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Guest User

Dia 6

a guest
Jan 17th, 2019
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  1. 26 de novembro de 20XX
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  3. Acho que de longe este foi meu pior pesadelo, eu estava preso no chão, ao menos eu acredito que aquilo era o solo, aqueles malditos Catshanofs olhavam para baixo, vendo-me alí sem poder fazer nada, por um longo tempo foi somente isto. Quando o sonho estava perto de seu fim, as entidades começaram a morrer em cima de mim, aglomerando-se de modo que eu não conseguia ver mais nada além de escuridão, eu implorava por oxigênio, contudo estava sendo cada vez mais abafado.
  4.  
  5. Agradeci aos céus quando acordei, foi o barulho da campanhia de minha porta que despertou-me. Quem visitaria alguém a essa hora? Eu não tive nem ao menos a chance de me arrumar, pulei do sofá e calcei minha pantufa, amarrei bem meu roupão e destranquei a entrada.
  6.  
  7. "Yihima, eu trouxe café da manhã, espero que não se importe." Era Osir, o modo com que estava arrumando em plena manhã chegava a irritar meus sentidos, tudo parecia exagerado para uma visita casual como aquela. Utilizava um sobretudo branco com uma roupa preta por baixo e calça de mesma cor, seu cheiro era forte porém "doce" ao mesmo tempo, trazia consigo uma bandeja grande, haviam dois waffles, duas torradas grandes com ovo e um pote de geleia. "Delirium...por que?" Questionei tímido, eu nunca havia recebido uma surpresa desse tipo, era tão belo, mas, estranho, pois vinha de alguém que eu mal interagi. "Eu queria ver você e também agrada-lo, decidi preparar um banquete para nós dois então, pois, creio que as pessoas sejam muito mais do que somente momentos, memórias e aprendizados, elas são toques, sabores e fragrâncias." Explicou de modo "poético".
  8.  
  9. Adentrou meu lar, arrumando minha mesa e posicionando os pratos para que sentassemos um de frente para o outro. Tranquei a porta e fui em direção ao banquete matinal, o garoto puxou a cadeira para que eu me repousasse, logo sentou-se em minha frente. "Se quiser, eu posso passar a geleia de morango no que quiser, algumas pessoas acabam se atrapalhando nisso" O rapaz propôs, abrindo o pote e passando na torrada dele. "Eu acho que consigo sozinho, mas, obrigado" Acreditava que não passaria do modo perfeito com que ele passou nas dele, mas eu não iria pedir ajuda para alguém da mesma idade em algo tão simples, não creio que minha pessoa seja boa em algo, mas mesmo assim eu prefiro fazer sozinho, não quero irritar ou parecer incapaz, apesar de ser.
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  11. Terminamos a refeição, o outro apoiou os cotovelos e seu rosto nas mãos, sorrindo para mim como uma mãe orgulhosa sorriria ao seu filho. "Sabe, eu não quero ser grosso, de modo algum, mas, eu nunca vi alguém tratar um conhecido de apenas um dia desse modo, principalmente ele sendo alguém como eu..." Soltei minha confusão, pude notar a mudança de expressão de meu amigo, seu sorriso modelou-se como uma leve decepção, talvez consigo mesmo, lamentei internamente por ele. Sua mão tocou o peito, no bolso do sobretudo, com dois dedos puxou uma polaroid que encarou e logo exibiu-me, "Eu também não tenho memórias grandes do passado, mas, tenho essa foto, e é única coisa que me manteve firme neste mundo, sabendo que eu tenho algo aqui."
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  13. A fotografia mostrava um parque, vasto e verde como o Éden, na frente da foto haviam dois rapazes, pequenos garotinhos, Delirium e eu. Nunca antes pude ver a face que tive na infância, mas estava óbvio que era Yendo Yhima. Estávamos abraçados à uma árvore, sorrindo como se o amanhã não fosse depressivo, a Aroeira era pequena a não muito grossa, então nossas mãos, além de envolve-la, se tocavam. Ao fundo, meu pai, magricelo, com um avental verde e camisa azul escura, calça de mesma cor e um óculos que lhe garantia um tom de seriedade, aquele que creio que tenha cuidado de mim estava sentado à uma mesa de madeira junto de uma moça pálida, de cabelos brancos que tocavam o ombro e um belo batom vermelho ardente como o sangue, era delicada como uma boneca, seu vestido era vitoriano, preto com vermelho, na parte do pescoço, onde havia um lenço branco, existia uma grande pedra verde. Por último, havia um outro sujeito, diferente do meu pai e a senhorita, que estavam sentados às bordas, este estava de costas, somente era possível ver seu manto preto.
