Advertisement
Not a member of Pastebin yet?
Sign Up,
it unlocks many cool features!
- PREFÁCIO
- SER LEVE E LÍQUIDO
- Interrupção, incoerência, surpresa são as condições comuns de nossa vida. Elas se
- tornaram mesmo necessidades reais para muitas pessoas, cujas mentes deixaram de
- ser alimentadas
- por outra coisa que não mudanças repentinas e estímulos constantemente
- renovados ... Não podemos mais tolerar o que dura. Não sabemos mais fazer com que
- o tédio
- dê frutos.
- Assim, toda a questão se reduz a isto: pode a mente humana
- dominar o que a mente hmnana criou?
- Paul Valéry
- "Fluidez" é a qualidade de líquidos e gases. O que os distingue dos sólidos, como a
- Enciclopédia britdnica, com a autoridade que tem, nos informa, é que eles "não
- podem suportar uma força tangencial ou deformante quando imóveis" e assim "sofrem
- uma constante mudança de forma quando submetidos a tal tensão'
- Essa contínua e irrecuperável mudança de posição de uma parte do material em
- relação a outra parte quando sob pressão deformante constitui o fluxo, propriedade
- característica
- dos fluidos. Em contraste, as forças deformantes num sólido torcido ou flexionado se
- mantêm, o sólido não sofre o fluxo e pode voltar à sua forma original.
- Os líquidos, uma variedade dos fluidos, devem essas notáveis qualidades ao fato de
- que suas "moléculas são mantidas num arranjo ordenado que atinge apenas poucos
- diâmetros moIecu1ares' enquanto "a variedade de comportamentos exibida pelos
- sólidos é um resultado direto do tipo de liga que une os seus átomos e dos arranjos
- estruturais destes' "Liga", por sua vez, é um termo
- 7
- 8 Modernidade Líquida
- Prefácio 9
- que indica a estabilidade dos sólidos - a resistência que eles "opõem à separação dos
- átomos'
- Isso quanto à Enciclopedia brit&nica - no que parece uma tentativa de oferecer
- "fluidez" como a principal metáfora para o estágio presente da era moderna.
- O que todas essas características dos fluidos mostram, em linguagem simples, é que
- os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade.
- Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os
- sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto,
- diminuem
- a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os
- fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos
- (e propensos) a mudá-la; assim, para eles, o que conta é o tempo, mais do que o
- espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas "por um
- momento'
- Em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para os líquidos, ao contrário, o tempo
- é o que importa. Ao descrever os sólidos, podemos ignorar inteiramente o tempo;
- ao descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro. Descrições de
- líquidos são fotos instantâneas, que precisam ser datadas.
- Os fluidos se movem facilmente. Eles "fluem", "escorrem", "esvaem-se", "respingam",
- "transbordam", "vazam", "inundam", "borrifam", "pingam"; são "filtrados", "destilados";
- diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos - contornam certos obstáculos,
- dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. Do encontro com sólidos
- emergem intactos, enquanto os sólidos que encontraram, se permanecem sólidos, são
- alterados - ficam molhados ou encharcados. A extraordinária mobilidade dos fluidos
- é o que os associa à idéia de "leveza' Há líquidos que, centímetro cúbico por
- centímetro cúbico, são mais pesados que muitos sólidos, mas ainda assim tendemos a
- vê-los como mais leves, menos "pesados" que qualquer sólido. Associamos "leveza"
- ou "ausência de peso" à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto
- mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos.
- Essas são razões para considerar "fluidez" ou "liquidez" como metáforas adequadas
- quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na
- história da modernidade.
- Concordo prontamente que tal proposição deve fazer vacilar quem transita à vontade
- no "discurso da modernidade" e está familiarizado com o vocabulário usado
- normalmente
- para narrar a história moderna. Mas a modernidade não foi um processo de
- "liquefação" desde o começo? Não foi o "derretimento dos sólidos" seu maior
- passatempo e
- principal realização? Em outras palavras, a modernidade não foi "fluida" desde sua
- concepção?
- Essas e outras objeções semelhantes são justificadas, e o parecerão ainda mais se
- lembrarmos que a famosa frase sobre "derreter os sólidos", quando cunhada há um
- século e meio pelos autores do Manfrsto comunista, referia-se ao tratamento que o
- autoconfiante e exuberante espírito moderno dava à sociedade, que considerava
- estagnada
- demais para seu gosto e resistente demais para mudar e amoldar-se a suas ambições
- - porque congelada em seus caminhos habituais. Se o "espírito" era "moderno", ele
- o era na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emancipada
- da "mão morta" de sua própria história - e isso só poderia ser feito derretendo
- os sólidos (isto é, por definição, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e
- fosse infenso à sua passagem ou imune a seu fluxo). Essa intenção clamava, por
- sua vez, pela "profanação do sagrado": pelo repúdio e destronamento do passado, e,
- antes e acima de tudo, da "tradição" - isto é, o sedimento ou resíduo do passado
- no presente; clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenças e
- lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à "liquefação'
- Lembremos, no entanto, que tudo isso seria feito não para acabar de uma vez por
- todas com os sólidos e construir um admirável mundo novo livre deles para sempre,
- mas para limpar a área para novos e aperfeiçoados s6/idos-, para substituir o conjunto
- herdado de sólidos deficientes e defeituosos por outro conjunto, aperfeiçoado
- e preferivelmente perfeito, e por isso não mais alterável. Ao ler o Ancien Régime de
- Tocquevillc, podemos nos perguntar até que ponto os "sólidos encontrados" não
- teriam sido desprezados, condenados e destinados à liquefação por já estarem enferru
- lo Modernidade Líquida
- Prefácio ii
- jados, esfarelados, com as costuras abrindo; por não se poder confiar neles. Os
- tempos modernos encontraram os sólidos pré- modernos em estado avançado de
- desintegração;
- e um dos motivos mais fortes por trás da urgência em derretê-los era o desejo de, por
- uma vez, descobrir ou inventar sólidos de solidez duradoura, solidez em que
- se pudesse confiar e que tornaria o mundo previsível e, portanto, administrável.
- Os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades
- tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos,
- impediam os movimentos e restringiam as iniciativas. Para poder construir seriamente
- uma nova ordem (verdadeiramente sólida!) era necessário primeiro livrar-se do
- entulho com que a velha ordem sobrecarregava os construtores. "Derreter os sólidos"
- significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigações "irrelevantes" que
- impediam a via do cálculo racional dos efeitos; como dizia Max Weber, libertar a
- empresa de negócios dos grilhões dos deveres para com a família e o lar e da densa
- trama das obrigações éticas; ou, como preferiria Thomas Carlyle, dentre os vários
- laços subjacentes às responsabilidades humanas mútuas, deixar restar somente o
- "nexo dinheiro' Por isso mesmo, essa forma de "derreter os sólidos" deixava toda a
- complexa rede de relações sociais no ar - nua, desprotegida, desarmada e exposta,
- impotente para resistir às regras de ação e aos critérios de racionalidade inspirados
- pelos negócios, quanto mais para competir efetivamente com eles.
- Esse desvio fatal deixou o campo aberto para a invasão e dominação (como dizia
- Weber) da racionalidade instrumental, ou (na formulação de Karl Marx) para o papel
- determinante da economia: agora a "base" da vida social outorgava a todos os outros
- domínios o estatuto de "superestrutura" - isto é, um artefato da "base' cuja
- única função era auxiliar sua operação suave e contínua. O derretimento dos sólidos
- levou à progressiva libertação da economia de seus tradicionais embaraços políticos,
- éticos e culturais. Sedimentou uma nova ordem, definida principalmente em termos
- econômicos. Essa nova ordem deveria ser mais "sólida" que as ordens que substituía,
- porque, diferentemente delas, era imune a desafios por qualquer ação que não fosse
- econômica. A
- maioria das alavancas políticas ou morais capazes de mudar ou reformar a nova
- ordem foram quebradas ou feitas curtas ou fracas demais, ou de alguma outra forma
- inadequadas
- para a tarefa. Não que a ordem econômica, uma vez instalada, tivesse colonizado,
- reeducado e convertido a seus fins o restante da vida social; essa ordem veio a
- dominar a totalidade da vida humana porque o que quer que pudesse ter acontecido
- nessa vida tornou-se irrelevante e ineficaz no que diz respeito à implacável e contínua
- reprodução dessa ordem.
- Esse estágio na carreira da modernidade foi bem descrito por Claus Offe (em "A utopia
- da opção zero' publicado originalmente em 1987 em Praxis international): as
- sociedades "complexas se tornaram rígidas a tal ponto que a própria tentativa de
- refletir normativamente sobre elas ou de renovar sua 'ordem isto é, a natureza da
- coordenação dos processos que nelas têm lugar, é virtualmente impedida por força de
- sua própria futilidade, donde sua inadequação essencial' Por mais livres e voláteis
- que sejam os "subsistemas" dessa ordem, isoladamente ou em conjunto, o modo como
- são entretecidos é "rígido, fatal e desprovido de qualquer liberdade de escolha'
- A ordem das coisas como um todo não está aberta a opções; está longe de ser claro
- quais poderiam ser essas opções, e ainda menos claro como uma opção
- ostensivamente
- viável poderia ser real no caso pouco provável de a vida social ser capaz de concebê-
- la e gestá-la. Entre a ordem como um todo e cada uma das agências, veículos
- e estratagemas da ação proposital há uma clivagem - uma brecha que se amplia
- perpetuamente, sem ponte à vista.
- Ao contrário da maioria dos cenários distópicos, este efeito não foi alcançado via
- ditadura, subordinação, opressão ou escravização; nem através da "colonização"
- da esfera privada pelo "sistema' Ao contrário: a situação presente emergiu do
- derretimento radical dos grilhões e das algemas que, certo ou errado, eram suspeitos
- de limitar a liberdade individual de escolher e de agir. A rigidez da ordem é o artefato e
- o sedimento da liberdade dos agentes humanos. Essa rigidez é o resultado
- de "soltar o freio": da desregulamentação, da liberalização, da "flexibilização' da
- "fluidez" crescente, do descontrole dos mercados financeiro, imobiliário e
- 12 Modernidade Líquida
- Prefácio 13
- de trabalho, tornando mais leve o peso dos impostos etc. (como Offe observou em
- "Amarras, algemas, grades", publicado original- mente em 1987); ou (para citar Richard
- Senett em Flesh and Stone) das técnicas de "velocidade, fuga, passividade" - em
- outras palavras, técnicas que permitem que o sistema e os agentes livres se
- mantenham
- radicalmente desengajados e que se desencontrem em vez de encontrar-se. Se o
- tempo das revoluções sistêmicas passou, é porque não há edificios que alojem as
- mesas
- de controle do sistema, que poderiam ser atacados e capturados pelos revolucionários;
- e também porque é terrivelmente dificil, para não dizer impossível, imaginar
- o que os vencedores, uma vez dentro dos edjficios (se os tivessem achado), poderiam
- fazer para virar a mesa e pôr fim à miséria que os levou à rebelião. Ninguém
- ficaria surpreso ou intrigado pela evidente escassez de pessoas que se disporiam a ser
- revolucionários: do tipo de pessoas que articulam o desejo de mudar seus planos
- individuais como projeto para mudar a ordem da sociedade.
- A tarefa de construir uma ordem nova e melhor para substituir a velha ordem
- defeituosa não está hoje na agenda - pelo menos não na agenda daquele domínio em
- que
- se supõe que a ação política resida. O "derretimento dos sólidos' traço permanente da
- modernidade, adquiriu, portanto, um novo sentido, e, mais que tudo, foi redirecionado
- a um novo alvo, e um dos principais efeitos desse redirecionamento foi a dissolução
- das forças que poderiam ter mantido a questão da ordem e do sistema na agenda
- política. Os sólidos que estão para ser lançados no cadinho e os que estão derretendo
- neste momento, o momento da modernidade fluida, são os elos que entrelaçam
- as escolhas individuais em projetos e ações coletivas - os padrões de comunicação e
- coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado,
- e as ações políticas de coletividades humanas, de outro.
- Numa entrevista a Jonathan Rutherford no dia três de fevereiro de 1999, Ulrich Beck
- (que alguns anos antes cunhara o termo "segunda modernidade" para conotar a fase
- marcada pela modernidade "voltando-se sobre si mesma': a era da assim chamada
- "modernização da modernidade") fala de "categorias zumbi" e "instituições zumbi': que
- estão "mortas e ainda vivas' Ele mencio n
- a família, a classe e o bairro como principais exemplos do novo fenômeno. A família,
- por exemplo:
- Pergunte-se o que é realmente uma família hoje em dia? O que sigriifica? E claro que
- há crianças, meus filhos, nossos filhos. Mas, mesmo a paternidade e a maternidade,
- o núcleo da vida familiar, estão começando a se desintegrar no divórcio ... Avós e avôs
- são incluídos e excluídos sem meios de participar nas decisões de seus filhos
- e filhas. Do ponto de vista de seus netos, o significado das avós e dos avôs tem que
- ser determinado por decisões e escolhas individuais.
- O que está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição e realocação dos
- "poderes de derretimento" da modernidade. Primeiro, eles afetaram as instituições
- existentes, as molduras que circunscreviam o domínio das ações-escolhas possíveis,
- como os estamentos hereditários com sua alocação por atribuição, sem chance de
- apelação. Configurações, constelações, padrões de dependência e interação, tudo isso
- foi posto a derreter no cadinho, para ser depois novamente moldado e refeito;
- essa foi a fase de "quebrar a forma" na história da modernidade inerentemente
- transgressiva, rompedora de fronteiras e capaz de tudo desmoronar. Quanto aos
- indivíduos,
- porém - eles podem ser desculpados por ter deixado de notá-lo; passaram a ser
- confrontados por padrões e figurações que, ainda que "novas e aperfeiçoadas' eram
- tão
- duras e indomáveis como sempre.
- Na verdade, nenhum molde foi quebrado sem que fosse sub stituído por outro; as
- pessoas foram libertadas de suas velhas gaiolas apenas para ser admoestadas e
- censuradas
- caso não conseguissem se realocar, através de seus próprios esforços dedicados,
- contínuos e verdadeiramente infindáveis, nos nichos pré-fabricados da nova ordem:
- nas classes, as molduras que (tão intransigentemente como os estamentosjá
- dissolvidos) encapsulavam a totalidade das condições e perspectivas de vida e
- determinavam
- o âmbito dos projetos e estratégias realistas de vida. A tarefa dos indivíduos livres era
- usar sua nova liberdade para encontrar o nicho apropriado e ali se acomodar
- e adaptar: seguindo fielmente as regras e modos de conduta identificados como
- corretos e apropriados para aquele lugar.
- 14 Modernidade Líquida
- Prefácio 15
- São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos
- selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar
- depois
- guiar, que estão cada vez mais em falta. Isso não quer dizer que nossos
- contemporâneos sejam guiados tão somente por sua própria imaginação e resolução e
- sejam livres
- para construir seu modo de vida a partir do zero e segundo sua vontade, ou que não
- sejam mais dependentes da sociedade para obter as plantas e os materiais de
- construção.
- Mas quer dizer que estamos passando de uma era de "grupos de referência"
- predeterminados a uma outra de "comparação universal' em que o destino dos
- trabalhos de
- autoconstrução individual está endêmica e incuravelmente subdeterminado, não está
- dado de antemão, e tende a sofrer numerosas e profundas mudanças antes que esses
- trabalhos alcancem seu único fim genuíno: o fim da vida do indivíduo.
