parque da sua cidade não
  469. >era cada mosquitão transformer que chegava a dar medo
  470. >os mosquitos pareciam beija flor de tão grande
  471. >esses viados não tinham bico, tinham seringa
  472. >o Fontes reparou no meu sofrimento e deu uma risada
  473. >”qual a graça, viado?” eu perguntei
  474. >”Você, sargento. Cheio de marra de ser do BOPE, mas não aguenta um mosquitinho” ele disse, gargalhando
  475. >”aaah vai se fuder tenente, porra, eu troco tiro toda semana, se eu quisesse fazer passeio no mato eu não seria militar, seria escoteiro porra” eu respondi
  476. >porra, agora tu vê, que cara de pau
  477. >esse tenente aí querendo me zuar
  478. >continuamos andando, afinal, nós íamos ter que andar por um bom tempo
  479. >de repente, ouvimos um barulho vindo adiante
  480. >”sshhh! Agacha, agacha!” o Fontes falou
  481. >eu e ele agachamos no meio do mato, nos camuflando
  482. >pela estrada, um comboio de vários carros passou pela nossa frente
  483. >alguns homens de moto acompanhavam o comboio, todos pesadamente armados
  484. >”esse comboio tá vindo do Brasil” eu sussurrei
  485. >”sim, estão indo em direção à casa do coronel” ele respondeu
  486. >”devem estar indo à mando do viado do Duque” eu falei
  487. >”vamos esperar... sempre no final do comboio vem um batedor isolado. Vamos pega-lo e interroga-lo” ele respondeu
  488. >aí eu gostei
  489. >interrogar é uma parada que eu sei fazer bem
  490. >conforme disse o Fontes, no final do comboio, meio afastado, vinha um motociclista
  491. >mirei na perna dele e dei o tiro. Como a arma estava com o silenciador, o barulho foi bem baixo
  492. >o capacete do viado abafou o grito que ele deu, então nós rapidamente agarramos ele e puxamos ele da estrada pro mato
  493. >a essa altura, o comboio já havia se afastado bem
  494. >tirei o capacete e olhei na cara dele
  495. >”malandro, o negócio é o seguinte, eu quero saber quem vocês são, quem é o chefe de vocês e qual é a missão”
  496. >o cara me olhou, meio nervoso, mas decidiu encarar
  497. >”não vou te falar nada, seu viado” ele respondeu, tentando botar marra apesar de estar visivelmente apavorado
  498. >eu sorri
  499. >”vou ter que esculachar então né?”
  500. >adoro essa parte
  501. >o Fontes tava segurando ele deitado
  502. >eu dei um pisão no joelho dele que esmagou a articulação inteira
  503. >o maluco berrou, mas o Fontes abafou o grito
  504. >”pronto amigão, agora você é oficialmente um aleijado. E aí, vai desembuchar ou vou ter que te capar também?” perguntei, com um sorrisão na cara
  505. >o cara tava tremendo todo
  506. >”quem nos mandou foi um cara do governo... a gente não sabe quem ele é... falaram que era pra tomar uma casa e pegar as drogas e dinheiro que tá escondido lá...”
  507. >”cara de pau” o Fontes falou. “o Duque agora vai querer embolsar o espólio da operação”
  508. >”não é isso não...” o cara falou, nervosão
  509. >”desembucha, vacilão” eu falei, botando pressão
  510. >”a nossa missão... é permanente...”
  511. >”ele tá querendo tomar.... o lugar...”
  512. >”a gente trabalha... pra ele...’’