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  15. "Entende? Você sempre foi minha estrela de Belém, e eu sempre fui um andarilho perdido, sem rumo neste mundo. Yendo, não existimos em nosso corpo, existimos em todos os corpos que tiveram contato conosco, todos aquelas versões de nós compõem o que somos no mundo, e você era a única pessoa que eu tinha certeza que possuía meu outro eu." Sua fala emotiva me tocava, eu estava em um estado de choque por motivos que provavelmente para aquele que chega a palavra, são bobos. Osir procurava o ele em mim, mas acabou entregando me o eu nele, em diversos sentidos, aquele sorriso infantil, a expressão de pureza que renasci sem, meus olhos lacrimejaram um pouco vendo o pequeno, agora uma sombra na luz queimante da amnésia. Abracei Delirium por cima da mesa, que também chorou ao poder sentir um toque familiar, um toque que não almeja por que gosta, mas por que deixou marcas em um mapa que guia pela vida. "Eu te amo Yendo, por favor, me complete, por favor, mostre para mim que eu existo." Soluçava de chorar, o sintoma de estar perto demais da realização mas incerto se ela é aquilo que sonhava, ou melhor, precisava, temendo ter mirado errado em o que ele queria. "Estaremos um pelo outro, certo? Agora que nos encontramos, não nos abandonaremos nunca, eu prometo." Eu tentava amenizar as emoções, já tomando um maior controle do meu tom de voz, eu não sabia por que minha pessoa havia chorado tanto, não fazia sentido, mas, retorno a dizer, o sentido dos sentimentos é que eles são a mais pura forma da alma humana, e não há sentido nessa beleza.
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  17. Após milhares de trocas de lágrimas e pedidos de socorro silenciosos que nunca seriam atendidos, nos acalmamos. Cada um se isolou por um pequeno intervalo de tempo, cabeça abaixada na mesa, sozinhos com os próprios pensamentos depois de tanto fugirmos disto, no fim, nada nunca ficará ao nosso lado como nossa mente diabólica, pois, a tendência humana é de confinamento. Não sabíamos quem quebraria aquele momento, aquele que admitiria primeiro que as fortes emoções se foram e a vida voltou ao normal. Fui eu quem abracei o tédio dos sentimentos superficiais primeiro, quem aceitaria que a vida não é de ápices mas sim do básico, levar meu prato para a pia tinha um valor maior do que qualquer "Se acalme" ou "Está tudo bem" naquele momento. Osir passou a mão nos olhos, mesclando as lágrimas à face até que não parecessem ter existido, mesmo que ele ainda pudesse senti-las quando a brisa batesse. "Sua casa está uma bagunça, eu vou dar uma limpada nela, não te incomodaria, né?", de fato, havia lixo espalhado, pó, e outras coisas desorganizadas, mas, Osir já estava fazendo muito, "Pode deixar que eu faço isso mais tarde.", "Tenho certeza que não fará." Retrucou já com a vassoura que fica ao lado da porta em mãos, tentei tira-la dele explicando que já era demais para mim, mas o mesmo disse "Você merece muito mais que isso, é só um pequeno ato que não me custará nada.". Abaixei a cabeça, é estranho quando você se põe em uma posição baixa e alguém começa a lhe enaltecer, mesmo que você fixe que não é digno, é um choque que faz parecer com que você seja um dramático.
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  19. Não conseguia falar algo, era difícil abrir minha boca insegura sobre mim mesmo para alguém que me via com uma visão tão confiante, o silêncio era rude, mas ele compreenderia minha incapacidade. Não me veria como um incapacitaz, mas talvez romantizaria a falta de palavras. Fui em direção ao banheiro, que, em questão, tem sua entrada no meu quarto, fechei a porta do dormitório e a do cômodo em que me banharia arreganhada. Não fui reflexivo sob as águas hoje, somente queria me arrumar mesmo, iria direto para a fundação, desvendar a enigmática primeira camada. É triste saber que me arrumei tanto para isso, como se estivesse indo para um encontro, perfumei-me, coloquei um jaleco novo, tudo para que me imundasse com aberrações, com uma sujeira que diferente da que estava sendo limpada, teria seu cheiro impregnada na minha alma, eternamente atormentada pela busca incessante por mais conhecimento e lamentando a perda da ignorância. "Da próxima vez, eu adoraria ser convidado para o banho." Gracejava ao me ver saindo arrumado. "Veja só se não é um pervertido ousado." Ri para ele, acreditava que era somente uma brincadeira de amigos, mesmo que depositasse desconfiança que tivesse um fundo de verdade.