- Hoje, os padrões e configurações não são mais "dados' e menos ainda "autoevidentes";
- eles são muitos, chocando-se entre si e contradizendo-se em seus
- comandos conflitantes,
- de tal forma que todos e cada um foram desprovidos de boa parte de seus poderes de
- coercitivamente compelir e restringir. E eles mudaram de natureza e foram
- reclassificados
- de acordo: como itens no inventário das tarefas individuais. Em vez de preceder a
- política- vida e emoldurar seu curso futuro, eles devem segui-la (derivar dela),
- para serem formados e reformados por suas flexões e torções. Os poderes que
- liquefazem passaram do "sistema" para a "sociedade' da "política" para as "políticas
- da vida" - ou desceram do nível "macro" para o nível "micro" do convívio social.
- A nossa é, como resukadn, um rjoidivi.daalizada e privatizada da modernidade, e o pp
- da trama dos padrões e -a principalmente sobre os ombrí do.jndjxíduns. Cli ou
- vez ilaliquefação dos padrões de dqaendudaeinterao. Eles são agora maleáveis a um
- ponto que ageraespasassada.srpeijmentaram e nem poderiam imagin&r: mas, com
- todos
- os fluidos ele não mantêm a forma por muitojçrnpo. DarJ.horma é mais fácil que
- mantê-los nela. Os sólid.oara sçmpre. Manter os fluidos em uma vigilância constante
- e esforço perpé tu
- - e mesmo assim o sucesso do esforço é tudo menos inevitável.
- smsuhstinianarofunda
- adïemo da "modernidade fluida" pioiuziiina
- O fato de que a estrutura sistêmica seja remota
- e inalcançável, aliado ao estado fluido e não-estruturado do cenário imediato da
- política-vida, muda aquela condição de um modo
- radical e requer que repensemos os velhos conceitos que costumavam cercar suas
- narrativas. Como zumbis, esses conceitos são hoje
- mortos-vivos. A questão prática consiste em saber se sua ressurreição, ainda que em
- nova forma ou encarnação, é possível; ou - se não for - como fazer com que eles
- tenham um enterro decente
- e eficaz.
- Este livro se dedica a essa questão. Foram selecionados para exame cinco dos
- conceitos básicos em torno dos quais as narrativas ortodoxas da condição humana
- tendem
- a se desenvolver: a emancipação, a individualidade, o tempo/espaço, o trabalho e a
- comunidade. Transformações sucessivas de seus significados e aplicações práticas
- são exploradas (ainda que de maneira muito fragmentária e preliminar) com a
- esperança de salvar os bebês do banho desta torrente de água poluída.
- A modernidade significa muitas coisas, e sua chegada e avanço podem ser aferidos
- utilizando-se muitos marcadores diferentes. Uma característica da vida moderna e
- de seu moderno entorno se impõe, no entanto, talvez como a "diferença que faz a
- diferença"; como o atributo crucial que todas as demais características seguem. Esse
- atributo é a relação cambiante entre espaço e tempo.
- A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida
- e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias distintas e mutuamente
- independentes
- da estratégia e da ação; quando deixam de ser, como eram ao longo dos séculos pré-
- modernos, aspectos entrelaçados e dificilmente distinguíveis da experiência vivida,
- presos numa estável e aparentemente invulnerável correspondência biunívoca. Na
- modernidade, o tempo tem histdria, tem história por causa de sua "capacidade de
- carga'
- perpetuamente em expansão - o alongamento dos trechos do espaço que unidades de
- tempo permitem "passar' "atravessar'
- 16 Modernidade Líquida
- Prefácio 17
- "cobrir" - ou conquütar. O tempo adquire história uma vez que a velocidade do
- movimento através do espaço (diferentemente do espaço eminentemente inflexível,
- que
- não pode ser esticado e que não encolhe) se torna uma questão do engenho, da
- imaginação e da capacidade humanas.
- A própria idéia de velocidade (e mais ainda a de aceleração), quando se refere à
- relação entre tempo e espaço, supõe sua variabilidade, e dificilmente teria qualquer
- significado se não fosse aquela uma relação verdadeiramente variável, se fosse um
- atributo da realidade inumana e pré-humana e não uma questão de inventividade e
- resolução humanas, e se não sc lançasse para muito além da estreita gama de
- variações a que as ferramentas naturais da mobilidade - as pernas humanas ou
- eqüinas
- - costumavam confinar os movimentos dos corpos pré-modernos. Quando a distância
- percorrida numa unidade de tempo passou a depender da tecnologia, de meios
- artificiais
- de transporte, todos os limites à velocidade do movimento, existentes ou herdados,
- poderiam, em princípio, ser transgredidos. Apenas o céu (ou, como acabou sendo
- depois, a velocidade da luz) era agora o limite, e a modernidade era um esforço
- contínuo, rápido e irrefreável para alcançá-lo.
- Graças a sua flexibilidade e expansividade recentemente adquiridas, o tempo moderno
- se tornou, antes e acima de tudo, a arma na conquista do espaço. Na moderna luta
- entre tempo e espaço, o espaço era o lado sólido e impassível, pesado e inerte, capaz
- apenas de uma guerra defensiva, de trincheiras - um obstáculo aos avanços do
- tempo. O tempo era o lado dinâmico e ativo na batalha, o lado sempre na ofensiva: a
- força invasora, conquistadora e colonizadora. A velocidade do movimento e o acesso
- a meios mais rápidos de mobilidade chegaram nos tempos modernos à posição de
- principal ferramenta do poder e da dominação.
- Michel Foucault utilizou o projeto do Panóptico de Jeremy Bentham como
- arquimetáfora do poder moderno. No Panóptico, os internos estavam presos ao lugar e
- impedidos
- de qualquer movimento, confinados entre muros grossos, densos e bem-guardados, e
- fixados a suas camas, celas ou bancadas. Eles não podiam se mover porque estavam
- sob vigilância; tinham que se ater aos lugares indicados sempre porque não sabiam, e
- nem tinham como
- saber, onde estavam no momento seus vigias, livres para mover-se à vontade. As
- instalações e a facilidade de movimento dos vigias eram a garantia de sua dominação;
- dos múltiplos laços de sua subordinação, a "fixação" dos internos ao lugar era o mais
- seguro e difícil de romper. O domínio do tempo era o segredo do poder dos
- administradores
- - e imobilizar os subordinados no espaço, negando-lhes o direito ao movimento e
- rotinizando o ritmo a que dtviam obedecer era a principal estratégia em seu exercício
- do poder. A pirâmide do poder era feita de velocidade, de acesso aos meios de
- transporte e da resultante liberdade de movimento.
- O Panóptico era um modelo de engajamento e confrontação mútuos entre os dois
- lados da relação de poder. As estratégias dos administradores, mantendo sua própria
- volatilidade e rotinizando o fluxo do tempo de seus subordinados, se tornavam uma só.
- Mas havia tensão entre as duas tarefas. A segunda tarefa punha limites à primeira
- - prendia os "rotinizadores" ao lugar dentro do qual os objetos da rotinização do tempo
- estavam confinados. Os rotinizadores não eram verdadeira e inteiramente livres
- para se mover: a opção "ausente" estava fora de questão em termos práticos.
- O Panóptico apresenta também outras desvantagens. E uma estratégia cara: a
- conquista do espaço e sua manutenção, assim como a manutenção dos internos no
- espaço vigiado,
- abarcava ampla gama de tarefas administrativas custosas e complicadas. Havia os
- edifícios a erigir e manter em bom estado, os vigias profissionais a contratar e
- remunerar, a sobrevivência e capacidade de trabalho dos internos a ser preservada e
- cultivada. Finalmente, administrar significa, ainda que a contragosto, responsabilizar-se
- pelo bem-estar geral do lugar, mesmo que em nome de um interesse pessoal
- consciente - e a responsabilidade, outra vez, significa estar preso ao lugar. Ela requer
- presença, e engajamento, pelo menos como uma confrontação e um cabo-de-guerra
- permanentes.
- O que leva tantos a falar do "fim da história' da pós-modernidade, da "segunda
- modernidade" e da "sobremodernidade' ou
- a articular a intuição de uma mudança radical no arranjo do convívio humano e nas
- condições sociais sob as quais a política-vida
- é hoje levada, é o fato de que o longo esforço para acelerar a
- 18 Modernidade Líquida
- Prefácio 19
- velocidade do movimento chegou a seu "limite natural' O poder pode se mover com a
- velocidade do sinal eletrônico - e assim o tempo requerido para o movimento de
- seus ingredientes essenciais se reduziu à instantaneidade. Em termos práticos, o
- poder se tornou verdadeiramente extraterrÜoriat não mais limitado, nem mesmo
- desacelerado,
- pela resistência do espaço (o advento do telefone celular serve bem como "golpe de
- misericórdia" simbólico na dependência em relação ao espaço: o próprio acesso
- a um ponto telefônico não é mais necessário para que uma ordem seja dada e
- cumprida. Não importa mais onde está quem dá a ordem
- - a diferença entre "próximo" e "distante' ou entre o espaço selvagem e o civilizado e
- ordenado, está a ponto de desaparecer). Isso dá aos detentores do poder uma
- oportunidade verdadeiramente sem precedentes: eles podem se livrar dos aspectos
- irritantes e atrasados da técnica de poder do Panóptico. O que quer que a história
- da modernidade seja no estágio presente, ela é também, e talvez acima de tudo, p6sPano'ptica.
- O que importava no Panóptico era que os encarregados "estivessem lá'
- próximos, na torre de controle. O que importa, nas relações de poder pós-panópticas é
- que as pessoas que operam as alavancas do poder de que depende o destino dos
- parceiros menos voláteis na relação podem fugir do alcance a qualquer momento -
- para a pura inacessibilidade.
- O fim do Panóptico é o arauto dofim da era do engajamento mu'tuo: entre supervisores
- e supervisados, capital e trabalho, líderes e seguidores, exércitos em guerra.
- As principais técnicas do poder são agora a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação, a
- efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial, com os complicados corolários
- de construção e manutenção da ordem, e com a responsabilidade pelas
- conseqüências de tudo, bem como com a necessidade de arcar com os custos.
- Essa nova técnica do poder foi vividamente ilustrada pelas estratégias desenvolvidas
- pelos atacantes nas guerras do Golfo e da Iugoslávia. A relutância em utilizar
- forças terrestres na guerra foi impressionante; quaisquer que tenham sido as
- explicações oficiais, essa relutância foi ditada não apenas pela amplamente referida
- síndrome dos "cadáveres ensacados' O engajamento num combate terrestre foi
- evitado não só por seus possíveis efeitos
- adversos na política interna, mas também (talvez principalmente) por sua total
- inutilidade e mesmo contra-produtividade em relação aos objetivos da guerra. Afinal,
- a conquista do território com todas suas conseqüências administrativas e gerenciais
- não só estava ausente da lista de objetivos das ações de guerra, como era uma
- eventualidade a ser evitada a todo custo, vista com repugnância como outro tipo de
- "prejuízo colateral' desta vez infligido à própria força atacante.
- Golpes desferidos por bombardeiros furtivos e "espertos" mísseis autodingidos
- capazes de seguir seus alvos - lançados de surpresa, vindos do nada e
- desaparecendo
- imediatamente de vista
- - substituíram os avanços territoriais das tropas de infantaria e o esforço para expulsar
- o inimigo de seu território - o esforço de ocupar o território possuído,
- controlado e administrado pelo inimigo. Os atacantes definitivamente não queriam mais
- ser "os últimos no campo de batalha" depois da fuga ou retirada do inimigo.
- A força militar e seu plano de guerra de "atingir e correr" prefigura, incorpora e
- pressagia o que de fato está em jogo no novo tipo de guerra na era da modernidade
- liquida: não a conquista de novo território, mas a destruição das muralhas que
- impediam o fluxo dos novos e fluidos poderes globais; expulsar da cabeça do inimigo
- o desejo de formular suas próprias regras, abrindo assim o até então inacessível,
- defendido e protegido espaço para a operação dos outros ramos, não-militares, do
- poder. A guerra hoje, pode-se dizer (parafraseando a famosa fórmula de Clausewitz),
- parece cada vez mais uma "promoção do livre comércio por outros meios'
- Jim MacLaughlin nos lembrou recentemente (em Socio/ogy 1/99) de que o advento da
- era moderna significou, entre outras coisas, o ataque consistente e sistemático
- dos "assentados' convertidos ao modo sedentário de vida, contra os povos e o estilo de
- vida nómades, completamente alheios às preocupações territoriais e de fronteiras
- do emergente Estado moderno. Ibn Khaldoun, no século xiv, podia elogiar o
- nomadismo, que faz com que os nómades "sejam melhores que os povos assentados
- porque ...
- estão mais afastados de todos os maus hábitos que infectaram o coração dos
- assentados" - mas a febre de construção de nações e Estados-na20
- Modernidade Líquida
- Prefácio
- 21
- 1
- ção que logo em seguida começou a sério por toda a Europa colocou o "1" firmemente
- acima do "sangue" ao lançar as fundações da nova ordem legislada e ao codificar
- os direitos e deveres dos cidadãos. Os nómades, que faziam pouco das preocupações
- territoriais dos legisladores e ostensivamente desrespeitavam seus zelosos esforços
- em traçar fronteiras, foram colocados entre os principais vilões na guerra santa travada
- em nome do progresso e da civilização. A "cronopolitica" moderna os situa
- não apenas como seres inferiores e primitivos, "subdesenvolvidos" e necessitados de
- profunda reforma e esclarecimento, mas também como atrasados e "aquém dos
- tempos'
- vítimas da "defasagem cultural' arrastando-se nos degraus mais baixos da escala
- evolutiva, e imperdoavelmente lentos ou morbidamente relutantes em subir nela, para
- seguir o "padrão universal de desenvolvimento"
- Ao longo do estágio sólido da era moderna, os hábitos nómades foram mal vistos. A
- cidadania andava de mãos dadas com o assentamento, e a falta de "endereço fixo"
- e de "estado de origem" significava exclusão da comunidade obediente e protegida
- pelas leis, freqüentemente tornando os nômades vítimas de discriminação legal,
- quando
- não de perseguição ativa. Embora isso ainda se aplique à "subclasse" andarilha e
- "sem-teto': sujeita às antigas técnicas de controle panóptico (técnicas quase
- abandonadas
- como veículo principal para integração e disciplina do grosso da população), a era da
- superioridade incondicional do sedentarismo sobre o nomadismo e da dominação
- dos assentados sobre os nômades está chegando ao fim. Estamos testemunhando a
- vingança do nomadismo contra o princípio da territorialidade e do assentamento. No
- estágio fluido da modernidade, a maioria assentada é dominada pela elite nômade e
- extraterritorial. Manter as estradas abertas para o tráfego nômade e tornar mais
- distantes as barreiras remanescentes tornou-se hoje o meta-propósito da política, e
- também das guerras, que, como Clausewitz originalmente declarou, não são mais
- que "a extensão da política por outros meios'
- A elite global contemporânea é formada no padrão do velho estilo dos "senhores
- ausentes' Ela pode dominar sem se ocupar com a administração, gerenciamento, bemestar,
- ou, ainda, com a missão de "levar a luz': "reformar os modos': elevar moralmente,
- "civilizar" e com cruzadas culturais. O engajamento ativo na vida das populações
- subordinadas não é mais necessário (ao contrário, é fortemente evitado como
- desnecessariamente
- custoso e ineficaz)
- - e, portanto, o "maior" não só não é mais o "melhor' mas carece de significado
- racional. Agora é o menor, mais leve e mais portátil que significa melhoria e "progresso'
- Mover-se leve, e não mais aferrar-se a coisas vistas como atraentes por sua
- confiabilidade e solidez - isto é, por seu peso, substancialidade e capacidade de
- resistência
- - é hoje recurso de poder.