  513. >”pro Duque? Hein viado?” eu perguntei, mas o viadinho lá tinha desmaiado de dor
  514. >”deixa ele aí, vamos embora, a gente não pode ficar muito tempo parado não” o Fontes falou
  515. >”beleza, vamos lá” eu disse, cortando a garganta dele
  516. >não é um jeito digno de matar um homem mas ele tava desmaiado, eu ia poupar munição e ele não ia sentir dor
  517. >ia funcionar
  518. >o Fontes virou a cara, ele ainda tinha restrição a esse negócio de matar
  519. >na minha opinião, é uma viadagem. Mas eu entendo o lado dele. Não é qualquer um que tem estômago para isso
  520. >continuamos andando por algumas horas
  521. >”como você consegue, hein? Matar dessa forma?” o Fontes me perguntou, enquanto andávamos
  522. >eu sorri
  523. >”depois de um tempo, você acaba se acostumando” eu disse
  524. >é real, depois de tantas mortes, tanto sangue, pra mim aquilo já havia se tornado natural
  525. >”sempre antes de eu puxar o gatilho, eu penso no motivo de eu estar aqui. O motivo de tudo isso, sabe? Servir o país” ele começou a dizer, mas eu o interrompi
  526. >”assim você nunca vai se tornar um matador, Fontes”
  527. >”esse discurso aí é pros indecisos. Os convictos não precisam de motivos”
  528. >”nós vamos pra guerra porque é isso que está no nosso sangue. Somos matadores e não há nada que mude isso”
  529. >”queria ter essa sua força de vontade, Yuri” ele falou, olhando pra mim
  530. >eu olhei de volta pra ele e respondi, muito sério
  531. >”vai por mim, você não queria”
  532. >ele não fazia ideia do que eu passei pra chegar aqui
  533. >de toda a dor, todo o sofrimento
  534. >ninguém fazia ideia
  535. >e eu não desejava isso para ninguém
  536. (Parte IV)
  537. >quando chegamos em Foz do Iguaçu, já havia amanhecido
  538. >optamos por esconder nosso armamento em um local afastado da cidade, entramos apenas com as pistolas e a mochila com os documentos que incriminavam o Duque
  539. >estávamos ambos exaustos, então fomos para algum bar pé sujo onde não fôssemos chamar muita atenção
  540. >nos sentamos, enquanto o garçom trouxe nosso pedido lá
  541. >a cerveja tava quente e a comida nojenta, mas na hora parecia um manjar dos deuses
  542. >comemos igual dois mortos de fome
  543. >no canto, tinha uma TV ligada
  544. >”caralho, Fontes, dá uma olhada naquela merda” eu disse
  545. >na TV, tava mostrando o filho da puta do Duque fazendo um discurso do lado do secretário de segurança e do Ministro da Justiça
  546. >”graças à uma medida enérgica do nosso governo, conseguimos derrubar um dos maiores traficantes internacionais de drogas e inauguramos uma nova era para o Brasil!” ele dizia
  547. >enquanto um monte de babaca batia palma
  548. >”sim, inaugurou uma nova época... uma época onde os traficantes são do próprio governo” o Fontes falou, sarcasticamente
  549. >”infelizmente, tudo demanda um sacrifício, e esse ato não foi suficiente. Perdemos dois heróis, o tenente Fontes e o sargento Yuri. Mas os nomes deles ficarão marcados para a posteridade” o Duque falou, na tv
  550. >”caralho Fontes, eles acham que nós morremos!” eu falei, surpreso
  551. >”ou não... talvez não saibam e tenham colocado um preço na nossa cabeça. Afinal, tudo que o Duque quer é que nós estejamos mortos” ele respondeu
  552. >na hora eu pensei na Juliana
  553. >ela recebendo essa notícia
  554. >puxei meu celular para ligar pra ela, mas o Fontes segurou minha mão
  555. >”o que você pensa que tá fazendo, doente? “ ele perguntou
  556. >”me solta Fontes, vou ligar pra minha mulher” eu respondi
  557. >”deixe de ser burro, Yuri, sua mulher deve estar sendo monitorada por alguma equipe do Duque”
  558. >”se você falar alguma coisa, ela morre”
  559. >”além disso, a essa altura do campeonato, nossos telefones já devem ter sido grampeados” ele falou
  560. >”porra, então qual é o plano? Você que gosta de planos, diz aí, o que vamos fazer?” eu perguntei
  561. >”só tem um jeito de nos livrarmos dessa, sargento”
  562. >”temos que matar o Duque e depois expor tudo que descobrimos” ele falou
  563. >chamei o garçom que passava por ali e perguntei sobre o homem que estava na TV
  564. >ele respondeu “ah, o Duque é o cara da vez! Ele tá aqui na cidade, vai dar uma entrevista pública no fórum hoje às 21h. Parece que vai lotar”
  565. >Fontes olhou pra mim
  566. >não precisava falar mais nada
  567. >saímos de lá e fomos para o nosso esconderijo fora da cidade para nos prepararmos
  568. >de alguma forma, eu sabia que aquela missão seria sem volta
  569. >olhei pro Fontes e percebi que ele se sentia assim também
  570. >sorri
  571. >ele me lembrava muito o Costa, quando era mais jovem
  572. >certinho e aplicado
  573. >enquanto nos equipávamos, ele começou a falar
  574. >”porra Yuri, quando nos conhecemos eu pensei que você fosse só um babaca metido”
  575. >”eu me equivoquei demais, me perdoa pela forma que eu te tratei”
  576. >”ah, para de viadagem Fontes” eu respondi. “nós somos guerreiros, estamos juntos porra”
  577. >ele sorriu
  578. >”sim irmão, estamos juntos” ele respondeu
  579. >eu fiquei calibrando o armamento enquanto ele começava a planejar, como ele gostava
  580. >porra esse cara adorava um plano
  581. >”o carro do Duque vai vir pela avenida central às 20:30.