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  21. Era claro ainda, e por mais que meu horário fosse noturno, estava disposto a trabalhar o dia todo, pois, seria uma nova experiência na primeira camada. Sempre vou andando até o elevador para a segunda camada, mas acredito que seja melhor ir de metrô para um outro elevador que vai direto para o local de destino. Apesar de soar estranho metrôs em uma cidade subterrânea, temos muitos aqui, pois há ainda uma "mini-camada" abaixo da terceira, o subterrâneo da cidade.
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  23. Mesmo lotado, consegui um lugar para sentar, e aqui estou, relatando meu dia enquanto passo por uma estranha experiência de se sentir em baixo da terra enquanto está em baixo dela de qualquer maneira, é como uma ilusão de ótica. Ao passar das estações, cada vez mais diminuem os passageiros, muito provavelmente pelo fato de agora estarmos nos distanciando do núcleo da fundação e indo para a área industrial, que é de menor interesse aos habitantes. Nesses locais, com exceção de algumas funções, a maioria é de baixa remuneração e trabalho árduo, sendo assim tiveram de substituir os trabalhadores por máquinas, pois a maioria daqui não se sujeitaria à essas profissões, a população é composta em grande parte por pessoas ricas.
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  25. Ao meu lado está um homem negro, careca, de óculos e jaleco, parece ser alguém da fundação também. Está trocando mensagens no celular com sua esposa, que, pelo símbolo de seu sinal wifi, deve estar lá fora, no mundo "normal".
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  27. O casado guardou seu dispositivo, olhando para mim e passando os olhos rapidamente naquilo que escrevo, fechei rapidamente o diário e guardei-o em minha bolsa. "Você é o rapaz novo na primeira camada? Yendo Yihima, né?" Adivinhara quem eu era, seu tom de voz era o de um pai carinhoso, um amante da vida. "Sou eu mesmo, é um prazer, o senhor é?...". Puxou seu cartão da fundação, como se fosse um distintivo de policial, "Sou Kazac Folder, pesquisador e programador, trabalho no mesmo lugar que você agora." Disse guardando o cartão e colocando uma de suas mãos em minhas costas, acariciando-me levemente como um amigo. Ele continuou falando "Apesar das semelhanças, todos ficam meio perdidos após receberem essa promoção, então, se precisar, não se esqueça de pedir ajuda para mim, prometo que ajudarei de coração aberto." Sorria para mim, menor que ele, me sentia uma criança.
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  29. O silêncio dominou aquilo que restava do trajeto, Kazac no celular e eu escrevendo, era como se tivesse se introduzido somente para ser formal, e que não ajudaria em nada, apesar de que algo nele me gerou confiança. Eu não deveria ser tão facilmente conquistado assim, minha guarda fica sempre muito abaixada apesar de minha consciência saber todos os riscos, mas, sempre que alguém me mostra o mínimo de bondade, mesmo que falsa, acabo caindo nesta armadilha.
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  31. Chegamos, diversos funcionários desceram indo em direção aos elevadores em meio às fábricas. Finalmente eu estava lá, agora era de um nível superior e chegaria mais perto das verdades deste local, respirei fundo e dei um passo entre elevador e Fundação, o local era escuro, repleto de paredes metálicas e somente com luzes vermelhas, como se estivesse em constante blackout. Caminhei sem rumo pelo peculiar corredor em que me encontrava, por todos os lados haviam portas de ferro com tablets na frente, exibindo a câmera da sala que continha a criatura. "Parabéns pela promoção." Escutei e olhei para trás, vendo Nullus com um estranho bracelete de metal, semelhante à uma tornozeleira de prisioneiro, porém, com uma pedra idêntica a do colar do Wheatbur. "Obrigado, mas, o que faço agora?" Esperava que ele agisse como um amigo ao invés de um chefe, pois estava confuso, e não tinha para quem perguntar isso, aliás, Kazac me estendeu a mão, mas nem mesmo sei aonde ele está. "Somente me siga, temos uma série de anomalias que queremos que veja, vieram hoje." Piscou, liderando caminho. Obedeci, tirei minha caneta do bolso e fiquei apertando-a com a mão baixa, entre cintura e joelho, estava nervoso, pois, a última anomalia que analisei foi um total fracasso.
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  33. Ao chegar na sala, vi um homem de aparentemente quarenta anos sentado, era como de se esperar, outro pesquisador. Suas roupas eram todas pretas, ao invés de um jaleco, utilizava grande casaco, seu cabelo era longo, porém, não como o de Serallistis, era bem mais volumoso e bagunçado, sua barba era mal feita e seus olhos eram exprimiam algo entre cansaço e desprezo. "E aí moleque?" Cumprimentou-me, de modo não esperado vindo de um trabalhador dessa função, porém, melhor do que o silêncio. "Boa tarde." Respondi de modo totalmente diferente. A inteligência artificial nos observava encostado na porta, até que saira.
