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Nov 19th, 2019
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  1. As capitais da ilustração
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  4. Hoje em dia, nos livros de literatura para a Infância e Juventude, a ilustração conquistou um imenso território mas não podemos mais continuar a encarar como ilustração apenas as imagens. Fruto sobretudo da acção do design gráfico, a maioria das páginas destes livros é um objecto particular de percepção onde, literalmente, texto verbal e texto simbólico da letra tinha, aliás, um peso significativo porque as escritas não usavam sequer elementos arbitrários, e visual se interpenetram ou, melhor dizendo, onde todos os textos (constituídos por imagens e/ou por palavras) são sempre textos visuais. E quando a ilustração incide sobre o alfabeto verbal, incide inevitavelmente sobre uma fortíssima ferramenta de aprendizagem da criança, chamando a atenção para as características fónicas ou gráficas de cada um dos elementos que o compõem assim como para a sua dimensão eventualmente motivada e para o seu potencial criativo e poético. A dimensão da visualidade foi, desde sempre, um dos apanágios da escrita, de qualquer escrita. Nas suas origens, o carácter visual icónico ou serviam-se exclusivamente de pictogramas ou ideogramas para representar palavras, ideias ou frases. Mas, mesmo com a sistematização da escrita alfabética, primeiro, e, depois, com o desenvolvimento mecanográfico ou informatizado do texto impresso a escrita continuou, ainda que disso tenhamos perdido a consciência, a ser um objecto visual. Hoje, a enorme diversidade de tipos de letra permite estudar milimetricamente a dimensão gráfica da letra (a família, o corpo, o pé, o traço, a espessura, o contraste, o entrelinhamento, etc.) de forma a rentabilizar os processos de percepção, reduzindo a complexidade e aumentando a previsibilidade de modo a que a leitura, muitas vezes, dedutiva e não exclusivamente analítica não tropece em irregularidades gráficas. Porém, a letra-imagem, mesmo nas obras impressas com texto alfabético, manteve sempre o seu vigor. Durante algum tempo, por exemplo, nos livros de luxo, onde as capitais ilustradas guardaram a tarefa de amalgamar grafemas e ícones (ou grafemas e símbolos), ou, entre outros, nos manuais escolares de iniciação à leitura, onde os alfabetos ilustrados foram palco de grandes intervenções gráficas com objectivos didácticos. Actualmente, fruto de vários trabalhos na área do design de comunicação e especificamente na do typedesign, a letra parece ter recuperado, em certos casos, a força da sua dimensão visual numa significativa ruptura com as estruturas lineares e anónimas da escrita impressa, arriscando transformar a regularidade e a rapidez do processo de leitura, de novo, num movimento individual, sujeito a ritmos irregulares. E se a imaginação gráfica sobre o texto capaz de tornar a “letra visível” parece estar, hoje, francamente arredada dos manuais do 1º ciclo (como, aliás, a ilustração de qualidade) onde o sistemático ganhou ao assistemático, ela é, no entanto, uma presença forte e inovadora nos livros de literatura para a Infância e Juventude. Aquilo que me proponho discutir, aqui, é, exactamente, a complexidade de estratégias de ilustração que, nas obras de literatura para a infância e juventude, autorizam, hoje, para além de um frutífero diálogo verbal-visual, o aparecimento de imagens elaboradas com recurso a grafemas isolados enquanto motivo para a ilustração de inúmeras páginas, mas também, e sobretudo, uma nova forma de ilustração, a das próprias manchas de texto. Nesta, considerarei apenas os grafemas alfa-numéricos isolados que aparecem nos títulos, nas capitais de capítulo, nas entradas de parágrafo, no início dos versos ou estrofes, ou mesmo na entrada ou interior de palavras no meio do texto, numa clara cumplicidade entre letra e ilustração, permitindo que as letras, saídas de um alfabeto sistemático, se tornem únicas, demorem o olhar, veículem sentidos complexos e narrem duplamente as histórias.
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  7. 1 Excerto do artigo do artigo de Gil Maia; disponível em http://www.casadaleitura.org
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  16. A ilustração para além da decoração: a transformação e a referência oblíqua
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  19. Quando falamos, hoje, em livros ilustrados imediatamente visionamos obras onde, para além do texto escrito, existem imagens, coloridas ou não, mas e, sobretudo, obras onde a ilustração surge como um marco suficientemente forte para constituir uma referência significativamente positiva.
  20. É inquestionável que a ilustração tem, actualmente, nos livros de literatura para a infância, características diferentes da ilustração que foi realizada, noutros tempos, para os textos teológicos ou filosóficos, por exemplo, mas é também muito diferente daquela que, há uns anos atrás, aparecia nos livros para crianças.