  582. >”a avenida é muito movimentada, não tem como pegarmos ele lá”
  583. >”mas para acessar a avenida eles vão ter que passar pela rua do Bispo, uma ruazinha pequena e bem deserta”
  584. > Se cada um de nós ficar de um lado da rua, poderemos emboscar o comboio”
  585. >”provavelmente a segurança dele vai ser leve, então isso não vai ser um grande problema”
  586. >”vamos finalizar o filho da puta do Duque e sair do local o mais rápido possível” o Fontes terminou
  587. >”porra, como tu sabe disso tudo?” eu perguntei pro Fontes
  588. >”eu li no mapa” ele respondeu
  589. >”porra meu amigo mas tu adora um mapa hein” falei, rindo
  590. >”mas então, saindo de lá, a gente pega um carro e vai pro Rio” eu comecei a falar
  591. >”podemos ficar na minha casa, e a minha mulher conhece uns jornalistas”
  592. >”além disso, se eu entrar em contato com o BOPE, não vai ter quem consiga nos pegar. Meus irmãos são casca grossa e muito unidos, ninguém vai tocar na gente” eu falei
  593. >”justo” o Fontes concordou
  594. >”agora vamos nessa” ele disse
  595. >nos aproveitamos da noite pra irmos pro local da ação sem sermos vistos
  596. >a cidade não era tão movimentada quanto Rio ou São Paulo, então ficou tranquilo não ser visto
  597. >usamos as ruazinhas pequenas de dentro da cidade, evitando as avenidas maiores, pra não sermos vistos
  598. >finalmente chegamos na tal Rua do Bispo
  599. >ficamos cada um de um lado da rua, escondidos atrás de árvores para não sermos vistos.
  600. >de longe, eu acenei com a cabeça pro Fontes
  601. >logo logo a ação iria começar
  602. >mas dessa vez, íamos matar pelos motivos certos
  603. >não demorou muito para o carro aparecer na esquina
  604. >atrás dele vinha uma minivan
  605. >os dois pretos
  606. >é agora
  607. >ele se aproximou e, quando o Fontes deu o sinal, eu larguei dedo nos pneus do carro
  608. >ele freou bruscamente e nós fomos pra cima, aplicando no carro
  609. >atrás, a minivan abriu a porta e de dentro saiu umas 8 cabeças com um uniforme bem familiar
  610. >”caralho” eu pensei
  611. >”são os caras da equipe do Fontes”
  612. >olhei pra ele e ele tinha congelado do outro lado da rua
  613. >berrei bem alto pra ele ouvir “PARA DE ADMIRAR SEUS NAMORADOS CARALHO BALA NELES PORRA”
  614. >puxei a arma e dei rajadão pra cima dos caras
  615. >os caras eram gente boa, gostei de trabalhar com eles, mas dessa vez eles estavam do outro lado do tiroteio, tentando me matar, então não pensei duas vezes
  616. >eles correram buscando cobertura, e nesse tempo deu pra eu derrubar uns dois com facilidade
  617. >depois que se abrigaram, ficou mais difícil, mas eu fui avançando, gosto de ser agressivo em tiroteio
  618. >eles iam tentando avançar também, para cercar o carro e proteger o Duque
  619. >derrubei mais um quando tomei um tiro de raspão na perna
  620. >caralho, essa porra arde pra cacete
  621. >vi que o Fontes tava no sufoco com um dos seguranças lá, um carinha meio enjoado
  622. >”VAI PRA CIMA DELE, VAI VAI VAI” gritei, incentivando
  623. >o Fontes achou uma brecha, e conseguiu derrubar o cara
  624. >”BOA COSTA!” eu gritei, sem nem me ligar que havia trocado o nome
  625. >os dois eram, realmente, muito parecidos
  626. >já eram quatro mortos
  627. >só faltavam mais quatro
  628. >vi que dois foram se abrigar perto da minivan
  629. >foi nessa hora que eu puxei uma das granadas que eu tinha trazido comigo
  630. >”ahh seus filhas da puta agora eu vou mandar vocês pro espaço” eu disse, arremessando a granada
  631. >ela explodiu lindamente, parecia fim de ano da globo
  632. >foi fogo e pedaço de corpo pra todo lado
  633. >”agora ces vão atirar no capeta seus arrombados” eu disse
  634. >faltavam só mais dois e o viado do Duque era nosso
  635. >eu já tava quase alcançando o carro quando o impensável aconteceu
  636. >acertaram o Fontes
  637. >um dos babacas tava partindo pra cima dele e conseguiu meter um tiro bem na barriga dele