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  35. Guardas entraram pela porta do outro lado, miravam com seus fuzis para uma estranha abóbora flutuante. Troquei rapidamente olhares confusos com o outro, e nesse momento pude ler seu nome em um crachá, chamava-se William Carnage. Os seguranças se foram, fechando a porta para trancar a coisa alí.
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  37. "Você é Yendo, e você...Marty? Não, não é." A anomalia chutou, logo após a abóbora começou a brilhar um pouco, como se uma vela acendesse dentro de sí, "Bonjour", o vegetal mostrou classe. Peguei a prancheta e anotei que aquilo provavelmente eram dois seres, sendo que um era invisível e segurava abóbora. William ignorou quando foi chamado de Marty, somente encarando profundamente os olhos da abóbora e bebendo um grande gole de seu café. "Manequim, por favor." Disse no rádio e em pouco tempo trouxeram-o, "apalpe em volta da abóbora." Ordenei. A voz do invisível se revelou novamente, "Não vão nem ao menos nos responder? Humanos já tiveram mais classe...Apesar de eu ainda gostar de vocês.".
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  39. Carnage continuou sem dizer nem ao menos uma palavra, comparando-o novamente com Serallistis, acho este que está comigo bem pior, não fala nem mesmo o necessário, somente faz anotações em seu Laptop.
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  41. "Eu sinto algo segurando a abóbora como se fosse um bebê, e sinto gigantescas asas nesse ser humanóide." O sujeito de teste informava, ainda passando a mão para formular uma possível imagem do oculto. "Excelente, continue na cela no aguardo de mais ordens." O sujeito sentou-se no canto após minha fala, olhando para a coisa. "Doutor William, você sabe como essa coisa foi capturada e o que ela estava fazendo no mundo exterior?" Pedi informações, assim, poderia ter uma melhor ideia daquilo com que estávamos lidando e não tentar descobrir tudo sozinho como o infantil que fui no caso de Catshanof. "Ele se entregou para a Fundação, também segurava a mão de uma garota de aparentemente catorze anos, também contida aqui agora. Não sabemos aquilo que fazia, não sabiamos de sua existência." Seu tom de voz era antipático porém não sarcástico, ele era alguém difícil de se criar um perfil à primeira vista, não existiam reais palavra para descrever como agia, eram sempre meios termos. "Seria bom se vocês falassem conosco ao invés de ignorar-nos igual fazem com aquelas criaturas irracionais." A abóbora brilhava. "Certo, como previram, sou mesmo Yendo. A menina encontrada junto a vocês tem alguma relação com os mesmos?" Iniciei a entrevista, um pouco pelo medo de se estressarem e tentarem um ataque. "Sophie Nevermore é como uma filha, não veio de um gameta meu ou semelhante, é diferente dos filhos de vocês humanos, ela foi algo criado para mim, que eu escolhi amar." Mesmo com essa explicação, ainda era confuso. "E quem são vocês dois?". "Você poderia trazer um pouquinho de terra para que eu plante isto?" Erguia aquilo que segurava. Olhei para o homem ao meu lado, esperando um sinal positivo de que seria uma boa idéia levar terra, ele somente me encarou com seus olhos meio mortos, não precisava dele, pedi pelo rádio o que a anomalia exigia.
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  43. Quem trouxe um vaso foi o próprio Fundador, que ficou chocado ao ver o sujeito através do vidro, pudemos ouvir o som de algo se mexendo na sala, como se grandes asas se arrastassem na parede. "Quanto tempo, minha criança. Você cresceu tanto!" A criatura ficou surpresa, e eu também, aquilo tinha um vínculo com Agnor. "Erom Reven..." O idoso murmurou, logo abrindo a porta da sala de testes por conta própria e entrando lá, as borboletas em volta dele começaram a bater as asas de modo extremamente frenético, abaixou e colocou o vaso frente ao tal Erom. O ser procedeu em repousar aquilo que segurava no vaso, raízes começaram a sair como larvas, eram na verdade palha, então se organizavam abaixo do vegetal, aquela coisa estava tomando uma forma humanóide, por mais que fosse bem demorado. "Cordneir estaria orgulhoso de você, você trouxe o conceito que ele sonhava para a realidade." Parabenizou Agnor, deixando de ser invisível e mostrando uma forma, era um ser de manto preto, semelhante àquilo que dizem ser a morte, porém, seu capuz era pura escuridão em que somente habitavam dois brilhos roxos, suas mãos tinham as palmas quadradas e dedos grandes com garras afiadas, como os dedos de um corvo, tudo isso metálico, porém sem parecer de metal, ainda haviam suas duas grandes asas roxas escuras, com belíssimas plumas, e abaixo dessas duas, existia outro par menor saindo do mesmo lugar que as superiores. A outra coisa era um espantalho, com vestes roxas claras, tirou aquilo que cobria o rosto, mostrando sua cabeça, uma bola de palha, seus dois olhos cavados eram como dois buracos negros ardendo um amarelo como o fogo, a boca era aterrorizante, ia de um lado ao outro da face, dividindo quase toda a área da cabeça, possuia algumas costuras brancas estranhas acima da mandíbula, coisa que não sei exatamente o que é, dentro da cavidade bocal também era ardente como seus olhos, suas mãos eram somente tufos de palha que agiam como estranhos tentáculos.