  21. Ilustrar é, já o dissemos mais do que uma vez, dar luz a um texto. Contudo, hoje, talvez possamos acrescentar que essa luz não é a mesma luz a que os nossos antepassados medievais se referiam. Nem tão pouco a mesma que muitos, ainda hoje, pensam existir como sinónimo de clarificação da verdade do texto. A ilustração nos livros de literatura para a infância não é, ou pelo menos não tem que o ser, investida de uma missão explicativa ou esclarecedora, do texto verbal. E quando o procura ser ela esvai-se no pragmatismo didáctico e o seu discurso soa a oco ou a panfletário. Amarrado a princípios rígidos e a pressupostos educativos, o artista poderá ser um eficaz pedagogo mas não um criador ousado.
  22. Não é também a primeira vez que afirmamos que, nos livros de literatura para a infância, o peso visual do texto tem vindo a decrescer face ao peso da imagem. Este é sempre um peso relativo que significa uma efectiva apropriação do espaço por parte da ilustração mas que demonstra também a enorme aceitação e fascínio que a ilustração tem suscitado. É, pois, visível a crescente importância da imagem sobre o texto, pelo menos em dois aspectos: a quantidade e a forma de ocupação de território.
  23. A ilustração está cada vez menos confinada a um posicionamento espacialmente definido face ao texto escrito e isso faz crescer uma espécie de direito de apropriação territorial da imagem sobre o livro. Este crescimento é mais um alastramento, numa alusão metafórica ao escorrer das tintas e dos líquidos coloridos espalhados pelas páginas dos livros, que uma conquista bélica.
  24. Na grande maioria dos manuscritos medievais, a ilustração ocupava espaços previamente definidos e serpenteava pelos intervalos em branco, conforme o texto escrito lhe ia permitindo, dentro de uma lógica que conjugava o factor económico com o horror ao vazio. Nos livros de literatura para a infância, a ilustração, tem seguido uma trajectória muito veloz de expansão e libertação. Com imagens coloridas ou gravuras de uma só cor, durante muito tempo, as ilustrações ainda transportaram consigo legendas para que o leitor pudesse fazer a ancoragem ao texto escrito. Progressivamente, porém, a imagem foi crescendo em área, e, isolou-se cada vez mais do texto, raramente se misturando com a dimensão verbal da obra. Mas de repente, foi saindo dos limites impostos pelas cercaduras, abandonando uma espécie de simetria com a mancha de texto (o chamado “efeito de pendant”) e, começou a derramar-se pela superfície da página, molhando de cor o próprio texto ainda que em transparências respeitadoras da leitura e da visibilidade tipográfica.
  25. Hoje, a ilustração encheu a página e foi absorvida pela avidez do papel branco e seco; cresceu, como um dilúvio, até aos limites do “corte” das folhas do livro e transbordou mesmo para além do seu espaço visível e material, deixando que sejamos nós, os leitores, a prolongá-la num espaço aéreo envolvente ao livro e às nossas mãos.
  26. Através dessa omnipresença, impressa na página (e na imaginação), a ilustração conquistou o direito de superfície, ou seja, agora, é ela que decide o espaço que deixa livre para o texto, é ela que controla a fusão e a separação. Por um lado, pode, ainda, voltar as costas ao texto mas, por outro, bem diferentemente, pode, como dissemos, infiltrar-se na sua área, espraiando-se sob as suas letras como um chão ou cobrindo-as, displicente. À ilustração é, pois, autorizado o preenchimento total da superfície, onde coabita com o texto, mas, também, e cada vez mais, pode optar pela criação de um enorme vazio que envolva as suas imagens, que lhes permita, assim, ficar isoladas num espaço em branco (aparentemente excessivo se comparado com o tamanho das imagens que constituem a ilustração) mas que, mesmo que imenso, não será ocupado por mais nada.
  27. Esta crescente importância da imagem assegura, então, à ilustração o controlo e o domínio de toda a área de impressão, quer através do isolamento da imagem (onde, visualmente, o espaço branco envolvente é considerado parte integrante da própria ilustração) quer através da invasão do espaço total. E, sobretudo, este estatuto permite- lhe que se constitua como uma forma de valorização formal, de sedução sobre o leitor e de estímulo ao pensamento visual. À anterior soberania do texto e da paisagem texturada que os seus sulcos deixavam, sucede, hoje, nas obras ilustradas, o silêncio por onde o texto se vai habituando a não correr.
  28. E, actualmente, pela acção da ilustração, o livro ilustrado deixou de ser uma sucessão de páginas singelas, lado a lado, percorridas, ora pelo texto, ora por texto e imagens intercaladas, para passar a ser uma sucessão de pranchas, folhas dobradas a meio, onde a unidade de percepção não é a página mas a dupla página que, pousada sobre as mãos, conecta o lado par e o lado ímpar pela cor e pelos traços, por manchas de imagens. Tudo se passa como se a ilustração, cansada de ocupar as margens das páginas, decidisse instalar-se no centro da obra, no centro do olhar, e obrigasse, mesmo, o próprio texto escrito, a aparecer, também ele, como imagem para poder ser visto.
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