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- [Intenção]
- quando eu nasci eu morava em outra casa
- e eu gostava das escadas de pedra e da varanda com espaço para jogar futebol
- eu pensava que poderia ser Zico mesmo que a bola escapasse do domínio dos meus pés
- e eu pensava que tudo era possível mesmo quando a vida começava a dizer continuamente que não
- com Os Miseráveis do Victor Hugo na mochila e idas demais à secretaria para reclamar que implicavam comigo
- chorando quase todos os dias por ser uma criança emocional demais
- mesmo que nada acontecesse de verdade
- eu ainda acreditava que as coisas viriam naturalmente até mim
- todos acreditavam num talento, numa espécie de diamante bruto a ser lapidado dentro de mim
- mas agora existe muito pouco disso e eu olho meu peito
- com a ideia insistente de que dor sem motivo talvez seja o tema da minha vida até o momento.
- a adolescência veio como um tiro de consciência em meio ao meu delírio
- e eu passava as tardes ainda sonhando, segurando os livros da biblioteca
- tentando terminar as categorias
- sentindo no âmago da alma a dor que me trouxe ao mundo
- com a falta de consciência da infância
- e sem memória de nada que tenha acontecido, me olhando no espelho e reconhecendo
- um farsante, um gauche, uma alma de outros tempos,
- qualquer coisa que não seja eu, não conseguindo me ver dentro do espelho e esperando que o mundo trouxesse respostas para essas coisas
- me perguntando o que eu me tornei,
- me apaixonando vezes demais,
- bebendo vezes demais,
- num torpor bêbado de paixões ilusórias que minha irmã reprovava semanalmente enquanto me aconselhava
- nas nossas idas solitárias ao Subway do posto de gasolina
- para comer sanduíches e biscoitos
- quando eu podia comer sanduíches e biscoitos
- agora eu me sento sóbrio ao lado de um copo d'água
- e escrevo sobre o furacão formado no fundo dele.
- passei dias demais conversando bêbado com pessoas que não me importo, e horas demais na mesma praça com a mesma pessoa
- passei tempo demais pensando numa pessoa só
- e tempo demais lendo os livros que começaram a se amontoar ao lado da minha cama
- depois que o amor foi embora outra vez eu me cansei dos filósofos e de questionar Deus por um tempo
- então eu li sobre a bebida e o sexo e a vida real do homem médio americano
- e mesmo sabendo que Bukowski mentia quis ser por um momento alguém que pudesse sentir sem se perder do chão como ele era
- mas eu nunca conseguia e meus poemas sempre saíam suaves demais e eu nunca consegui quebrar espelhos com as palavras
- mas escrevia declarações de amor que não foram lidas
- me lembrando do dia em que saí caminhando sem rumo pelas ruas, parando numa livraria, olhando as coisas desinteressantes por lá
- acabei chutando um livro e o peguei do chão
- O amor é um cão dos diabos, dizia a capa,
- Bukowski era como um saxofone metálico cortando a noite fria,
- o fundo dizia,
- e eu paguei meus 23,50 do bolso naquele livro
- e naquele dia fiquei completamente sóbrio
- enquanto meu amigo bebia uma vodca com outro amigo e esse cara escrevia que a noite era das putas e dos poetas no fundo de uma lanchonete suburbana
- e eu me sentia relativamente idiota com o que acontecia
- e com o ambiente onde eu li pela primeira vez o poema sobre olhos castanhos
- e escrevi minha própria imitação dele e ali decidi que seguiria escrevendo quando as coisas dessem errado,
- e estou aqui hoje sob a pilha dos meus fracassos,
- tentando amontoar coisas suficientes num poema para achar um caminho de saída,
- mesmo que isso não seja um poema,
- mesmo que não exista saída.
- eu me sentia pesado, gordo e cansado
- uma nuvem na minha cabeça fazia com que chovesse só em cima de mim o tempo todo,
- e o martírio não era engraçado como é atualmente,
- e eu não conseguia rir de meu próprio fracasso como faço hoje
- e eu sonhava bem mais
- eu queria nunca ter fumado o primeiro derby branco no fundo da padaria
- e eu queria que eu não tivesse provado maconha com aqueles caras que nunca falaram comigo de novo,
- e eu queria que eu conseguisse dizer coisas que fazem sentido conforme os poemas se aproximam do final,
- ou que eu não dependesse da sensação de estar bêbado para me sentir feliz, que não ficasse agoniado na mesma cadeira de sempre na sala de casa pensando que preciso de algumas doses (talvez doses demais para alguém que também quer entender o mundo) pra ficar contente e interagir
- ou que eu tivesse feito mais amigos
- queria passar mais tempo longe de casa pra poder sentir saudade das pessoas que amo
- queria saber tocar violão para conseguir afastar os demônios com os acordes tortos das músicas que me mantêm no caminho
- ou que a vida esperasse até que eu pudesse alcançá-la
- que as estrelas me encarassem de volta, e eu conseguisse parar de sentir vontade de fumar,
- ou que eu pudesse realizar todas as minhas vontades,
- e do alto desse delírio de realização encarasse a bagunça que fiz e entendesse
- que sempre estive errado, desde o começo,
- desde quando chorei aos oito anos enquanto Fantine vendia os dentes
- na única parte que me lembro dos miseráveis de Victor Hugo,
- mesmo quando Zafón desenhava sua Marina claramente na minha frente e eu tivesse a mesma sensação anos depois relendo o livro
- ou que eu tivesse aproveitado as chances que o amor me deu
- mas eu tenho desejado coisas demais nos últimos poemas
- e preciso mostrar alguma intenção de mudar mesmo que elas nunca cheguem e eu nunca mude.
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