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  45. "Meu pai de fato estaria orgulhoso, não somente de mim, mas também do meu irmão." O Wheatbur se aproximava, tocando as costas da criatura com asas de corvo, acho que estava tímido, mesmo no fundo querendo poder abraça-lo ou algo assim. "Gostaram do que fiz? Da primeira vez que me apresentei assim para meus alunos eles ficaram bastante surpresos!" Desconsiderando sua aparência, o espantalho parecia ser bondoso e um pouco bobo, como um tio tentando alegrar seus sobrinhos. "Para ser sincero, foi bem legal." Retribui a tentativa de animação. "Que falta de profissionalismo dos dois..." Por mais que realmente não fosse algo tão profissional, Carnage poderia ter ficado quieto. "Também não é de um grande profissionalismo fazer as anotações em seu Notebook pessoal para depois passar para nossos sistemas." Retrucou, no mesmo momento William se silenciou e fechou sua expressão. "Se acalmem crianças, não quero vê-las discutindo." A intervenção veio do alado, com sua calma voz. "Perdão, Erom." "Meu querido pequeno, eu gostaria de fazer um acordo, mas primeiro, presentearei-te com algo que creio que tenha perdido." Ele puxou de algum lugar do manto uma pequena caixa de música metálica, com relevos de corvos em árvores. "Oh Deus, quanto tempo!" Exclamou o homem, pegando-a e tocando sua melodia antiga, doce, porém estranha. "Esta é a caixa de música que deu à eles quando Cord morreu? Ainda acho incrível o conceito de uma dimensão sonhada compartilhada." O ser de palha tagalerou. "Sim, quando eu ou Marty tocavamos isso e dormiamos, sonhavamos com um grande castelo antigo, em uma noite azul com uma lua cheia tão grande que parecia estar ao nosso lado, lá sempre estava Reven, que conversava conosco e de certo modo até nos cuidava, principalmente nas questões psicológicas e dúvidas de criança." "Seu pai pediu antes de sua morte para que eu ajudasse e cuidasse um pouco de vocês dois, e eu jamais poderia negar o pedido de um velho amigo."
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  47. Tudo aquilo estava muito estranho, eu não iria anotar a conversa pois prezava pela privacidade dos Wheatbur, em contraste a mim, os dedos do outro pesquisador não paravam, digitavam em uma velocidade furiosa.
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  49. "Continuando no rumo certo dessa conversa, qual seria tal acordo?" Agnor admirava a caixa que recebera, se aquilo fosse um plano do ser para amolecer o coração do Fundador, havia funcionado. "Bom, você sabe da faculdade Nevermore, não? Desde que eu abandonei o comitê dos Deuses, vim conviver com aqueles que sempre amei, os humanos, e para eles trouxe o conhecimento oculto, apagado pelo Deus maior, Cillistis. Na faculdade, passei toda minha sabedoria, ou quase toda, existem coisas perigosas demais para a mente humana...Resumidamente, você sabe a situação do mundo lá fora, eu gostaria de lhe pedir um local para instalar minha faculdade aqui, e também trazer meus alunos, eu, Dansis e Sophie." Minha mente entrava em confusão com todas essas informações passadas por Erom, conhecimento oculto? Deuses? Cillistis? Aquela coisa diante de nós, aquilo era um Deus?