  638. >puta que pariu
  639. >nesse momento eu congelei
  640. >foi como se o tempo tivesse parado também
  641. >de um lado, o carro tava na minha frente, e o Fontes caído era a distração perfeita pra eu matar o Duque
  642. >de outro lado, o meu amigo tava no chão, prestes a ser executado
  643. >eu tinha que matar o Duque
  644. >tinha que expor esse filho da puta
  645. >tinha que mostrar ao país todo o quão podre e corrupto são nossos governantes
  646. >TINHA QUE CUMPRIR MINHA MISSÃO
  647. >mas não
  648. >não podia deixar outro amigo, outro irmão de farda morrer
  649. >eu não podia
  650. >tinha que salva-lo
  651. >não podia errar com ele como eu errei com o Costa
  652. >virei pro lado e vi o soldado avançando pra cima do Fontes
  653. >o Fontes olhou pra mim e apontou pro carro, gritando
  654. >”Mata o Duque, mata o Duque”
  655. >mirei a arma na cabeça do soldado e dei só um tiro
  656. >o sangue dele espirrou na parede, deixando uma grande marca vermelha
  657. >corri pra socorrer o Fontes
  658. >o ultimo soldado que sobreviveu aproveitou a chance pra entrar no carro e ir embora
  659. >mesmo com as rodas furadas a porra do carro ainda andava
  660. >”caralho Fontes, você tá bem?” eu perguntei, me ajoelhando do lado dele e tirando o colete pesado que sufocava
  661. >”porra irmão... você tinha que ter matado ele... tinha que ter matado o duque” ele falou, com uma voz fraca
  662. >”não, Fontes, não... a amizade vem antes de qualquer missão, irmão. Nós podemos expor o Duque depois. Agora temos que sair daqui”
  663. >eu coloquei o Fontes nas costas e fui pra rua correndo
  664. >cheguei na avenida central, todo ensanguentado, e parei um carro
  665. >um senhor desceu do carro apavorado, enquanto eu pedia ajuda pra colocar o Fontes no banco de trás
  666. >”me desculpa por favor, senhor, eu sou polícia, não sou assaltante, mas vou ter que levar seu carro pra salvar meu amigo’’ eu disse, nervosamente
  667. >o cara nem quis argumentar, deve ter ficado com medo por causa da minha arma e do sangue na minha cara
  668. >virei o carro e meti o pé daquela maldita cidade
  669. > 180km por hora na estrada
  670. >a essa altura do campeonato, entretanto, o Duque já tinha alertado à todas as polícias, tava todo mundo nos caçando
  671. >”eu só estou te atrasando cara...” o Fontes me falou
  672. >”cala a boca seu viado, tenta resistir... logo logo estaremos chegando e um médico vai tratar de você” eu respondi
  673. >mas quem eu estava enganando? Iam demorar dias até chegar no Rio
  674. >”ei... Yuri...” ele me chamou, bem baixinho
  675. >”obrigado por salvar a minha vida, irmão”
  676. >”você é um herói.... e é o melhor guerreiro que eu já conheci” ele falou, quase sussurrando
  677. >meus olhos encheram de água
  678. >por um momento, eu tive esperança
  679. >eu não sei que louca esperança era essa que eu tinha, de que tudo poderia ficar bem
  680. >mas, como costuma ser na vida, as coisas não ficaram bem
  681. >depois de algumas horas de estrada bati de cara com um bloqueio da PRF
  682. >os caras nem perguntaram, já vieram estalando pra cima de mim
  683. >eu revidei e consegui derrubar alguns, mas eles me acertaram na perna e me dominaram
  684. >eu olhei, impotente, enquanto eles abriam o carro e arrastavam o Fontes pro lado de fora
  685. >”esse aqui já tá mais morto que vivo” um deles disse
  686. >o outro concordou e, com a arma na mão, estourou a cabeça do Fontes
  687. >”NÃO” eu berrei, tentando me levantar, mas eles me derrubaram de novo
  688. >eles simplesmente mataram meu único amigo
  689. >como se não fosse nada
  690. >filhos da puta, filhos da puta, VIADOS
  691. >eu tentei lutar, tentei continuar, mas cada vez que eu tentava eles me derrubavam mais forte
  692. >eu já estava sem forças
  693. >a mochila com os documentos eles pegaram e, sem nem abrir pra ver o que havia dentro, tacaram fogo