- Fixar-se ao solo não é tão importante se o solo pode ser alcançado e abandonado à
- vontade, imediatamente ou em pouquíssimo tempo. Por outro lado, fixar-se muito
- fortemente, sobrecarregando os laços com compromissos mutuamente vinculantes,
- pode ser positivamente prejudicial, dadas as novas oportunidades que surgem em
- outros
- lugares. Rockefeller pode ter desejado construir suas fábricas, estradas de ferro e
- torres de petróleo altas e volumosas e ser dono delas por um longo tempo (pela
- eternidade, se medirmos o tempo pela duração da própria vida ou pela da família). Bill
- Gates, no entanto, não sente remorsos quando abandona posses de que se orgulhava
- ontem; é a velocidade atordoante da circulação, da reciclagem, do envelhecimento, do
- entulho e da substituição que traz lucro hoje - não a durabilidade e confiabilidade
- do produto. Numa notável reversão da tradição milenar, são os grandes e poderosos
- que evitam o durável e desejam o transitório, enquanto os da base da pirâmide -
- contra todas as chances
- - lutam desesperadamente para fazer suas frágeis, mesquinhas e transitórias posses
- durarem mais tempo. Os dois se encontram hoje em dia principalmente nos lados
- opostos dos balcões das mega-liquidações ou de vendas de carros usados.
- A desintegração da rede social, a derrocada das agências efetivas de ação coletiva, é
- recebida muitas vezes com grande ansiedade e lamentada como "efeito colateral"
- não previsto da nova leveza e fluidez do poder cada vez mais móvel, escorregadio,
- evasivo e fugitivo. Mas a desintegração social é tanto uma condição quanto um
- resultado
- da nova técnica do poder, que tem como ferramentas
- 22 Modernidade Líquida
- principais o desengajamento e a arte da fuga. Para que o poder tenha liberdade de
- fluir, o mundo deve estar livre de cercas, barreiras, fronteiras fortificadas e
- barricadas. Qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja
- territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado. Os poderes globais se
- inclinam a desmantelar tais redes em proveito de sua continua e crescente fluidez,
- principal fonte de sua força e garantia de sua invencibilidade. E são esse derrocar,
- a fragilidade, o quebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitem que
- esses poderes operem.
- Se essas tendências entrelaçadas se desenvolvessem sem freios, homens e mulheres
- seriam reformulados no padrão da toupeira eletr6nica, essa orgulhosa invenção dos
- tempos pioneiros da cibernética imediatamente aclamada como arauto do porvir: um
- plugue em castores atarantados na desesperada busca de tomadas a que se ligar.
- Mas
- no futuro anunciado pelos telefones celulares, as tomadas serão provavelmente
- declaradas obsoletas e de mau gosto, e passarão a ser fornecidas em quantidades
- cada
- vez menores e com qualidade cada vez mais duvidosa. No momento, muitos
- fornecedores de eletricidade exaltam as vantagens da conexão a suas respectivas
- redes e disputam
- os favores dos que procuram por tomadas. Mas a longo prazo (o que quer que "longo
- prazo" signifique na era da instantaneidade) as tomadas serão provavelmente banidas
- e suplantadas por baterias descartáveis compradas individualmente nas lojas e em
- oferta em cada quiosque de aeroporto e posto de gasolina ao longo das estradas.
- Essa parece ser a distopia feita sob medida para a modernidade líquida - e capaz de
- substituir os terrores dos pesadelos de
- Orwell e Huxley.
- Junho de 1999
- 1 'EMANCIPAÇÃO
- Ao fim das "três décadas gloriosas" que se seguiram ao final da Segunda Guerra
- Mundial - as três décadas de crescimento sem precedentes e de estabelecimento da
- riqueza
- e da segurança econômica no próspero Ocidente - Herbert Marcuse reclamava:
- Em relação a hoje e à nossa própria condição, creio que estamos diante de uma
- situação nova na história, porque temos que ser libertados de uma sociedade rica,
- poderosa
- e que funciona relativamente bem ... O problema que enfrentamos é a necessidade de
- nos libertarmos de uma sociedade que desenvolve em grande medida as
- necessidades
- materiais e mesmo culturais do homem - uma sociedade que, para usar um siogan,
- cumpre o que prometeu a uma parte crescente da população. E isso implica que
- enfrentamos
- a libertação de uma sociedade na qual a libertação aparentemente não conta com uma
- base de massas.'
- Devermos nos emancipar, "libertar-nos da sociedade' não era problema para Marcuse.
- O que era um problema o problema específico para a sociedade que "cumpre o que
- prometeu" - era a falta de uma "base de massas" para a libertação. Para simplificar:
- poucas pessoas desejavam ser libertadas, menos ainda estavam dispostas a agir para
- isso, e virtualmente ninguém tinha certeza de como a "libertação da sociedade"
- poderia distinguir-se do Estado em que se encontrava.
- "Libertar-se" significa literalmente libertar-se de algum tipo de grilhão que obstrui ou
- impede os movimentos; começar a
- [ir-se livre para se mover ou agir. "Sentir-se livre" significa não experimentar
- dificuldade, obstáculo, resistência ou qualquer outro impedimento aos movimentos
- pretendidos ou concebíveis.
- 23
- 24 Modernidade Liquida
- Emancipação 25
- Como observou Arthur Schopenhauer, a "realidade" é criada pelo ato de querer; é a
- teimosa indiferença do mundo em relação à minha intenção, a relutância do mundo
- em se submeter à minha vontade, que resulta na percepção do mundo como "real",
- constrangedor, limitante e desobediente. Sentir-se livre das limitações, livre para
- agir conforme os desejos, significa atingir o equilíbrio entre os desejos, a imaginação e
- a capacidade de agir: sentimo-nos livres na medida em que a imaginação
- não vai mais longe que nossos desejos e que nem uma nem os outros ultrapassam
- nossa capacidade de agir. O equilíbrio pode, portanto, ser alcançado e mantido de
- duas
- maneiras diferentes: ou reduzindo os desejos e/ou a imaginação, ou ampliando nossa
- capacidade de ação. Uma vez alcançado o equilíbrio, e enquanto ele se mantiver,
- "libertação" é um siogan sem sentido, pois falta-lhe força motivacional.
- Tal uso nos permite distinguir entre liberdade "subjetiva" e "objetiva" - e também entre
- a "necessidade de libertação" subjetiva e objetiva. Pode ser que o desejo
- de melhorar tenha sido frustrado, ou nem tenha tido oportunidade de surgir (por
- exempio, pela pressão do "princípio de realidade" exercido, segundo Sigmund Freud,
- sobre a busca humana do prazer e da felicidade); as intenções, fossem elas realmente
- experimentadas ou apenas imagináveis, foram adaptadas ao tamanho da capacidade
- de agir, e particularmente à capacidade de agir razoavelmente - com chance de
- sucesso. Por outro lado, pode ser que, pela manipulação direta das intenções - uma
- forma de "lavagem cerebral" - nunca se pudesse chegar a verificar os limites da
- capacidade "objetiva" de agir, e menos ainda saber quais eram, em primeiro lugar,
- essas intenções, acabando-se, portanto, por colocá-las abaixo do nível da liberdade
- "objetiva'
- A distinção entre liberdade "subjetiva" e "objetiva" abriu uma genuína caixa de Pandora
- de questões embaraçosas como "fenômeno rei-sus essência" - de significação
- filosófica variada, mas no todo considerável, e de importância política potencialmente
- enorme. Urna dessas questões é a possibilidade de que o que se sente como
- liberdade não seja de fato liberdade; que as pessoas poderem estar satisfeitas com o
- que lhes cabe mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser "objetivamente"
- satisfatório; que, vivendo
- na escravidão, se sintam livres e, portanto, não experimentem a necessidade de se
- libertar, e assim percam a chance de se tornar genuinamente livres. O corolário
- dessa possibilidade é a suposição de que as pessoas podem ser juízes incompetentes
- de sua própria situação, e devem ser forçadas ou seduzidas, mas em todo caso
- guiadas,
- para experimentar a necessidade de ser "objetivamente" livres e para reunir a coragem
- e a determinação para lutar por isso. Ameaça mais sombria atormentava o coração
- dos filósofos: que as pessoas pudessem simplesmente não querer ser livres e
- rejeitassem a perspectiva da libertação pelas dificuldades que o exercício da liberdade
- pode acarretar.
- As bênçãos mistas da liberdade
- Numa versão apócrifa da Ocfisséia ("Odysseus und die Schweine:
- das Unbehagen an der Kultur"), Lion Feuchtwanger propôs que os marinheiros
- enfeitiçados por Circe e transformados em porcos gostaram de sua nova condição e
- resistiram
- desesperadamente aos esforços de Ulisses para quebrar o encanto e trazê-los de volta
- à forma humana. Quando informados por Ulisses de que ele tinha encontrado as
- ervas mágicas capazes de desfazer a maldição e de que logo seriam humanos
- novamente, fugiram numa velocidade que seu zeloso salvador não pôde acompanhar.
- Ulisses
- conseguiu afinal prender um dos suínos; esfregada com a erva maravilhosa, a pele
- eriçada deu lugar a Elpenoros - um marinheiro, como insiste Feuchtwanger, em todos
- os sentidos mediano e comum, exatamente "como todos os outros, sem se destacar
- por sua força ou por sua esperteza" O "libertado" Elpenoros não ficou nada grato por
- sua liberdade, e furiosamente atacou seu "libertador":
- Então voltaste, 6 tratante, 6 intrometido? Queres novamente nos aborrecer e
- importunar, queres novamente expor nossos corpos ao perigo e forçar nossos
- corações sempre
- a novas decisões? Eu estava tão feliz, eu podia chafurdar na lama e aquecer-me ao
- soi, eu podia comer e beber, grunhir e guinchar, e estava livre de meditações e
- dóvidas: "O que devo fazer, isto ou aquilo?" Por que vieste? Para jogar-me outra vez
- na vida odiosa que eu levava antes?
- 26 Modernidade Líquida
- Emancipação 27
- A libertação é uma bênção ou uma maldição? Uma maldição disfarçada de bênção, ou
- uma bênção temida como maldição? Tais questões assombraram os pensadores
- durante
- a maior parte da era moderna, que punha a "libertação" no topo da agenda da reforma
- política e a "liberdade" no alto da lista de valores - quando ficou suficientemente
- claro que a liberdade custava a chegar e os que deveriam dela gozar relutavam em
- dar-lhe as boas-vindas. Houve dois tipos de resposta. A primeira lançava dúvidas
- sobre a prontidão do "povo comum" para a liberdade. Como o escritor norte- americano
- Herbert Sebastian Agar dizia (em A Timefor Greatness, 1942), "a verdade que
- torna os homens livres é, na maioria dos casos, a verdade que os homens preferem
- não ouvir' A segunda inclinava-se a aceitar que os homens podem não estar
- inteiramente
- equivocados quando questionam os beneficios que as liberdades oferecidas podem
- lhes trazer.
- Respostas do primeiro tipo inspiram, intermitentemente, compaixão pelo "povo"
- desorientado, enganado e levado a desistir de sua chance de liberdade, ou desprezo
- e ultraje contra a "massa" que não quer assumir os riscos e responsabilidades que
- acompanham a autonomia e a auto-afirmação genuínas. O protesto de Marcuse
- envolve
- uma mistura das duas, além de uma tentativa de deixar na soleira da nova
- prosperidade a culpa pela reconciliação evidente dos não-livres com sua falta de
- liberdade.
- Outros discursos freqüentes para protestos semelhantes foram os do
- "aburguesamento" dos despossuídos (a substituição de "ser" por "ter' e a de "agir" por
- "ser" como
- os valores mais altos) e da "cultura de massas" (uma lesão cerebral coletiva causada
- pela "indústria cultural' plantando uma sede de entretenimento e diversão no
- lugar que - como diria Mathew Arnold - deveria ser ocupado pela "paixão pela doçura e
- pela luz e pela paixão de fazer com que estas triunfem").
- Respostas da segunda espécie sugerem que o tipo de liberdade louvada pelos
- libertários não é, ao contrário do que eles dizem, uma garantia de felicidade. Vai trazer
- mais tristeza que alegria. Segundo este ponto de vista, os libertários estão errados
- quando afirmam - como o faz, por exemplo, David Conway,2 seguindo o princípio
- de Henry Sidgwick - que a felicidade geral é promovida
- mais eficazmente se mantivermos nos adultos "a expectativa de que cada um será
- deixado com seus próprios recursos para prover suas próprias necessidades"; ou
- Charles
- Murray,3 que beira o lírico ao descrever a felicidade intrínseca à busca solitária: "O que
- faz um acontecimento causar satisfação é que você o produziu ... com
- responsabilidade
- substancial sobre seus ombros, sendo uma parte substancial do bem alcançado uma
- contribuição sud' "Ser abandonado a seus próprios recursos" anuncia tormentos
- mentais
- e a agonia da indecisão, enquanto a "responsabilidade sobre os próprios ombros"
- prenuncia um medo paralisante do risco e do fracasso, sem direito a apelação ou
- desistência.
- Esse não pode ser o significado real da "liberdade"; e se a liberdade "realmente
- existente' a liberdade oferecida, significar tudo isso, ela não pode ser nem a garantia
- da felicidade, nem um objetivo digno de luta.
- Respostas do segundo tipo nascem em última análise do horror visceral hobbesiano ao
- "homem à solta" Derivam sua credibilidade da suposição de que um ser humano
- dispensado
- das limitações sociais coercitivas (ou nunca submetido a elas) é uma besta e não um
- indivíduo livre; e o horror que ele gera vem de outra suposição: a de que a falta
- de limites eficazes faz a vida "detestável, brutal e curta" - e, assim, qualquer coisa,
- menos feliz. A mesma visão hobbesiana foi desenvolvida por Emile Durkheim
- numa filosofia social compreensiva, de acordo com a qual é a "norma'; medida pela
- média ou pelo mais comum, e apoiada em duras sanções punitivas, que
- verdadeiramente
- liberta os pseudo-humanos da mais horrenda e temível das escravidões; o tipo de
- escravidão que não se esconde em nenhuma pressão externa, mas dentro, na
- natureza
- pré-social ou associal do homem. A coerção social é, nessa filosofia, a força
- emancipadora, e a única esperança de liberdade a que um humano pode
- razoavelmente aspirar.
- O indivíduo se submete à sociedade e essa submissão é a condição de sua libertação.
- Para o homem a liberdade consiste em não estar sujeito às forças físicas cegas;
- ele chega a isso opondo-lhes a grande e inteligente força da sociedade, sob cuja
- proteção se abriga. Ao colocar-se sob as asas da sociedade, ele se toma, até certo
- ponto, dependente dela. Mas é uma dependência libertadora; não há nisso
- contradição.4
- 28 Modernidade Líquida
- Emancipação 29
- Não só não há contradição entre dependência e libertação:
- não há outro caminho para buscar a libertação senão "submeter-se à sociedade" e
- seguir suas normas. A liberdade não pode ser ganha contra a sociedade. O resultado
- da rebelião contra as normas, mesmo que os rebelados não tenham se tornado bestas
- de uma vez por todas, e, portanto, perdido a capacidade de julgar sua própria
- condição,
- é uma agonia perpétua de indecisão ligada a um Estado de incerteza sobre as
- intenções e movimentos dos outros ao redor - o que faz da vida um inferno. Padrões e
- rotinas impostos por pressões sociais condensadas poupam essa agonia aos homens;
- graças à monotonia e à regularidade de modos de conduta recomendados, para os
- quais
- foram treinados e a que podem ser obrigados, os homens sabem como proceder na
- maior parte do tempo e raramente se encontram em situações sem sinalização,
- aquelas
- situações em que as decisões devem ser tomadas com a própria responsabilidade e
- sem o conhecimento tranqüilizante de suas conseqüências, fazendo com que cada
- movimento
- seja impregnado de riscos dificeis de calcular. A ausência, ou a mera falta de clareza,
- das normas - anomia - é o pior que pode acontecer às pessoas em sua luta
- para dar conta dos afazeres da vida. As normas capacitam tanto quanto incapacitam; a
- anomia anuncia a pura e simples incapacitação. Uma vez que as tropas da
- regulamentação
- normativa abandonam o campo de batalha da vida, sobram apenas a dúvida e o medo.