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  51. "O que ganhamos em troca por cedermos local?" Outra intervenção de Carnage, esse homem era de fato sem medo de ser demitido. "Doutor William, talvez não tenha respeito por mim, mas, exijo mais respeito por Vossa Divindade." Novamente, o idoso em atrito com o provocador. "Tão confiante de sí que a própria confiança não te levará a lugar algum." O espantalho demonstrava estresse. "Senhor Carnage, creio que não possa ainda compreender sobre tal assunto, pois, não tens ideia com a complexidade deste trabalho, mas, eu auxiliarei no Projeto A.M.O.N, uma criatura do cosmos, ainda intacta, seria de extrema utilidade." Quanto mais aquela criatura semelhante a corvo falava, menos eu entendia. "Eu não acredito em você, não acredito em Deuses, eu posso morrer para tí nesse exato momento, mas isso só provaria meu ponto. Se vocês são onipotentes, onipresentes e oniscientes, por que o mundo está nesse estado? Vocês simplesmente só querem brincar conosco, são pedaços do mais pútrido lixo." Não era somente falta de medo de ser demitido, aquele homem não demonstrava temor algum, desafiava os dois com total serenidade, como se estivesse brigando com crianças. "Isso só mostra o quão pouco compreende as coisas...Filho, o mundo realmente está uma lástima, mas não sou eu quem cuido disso, somente um Deus é tudo aquilo que descreveu, os outros três são criaturas poderosas, porém não perfeitas, cada um de nós cuidava de algo, Cillistis é o Deus de tudo, também existe Deusa da morte, o Deus da natureza e por fim, eu, o Deus da mente." Sempre fui um agnóstico, nunca fui certo de que havia algo no céu, contudo, aquelas frases me impactavam como uma cortante verdade. "Parece uma história boba, quem é o espantalho com você então?" O doutor foi direto. "Eu sou Dansis Thuot, não sou uma divindade, estou um nível abaixo, em específico, o terceiro na escala das entidades, fui criado pelo Deus maior para que eu parasse Erom Reven, não é a toa que sou um espantalho espanta corvos...Porém, chegando a ele percebi que podia pensar sozinho, e esse foi o conhecimento mais oculto de minha vida de servo daquele Cipher, maravilhado com tudo que descobri, me juntei à Nevermore, hoje cuido de muito no local e sou o melhor amigo de Reven." Enquanto contava, entusiasmava-se. "Aceito de bom grado o acordo!" O antigo assunto ressurgiu, com o fundador esticando a mão para o ser escuro. "Eu sabia que poderia confiar em tí, pequeno." Apertaram as mãos, acordo selado.
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  53. William simplesmente se levantou, desligando seu computador e saindo, "Yendo querido, será que poderia tirar minha pequena da sala onde está?" Seu pedido era gentil, mas eu não possuía permissão para aquilo, ao menos até Agnor abrir a boca. "Aproveite e leve ela para algum lugar bom, apresente nossa cidade e faça com que ela se sinta bem aqui! Eu lhe pago a hora extra." Meu chefe complementou. "Em qual sala a senhorita Nevermore está?", "Tenho certeza que não precisa ser tão formal assim com ela." Thuot de certo modo corrigiu-me. "Ela está na quarta sala do corredor quarenta e sete, pegue um VLT, pois o caminho é longo." Agnor me informava. Confirmei com a cabeça e passei pela porta.
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  55. Não é somente a cidade que é grande, a primeira camada é igualmente gigantesca, por isso, aqui existem esses veículos para transporte mais rápido, se caminhassemos por todo o complexo acabariamos desmaiando de cansaço, sei disso pois a segunda camada é parecida. Esperando pelo VLT estava o rebelde pesquisador, sentado em um banco e focado em seu computador, não sabia se deveria me aproximar, pois, aquele sujeito me assustava um pouco com toda a grosseria que presenciei. "Yendo?" Seus dedos apressados pelo teclado pararam, sem olhar para trás sentiu minha presença. "Sim, senhor." Estava tenso, tremia um pouco. O nosso transporte chegou, ele mais uma vez fechou aquilo que carregava consigo e já entrando disse "Sente-se comigo rapaz, precisamos conversar um pouco." Obedeci e fiquei ao lado dele, minhas mãos suavam. "Você confia mesmo naquele velho?" Referia-se ao Wheatbur. "Eu não tenho certeza..." "Você é novato aqui, esse lugar é bizarro, se quiser se manter uma pessoa sã e ter certeza que tudo ficará bem, não poderá somente ouvir ordens." Ele soava como um adolescente rebelde, eu tentava não dar ouvidos ao mesmo, porém, sabia que aquilo tinha um fundo verdadeiro. "Você viu aquela coisa? Aquela aberração parecia a morte, também tinha aquele espantalho escroto, e o Wheatbur tratando eles como se fossem família, eu trabalho para a humanidade, eu não vou contribuir com nem mesmo um doce para esses demônios." Continuou seu discurso. "É realmente algo estranho." Não queria me opor à ele, imagino só como seria se ele descobrisse que eu estava obedecendo as ordens de levar a tal de Sophie para passear. Eu havia chegado à meu destino, e o homem percebera, "Fique atento, criança." Foram suas palavras de despedida.