  694. >todos estavam com um sorriso estampado na cara, era óbvio que iam receber uma recompensa gorda pelo serviço deles
  695. >e eu fui levado embora por eles para ser jogado na toca dos leões
  696. (Parte V)
  697. >depois daquilo tudo passou rápido
  698. >é engraçado como o governo pode ser eficiente quando quer te fuder
  699. >fui condenado por mais de 12 crimes, incluindo resistência a prisão, formação de quadrilha, terrorismo e homicídio do Fontes
  700. >sim, eles mataram o meu irmão e ainda me prenderam por isso
  701. >deu 184 anos de reclusão, no total das penas
  702. >no começo, eu fiquei preso em uma prisão militar, onde eu estava seguro
  703. >mas eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, eu seria transferido para algum presídio
  704. >pra alguma cela cheia de vagabundo
  705. >e aí não iria ter jeito
  706. >palavras como dia e noite deixaram de ter sentido pra mim
  707. >o tempo ia se arrastando como se não quisesse passar
  708. >eu emagreci quase 15 kilos em dois meses, deixei de ser grande e fiquei magro, meio pálido
  709. >foi nessa que um dia eu recebi uma visita
  710. >veio a Sophia, a Juliana e o Rodrigo
  711. >o comandante da unidade prisional me conhecia, e arrumou uma sala confortável pra eu ter minha visita
  712. >nunca chorei tanto na vida quanto naquele dia
  713. >a Sophia, eu me lembro, estava muito preocupada comigo
  714. >fez várias perguntas, achando que eu estava doente pela perda de peso
  715. >”eu estou bem, estou bem, juro” eu respondia
  716. >a última coisa que eu queria falar era de saúde
  717. >abracei a Juliana, quase quebrando ela ao meio, enquanto ela me beijava
  718. >e as lágrimas dos nossos rostos se misturavam
  719. >”eu senti tanta saudade de você, amor” ela me disse, com os olhos marejados
  720. >não respondi, não havia nada a dizer
  721. >virei para o lado e fui ver o Rodrigo
  722. >ele já tinha 4 anos
  723. >sim, demorou 4 anos para eu poder receber uma visita
  724. >o sistema prisional realmente é uma merda
  725. >”e você, garotão? Como tá?” eu perguntei pra ele
  726. >ele respondeu, meio embolado “to fóti igual papai!”
  727. >levantou os braços e mostrou o muque
  728. >”aaaah moleque, você parece mais o Hulk!” eu disse, levantando ele nos braços
  729. >”vai crescer e virar um guerreiro hein?” eu disse, enquanto ele balançava a cabeça
  730. >coloquei ele no chão de novo e ele saiu para brincar
  731. >a Sophia se aproximou e falou
  732. >”Yuri, nós confiamos em você. Apesar de toda essa história, sabemos que você é inocente”
  733. >é foda, eu nem tive a oportunidade de conversar com elas, parceiro
  734. >eu nunca nem pude contar minha versão do que aconteceu
  735. >e mesmo assim elas confiam na minha inocência
  736. >obrigado Deus, por colocar essas pessoas na minha vida
  737. >”já entramos em contato com um bom advogado, amigo da minha família”
  738. >”vamos tirar você daqui” ela disse, colocando a mão no meu ombro
  739. >reparei melhor na feição dela
  740. >o Líbano tinha mudado ela muito
  741. >ela deixou de ter aquele jeito de aventureira e se tornou uma mulher séria, madura, que impunha respeito
  742. >a Juliana me abraçou forte
  743. >”os caras do BOPE também acreditam em você amor”
  744. >”vamos nos reunir pra tentar provar a sua inocência”
  745. >”vamos conseguir te tirar daqui e viver nossa vida em paz novamente” ela disse, voltando a chorar novamente
  746. >eu tive que me controlar e ser forte
  747. >pois minha vontade era de chorar junto com ela
  748. >mas falei pras duas
  749. >”quero que vocês prestem bem atenção”
  750. >”logo logo eu vou ser transferido para Bangu, junto com outros presos comuns”
  751. >”lá, com certeza, vai ser meu fim”
  752. >”então eu não quero que vocês me procurem ou tentem me visitar”
  753. >”não existe advogado que possa impedir isso”
  754. >”então o que eu quero é que vocês lembrem de mim de um jeito bom, e sigam a vida de vocês”
  755. >irmão, tu sabe o quão difícil é isso?
