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Mar 21st, 2018
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  1. PREFÁCIO
  2. SER LEVE E LÍQUIDO
  3. Interrupção, incoerência, surpresa são as condições comuns de nossa vida. Elas se
  4. tornaram mesmo necessidades reais para muitas pessoas, cujas mentes deixaram de
  5. ser alimentadas
  6. por outra coisa que não mudanças repentinas e estímulos constantemente
  7. renovados ... Não podemos mais tolerar o que dura. Não sabemos mais fazer com que
  8. o tédio
  9. dê frutos.
  10. Assim, toda a questão se reduz a isto: pode a mente humana
  11. dominar o que a mente hmnana criou?
  12. Paul Valéry
  13. "Fluidez" é a qualidade de líquidos e gases. O que os distingue dos sólidos, como a
  14. Enciclopédia britdnica, com a autoridade que tem, nos informa, é que eles "não
  15. podem suportar uma força tangencial ou deformante quando imóveis" e assim "sofrem
  16. uma constante mudança de forma quando submetidos a tal tensão'
  17. Essa contínua e irrecuperável mudança de posição de uma parte do material em
  18. relação a outra parte quando sob pressão deformante constitui o fluxo, propriedade
  19. característica
  20. dos fluidos. Em contraste, as forças deformantes num sólido torcido ou flexionado se
  21. mantêm, o sólido não sofre o fluxo e pode voltar à sua forma original.
  22. Os líquidos, uma variedade dos fluidos, devem essas notáveis qualidades ao fato de
  23. que suas "moléculas são mantidas num arranjo ordenado que atinge apenas poucos
  24. diâmetros moIecu1ares' enquanto "a variedade de comportamentos exibida pelos
  25. sólidos é um resultado direto do tipo de liga que une os seus átomos e dos arranjos
  26. estruturais destes' "Liga", por sua vez, é um termo
  27. 7
  28. 8 Modernidade Líquida
  29. Prefácio 9
  30. que indica a estabilidade dos sólidos - a resistência que eles "opõem à separação dos
  31. átomos'
  32. Isso quanto à Enciclopedia brit&nica - no que parece uma tentativa de oferecer
  33. "fluidez" como a principal metáfora para o estágio presente da era moderna.
  34. O que todas essas características dos fluidos mostram, em linguagem simples, é que
  35. os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade.
  36. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os
  37. sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto,
  38. diminuem
  39. a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os
  40. fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos
  41. (e propensos) a mudá-la; assim, para eles, o que conta é o tempo, mais do que o
  42. espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas "por um
  43. momento'
  44. Em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para os líquidos, ao contrário, o tempo
  45. é o que importa. Ao descrever os sólidos, podemos ignorar inteiramente o tempo;
  46. ao descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro. Descrições de
  47. líquidos são fotos instantâneas, que precisam ser datadas.
  48. Os fluidos se movem facilmente. Eles "fluem", "escorrem", "esvaem-se", "respingam",
  49. "transbordam", "vazam", "inundam", "borrifam", "pingam"; são "filtrados", "destilados";
  50. diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos - contornam certos obstáculos,
  51. dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. Do encontro com sólidos
  52. emergem intactos, enquanto os sólidos que encontraram, se permanecem sólidos, são
  53. alterados - ficam molhados ou encharcados. A extraordinária mobilidade dos fluidos
  54. é o que os associa à idéia de "leveza' Há líquidos que, centímetro cúbico por
  55. centímetro cúbico, são mais pesados que muitos sólidos, mas ainda assim tendemos a
  56. vê-los como mais leves, menos "pesados" que qualquer sólido. Associamos "leveza"
  57. ou "ausência de peso" à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto
  58. mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos.
  59. Essas são razões para considerar "fluidez" ou "liquidez" como metáforas adequadas
  60. quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na
  61. história da modernidade.
  62. Concordo prontamente que tal proposição deve fazer vacilar quem transita à vontade
  63. no "discurso da modernidade" e está familiarizado com o vocabulário usado
  64. normalmente
  65. para narrar a história moderna. Mas a modernidade não foi um processo de
  66. "liquefação" desde o começo? Não foi o "derretimento dos sólidos" seu maior
  67. passatempo e
  68. principal realização? Em outras palavras, a modernidade não foi "fluida" desde sua
  69. concepção?