- Quando (como notavelmente formulado por Erich Fromm) "cada indivíduo deve ir em
- frente e tentar sua sorte' quando "ele tem que nadar ou afundar" - "a busca compulsiva
- da certeza" se instala, começa a desesperada busca por "soluções" capazes
- de "eliminar a consciência da dúvida" - o que quer que prometa "assumir a
- responsabilidade pela 'certeza" é bem-vindo.5
- "A rotina pode apequenar, mas ela também pode proteger"; é o que diz Richard
- Sennett, para então lembrar seus leitores da velha controvérsia entre Adam Smith e
- Dennis
- Diderot. Enquanto Smith advertia contra os efeitos degradantes e estupidificantes da
- rotina de trabalho, "Diderot não acreditava que o trabalho rotineiro é degradante
- ... O maior herdeiro moderno de Diderot, o sociólogo Anthony Giddens, tentou manter
- viva a percepção diderotia na
- apontando para o valor primário do hábito tanto para as práticas sociais quanto para a
- autocompreensão' A proposição do próprio Sennett é direta: "Imaginar uma vida
- de impulsos momentâneos, de ações de curto prazo, destituída de rotinas
- sustentáveis, uma vida sem hábitos, é imaginar, de fato, uma existência sem sentido:"6
- A vida ainda não atingiu os extremos que a fariam sem sentido, mas muito dano foi
- causado, e todas as futuras ferramentas da certeza, inclusive as novíssimas rotinas
- (que provavelmente não durarão o suficiente para se tornarem hábitos) não poderão
- ser mais que muletas, artificios do engenho humano que só parecem a coisa em si
- se nos abstivermos de examiná-las muito de perto. Toda certeza alcançada depois do
- "pecado original" de desmantelar o mundo cotidiano cheio de rotina e vazio de
- reflexão terá que ser uma certeza manufaturada, uma certeza escancarada e
- desavergonhadamente "fabricada': sobrecarregada com toda a vulnerabilidade inata
- das decisões
- tomadas por humanos. De fato, como insistem Deleuze e Cuattari,
- não acreditamos mais no mito da existência de fragmentos que, como peças de uma
- antiga estátua, estão meramente esperando que apareça o último caco para que todas
- possam ser coladas novamente para criar uma unidade que é precisamente a mesma
- que a unidade original. Não mais acreditamos numa totalidade primordial que existiu
- uma vez, nem numa totalidade final que espera por nós numa data futura.7
- O que foi separado não pode ser colado novamente. Abandonai toda esperança de
- totalidade, tanto futura como passada, vós que entrais no mundo da modernidade
- fluida.
- Chegou o tempo de anunciar, como o fez recentemente Alain Touraine, "o fim da
- definição do ser humano como um ser social, definido por seu lugar na sociedade, que
- determina seu comportamento e ações' Em seu lugar, o princípio da combinação da
- "definição estratégica da ação social que não é orientada por normas sociais" e "a
- defesa, por todos os atores sociais, de sua especificidade cultural e psicológica" "pode
- ser encontrado dentro do indivíduo, e não mais em instituições sociais ou
- em princípios universais"8
- 1
- 30
- Modernidade Líquida
- Emancipação
- 31
- A suposição tácita que apóia uma tomada de posição tão radical é que a liberdade
- concebível e possível de alcançar já foi atingida; nada resta a fazer senão limpar
- os poucos cantos restantes e preencher os poucos lugares vazios - trabalho que será
- completado em pouco tempo. Os homens e as mulheres são inteira e verdadeiramente
- livres, e assim a agenda da libertação está praticamente esgotada. O protesto de
- Marcuse e a nostalgia comunitária da comunidade perdida podem ser manifestações
- de valores mutuamente opostos, mas são igualmente anacrônicos. Nem o reenraizar
- dos desenraizados, nem o "despertar do povo" para a tarefa não-realizada da
- libertação
- estão nas cartas. A perplexidade de Marcuse está ultrapassada, pois "o indivíduo" já
- ganhou toda a liberdade com que poderia sonhar e que seria razoável esperar;
- as instituições sociais estão mais que dispostas a deixar à iniciativa individual o
- cuidado com as definições e identidades, e os princípios universais contra os
- quais se rebelar estão em falta. Quanto ao sonho comunitário de "reacomodar os
- desacomodados': nada pode mudar o fato de que o que está disponível para a
- reacomodação
- são somente camas de motel, sacos de dormir e divãs de analistas, e que de agora em
- diante as comunidades - mais postulada.s que "imaginadas" - podem ser apenas
- artefatos efêmeros da peça da individualidade em curso, e não mais as forças
- determinantes e definidoras das identidades.
- As casualidades e a sorte com biantes da crítica
- O que está errado com a sociedade em que vivemos, disse Comelius Castoriadis, é
- que ela deixou de se questionar. E um tipo de sociedade que não mais reconhece
- qualquer
- alternativa para si mesma e, portanto, sente-se absolvida do dever de examinar,
- demonstrar, justificar (e que dirá provar) a validade de suas suposições tácitas
- e declaradas.
- Isso não significa, entretanto, que nossa sociedade tenha suprimido (Ou venha a
- suprimir) o pensamento crítico como tal. Ela não deixou seus membros reticentes (e
- menos ainda temerosos) em lhe dar voz. Ao contrário: nossa sociedade - uma
- sociedade
- de "indivíduos livres" - fez da crítica da realidade, da insatisfação com "o que aí está" e
- da expressão dessa insatisfação uma parte inevitável e obrigatória dos
- afazeres da vida de cada um de seus membros. Como Anthony Giddens nos lembra,
- estamos hoje engajados na "política-vida"; somos "seres reflexivos" que olhamos de
- perto cada movimento que fazemos, que estamos raramente satisfeitos com seus
- resultados e sempre prontos a corrigi-los. De alguma maneira, no entanto, essa
- reflexão
- não vai longe o suficiente para alcançar os complexos mecanismos que conectam
- nossos movimentos com seus resultados e os determinam, e menos ainda as
- condições que
- mantêm esses mecanismos em operação. Somos talvez mais "predispostos à crítica':
- mais assertivos e intransigentes em nossas críticas, que nossos ancestrais em sua
- vida cotidiana, mas nossa crítica é, por assim dizer, "desdentada' incapaz de afetar a
- agenda estabelecida para nossas escolhas na "política-vida' A liberdade sem
- precedentes que nossa sociedade oferece a seus membros chegou, como há tempo
- nos advertia Leo Strauss, e com ela também uma impotência sem precedentes.
- Ouve-se algumas vezes a opinião de que a sociedade contemporânea (que aparece
- sob o nome de última sociedade moderna ou pós-moderna, a sociedade da "segunda
- modernidade"
- de Ulrich Beck ou, como prefiro chamá-la, a "sociedade da modernidade fluida") é
- inóspita para a crítica. Essa opinião parece perder de vista a natureza da mudança
- presente, ao supor que o próprio significado de "hospitalidade" permanece invariável
- em sucessivas fases históricas. A questão é, porém, que a sociedade contemporânea
- deu à "hospitalidade à crítica" um sentido inteiramente novo e inventou um modo de
- acomodar o pensamento e a ação críticas, permanecendo imune às conseqüências
- dessa
- acomodação e saindo, assim, intacta e sem cicatrizes - reforçada, e não enfraquecida
- - das tentativas e testes da "política de portas abertas'
- O tipo de "hospitalidade à crítica" característico da sociedade moderna em sua forma
- presente pode ser aproximada do padrão do acampamento. O lugar está aberto a
- quem quer que venha com seu trailer e dinheiro suficiente para o aluguel; os hóspedes
- vêm e vão; nenhum deles presta muita atenção a como o lugar é gerido, desde
- que haja espaço suficiente para estacionar o trailer, as toma32
- Modernidade Líquida
- Emancipação 33
- das elétricas e encanamentos estejam em ordem e os donos dos trailers vizinhos não
- façam muito barulho e mantenham baixo o som de suas TV5 portáteis e aparelhos
- de som depois de escurecer. Os motoristas trazem para o acampamento suas próprias
- casas, equipadas com todos os aparelhos de que precisam para a estada, que em todo
- caso pretendem que seja curta. Cada um tem seu próprio itinerário e horário. O que os
- motoristas querem dos administradores do lugar não é muito mais (mas tampouco
- menos) do que ser deixados à vontade. Em troca, não pretendem desafiar a autoridade
- dos administradores e pagam o aluguel no prazo. Como pagam, também den3andam.
- Tendem a ser inflexíveis quando defendem seus direitos aos serviços prometidos, mas
- em geral querem seguir seu caminho e ficariam irritados se isso não lhes fosse
- permitido. Ocasionalmente podem reivindicar melhores serviços; se forem bastante
- incisivos, vociferantes e resolutos, podem até obtê-los. Se se sentirem prejudicados,
- podem reclamar e cobrar o que lhes é devido - mas nunca lhes ocorreria questionar e
- negociar a filosofia administrativa do lugar, e muito menos assumir a responsabilidade
- pelo gerenciamento do mesmo. Podem, no máximo, anotar mentalmente que não
- devem nunca mais usar o lugar novamente e nem recomendá-lo a seus amigos.
- Quando vão embora,
- seguindo seus próprios itinerários, o lugar fica como era antes de sua chegada, sem
- ser afetado pelos ocupantes anteriores e esperando por outros no futuro; embora,
- se algumas queixas continuarem a ser feitas por grupos sucessivos de hóspedes, os
- serviços oferecidos possam vir a ser modificados para impedir que as queixas sejam
- novamente manifestadas no futuro.
- Na era da modernidade líquida a hospitalidade à crítica da sociedade segue o padrão
- do acampamento. Quando Adorno e Horkheimer formularam a teoria crítica clássica,
- gerada pela experiência de outra modernidade, obcecada pela ordem, e assim
- informada e orientada pelo te/os da emancipação, era muito diferente o modelo em que
- se
- inscrevia, com bom fundamento empírico, a idéia de crítica: o modelo de uma casa
- compartilhada, com suas normas institucionalizadas e regras habituais, atribuição
- de deveres e desempenho supervisionado. Embora lide bem com a crítica à forma de
- hospitalidade do acampamento em relação aos donos
- dos trailers, nossa sociedade definitivamente não aceita bem a crítica como a que os
- fundadores da escola crítica supunham e à qual endereçaram sua teoria. Em termos
- diferentes, mas correspondentes, poderíamos dizer que uma "crítica ao estilo do
- consumidor" veio substituir sua predecessora, a "crítica ao estilo do produtor'
- Contrariamente a uma moda difundida, essa mudança não pode ser explicada
- meramente por referência à mudança na disposição do público, à diminuição do apetite
- pela
- reforma social, do interesse pelo bem comum e pelas imagens da boa sociedade, à
- decadência da popularidade do engajamento político, ou à alta dos sentimentos
- hedonísticos
- e do "eu primeiro" - ainda que tais fenômenos sem dúvida se destaquem entre as
- marcas do nosso tempo. As causas da mudança vão mais fundo; estão enraizadas na
- profunda
- transformação do espaço público e, de modo mais geral, no modo como a sociedade
- moderna opera e se perpetua.
- O tipo de modernidade que era o alvo, mas também o quadro cognitivo, da teoria
- crítica clássica, numa análise retrospectiva, parece muito diferente daquele que
- enquadra
- a vida das gerações de hoje. Ela parece "pesada" (contra a "leve" modernidade
- contemporânea); melhor ainda, "sólida" (e não "fluida' "líquida" ou "liquefeita");
- condensada (contra difusa ou "capilar"); e, finalmente, "sistêmica" (por oposição a "em
- forma de rede").
- Essa modernidade pesada/sólida/condensada/sistêmica da "teoria crítica" era
- impregnada da tendência ao totalitarismo. A sociedade totalitária da homogeneidade
- compulsória,
- imposta e onipresente, estava constante e ameaçadoramente no horizonte - como
- destino último, como uma bomba nunca inteiramente desarmada ou um fantasma
- nunca inteiramente
- exorcizado. Essa modernidade era inimiga jurada da contingência, da variedade, da
- ambigüidade, da instabilidade, da idiossincrasia, tendo declarado uma guerra santa
- a todas essas "anomalias"; e esperava-se que a liberdade e a autonomia individuais
- fossem as primeiras vítimas da cruzada. Entre os principais ícones dessa modernidade
- estavam af6bricafordtsta, que reduzia as atividades humanas a movimentos simples,
- rotineiros e predeterminados, destinados a serem obediente e mecanicamente
- seguidos,
- sem envolver as faculdades
- j
- 1
- 34 Modernidade Líquida
- mentais e excluindo toda espontaneidade e iniciativa individual; a burocracia, afim, pelo
- menos em suas tendências inatas, ao modelo ideal de Max Weber, em que as
- identidades e laços sociais eram pendurados no cabide da porta da entrada junto com
- os chapéus, guarda-chuvas e capotes, de tal forma que somente o comando e os
- estatutos poderiam dirigir, incontestados, as ações dos de dentro enquanto estivessem
- dentro; o pano'ptico com suas torres de controle e com os internos que nunca
- podiam contar com os eventuais lapsos de vigilância dos supervisores; o Grande
- Irnuio, que nunca cochila, sempre atento, rápido e expedito em premiar os fiéis e
- punir os infiéis; e - finalmente - o Konzlager (mais tarde acompanhado no contrapanteão
- dos demônios modernos pelo Culag), lugar onde os limites da maleabilidade
- humana eram testados em laboratório e onde aqueles que suposta ou realmente não
- eram maleáveis o suficiente eram condenados a morrer de exaustão ou mandados às
- câmaras
- de gás ou aos crematórios.
- Mais uma vez, em retrospecto, podemos dizer que a teoria crítica pretendia desarmar e
- neutralizar, e de preferência eliminar de uma vez, a tendência totalitária
- de uma sociedade que se supunha sobrecarregada de inclinações totalitárias
- intrínseca e permanentemente. O principal objetivo da teoria crítica era a defesa da
- autonomia,
- da liberdade de escolha e da auto-afirmação humanas, do direito de ser e permanecer
- diferente. Como nos antigos melodramas de Hollywood, que supunham que o
- momento
- em que os amantes se encontravam novamente e pronunciavam os votos do
- casamento assinalava o fim do drama e o começo do bem-aventurado "viveram felizes
- para sempre'
- a teoria crítica, no início, via a libertação do indivíduo da garra de ferro da rotina ou sua
- fuga da caixa de aço da sociedade afligida por um insaciável apetite
- totalitário, homogeneizante e uniformizante como o último ponto da emancipação e o
- fim do sofrimento humano - o momento da "missão cumprida" A crítica devia servir
- a esse propósito; não precisava procurar além disso, nem além do momento de
- alcançálo - nem tinha tempo para tanto.
