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Feb 23rd, 2019
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  1. [Intenção]
  2.  
  3. quando eu nasci eu morava em outra casa
  4. e eu gostava das escadas de pedra e da varanda com espaço para jogar futebol
  5. eu pensava que poderia ser Zico mesmo que a bola escapasse do domínio dos meus pés
  6. e eu pensava que tudo era possível mesmo quando a vida começava a dizer continuamente que não
  7. com Os Miseráveis do Victor Hugo na mochila e idas demais à secretaria para reclamar que implicavam comigo
  8. chorando quase todos os dias por ser uma criança emocional demais
  9. mesmo que nada acontecesse de verdade
  10. eu ainda acreditava que as coisas viriam naturalmente até mim
  11. todos acreditavam num talento, numa espécie de diamante bruto a ser lapidado dentro de mim
  12. mas agora existe muito pouco disso e eu olho meu peito
  13. com a ideia insistente de que dor sem motivo talvez seja o tema da minha vida até o momento.
  14.  
  15. a adolescência veio como um tiro de consciência em meio ao meu delírio
  16. e eu passava as tardes ainda sonhando, segurando os livros da biblioteca
  17. tentando terminar as categorias
  18. sentindo no âmago da alma a dor que me trouxe ao mundo
  19. com a falta de consciência da infância
  20. e sem memória de nada que tenha acontecido, me olhando no espelho e reconhecendo
  21. um farsante, um gauche, uma alma de outros tempos,
  22. qualquer coisa que não seja eu, não conseguindo me ver dentro do espelho e esperando que o mundo trouxesse respostas para essas coisas
  23. me perguntando o que eu me tornei,
  24. me apaixonando vezes demais,
  25. bebendo vezes demais,
  26. num torpor bêbado de paixões ilusórias que minha irmã reprovava semanalmente enquanto me aconselhava
  27. nas nossas idas solitárias ao Subway do posto de gasolina
  28. para comer sanduíches e biscoitos
  29. quando eu podia comer sanduíches e biscoitos
  30. agora eu me sento sóbrio ao lado de um copo d'água
  31. e escrevo sobre o furacão formado no fundo dele.
  32.  
  33. passei dias demais conversando bêbado com pessoas que não me importo, e horas demais na mesma praça com a mesma pessoa
  34. passei tempo demais pensando numa pessoa só
  35. e tempo demais lendo os livros que começaram a se amontoar ao lado da minha cama
  36. depois que o amor foi embora outra vez eu me cansei dos filósofos e de questionar Deus por um tempo
  37. então eu li sobre a bebida e o sexo e a vida real do homem médio americano
  38. e mesmo sabendo que Bukowski mentia quis ser por um momento alguém que pudesse sentir sem se perder do chão como ele era
  39. mas eu nunca conseguia e meus poemas sempre saíam suaves demais e eu nunca consegui quebrar espelhos com as palavras
  40. mas escrevia declarações de amor que não foram lidas
  41. me lembrando do dia em que saí caminhando sem rumo pelas ruas, parando numa livraria, olhando as coisas desinteressantes por lá
  42. acabei chutando um livro e o peguei do chão
  43. O amor é um cão dos diabos, dizia a capa,
  44. Bukowski era como um saxofone metálico cortando a noite fria,
  45. o fundo dizia,
  46. e eu paguei meus 23,50 do bolso naquele livro
  47. e naquele dia fiquei completamente sóbrio
  48. enquanto meu amigo bebia uma vodca com outro amigo e esse cara escrevia que a noite era das putas e dos poetas no fundo de uma lanchonete suburbana
  49. e eu me sentia relativamente idiota com o que acontecia
  50. e com o ambiente onde eu li pela primeira vez o poema sobre olhos castanhos
  51. e escrevi minha própria imitação dele e ali decidi que seguiria escrevendo quando as coisas dessem errado,
  52. e estou aqui hoje sob a pilha dos meus fracassos,
  53. tentando amontoar coisas suficientes num poema para achar um caminho de saída,
  54. mesmo que isso não seja um poema,
  55. mesmo que não exista saída.
  56.  
  57. eu me sentia pesado, gordo e cansado
  58. uma nuvem na minha cabeça fazia com que chovesse só em cima de mim o tempo todo,
  59. e o martírio não era engraçado como é atualmente,
  60. e eu não conseguia rir de meu próprio fracasso como faço hoje
  61. e eu sonhava bem mais
  62. eu queria nunca ter fumado o primeiro derby branco no fundo da padaria
  63. e eu queria que eu não tivesse provado maconha com aqueles caras que nunca falaram comigo de novo,
  64. e eu queria que eu conseguisse dizer coisas que fazem sentido conforme os poemas se aproximam do final,
  65. ou que eu não dependesse da sensação de estar bêbado para me sentir feliz, que não ficasse agoniado na mesma cadeira de sempre na sala de casa pensando que preciso de algumas doses (talvez doses demais para alguém que também quer entender o mundo) pra ficar contente e interagir
  66. ou que eu tivesse feito mais amigos
  67.  
  68. queria passar mais tempo longe de casa pra poder sentir saudade das pessoas que amo
  69. queria saber tocar violão para conseguir afastar os demônios com os acordes tortos das músicas que me mantêm no caminho
  70. ou que a vida esperasse até que eu pudesse alcançá-la
  71. que as estrelas me encarassem de volta, e eu conseguisse parar de sentir vontade de fumar,
  72. ou que eu pudesse realizar todas as minhas vontades,
  73. e do alto desse delírio de realização encarasse a bagunça que fiz e entendesse
  74. que sempre estive errado, desde o começo,
  75. desde quando chorei aos oito anos enquanto Fantine vendia os dentes
  76. na única parte que me lembro dos miseráveis de Victor Hugo,
  77. mesmo quando Zafón desenhava sua Marina claramente na minha frente e eu tivesse a mesma sensação anos depois relendo o livro
  78. ou que eu tivesse aproveitado as chances que o amor me deu
  79.  
  80. mas eu tenho desejado coisas demais nos últimos poemas
  81. e preciso mostrar alguma intenção de mudar mesmo que elas nunca cheguem e eu nunca mude.
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