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  57. Fui andando pelo corredor e observando a numeração das portas, abrindo a quarta e me deparando com uma pesquisadora, "Tenho ordens para retirar a garota daqui." Me arrependo um pouco pelo tom de voz, pois talvez tenha soado rude. Segundos após realizei que aquela era Ekyla, que se virou para mim com uma expressão de contentamento "Toda sua." "Ekyla? Você também foi promovida?" Estava surpreso, achei que somente eu tinha ido para a primeira camada de ontem para hoje. "Meu pai ficou preocupado que nos distanciassemos muito, achou que seria melhor me trazer para perto de tí aqui nessa camada." Seus graciosos olhos me prendiam, eu estava completamente apaixonado ao ponto de querer somente ficar olhando para a mesma. "Vim levar a garota daqui para passear um pouco, seu pai mandou que eu apresentasse a cidade para ela, ela só tem carorze anos, sabe?" Estava preocupado que ela confundisse aquilo com algo romântico, soaria muito estranho avisar para ela que simplesmente estaria saindo com a garota. "Ah, ok, só tirar ela daí."
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  59. Quando olhei pelo vidro, pude ver a garota, seu cabelo era liso, longo e rosa, possuía um grande coque no lado direito, preso com um laço vermelho. Seus olhos eram diferentes de qualquer olho humano, primariamente eram roxos, contudo, pareciam refletir o universo com suas milhares de galáxias, não é uma metáfora, era realmente isto. Aquilo que utilizava era com certeza o uniforme Nevermore, uma camisa social branca, uma gravata vermelha, casaco pequeno roxo escuro e uma saia verde escuro.
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  61. "Yendo?" A Nevermore disse meu nome, provavelmente já me esperava. "É um prazer Sophie, eu vim te levar para sair um pouco." "Já estava cansada de ficar presa aqui, se bem que Ekyla estava sendo uma excelente companhia!" Era do tipo cheio de elogios, conquistadora. Ekyla soltou uma risadinha de cortejo, não falando nada. Passei o cartão e liberei-a, a mesma veio andando até mim com as mãos no bolso do casaco, "Vamos para onde?" "Quer ir para uma sorveteria?" Propus, por mais que estivesse frio lá fora de manhã, nesse meio tempo o clima já havia mudado, e eu estava com um calor infernal, o clima aqui não é muito estável. "Huhum, pode ser! Eu só preciso pegar dinheiro com o papai." A expressão no seu rosto era de felicidade, uma felicidade ainda infantil, não tão pura quanto a de Leny, mas, mesmo assim, real. "Eu irei pagar, relaxe." Puxei meu cartão, mostrando a parte digital dele com minha conta bancária, com meu rosto adornado como o dela, mesmo que de um modo mais falso. "Lá terá milkshake de morango?" Agarrou minha mão, se encostando em mim. "Sim, lá tem de tudo basicamente." Segurei igualmente a mão dela, pude perceber olhares disfarçados da mulher de cabelos azuis.
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  63. O elevador para descida era próximo dali, então era aceitável ir a pé, foi isso que fizemos. Descemos até embaixo e pegamos um metro para irmos tomar o milkshake. "Você tem um cheiro bom, doutor, que perfume usa?" Acariciava meu ego, ninguém havia dito sequer uma palavra de meu perfume antes, era bom ouvir isto. "É da Glydeneau , obrigado por reparar." "Essa marca é cara! Os shampoos que uso também são Glydeneau, tem um cheiro ótimo!" Puxara um pouco de seu cabelo para a frente do nariz e cheirara o mesmo enquanto falava, no fim soltando. "É uma pena que eu não consiga sentir daqui, meu olfato é péssimo." Enquanto falava isso, a garota de cabelos rosas pegou uma parte longa deles, que iam até a cintura, e estendeu para mim como se fosse uma toalha ou semelhante, "Não seja por isso, o importante mesmo é que tem Olfato pelo menos, pode cheira-lo!" Aquilo era definitivamente estranho, fiquei um pouco inseguro mas para agrada-la senti o cheiro do mesmo, possuía um cheiro tão doce que era de certo modo saboroso. "Tem um cheiro delicioso, você cuida bem mesmo dele." "Eu posso sentir o cheiro do seu cabelo também?" Aquilo era ainda mais estranho, mas não podia recusar, abaixei minha cabeça na frente dela, que encostou-se. "Também tem um cheiro excelente, é algum shampoo da mesma marca?" "Não, não, nisso eu não gasto tanto dinheiro, na realidade, nem cuido muito bem do meu cabelo." "Seu cabelo já é lindo normalmente, você deveria cuidar mais dele." Apesar de me elogiar tanto quanto, era de um jeito bem diferente de Delirium, ela parecia querer me deixar mais feliz e conquistar minha confiança ao invés de querer me "cantar", apesar de eu entender o que se passava com o garoto e gostar daquilo, era inegavelmente fora do comum.