- Na época em que foi escrito, o 7984 de George Orwell era o mais completo - e
- canônico - inventário dos medos e apreensões que assombravam a modernidade em
- seu estágio
- sólido. ProjetaEmancipação
- 35
- dos sobre os diagnósticos dos problemas e das causas dos sofrimentos
- contemporâneos, esses medos desenham o horizonte dos programas emancipatórios
- do período. Chegado
- o 1984 real, a visão de Orwell foi prontamente lembrada, trazida novamente ao debate
- público, como era de se esperar, e, uma vez mais (talvez a última), amplamente
- considerada. A maioria dos escritores, como também era de se esperar, afiou suas
- penas para separar a verdade da inverdade das profecias de Orwell, testadas pelo
- lapso de tempo que o próprio Orwell previra para que suas palavras se
- concretizassem. Não surpreende, no entanto, que em nossos tempos - quando mesmo
- a imortalidade
- dos marcos e monumentos da história cultural da humanidade está sujeita à
- reciclagem contínua e precisa ser periodicamente trazida de volta à atenção em
- comemorações
- ou pela excitação que precede e acompanha as exibições retrospectivas (apenas para
- desaparecer da vista e do pensamento tão logo as exibições terminem ou apareça
- outro aniversário para consumir o espaço da imprensa e o tempo da TV) - a encenação
- do "evento Orwell" não tenha sido muito diferente do tratamento dado
- intermitentemente
- a coisas como Tutancâmon, o ouro inca, Vermeer, Picasso ou Monet.
- Mesmo assim, a brevidade da celebração de 1984, a tepidez e o rápido esfriamento do
- interesse que produziu e a velocidade com que a obra-prima de Orwell novamente
- afundou no esquecimento uma vez cessada a excitação criada pela mídia nos fazem
- parar para pensar. Afinal, esse livro serviu durante muitas décadas (e até algumas
- décadas atrás) como o catálogo mais competente dos medos, pressentimentos e
- pesadelos públicos; então, por que não mais que um interesse passageiro em sua
- breve
- ressurreição? A única explicação razoável é que as pessoas que discutiram o livro em
- 1984 não se sentiram estimuladas e
- tenham rapidamente proclamado o "fim da modernidade" (ou mesmo, mais
- ousadamente, o fim da própria história, argumentando que ela tinha atingido seu te/os
- ao tornar
- a liberdade, pelo menos o tipo de liberdade exemplificado pelo mercado livre e pela
- escolha do consumidor, imune a quaisquer ameaças). E no entanto (créditos para
- Mark Twain) a notícia do falecimento da modernidade, mesmo os rumores sobre seu
- canto de cisne, era grosseiramente exagerado: sua profusão não faz os obituários
- menos prematuros. Parece que o tipo de sociedade diagnosticada e levada a juízo
- pelos fundadores da teoria crítica (ou pela distopia de Orwell) era apenas uma das
- formas que a versátil e variável sociedade moderna assumia. Seu desaparecimento
- não anuncia o fim da modernidade. Nem é o arauto do fim da miséria humana. Menos
- ainda assinala o fim da crítica como tarefa e vocação intelectual. E em nenhuma
- hipótese torna essa crítica dispensável.
- A sociedade que entra no século XXI não é menos "moderna" que a que entrou no
- século XX; o máximo que se pode dizer é que ela é moderna de um modo diferente. O
- que
- a faz tão moderna como era mais ou menos há um século é o que distingue a
- modernidade de todas as outras formas históricas do convívio humano:
- a compulsiva e obsessiva, continua, irrefreável e sempre incompleta modernizaçâo; a
- opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa (ou de criatividade
- destrutiva, se for o caso: de "limpar o lugar" em nome de um "novo e aperfeiçoado"
- projeto; de "desmantelar' "cortar' "defasar' "reunir" ou "reduzir' tudo isso em
- nome da maior capacidade de fazer o mesmo no futuro - em nome da produtividade ou
- da competitividade).
- Como assinalava Lessing há muito tempo, no limiar da era moderna fomos
- emancipados da crença no ato da criação, da re velaçã
- e da condenação eterna. Com essas crenças fora do caminho, nós, humanos, nos
- encontramos "por nossa própria conta" - o que significa que, desde então, não
- conhecemos
- mais limites ao aperfeiçoamento além das limitações de nossos próprios dons
- herdados ou adquiridos, de nossos recursos, coragem, vontade e determinação. E o
- que
- o homem faz o homem pode desfazer. Ser moderno passou a significar, como significa
- hoje em dia, ser incapaz de parar e ainda menos capaz de ficar parado. Movemo-nos
- e continuaremos a nos mover não tanto pelo "adiamento da satisfação' como sugeriu
- Max Weber, mas por causa da impossibilidade de atingir a satisfação: o horizonte
- da satisfação, a linha de chegada do esforço e o momento da auto-congratulação
- tranqüila movem-se rápido demais. A consumação está sempre no futuro, e os
- objetivos
- perdem sua atração e potencial de satisfação no momento de sua realização, se não
- antes. Ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo, num Estado de
- constante
- transgressão (nos termos de Nietzsche, não podemos ser Men.çc/i sem ser, ou pelo
- menos lutar para ser, Ubermensch); também significa ter uma identidade que só pode
- existir como projeto não-realizado. A esse respeito, não há muito que distinga nossa
- condição da de nossos avós.
- Duas características, no entanto, fazem nossa situação - nossa forma de modernidade
- - nova e diferente.
- A primeira é o colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusão moderna: da crença
- de que há um fim do caminho em que andamos, um te/os alcançável da mudança
- histórica, um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no
- próximo milênio, algum tipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em
- todos ou alguns de seus aspectos postulados: do firme equilíbrio entre oferta e procura
- e a satisfação de todas as necessidades; da ordem perfeita, em que tudo é
- colocado no lugar certo, nada que esteja deslocado persiste e nenhum lugar é posto
- em dúvida; das coisas humanas que se tornam totalmente transparentes porque se
- sabe tudo o que deve ser sabido; do completo domínio sobre o futuro - tão completo
- que põe fim a toda contingência, disputa, ambivalência e conseqüências imprevistas
- das iniciativas humanas.
- 38
- Modernidade Líquida
- Emancipação
- 39
- A segunda mudança é a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres
- modernizantes. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana,
- vista
- como dotação e propriedade coletiva da espécie humana, foi fragmentado
- ("individualizado"), atribuído às vísceras e energia individuais e deixado à
- administração
- dos indivíduos e seus recursos. Ainda que a idéia de aperfeiçoamento (ou de toda
- modernização adicional do status quo) pela ação legislativa da sociedade como um
- todo não tenha sido completamente abandonada, a ênfase (juntamente, o que é
- importante, com o peso da responsabilidade) se transladou decisivamente para a autoafirmação
- do indivíduo. Essa importante alteração se reflete na realocação do discurso
- ético/político do quadro da "sociedade justa" para o dos "direitos humanos' isto é,
- voltando o foco daquele discurso ao direito de os indivíduos permanecerem diferentes
- e de escolherem à vontade seus próprios modelos de felicidade e de modo de vida
- adequado.
- As esperanças de aperfeiçoamento, em vez de convergir para grandes somas nos
- cofres do governo, procuram o troco nos bolsos dos contribuintes. Se a modernidade
- original
- era pesada no alto, a modernidade de hoje é leve no alto, tendo se livrado de seus
- deveres "emancipatórios' exceto o dever de ceder a questão da emancipação às
- camadas
- média e inferior, às quais foi relegada a maior parte do peso da modernização
- contínua. "Não mais a salvação pela sociedade' proclamou o apóstolo do novo espírito
- da empresa, Peter Drucker. "Não existe essa coisa de sociedade' declarou Margaret
- Thatcher, mais ostensivamente. Não olhe para trás, ou para cima; olhe para dentro
- de você mesmo, onde supostamente residem todas as ferramentas necessárias ao
- aperfeiçoamento da vida - sua astúcia, vontade e poder.
- E não há mais "o Grande Irmão à espreita"; sua tarefa agora é observar as fileiras
- crescentes de Grandes Irmãos e Grandes Irmãs e observá-las atenta e avidamente,
- na esperança de encontrar algo de útil para você mesmo: um exemplo a imitar ou uma
- palavra de conselho sobre como lidar com seus problemas, que, como os deles,
- devem
- ser enfrentados individualmente e só podem ser enfrentados individualmente. Não
- mais grandes líderes para lhe dizer o que fazer e para aliviá-lo da responsabilidade
- pela conse qüênci
- de seus atos; no mundo dos indivíduos há apenas outros indivíduos cujo exemplo
- seguir na condução das tarefas da própria vida, assumindo toda a responsabilidade
- pelas conseqüências de ter investido a confiança nesse e não em qualquer outro
- exemplo.
- O indivíduo em combate com o cidadão
- O título dado por Norbert Elias a seu último livro, publicado postumamente, A
- sociedade dos indivíduos, capta com perfeição a essência do problema que assombra
- a
- teoria social desde seu começo. Rompendo com uma tradição estabelecida desde
- Hobbes e forjada novamente por John Stuart Mili, Herbert Spencer e a ortodoxia liberal
- na doxa (o quadro não examinado de toda cognição adicional) de nosso século, Elias
- substituiu o "e" e o "versus" pelo "de" e, assim, deslocou o discurso do imaginário
- das duas forças, travadas numa batalha mortal mas infindável entre liberdade e
- dominação, para uma "concepção recíproca": a sociedade dando forma à
- individualidade
- de seus membros, e os indivíduos formando a sociedade a partir de suas ações na
- vida, enquanto seguem estratégias plausíveis e factíveis na rede socialmente tecida
- de suas dependências.
- A apresentação dos membros como indivíduos é a marca registrada da sociedade
- moderna. Essa apresentação, porém, não foi uma peça de um ato: é uma atividade
- reencenada
- diariamente. A sociedade moderna existe em sua atividade incessante de
- "individualização' assim como as atividades dos indivíduos consistem na reformulação
- e renegociação
- diárias da rede de entrelaçamentos chamada "sociedade' Nenhum dos dois parceiros
- fica parado por muito tempo. E assim o significado da "individualização" muda.
- assumindo
- sempre novas formas - à medida que os resultados acumulados de sua história
- passada solapam as regras herdadas, estabelecem novos preceitos comportamentais
- e fazem
- surgir novos prêmios no jogo. A "individualização" agora significa uma coisa muito
- diferente do que significava há cem anos e do que implicava nos primeiros tempos
- da era moderna - os tempos da
- 1
- j
- 40
- Modernidade Líquida
- Emancipação
- 41
- 1
- exaltada "emancipação" do homem da trama estreita da dependência, da vigilância e
- da imposição comunitárias.
- "Jenseits von Kiasse und Stand?' de Ulrich Beck, e poucos anos depois seu
- "Risikogesellschaft: auf dem Weg in eine andere Moderne"9 (juntamente com "Em
- Stiick eigenes
- Leben: Frauen im Individualisierung Prozess' de Elisabeth Beck-Gernsheim) abriram
- um novo capítulo em nossa compreensão do "processo de individualização" Esses
- trabalhos
- apresentaram o processo como uma história em curso e infindável, com seus distintos
- estágios - ainda que com um horizonte móvel e uma lógica errática de giros e
- curvas abruptos em lugar de um te/os ou um destino predeterminado. Pode-se dizer
- que, assim como Elias historicizou a teoria de Sigmund Freud do "indivíduo civilizado"
- explorando a civilização como um evento na história (moderna), Beck historicizou a
- narrativa de Elias do nascimento do indivíduo ao reapresentar esse nascimento
- como um aspecto perpétuo da contínua, compulsiva e obsessiva modernização. Beck
- também estabeleceu o retrato da individualização liberta de suas roupagens
- transitórias,
- hoje mais obscurecedoras que clarificadoras da compreensão (antes e acima de tudo,
- liberta de suas visões do desenvolvimento linear, uma progressão assinalada ao
- longo dos eixos da emancipação, da crescente autonomia e da liberdade de autoafirmação),
- expondo assim para exame a variedade de tendências à individualização e
- seus produtos, e permitindo uma melhor compreensão das características distintivas
- de seu estágio presente.
- Resumidamente, a "individualização" consiste em transformar a "identidade" humana
- de um "dado" em uma "tarefa" e encarregar os atores da responsabilidade de realizar
- essa tarefa e das conseqüências (assim como dos efeitos colaterais) de sua
- realização. Em outras palavras, consiste no estabelecimento de uma autonomia de jure
- (independentemente
- de a autonomia defacto também ter sido estabelecida).
- Os seres humanos não mais "nascem" em suas identidades. Como disse Jean-Paul
- Sartre em frase célebre: não basta ter nascido burguês - é preciso viver a vida como
- burguês. (Note-se que o mesmo não precisaria ser nem poderia ser dito sobre
- príncipes, cavaleiros ou servos da era pré-moderna; nem poderia ser dito de
- modo tão resoluto dos ricos nem dos pobres de berço dos tempos modernos). Precisar
- tornar-seo que já se éé a característica da vida moderna - e só da vida moderna
- (não da "individualização moderna' a expressão sendo evidentemente pleonástica;
- falar da individualização e da modernidade é falar de uma e da mesma condição
- social).
- A modernidade substitui a determinação heterônoma da posição social pela
- autodeterminação compulsiva e obrigatória. Isso vale para a "individualização" por toda
- a era moderna
- - para todos os períodos e todos os setores da sociedade. No entanto, dentro daquela
- condição compartilhada há variações significativas, que distinguem gerações
- sucessivas e também as várias categorias de atores que compartilham o mesmo
- cenário histórico.
- A antiga modernidade "desacomodava" a fim de "reacomodar" Enquanto a
- desacomodação era o destino socialmente sancionado, a reacomodação era tarefa
- posta diante dos
- indivíduos. Uma vez rompidas as rígidas molduras dos estamentos, a tarefa de "autoidentificação"
- posta diante de homens e mulheres do princípio da era moderna se
- resumia ao desafio de viver "de acordo" (não ficar atrás dos outros), de conformar-se
- ativamente aos emergentes tipos sociais de classe e modelos de conduta, de
- imitar, seguir o padrão, "aculturar-se' não sair da linha nem se desviar da norma. Os
- "estamentos" enquanto lugares a que se pertencia por hereditariedade vieram
- a ser substituídos pelas "classes" como objetivo de pertencimento fabricado. Enquanto
- os estamentos eram uma questão de atribuição, o pertencimento às classes era
- em grande medida uma realização; diferentemente dos estamentos, o pertencimento
- às classes devia ser buscado, e continuamente renovado, reconfirmado e testado na
- conduta diária.
- Retrospectivamente, pode-se dizer que a divisão em classes (ou em gêneros) foi um
- resultado secundário do acesso desigual aos recursos necessários para tornar a
- auto-afirmação eficaz. As classes diferiam na gama de identidades disponíveis e na
- facilidade de escolher entre elas e adotá-las. As pessoas com menos recursos e,
- portanto, com menos escolha, tinham que compensar suas fraquezas individuais pela
- "força do nómero" - cerrando fileiras e partindo para a ação coletiva. Como assinalou
- Claus Offe, a ação coletiva, orientada pela classe, era tão natural e corriqueira
- 42
- Modernidade Líquida
- Emancipação
- 43
- para os que estavam nos níveis mais baixos da escala social quanto a perseguição
- individualde seus objetivos de vida o era para seus patrões.