  756. >dizer pras pessoas que mais te amam nesse mundo para te esquecer?
  757. >não existe treinamento que te prepare pra isso
  758. >mas todo guerreiro sabe que tem horas que é necessário se sacrificar pelo bem maior
  759. >essa era minha hora
  760. >a Juliana não conseguia falar nada
  761. >a Sophia tentou argumentar
  762. >”Yuri, para de besteira, a gente vai conseguir sim” ela começou a falar
  763. >”não adianta Sophia, eu conheço esses caras” eu disse, interrompendo ela
  764. >”é game over. Perdemos. Não tem jeito”
  765. >”cuidem do Rodrigo e sejam felizes. Esse é o último pedido que eu faço a vocês”
  766. >o tempo da visita já estava se esgotando, então eu tinha que acelerar
  767. >peguei a Juliana nos meus braços
  768. >ela não merecia todo esse sofrimento, toda essa dor
  769. >sussurrei no ouvido dela “você é a mulher mais corajosa que eu já conheci”
  770. >e dei a ela um último beijo
  771. >um beijo que fez tudo valer a pena
  772. >que fez tudo ter sentido
  773. >um beijo de verdadeiro amor
  774. >me despedi do Rodrigão, com os olhos marejados
  775. >e finalmente, dei adeus para a Sophia por último
  776. >”cuide deles por mim” eu sussurrei no ouvido dela
  777. >a missão que o Costa me passou, eu agora passava adiante
  778. >ela acenou com a cabeça, de um jeito bem seguro
  779. >eu sabia que eles iam ficar bem
  780. >eles olharam para trás uma última vez, e eu vi os olhos deles pela última vez
  781. >e depois voltei pra minha cela
  782. >demoraram alguns dias para eu superar a dor da separação
  783. >a dor do adeus
  784. >mas eu superei
  785. >venci a mais essa batalha
  786. >e comecei a malhar
  787. >a praticar minha luta
  788. >e a me preparar
  789. >porque em breve eu iria para Bangu
  790. >iam me colocar com os presos comuns
  791. >um último teste para um guerreiro cansado
  792. >e eu sei que eu vou cair
  793. >mas vou cair lutando, irmão
  794. >e vou levar muito marginal pro inferno comigo
  795. (Epílogo)
  796. >16 anos se passaram desde que eu vi o Yuri pela primeira vez
  797. >e já faziam 20 anos desde que eu vi o Arthur
  798. >a vida castiga o nosso coração, mas não nos dá nenhum desafio que não possamos suportar
  799. >desde então, meu bem maior foi o Rodrigo
  800. >eu o vi crescer, vi ele se tornar um homem forte e inteligente
  801. >e não fiquei surpresa quando ele optou por ser policial
  802. >doeu muito aceitar que ele iria para a mesma carreira dos pais dele
  803. >tentei de tudo para convencê-lo a fazer outra coisa, mas de nada adiantou
  804. >ele estava convicto
  805. >no dia da apresentação, levei ele no CFAP
  806. >no calor de Sulacap, em um dia ensolarado
  807. >parei na porta do quartel, e olhei para ele
  808. >ele sorriu para mim, com aquele ar de jovem convencido que acha que sabe tudo da vida
  809. >eu puxei ele pra perto e dei um beijo na testa
  810. >”agora vai ser tudo diferente, filho” eu disse
  811. >”agora vai ficar tudo bem”
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