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  65. No momento em que chegamos, Sophie desceu comigo agarrada. Ela era extremamente social, enquanto eu esperava na gigantesca fila para pegar as duas bebidas geladas, ela conversou com um garoto da mesma idade que ela, um idoso e uma grávida, todos esses ela nunca havia visto antes, isso em trinta minutos até que chegasse minha vez de pedir, não tenho ideia do por que tanta demora. Ainda me fascino com o jeito dela, ela fez carinho na barriga de uma grávida, deu conselhos para o garoto, ajudou o idoso com alguma coisa no celular, sua disposição social era algo que eu nunca teria, ainda devemos considerar que ela é uma suposta "anomalia".
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  67. Nós dois nos afastamos um pouco de onde compramos os líquidos, indo para um local onde podíamos nos apoiar e ver o mar, mesmo que fosse artificial. Tomávamos tranquilamente até que ela viu uma criança pequena chorando, se aproximou para saber o que se passava e em um piscar de olhos estava dando um gole do que tomava para o outro, admirava aquilo com um pouco de admiração e ao mesmo tempo confusão, aquilo que mais sinto. Quando a criança se foi e a Nevermore se aproximou de mim mais uma vez, deixei minha dúvida sair em voz alta "Sophie, você é tão bondosa, de onde vem tudo isso?" "Eu amo os humanos, diferente daquele maldito ser de um olho só, são a mais bela criação, eu não consigo realmente descrever o que sinto, estar perto de vocês me faz mais feliz do que qualquer coisa no comitê dos Deuses, e eu também quero vê-los felizes...Eu digo isso sem pensar muito, pois, realmente não sei o que dizer sobre esse meu sentimento, acho que apesar de tanto estudo dos humanos, os sentimentos nunca serão explicados, nem mesmo para os Deuses." "Eu queria ser um pouco como você..." "Você é tão amoroso quanto, você só não percebe...Eu ainda tenho um ódio profundo em meu peito, mas você nunca realmente odiou alguém, você somente amou...Eu digo isso por que eu lembro bem de você, é uma pena que não se lembre de mim." "Espera, o que você sabe sobre mim?" Eu estava prestes a descobrir mais sobre quem eu deveria mais saber porém tão pouco conhecia. "Eu sou uma mensageira, ou ao menos era, acho que é meu dever não atrapalhar no rumo da sua jornada por autoconhecimento...Me lembro pouco de você aqui na terra por um encontro ou outro que tivemos comigo nessa forma humana, banida do comitê de Deuses, eu não sou uma real criatura, pois não tenho poder algum, eu sou como você ou Delirium, uma humana qualquer agora..." Então, a "filha" de Erom é sua mensageira, ou melhor, era uma mensageira que veio a terra, como o alado. Considerei que apesar de me conhecer um pouco, não seria de grande importância forçar ela a dizer algo, pois, como disse, era somente uma mortal nessa vida. Mas, mesmo assim, eu conhecia uma mensageira antes...E se aquela máscara que tenho for real? Se Nullus tiver mentido para mim? E se ela me deu aquilo?...
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  69. Após terminarmos o milkshake, voltamos para a fundação, a secretaria do local havia me dito que Linda havia deixado algo para mim, era uma caixa de bombons, dei alguns para Sophie e levei a ao Agnor, que a levaria para Reven. Perguntei aonde Linda estava, e me responderam que era na primeira camada, corredor oitenta e quatro, fui até lá e...me deparei com a cela de Howard. O procedimento não era correto, mas abri a janela de lá e vi algo nojento, Linda e King no canto da sala, os dois se beijavam intensamente e transavam de modo selvagem, como aquela mulher e homem que vi antes, que provavelmente eram Marty e Ophelia. Minha amiga havia se envolvido demais com o cliente, que era o próprio capeta, eu fechei rapidamente a cortina e sai da sala, com tremendo asco. Encontrei Serallistis no meio do caminho, "Viu demais, não? Linda fez um acordo conosco, ela assumiria todos os casos justiciais da Fundação gratuitamente, contudo, pediu em troca a possibilidade de visitar o sujeito escritor quando quisesse. Acredito que se conheciam há muito tempo, estudavam juntos e essas coisas, todos nós sabemos que os dois tem um caso." Ele me explicou tudo, eu não esperava tal comportamento da advogada, somente disse "ah." e fui embora.
  70.  
  71. Em casa vi um bilhete em cima da mesa "Abra a geladeira.", nela havia um bolo de festas feito por Osir, "Parabéns pela promoção!" Estava escrito nele. Eu comi um pouco e fiquei sozinho em casa pelo resto do dia, relato isso até tarde da noite, quando já estou cansado e mal penso direito, o que é bom, já que não fico tão paranóico. O dia foi bom, apesar de quando voltei do passeio, tudo voltou ao tédio. Irei fazer o mesmo de ontem, ler o livro sobre mensageiros apaixonados e dormir.
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  73. Boa noite, diário.
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