- As privações se somavam, por assim dizer; e, uma vez somadas, congelavam-se em
- "interesses comuns" e eram vistas como tratáveis apenas com um remédio coletivo. O
- "coletivismo" foi a primeira opção de estratégia para aqueles situados na ponta
- receptora da individualização mas incapazes de se auto-afirmar enquanto indivíduos
- se limitados a seus próprios recursos individuais, claramente inadequados. A
- orientação de classe dos mais bem-aquinhoados era, por outro lado, parcial e, em
- certo
- sentido, derivativa; assumia o primeiro plano principalmente quando a distribuição
- desigual dos recursos era desafiada e contestada. Qualquer que fosse o caso, porém,
- os indivíduos da modernidade "clássica' deixados "desacomodados" pela
- decomposição da ordem estamental, dispunham de seus novos poderes e autonomia
- na busca frenética
- da "reacomodação'
- E não faltavam "camas" à espera e prontas para acomodá-los. A classe - embora
- formada e negociável, e não herdada, como eram os estamentos - tendia a prender
- seus
- membros tão firme e fortemente quanto o estamento hereditário pré-moderno. Classe e
- gênero projetavam-se pesadamente sobre a gama de escolhas do indivíduo; escapar
- a esses limites não era muito mais fácil do que contestar o lugar ocupado na "cadeia
- divina do ser" pré-moderna. Para todos os efeitos, a classe e o gênero eram
- "fatos da natureza", e a tarefa reservada à auto-afirmação da maioria dos indivíduos
- era "adaptar-se" ao nicho alocado, comportando-se como os demais ocupantes.
- Isso é precisamente o que distingue a "individualização" de outrora da forma que veio a
- tomar na Risikogesellschaf4 em tempos de "modernidade reflexiva" ou "segunda
- modernidade" (nas diferentes formas como Ulrich Beck se refere à era
- contemporânea). Não são fornecidos "lugares" para a "reacomodação", e os lugares
- que podem ser
- postulados e perseguidos mostram-se frágeis e freqüentemente desaparecem antes
- que o trabalho de "reacomodação" seja completado. O que há são "cadeiras musicais"
- de vários tamanhos e estilos, assim como em números e posições cam biantes
- que fazem com que as pessoas estejam constantemente em movimento, e não
- prometem nem a "realização", nem o descanso, nem a satisfação de "chegar", de
- alcançar o
- destino final, quando se pode desarmar-se, relaxar e deixar de se preocupar. Não há
- perspectiva de "reacomodação" no final do caminho tomado pelos indivíduos (agora
- cronicamente) desacomodados.
- Não se engane: agora, como antes - tanto no estágio leve e fluido da modernidade
- quanto no sólido e pesado -, a individualização é uma fatalidade, não uma escolha.
- Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e
- de se recusar a participar do jogo da individualização está decididamente fora
- da jogada. A autocontenção e a auto-suficiência do indivíduo podem ser outra ilusão:
- que homens e mulheres não tenham nada a que culpar por suas frustrações e
- problemas
- não precisa agora significar, não mais que no passado, que possam se proteger contra
- a frustração utilizando suas próprias estratégias, ou que escapem de seus problemas
- puxando-se, como o Barão de Munchausen, pelas próprias botas. E, no entanto, se
- ficam doentes, supõe-se que foi porque não foram suficientemente decididos e
- industriosos
- para seguir seus tratamentos; se ficam desempregados, foi porque não aprenderam a
- passar por uma entrevista, ou porque não se esforçaram o suficiente para encontrar
- trabalho ou porque são, pura e simplesmente, avessos ao trabalho; se não estão
- seguros sobre as perspectivas de carreira e se agoniam sobre o futuro, é porque não
- são suficientemente bons em fazer amigos e influenciar pessoas e deixaram de
- aprender e dominar, como deveriam, as artes da auto-expressão e da impressão que
- causam.
- Isto é, em todo caso, o que lhes é dito hoje, e aquilo em que passaram a acreditar, de
- modo que agora se comportam como se essa fosse a verdade. Como Beck adequada
- e pungentemente diz, "a maneira como se vive torna-se uma solução biogr4/ka das
- contradições sisté'micas' 10 Riscos e contradições continuam a ser socialmente
- produzidos;
- são apenas o dever e a necessidade de enfrentá-los que estão sendo individualizados.
- Para resumir: o abismo entre a individualidade como fatalidade e a individualidade
- como capacidade realista e prática de auto- afirmação está aumentando. (Melhor
- ser afastado da "individuali 1
- 44 Modernidade Líquido
- Emancipação 45
- dade por atribuição' como "individuação": o termo escolhido por Beck para distinguir o
- indivíduo auto-sustentado e auto-impulsionado daquele que não tem escolha
- senão a de agir, ainda que contrafactualmente, como se a individualização tivesse sido
- alcançada). Saltar sobre esse abismo não é- isso é crucial - parte dessa capacidade.
- A capacidade auto-assertiva de homens e mulheres individualizados deixa a desejar,
- como regra, em relação ao que a genuína autoconstituição requereria. Como observou
- Leo Strauss, o outro lado da liberdade ilimitada é a insignificância da escolha, cada
- lado condicionando o outro: por que cuidar de proibir o que será, de qualquer
- modo, de pouca conseqüência? Um observador cínico diria que a liberdade chega
- quando não faz mais diferença. Há um desagradável ar de impotência no temperado
- caldo
- da liberdade preparado no caldeirão da individualização; essa impotência é sentida
- como ainda mais odiosa, frustrante e perturbadora em vista do aumento de poder
- que se esperava que a liberdade trouxesse.
- Qnem sabe não seria um remédio manter-se, como no passado, ombro a ombro e
- marchar unidos? Quem sabe se, caso os poderes individuais, tão frágeis e impotentes
- isoladamente,
- fossem condensados em posições e ações coletivas, poderíamos realizar em conjunto
- o que ninguém poderia realizar sozinho? Quem sabe... O problema é, porém, que essa
- convergência e condensação das queixas individuais em interesses compartilhados, e
- depois em ação conjunta, é uma tarefa assustadora, dado que as aflições mais
- comuns
- dos "indivíduos por fatalidade" nos dias de hoje são não- aditivas, não podem ser
- "somadas" numa "causa comum' Podem ser postas lado a lado, mas não se fundirão.
- Pode-se dizer que desde o começo são moldadas de tal maneira que lhes faltam
- interfaces para combinar-se com os problemas das demais pessoas.
- Os problemas podem ser semelhantes (e os cada vez mais populares programas de
- entrevistas insistem em demonstrar sua semelhança, enquanto martelam a mensagem
- de
- que sua semelhança mais importante consiste em que são enfrentados por conta
- própria pelos que os sofrem), mas não formam uma "totalidade que é maior que a
- soma
- de suas partes"; não adquirem qualquer qua lidad
- nova, nem se tornam mais fáceis de manejar por serem enfrentados, confrontados e
- trabalhados em conjunto. A única vantagem que a companhia de outros sofredores
- pode
- trazer é garantir a cada um deles que enfrentar os problemas solitariamente é o que
- todos fazem diariamente - e portanto renovar e encorajar a fatigada decisão de
- continuar a fazer o mesmo. Talvez possa-se também aprender da experiência de
- outras pessoas a como sobreviver à nova rodada de "redução de tamanho"
- (downsizing);
- como lidar com crianças que pensam que são adolescentes e adolescentes que se
- recusam a se tornar adultos; como pôr a gordura e outros "corpos estranhos"
- indesejáveis
- "para fora do sistema"; como livrar-se de um vício que não dá mais prazer ou de
- parceiros que não são mais satisfatórios. Mas o que aprendemos antes de mais nada
- da companhia de outros é que o único auxílio que ela pode prestar é como sobreviver
- em nossa solidão irremível, e que a vida de todo mundo é cheia de riscos que
- devem ser enfrentados solitariamente.
- E assim há também outro obstáculo: como de Tocqueville há muito suspeitava, libertar
- as pessoas pode torná-las indiferentes. O indivíduo é o pior inimigo do cidadão,
- sugeriu ele. O "cidadão" é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar
- através do bem-estar da cidade - enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou
- prudente em relação à "causa comum' ao "bem comum' à "boa sociedade" ou à
- "sociedade justa' Qual é o sentido de "interesses comuns" senão permitir que cada
- indivíduo
- satisfaça seus próprios interesses? O que quer que os indivíduos façam quando se
- unem, e por mais benefícios que seu trabalho conjunto possa trazer, eles o perceberão
- como limitação à sua liberdade de buscar o que quer que lhes pareça adequado
- separadamente, e não ajudarão. As únicas duas coisas úteis que se espera e se
- deseja
- do "poder público" são que ele observe os "direitos humanos' isto é, que permita que
- cada um siga seu próprio caminho, e que permita que todos o façam "em paz" -
- protegendo a segurança de seus corpos e posses, trancando criminosos reais ou
- potenciais nas prisões e mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes
- e todo tipo de estranhos constrangedores e maus.
- 46
- Modernidade Líquido
- Emancipação
- 47
- Com seu humor habitual e inimitável, Woody Alien aponta as modas e manias dos
- "indivíduos por decreto" ao folhear os anúncios de imaginários cursos de verão do tipo
- que os norte-americanos adorariam freqüentar. O curso de teoria econômica inclui o
- item "inflação e depressão - como vestir-se para cada ocasião"; o curso de ética
- envolve "O imperativo categórico - e seis maneiras de fazê-lo funcionar a seu favor'
- enquanto o prospecto de astronomia informa que "o Sol, que é feito de gás, pode
- explodir a qualquer momento, mandando nosso planeta inteiro pelos ares; os
- estudantes são instruídos sobre o que o cidadão médio pode fazer em tal caso'
- Em suma: o outro lado da individualização parece ser a corrosão e a lenta
- desintegração da cidadania. Joël Roman, co-editor de Espri!, assinala em seu livro
- recente
- (La démocratie des individus, 1998) que "a vigilância é degradada à guarda dos bens,
- enquanto o interesse geral não é mais que um sindicato de egoísmos, que envolve
- emoções coletivas e o medo do vizinho" Roman concita os leitores a buscarem uma
- "renovada capacidade de decidir em conjunto" - hoje notável por sua inexistência.
- Se o indivíduo é o pior inimigo do cidadão, e se a individualização anuncia problemas
- para a cidadania e para a política fundada na cidadania, é porque os cuidados
- e preocupações dos indivíduos enquanto indivíduos enchem o espaço público até o
- topo, afirmando-se como seus únicos ocupantes legítimos e expulsando tudo mais do
- discurso público. O "público" é colonizado pelo "privado"; o "interesse público" é
- reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas e a arte da
- vida pública é reduzida à exposição pública das questões privadas e a confissões de
- sentimentos privados (quanto mais íntimos, melhor). As "questões públicas" que
- resistem a essa redução tornam-se quase incompreensíveis.
- As perspectivas de que os atores individualizados sejam "reacomodados" no corpo
- republicano dos cidadãos são nebulosas. O que os leva a aventurar-se no palco
- público
- não é tanto a busca de causas comuns e de meios de negociar o sentido do bem
- comum e dos princípios da vida em comum quanto a necessidade desesperada de
- "fazer parte
- da rede' Compartilhar intimidades, como
- Richard Sennett insiste, tende a ser o método preferido, e talvez o único que resta, de
- "construção da comunidade' Essa técnica de construção só pode criar "comunidades"
- tão frágeis e transitórias como emoções esparsas e fugidias, saltando erraticamente de
- um objetivo a outro na busca sempre inconclusiva de um porto seguro: comunidades
- de temores, ansiedades e ódios compartilhados
- - mas em cada caso comunidades "cabide' reuniões momentâneas em que muitos
- indivíduos solitários penduram seus solitários medos individuais. Como diz Ulrich Beck
- (no ensaio "Sobre a mortalidade da sociedade industrial"),
- O que emerge no lugar das normas sociais evanescentes é o ego nu, atemorizado e
- agressivo à procura de amor e de ajuda. Na procura de si mesmo e de uma
- sociabilidade
- afetuosa, ele facilmente se perde na selva do eu ... Alguém que tateia na bruma de seu
- próprio eu não é mais capaz de perceber que esse isolamento, esse "confinamento
- solitário do ego': é uma sentença de massa.1'
- A individualização chegou para ficar; toda elaboração sobre os meios de enfrentar seu
- impacto sobre o modo como levamos nossas vidas deve partir do reconhecimento
- desse fato. A individualização traz para um número sempre crescente de pessoas uma
- liberdade sem precedentes de experimentar - mas (timeo danaos ei dona ferentes...)
- traz junto a tarefa também sem precedentes de enfrentar as conseqüências. O abismo
- que se abre entre o direito à auto-afirmação e a capacidade de controlar as situações
- sociais que podem tornar essa auto-afirmação algo factível ou irrealista parece ser a
- principal contradição da modernidade fluida - contradição que, por tentativa
- e erro, reflexão crítica e experimentação corajosa, precisamos aprender a manejar
- coletivamente.
- O compromisso da teoria crítica
- na sociedade dos indivíduos
- O impulso modernizante, em qualquer de suas formas, significa a critica compulsiva da
- realidade. A privatização do impulso signifi
- 48 Modernidade Líquida
- Emancipação 49
- ca a compulsiva auto-crítica nascida da desafeição perpétua: ser um indivíduo de jure
- significa não ter ninguém a quem culpar pela própria miséria, significa não
- procurar as causas das próprias derrotas senão na própria indolência e preguiça, e não
- procurar outro remédio senão tentar com mais e mais determinação.
- Viver diariamente com o risco da auto-reprovação e do auto- desprezo não é fácil. Com
- os olhos postos em seu próprio desempenho - e portanto desviados do espaço
- social onde as contradições da existência individual são coletivamente produzidas -, os
- homens e mulheres são naturalmente tentados a reduzir a complexidade de sua
- situação a fim de tornarem as causas do sofrimento inteligíveis e, assim, tratáveis. Não
- que considerem as "soluções biográficas" onerosas e embaraçosas; simplesmente
- não há "soluçõ&s biográficas para contradições sistêmicas" eficazes, e assim a
- escassez de soluções possíveis à disposição precisa ser compensada por soluções
- imaginárias.
- No entanto - imaginárias ou genuínas -' todas as "soluções", para parecerem razoáveis
- e viáveis, devem ser acompanhadas pela "individualização" das tarefas e
- responsabilidades.
- Há, então, demanda por cabides individuais onde os indivíduos atemorizados possam
- pendurar coletiva, ainda que brevemente, seus temores individuais. Nosso tempo
- é propício aos bodes expiatórios - sejam eles políticos que fazem de suas vidas
- privadas uma confusão, criminosos que se esgueiram nas ruas e nos bairros perigosos
- ou "estrangeiros entre nós' O nosso é um tempo de cadeados, cercas de arame
- farpado, ronda dos bairros e vigilantes; e também de jornalistas de tablóides
- "investigativos"
- que pescam conspirações para povoar de fantasmas o espaço público funestamente
- vazio de atores, conspirações suficientemente ferozes para liberar boa parte dos
- medos
- e ódios reprimidos em nome de novas causas plausíveis para o "pânico moral'
- Repito: há um grande e crescente abismo entre a condição de indivíduos de jure e
- suas chances de se tornar indivíduos de facto
- - isto é, de ganhar controle sobre seus destinos e tomar as decisões que em verdade
- desejam. E desse abismo que emanam os eflúvios mais venenosos que contaminam
- as vidas dos indivíduos contemporâneos. Esse abismo não pode ser transposto
- apenas por esforços individuais: não pelos meios e recursos disponíveis den tr
- da política-vida auto-administrada. Transpor o abismo é a tarefa da Política com P
- maiúsculo. Pode-se supor que o abismo em questão emergiu e cresceu precisamente
- por causa do esvaziamento do espaço público, e particularmente da ágora, aquele
- lugar intermediário, público/privado, onde a política-vida encontra a Política com
- p maiúsculo, onde os problemas privados são traduzidos para a linguagem das
- questões públicas e soluções públicas para os problemas privados são buscadas,
- negociadas
- e acordadas.
- A mesa foi virada, por assim dizer: a tarefa da teoria crítica foi invertida. Essa tarefa
- costumava ser a defesa da autonomia privada contra as tropas avançadas
- da "esfera pública", soçobrando sob o domínio opressivo do Estado onipotente e
- impessoal e de seus muitos tentáculos burocráticos ou réplicas em escala menor. Hoje
- a tarefa é defender o evanescente domínio público, ou, antes, reequipar e repovoar o
- espaço público que se esvazia rapidamente devido à deserção de ambos os lados:
- a retirada do "cidadão interessado" e a fuga do poder real para um território que, por
- tudo que as instituições democráticas existentes são capazes de realizar,
- só pode ser descrito como um "espaço cósmico"
- Não é mais verdade que o "público" tente colonizar o "privado' O que se dá é o
- contrário: é o privado que coloniza o espaço público, espremendo e expulsando o que
- quer que não possa ser expresso inteiramente, sem deixar resíduos, no vernáculo dos
- cuidados, angústias e iniciativas privadas. Repetidamente informado de que é
- o senhor de seu próprio destino, o indivíduo não tem razão de atribuir "relevância
- tópica" (o termo é de Alfred Schütz) ao que quer que resista a ser engolfado no
- eu e trabalhado com os recursos do eu; mas ter essa razão e agir sobre ela é
- precisamente a marca registrada do cidadão.
- Para o indivíduo, o espaço público não é muito mais que uma tela gigante em que as
- aflições privadas são projetadas sem cessar, sem deixarem de ser privadas ou
- adquirirem
- novas qualidades coletivas no processo da ampliação: o espaço público é onde se faz
- a confissão dos segredos e intimidades privadas. Os indivíduos retornam de suas
- excursões diárias ao espaço "público" reforçados em sua individualidade de jure e
- tranqüilizados de que o modo
- 50
- Modernidade Líquida
- Emancipação
- 51
- solitário como levam sua vida é o mesmo de todos os outros "indivíduos como eles'
- enquanto - também corno eles - dão seus próprios tropeços e sofrem suas (talvez
- transitérias) derrotas no processo.
- Quanto ao poder, ele navega para longe da rua e do mercado, das assembléias e dos
- parlamentos, dos governos locais e nac
- e oportunidades no que forçosamente continuará sendo uma relação ambivalente
- mudaram radicalmente no curso da história moderna. Embora as razões para examiná-
- la
- de perto possam não ter desaparecido, a sociedade é hoje antes de tudo a condição
- de que os indivíduos precisam muito, e que lhes faz falta - em sua luta vã e frustrante
- para transformar seu status de jure em genuína autonomia e capacidade de autoafirmação.
- Esta é, nos termos mais amplos, a situação que hoje se coloca para a teoria crítica - e,
- em termos mais gerais, para a crítica social. Ela se reduz a unir novamente
- o que a combinação da individualização formal e o divórcio entre o poder e a política
- partiram em pedaços. Em outras palavras, redesenhar e repovoar a hoje quase
- vazia ágora - o lugar de encontro, debate e negociação entre o indivíduo e o bem
- comum, privado e público. Se o velho objetivo da teoria crítica - a emancipação
- humana - tem qualquer significado hoje, ele é o de reconectar as duas faces do abismo
- que se abriu entre a realidade do indivíduo de jure e as perspectivas do indivíduo
- de facto. E indivíduos que reaprenderam capacidades esquecidas e reapropriaram
- ferramentas perdidas da cidadania são os únicos construtores à altura da tarefa de
- erigir essa ponte em particular.
- A teoria crítica revisitada
- A necessidade de pensar é o que nos faz pensar, disse Adorno.'2 Sua Dialética
- negativa, essa longa e tortuosa exploração dos modos de ser humano num mundo
- inóspito
- à humanidade, acaba com essa frase contundente, mas em última análise vazia: ao fim
- de centenas de páginas, nada foi explicado, nenhum mistério revelado, nenhuma
- segurança alcançada. O segredo de ser humano permanece tão impenetrável como no
- começo da jornada. Pensar nos faz humanos, mas é por sermos humanos que
- pensamos.
- O pensar não pode ser explicado; mas não precisa de explicação. O pensar não
- precisa ser justificado; mas não poderia ser justificado, ainda que tentássemos.
- Essa situação não é, Adorno nos dirá muitas e muitas vezes, nem um sinal de fraqueza
- do pensamento, nem marca da vergonha de quem pensa. Talvez seja o contrário.
- Na pena de Adorno, a triste necessidade se transforma em privilégio. Quanto menos
- um pensamento puder ser explicado em termos familiares, que façam sentido para
- os homens e mulheres imersos em sua busca diária da
- ii'
- sobrevivência, tanto mais próximo fica dos padrões da humanidade; quanto menos
- puder ser justificado em termos de ganhos e usos tangíveis ou das etiquetas de preço
- afixadas a ele no supermercado ou na bolsa de valores, tanto maior seu valor
- humanizante. São a busca ativa do valor de mercado e a urgência do consumo
- imediato
- que ameaçam o genuíno valor do pensamento. "Nenhum pensamento é imune",
- escreve Adorno,
- à comunicação, e fazê-la no lugar errado e num acordo equivocado é o suficiente para
- solapar sua verdade. ... Pois o isolamento intelectual inviolável é agora a
- única maneira de mostrar algum grau de solidariedade. ... O observador distante está
- tão envolvido quanto o participante ativo; a única vantagem do primeiro é a
- visão desse envolvimento e a liberdade infinitesimal que reside no conhecimento
- enquanto tal.13
- Ficará claro que a visão é o começo da liberdade se lembrarmos que "para um sujeito
- que age ingenuamente ... seu próprio condicionamento é não-transparente14 e que
- a não-transparência do condicionamento é garantia de ingenuidade perpétua. Assim
- como o pensamento não precisa de nada senão de si mesmo para perpetuar-se,
- também
- a ingenuidade é auto-suficiente; enquanto não for perturbada pela visão, manterá
- intacto seu próprio condicioriamento.
- "Não perturbado": em verdade, a chegada da visão quase nunca é bem-vinda para
- aqueles que se acostumaram a viver sem ela como doce perspectiva da liberdade. A
- inocência
- da ingenuidade faz com que até mesmo a condição mais turbulenta e traiçoeira pareça
- familiar e, portanto, segura, e qualquer visão de seus precários andaimes é um
- prodígio de falta de confiança, dúvida e insegurança que poucos receberiam
- esperançosamente. Parece que, para Adorno, essa ampla rejeição da visão é positiva,
- embora
- não anuncie um caminho fácil. A falta de liberdade do ingênuo é a liberdade da pessoa
- que pensa. Ela torna o "isolamento inviolável" mais fácil. "Aquele que põe
- à venda algo que ninguém quer comprar representa, mesmo contra sua vontade, a
- liberdade em relação à troca'15 Há apenas um passo que leva dessa idéia a
- outra: a do exílio como condição arquetípica da liberdade em relação à troca. Os
- produtos que o exílio oferece são tais que ninguém teria qualquer inclinação de
- comprá-los. "Todo intelectual emigrado está, sem exceção, mutilado", escreveu Adorno
- em seu próprio exílio nos Estados Unidos. "Ele vive num ambiente que permanecerá
- incompreensível" Não surpreende que ele esteja protegido contra o risco de produzir
- qualquer coisa de valor no mercado local. Portanto, "se na Europa o gesto esotérico
- era freqüentemente apenas um pretexto para o mais cego auto-interesse, o conceito
- de austeridade parece, no exílio, o mais aceitável dos salva-vidas"6. O exílio
- é para o pensador o que o lar é para o ingênuo; é no exílio que o distanciamento, modo
- de vida habitual da pessoa que pensa, adquire valor de sobrevivência.
- Ao lerem a edição dos Upanishads de Deussen, Adorno e Horkheimer comentam
- amargamente que os sistemas teóricos e práticos dessas pessoas que buscam da
- união entre
- a verdade, a beleza e a justiça, esses "estranhos à história", "não são muito rigorosos e
- centrados; distinguem-se dos sistemas acabados por um elemento de anarquia.
- Atribuem maior importância à idéia e ao indivíduo que à administração e ao coletivo.
- Portanto, despertam ódio"7. Para que as idéias tenham sucesso, para que atinjam
- a imaginação dos habitantes da caverna, o elegante ritual védico deverá superar as
- vagas meditações dos Upanishads; os frios e bem-comportados estóicos deverão
- substituir
- os impetuosos e arrogantes cínicos; e o absolutamente prático São Paulo deverá
- substituir o estranhamente pouco prático São João Batista. A grande questão, porém,
- é se o poder emancipatório dessas idéias pode sobreviver a seu sucesso mundano. A
- resposta de Adorno a tal questão recende a melancolia: "A história das antigas
- religiões e escolas, como a dos partidos e revoluções modernas, nos ensina que o
- preço da sobrevivência é o envolvimento prático, a transformação das idéias em
- dominação"8.
- Nesta última frase, o principal dilema estratégico que assombrava o fundador e mais
- notório escritor da "escola crítica" original encontra sua mais vivida expressão:
- quem quer que pense e se aflija está condenado a navegar entre o Sila do pensamento
- limpo
- 52
- Modernidade Líquida
- Emancipação
- 1
- 53
- ii
- 54
- Emancipação 55
- Modernidade Líquida
- mas impotente e o Caribdis da tentativa eficaz mas poluida pela dominação. Tertium
- non datur. Nem a aposta na prática nem a recusa a ela constituem boa solução.
- A primeira tende, inevitavelmente, a transformar-se em dominação - com todo seu
- séquito de horrores: novas limitações à liberdade, a pragmática utilitária dos efeitos
- tendo precedência sobre os princípios éticos das razões e a diluição e subseqüente
- distorção das ambições da liberdade. A segunda pode talvez satisfazer o desejo
- narcisístico da pureza intocada, mas manteria o pensamento ineficaz e, no limite,
- estéril: a filosofia, como Ludwig Witgenstein observou com tristeza, deixaria tudo
- como era; o pensamento nascido da revolta contra a inumanidade da condição
- humana faria pouco ou nada para tornar mais humana essa condição. O dilema entre
- vita
- contemplativa e vila activa se resume a uma escolha entre duas perspectivas
- igualmente pouco atraentes. Quanto mais os valores preservados no pensamento
- forem protegidos
- da poluição, menos significativos serão para a vida daqueles a quem devem servir.
- Quanto maiores seus efeitos nessa vida, menos essa vida reformada fará lembrar
- os valores que induziram e inspiraram a reforma.
- O tormento de Adorno tem uma longa história, chegando à questão de Platão sobre a
- sabedoria e a possibilidade do "retorno à caverna' Essa questão surgiu a partir
- da invocação de Platão aos filósofos para que abandonassem a caverna escura do
- quotidiano e - em nome da pureza do pensamento - recusassem qualquer intercmhio
- com
- os habitantes da caverna enquanto durasse sua jornada no iluminado mundo exterior
- das idéias claras e lúcidas. O problema era se, na volta, os filósofos quereriam
- compartilhar os troféus da jornada com os de dentro da caverna e - caso o quisessem -
- se os outros os ouviriam e lhes dariam crédito. Fiel às idéias de seu tempo,
- Platão esperava que o provável desencontro na comunicação resultasse na morte dos
- portadores das notícias...
- A versão de Adorno do problema de Platão tomou forma no mundo pós-iluminista,
- quando queimar hereges e dar cicuta aos arautos de uma vida mais nobre estavam
- definitivamente
- fora de moda. Nesse novo mundo, os habitantes da caverna, reencarnados como
- Bürger, não exibiam mais o entusiasmo pela verdade e pelos
- valores mais altos dos onginais de Platão; esperava-se que opusessem firme e feroz
- resistência a uma mensagem fadada a perturbar a tranqüilidade de sua rotina diária.
- Fiel às novas idéias, porém, o resultado da ruptura na comunicação aparecia de forma
- diferente. A união entre conhecimento e poder, mera fantasia nos tempos de Platão,
- tornou-se um postulado rotineiro e quase axiomático da filosofia e uma afirmação
- comum e diariamente repetida da política. De algo pelo quê se poderia morrer, a
- verdade tornou-se algo que oferecia boas razões pelas quais se poderia matar. (Foi um
- pouco das duas coisas todo o tempo, mas as proporções na mistura mudaram
- drasticamente).
- Era portanto natural e razoável esperai nos tempos de Adorno, que os rejeitados
- apóstolos das boas notícias recorressem à força sempre que pudessem; e buscassem
- a dominação para quebrar a resistência e compelir, impelir ou subornar seus
- opositores a seguir a rota que relutavam a encetar. Ao velho dilema - como encontrar
- as palavras adequadas aos ouvidos não-iniciados sem comprometer a essência da
- mensagem; como expressar a verdade numa forma fácil de compreender e
- suficientemente
- atraente para que sua compreensão pudesse ser desejada sem deturpar ou diluir seu
- conteúdo -, a esse dilema veio somar- se uma nova dificuldade, particularmente
- dura e angustiante no caso de uma mensagem com ambições emancipadoras e
- libertadoras: como evitar, ou ao menos limitar, o impacto corruptor do poder e da
- dominação,
- vistos agora como principal veículo portador da mensagem aos recalcitrantes e
- indiferentes? As duas angústias se entrelaçam, às vezes se fundem - como na áspera,
- ainda que inconclusiva, disputa entre Leo Strauss e Alexandre Kojève.
- "A filosofia' insiste Strauss, é a busca da "ordem eterna e imutável na qual a história
- acontece e que permanece inalterada pela história" O que é eterno e imutável
- é também universal; embora a aceitação universal dessa ordem eterna e imutável
- possa ser atingida somente com base no conhecimento genuíno ou na sabedoria - não
- através da reconciliação ou do acordo entre opiniões.
- O acordo fundado na opinião não pode nunca se tornar um acordo
- universal. Toda fé que pretende a universalidade, isto é, a aceitação
- 56
- Modernidade Líquida
- Emancipação
- 57
- universal, necessariamente provoca uma contra-fé com a mesma pretensão. A difusão
- entre os não-iniciados do conhecimento genuíno adquirido pelos sábios não serviria
- para nada, pois pela difusão ou diluição o conhecimento inevitavelmente se transforma
- em opinião, preconceito ou mera crença.
- Tanto para Strauss quanto para Kojéve, essa diferença entre o saber e a "mera crença'
- bem como a dificuldade de comunicação entre elas, apontava imediata e
- automaticamente
- para a questão do poder e da política. Os dois polemistas viam a incompatibilidade
- entre os dois tipos de conhecimento como a questão da direção, da coerção e do
- engajamento político dos "portadores do saber' como o problema da relação entre a
- filosofia e o Estado, considerado o lugar e foco por excelência da política. O
- problema se reduz a uma escolha entre o envolvirneiito político e o radical
- distanciamento da prática política, e ao cálculo cuidadoso dos ganhos, riscos e
- prejuízos
- potenciais de cada uma dessas posições.
- Dado que a ordem eterna, a questão com que os filósofos verdadeiramente se
- ocupam, não é "afetada pela história' de que maneira o comércio pode, com os
- administradores
- da história, os poderes do momento, auxiliar a causa da filosofia? Para Strauss,
- tratava-se de urna questão retórica, pois "não há como" seria a única resposta razoável
- e auto-evidente. A verdade da filosofia pode, de fato, não ser afetada pela história,
- respondia Kojéve, mas daí não decorre que se possa evitar a história: o objetivo
- dessa verdade é entrar na história para re-formá-la - e assim a tarefa prática do
- comércio com os detentores do poder, os guardiões que vigiam essa entrada e
- controlam
- o tráfego, permanece como parte integrante e vital dos afazeres da filosofia. A história
- é a realização da filosofia; a verdade da filosofia encontra seu teste e
- confirmação últimos em sua aceitação e reconhecimento, tornando-se, nas palavras
- dos filósofos, a carne dapolis. O reconhecimento é o te/os e verificação última
- da filosofia; e assim o objeto da ação dos filósofos não são apenas os próprios
- filósofos, seu pensamento, o "fazer interno" do filosofar, mas o mundo enquanto tal,
- e, por fim, a harmonia entre os dois, ou, antes, o refazer o mundo à imagem da
- verdade cujos guardiões são os filósofos. "Não ter intercâmbio"
- com a política não é, portanto, uma resposta; cheira a traição não só ao "mundo que aí
- está", mas também à própria filosofia.
- Não há como evitar o problema da "ponte política" para o mundo. E como essa ponte
- não pode senão ser controlada pelos servidores do Estado, a questão de como usá-los
- para suavizar a passagem da filosofia ao mundo não desaparecerá e terá de ser
- enfrentada. E tampouco há como evitar o fato duro de que - pelo menos no começo,
- enquanto
- a distância entre a verdade da filosofia e a realidade do mundo não for preenchida - o
- Estado seja tirânico. A tirania (Kojéve é inflexível quanto à possibilidade
- de essa forma de governo ser definida em termos moralmente neutros) ocorre quando
- uma fração dos cidadãos (pouco importa que sejam minoria ou maioria) impõe a todos
- os outros cidadãos suas idéias e ações, que são guiadas por uma autoridade que
- essa fração reconhece espontaneamente, mas que não conseguiu fazer que os outros
- reconheçam; e quando essa fração as impõe aos outros sem "chegar a acordo" com
- eles,
- sem tentar chegar a algum "compromisso" com eles e sem considerar suas idéias e
- desejos (determinados por outra autoridade, que esses outros reconhecem
- espontaneamente).
- Como é essa desconsideração das idéias e desejos dos "outros" que faz a tirania
- tirânica, a tarefa consiste em romper a corrente cismogenética (como diria Gregory
- Bateson) da negligência arrogante, de um lado, e do dissenso mudo, de outro, e
- encontrar algum terreno em que ambos possam se encontrar para uma conversação
- frutífera.
- Esse terreno (e aqui Kojève e Strauss concordam) só pode ser oferecido pela verdade
- da filosofia, que se ocupa
- - necessariamente - das coisas eternas e válidas absoluta e universalmente. (Todos os
- outros terrenos, oferecidos pelas "meras crenças' só poderão servir como campos
- de batalha, e nunca como salas de conferência). Kojéve acreditava que isso é possível,
- mas Strauss não: "Não acredito na possibilidade de uma conversação entre Sócrates
- e o povo" Quem quer que se envolva em tal conversação não é um filósofo, mas
- "algum tipo de retórico" preocupado não tanto em construir o caminho pelo qual a
- verdade
- pode chegar ao povo quanto em obter a obediência ao que quer que os
- 58
- poderes precisem ou desejem estabelecer. Os filósofos pouco podem fazer além de
- aconselhar os retóricos, e a probabilidade de seu sucesso está fadada a ser mínima.
- As chances de a filosofia e a sociedade virem a se reconciliar e a se tornar uma só são
- mínimas. 19
- Strauss e Kojéve concordavam que o elo entre os valores universais e a realidade da
- vida social historicamente constituída é a política; escrevendo de dentro da
- modernidade pesada, tinham como ponto pacífico que a política se imbrica nas ações
- do Estado. E assim se seguia sem maiores discussões que o problema diante dos
- filósofos era o de uma simples escolha entre "pegar ou largar":
- seja utilizando esse elo, a despeito de todos os riscos que uma tentativa de utilizá-lo
- deve necessariamente envolver, seja (em nome da pureza de pensamento) mantendose
- longe dele e cuidando da distancia em relação ao poder e seus detentores. A escolha
- se dava, em outras palavras, entre a verdade fadada à impotência e a potência
- fadada a ser infiel à verdade.
- A modernidade pesada era, afinal, a época de moldar a realidade como na arquitetura
- ou na jardinagem; a realidade adequada aos veredictos da razão deveria ser
- "construída"
- sob estrito controle de qualidade e conforme rígidas regras de procedimento, e mais
- que tudo projetada antes da construção. Era uma época de pranchetas e projetos
- - não tanto para mapear o território social como para erguer tal território até o nível de
- lucidez e lógica de que só os mapas são capazes. Era uma época que pretendia
- impor a razão à realidade por decreto, remanejar as estruturas de modo a estimular o
- comportamento racional e a elevar os custos de todo comportamento contrário
- à razão tão alto que os impedisse. Em razão do decreto, negligenciar os legisladores e
- as agências coercitivas não era, obviamente, uma opção. A questão da relação
- com
- o Estado, fosse cooperativa ou contestadora, era seu dilema de formação; de fato, uma
- questão de vida ou morte.
- A crítica da política-vida
- Como o Estado não mais promete ou deseja agir como plenipotenciário da razão e
- mestre-de-obras da sociedade racional; como
- Emancipação
- 59
- as pranchetas nos escritórios da boa sociedade estão em processo de ser eliminadas;
- e como a variada multidão de conselheiros, intérpretes e assessores assume cada
- vez mais as tarefas previa- mente reservadas aos legisladores não é de surpreender
- que os críticos que desejavam ser instrumentais na atividade de emancipação
- lamentem
- sua privação. Não apenas o suposto veículo - e, simultanearnente, o alvo da luta pela
- libertação -. está se esfacelando; o dilema central, constitutivo, da teoria
- crítica, o próprio eixo em torno do qual girava o discurso crítico, dificilmente sobreviverá
- ao desaparecimento do veículo. O discurso crítico, como muitos podem
- sentir, está a ponto de ficar sem objeto. E muitos podem agarrar-se - e de fato o fazem
- - desesperadamente à estratégia ortodoxa da crítica apenas para confirmar,
- inadvertida- mente, que o discurso carece, de fato, de um objeto tangível, à medida
- que os diagnósticos são cada vez mais desligados das realidades correntes e as
- propostas são cada vez mais nebulosas; muitos insistem em travar velhas batalhas em
- que ganham competência e preferem isso a uma mudança do campo de batalha
- familiar
- e confiável para um novo território ainda não inteiramente explorado, de muitas
- maneiras uma terra incognita.
- As perspectivas para urna teoria crítica (para não falar da demanda por ela) não estão,
- porém, amarradas às formas de vida hoje em recuo da mesma maneira que a
- autoconsciência
- dos críticos está amarrada às formas, habilidades e programas desenvolvidos no curso
- do enfrentamento com elas. Foi só o sentido atribuído à emancipação sob condições
- passadas e não mais presentes que ficou obsoleto - não a tarefa da emancipação em
- si. Outra coisa está agora em jogo. Há uma nova agenda pública de emancipação
- ainda
- à espera de ser ocupada pela teoria crítica. Essa nova agenda pública, ainda à espera
- de sua política pública crítica, está emergindo junto com a versão "liquefeita"
- da condição humana moderna - e em particular na esteira da "individualização" das
- tarefas da vida que derivam dessa condição.
- Essa nova agenda surge do hiato previamente discutido entre a individualidade dejure
- e defacto, ou entre a "liberdade negativa" legalmente imposta e a ausente -
- ou, pelo menos, longe de universalmente disponível - "liberdade positiva' isto é a
- genuína
- 11
- Modernidade Líquida
- 60 Modernidade Líquida
- Emancipação 61
- potência da auto-afirmação. A nova condição não é muito diferente daquela que,
- segundo a Bíblia, levou à rebelião dos israelitas e ao êxodo do Egito. "O faraó ordenou
- aos inspetores e seus capatazes que deixassem de suprir o povo com a palha utilizada
- para fazer tijolos ... 'Que eles vão e colham sua própria palha, mas cuidem
- para que atinjam a mesma quota de tijolos de antes." Quando os capatazes
- argumentaram que não se pode fazer tijolos eficientemente a menos que a palha seja
- devidamente
- fornecida e acusaram o faraó de ordenar o impossível, ele inverteu a responsabilidade
- pelo fracasso: "Vocês são preguiçosos, vocês são preguiçosos." Hoje não há
- faraós dando ordens aos capatazes para que açoitem os displicentes. (Até o açoite se
- tornou um trabalho "faça- você-mesmo" e foi substituído pela auto-flagelação).
- Mas a tarefa de providenciar a palha foi igualmente abandonada pelas autoridades do
- momento, que dizem aos produtores de tijolos que só sua preguiça os impede de
- fazer o trabalho adequadamente - e acima de tudo que o façam para sua própria
- satisfação.
- O trabalho de que os homens estão encarregados hoje é muito semelhante ao que era
- desde o começo dos tempos modernos: a autoconstituir a vida individual e tecer
- e manter as redes de laços com outros indivíduos em processo de autoconstituição.
- Esse trabalho nunca foi questionado pela teoria crítica. O que estes teóricos criticavam
- era a sinceridade e rapidez com que os indivíduos eram libertados para realizar o
- trabalho que lhes tinha sido atribuído. A teoria crítica acusava de duplicidade
- ou ineficiência aqueles que deveriam ter providenciado as condições adequadas para a
- auto-afirmação: havia limitações demais à liberdade de escolha e havia a tendência
- totalitária intrínseca ao modo como a sociedade moderna fora estruturada e conduzida
- - tendência essa que ameaçava abolir a liberdade de uma vez, substituindo a
- liberdade de escolha pela tediosa homogeneidacie, imposta ou subrepticiamente
- introduzida.
- O destino do agente livre está cheio de antinomias difíceis de avaliar e ainda mais
- dificejs de resolver. Consideremos, por exempio, a contradição das identidades
- autoconstituidas que devem ser suficientemente sólidas para serem reconhecidas
- como tais e ao mesmo tempo flexíveis o suficiente para não impedir a liberdade
- de movimentos futuros em circunstâncias constantemente cambiantes e voláteis. Ou a
- precariedade das parcerias humanas, agora sobrecarregadas de expectativas maiores
- que nunca, mas mal institucionalizadas (se institucionalizadas), e portanto menos
- resistentes à carga adicional. Ou o triste compromisso da responsabilidade repossuída,
- perigosamente à deriva entre as rochas da indiferença e da coerção. Ou a fragilidade
- de toda ação comum, que tem como apoio apenas o entusiasmo e a dedicação dos
- atores, mas que precisa de algo mais durável para manter sua integridade durante o
- tempo que leva para alcançar seus propósitos. Ou a notória dificuldade de generalizar
- as experiências, vividas como inteiramente pessoais e subjetivas, em problemas que
- possam ser inscritos na agenda pública e tornar-se questões de política pública.
- Esses são apenas alguns exemplos, que oferecem uma visão justa do tipo de desafio
- diante dos críticos que desejam reconectar sua disciplina à agenda da política
- pública.
- Com boas razões os críticos suspeitavam de que, na versão iluminista do "déspota
- esclarecido' tal como incorporada nas práticas políticas da modernidade, o que conta
- é o resultado - a sociedade racionalmente estruturada e dirigida; suspeitavam de que
- as vontades, desejos e propósitos individuais, a vis formandi e a libidoformandi
- individuais, a propensão poiética a criar novas significações independentes de funções,
- usos e propósitos, não eram mais que recursos, ou mesmo obstáculos no caminho.
- Contra essa prática, ou sua suposta tendência, os críticos formularam a visão de uma
- sociedade que se rebela contra essa perspectiva, de uma sociedade em que
- precisamente
- essas vontades, desejos e propósitos, e sua satisfação, são o que conta e deve ser
- honrado - visão de uma sociedade que, por isso, milita contra todos os esquemas
- de perfeição impostos aos desejos (ou que os desconsideram) dos homens e mulheres
- que são incluídos sob seu nome genérico. A única "totalidade" reconhecida e aceitável
- pela maioria dos filósofos da escola crítica era a que poderia emergir das ações de
- indivíduos criativos e livres para escolher.
- Havia um traço anarquista em toda a teorização crítica: todo poder era suspeito, via-se
- o inimigo apenas no lado do poder, e o mesmo inimigo era acusado de todos
- os retrocessos e frustrações
- 1
- 62 Modernidade Líquida
- sofridas pela liberdade (inclusive pela falta de valor das tropas que deveriam enfrentar
- valentemente suas guerras de libertação, como no caso do debate da "cultura
- de massas"). Esperava-se que o perigo viesse e os golpes fossem desferidos do lado
- "público' sempre pronto a invadir e colonizar o "privado' o "subjetivo' o "individual'
- Muito menos atenção - quase nenhuma - foi dada aos perigos que se ocultavam no
- estreitamento e esvaziamento do espaço público e à possibilidade da invasão inversa:
- a colonização da esfera pública pela privada. E no entanto essa eventualidade
- subestimada e subdiscutida se tornou hoje o principal obstáculo à emancipação, que
- em seu estágio presente só pode ser descrita como a tarefa de transformar a
- autonomia individual de jure numa autonomia defacto.
- O poder político implica uma liberdade individual incompleta, mas sua retirada ou
- desaparecimento prenuncia a impotência pra'tica da liberdade legalmente vitoriosa.
- A história da emancipação moderna desloca-se de um confronto com o primeiro perigo
- para um confronto com o segundo. Para utilizar os termos de Isaiah Berlin, pode-se
- dizer que, depois da luta vitoriosa pela "liberdade negativa': as alavancas necessárias
- para transformá-la numa "liberdade positiva" - isto é, a liberdade para estabelecer
- a gama de opções e a agenda para a escolha entre elas - quebraram. O poder político
- perdeu muito de sua terrível e ameaçadora potência opressiva - mas também perdeu
- boa parte de sua potência capacitadora. A guerra pela emancipação não acabou. Mas,
- para progredir, deve agora ressuscitar o que na maior parte de sua história lutou
- por destruir e afastar do caminho. A verdadeira libertação requer hoje mais, e não
- menos, da "esfera pública "e do "poder público " Agora é a esfera pública que
- precisa desesperadamente de defesa contra o invasor privado - ainda que,
- paradoxalmente, não para reduzir, mas para viabilizar a liberdade individual.
- Como sempre, o trabalho do pensamento crítico é trazer à luz os muitos obstáculos
- que se amontoam no caminho da emancipação. Dada a natureza das tarefas de hoje,
- os principais obstáculos que devem ser examinados urgentemente estão ligados às
- crescentes dificuldades de traduzir os problemas privados em questões públicas, de
- condensar problemas intrinsecamente privados
- Emancipação 63
- em interesses públicos que são maiores que a soma de seus ingredientes individuais,
- de recoletivizar as utopias privatizadas da "política-vida" de tal modo que possam
- assumir novamente a forma das visões da sociedade "boa" e "justa' Quando a política
- pública abandona suas funções e a "política-vida" assume, os problemas enfrentados
- pelos indivíduos de jure em seus esforços para se tornarem indivíduos de facto
- passam a ser não-aditivos e não-cumulativos, destituindo assim a esfera pública de
- toda substância que não seja a do lugar em que as aflições individuais são
- confessadas e expostas publicamente. Do mesmo modo, a individualização parece ser
- uma
- via de mão única, e também parece destruir, ao avançar, todas as ferramentas que
- poderiam ser usadas para implementar seus objetivos de outrora.
- Essa tarefa coloca a teoria crítica cara a cara com um novo destinatário. O espectro do
- Grande Irmão deixou de perambular pelos sótãos e porões do mundo quando o
- déspota esclarecido deixou de habitar as salas de estar e recepção. Em suas novas
- versões, moderno-líquidas e drasticamente encolhidas, ambos encontram abrigo no
- domínio diminuto, em miniatura, da política- vida pessoal; é lá que as ameaças e
- oportunidades da autonomia individual - essa autonomia que não se pode realizar
- exceto na sociedade autônoma - devem ser procuradas e localizadas. A busca de uma
- vida em comum alternativa deve começar pelo exame das alternativas de política-vida.
Advertisement
Add Comment
Please, Sign In to add comment
Advertisement