  70. Essas e outras objeções semelhantes são justificadas, e o parecerão ainda mais se
  71. lembrarmos que a famosa frase sobre "derreter os sólidos", quando cunhada há um
  72. século e meio pelos autores do Manfrsto comunista, referia-se ao tratamento que o
  73. autoconfiante e exuberante espírito moderno dava à sociedade, que considerava
  74. estagnada
  75. demais para seu gosto e resistente demais para mudar e amoldar-se a suas ambições
  76. - porque congelada em seus caminhos habituais. Se o "espírito" era "moderno", ele
  77. o era na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emancipada
  78. da "mão morta" de sua própria história - e isso só poderia ser feito derretendo
  79. os sólidos (isto é, por definição, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e
  80. fosse infenso à sua passagem ou imune a seu fluxo). Essa intenção clamava, por
  81. sua vez, pela "profanação do sagrado": pelo repúdio e destronamento do passado, e,
  82. antes e acima de tudo, da "tradição" - isto é, o sedimento ou resíduo do passado
  83. no presente; clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenças e
  84. lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à "liquefação'
  85. Lembremos, no entanto, que tudo isso seria feito não para acabar de uma vez por
  86. todas com os sólidos e construir um admirável mundo novo livre deles para sempre,
  87. mas para limpar a área para novos e aperfeiçoados s6/idos-, para substituir o conjunto
  88. herdado de sólidos deficientes e defeituosos por outro conjunto, aperfeiçoado
  89. e preferivelmente perfeito, e por isso não mais alterável. Ao ler o Ancien Régime de
  90. Tocquevillc, podemos nos perguntar até que ponto os "sólidos encontrados" não
  91. teriam sido desprezados, condenados e destinados à liquefação por já estarem enferru
  92. lo Modernidade Líquida
  93. Prefácio ii
  94. jados, esfarelados, com as costuras abrindo; por não se poder confiar neles. Os
  95. tempos modernos encontraram os sólidos pré- modernos em estado avançado de
  96. desintegração;
  97. e um dos motivos mais fortes por trás da urgência em derretê-los era o desejo de, por
  98. uma vez, descobrir ou inventar sólidos de solidez duradoura, solidez em que
  99. se pudesse confiar e que tornaria o mundo previsível e, portanto, administrável.
  100. Os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades
  101. tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos,
  102. impediam os movimentos e restringiam as iniciativas. Para poder construir seriamente
  103. uma nova ordem (verdadeiramente sólida!) era necessário primeiro livrar-se do
  104. entulho com que a velha ordem sobrecarregava os construtores. "Derreter os sólidos"
  105. significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigações "irrelevantes" que
  106. impediam a via do cálculo racional dos efeitos; como dizia Max Weber, libertar a
  107. empresa de negócios dos grilhões dos deveres para com a família e o lar e da densa
  108. trama das obrigações éticas; ou, como preferiria Thomas Carlyle, dentre os vários
  109. laços subjacentes às responsabilidades humanas mútuas, deixar restar somente o
  110. "nexo dinheiro' Por isso mesmo, essa forma de "derreter os sólidos" deixava toda a
  111. complexa rede de relações sociais no ar - nua, desprotegida, desarmada e exposta,
  112. impotente para resistir às regras de ação e aos critérios de racionalidade inspirados
  113. pelos negócios, quanto mais para competir efetivamente com eles.
  114. Esse desvio fatal deixou o campo aberto para a invasão e dominação (como dizia
  115. Weber) da racionalidade instrumental, ou (na formulação de Karl Marx) para o papel
  116. determinante da economia: agora a "base" da vida social outorgava a todos os outros
  117. domínios o estatuto de "superestrutura" - isto é, um artefato da "base' cuja
  118. única função era auxiliar sua operação suave e contínua. O derretimento dos sólidos
  119. levou à progressiva libertação da economia de seus tradicionais embaraços políticos,
  120. éticos e culturais. Sedimentou uma nova ordem, definida principalmente em termos
  121. econômicos. Essa nova ordem deveria ser mais "sólida" que as ordens que substituía,
  122. porque, diferentemente delas, era imune a desafios por qualquer ação que não fosse
  123. econômica. A
  124. maioria das alavancas políticas ou morais capazes de mudar ou reformar a nova
  125. ordem foram quebradas ou feitas curtas ou fracas demais, ou de alguma outra forma
  126. inadequadas
  127. para a tarefa. Não que a ordem econômica, uma vez instalada, tivesse colonizado,
  128. reeducado e convertido a seus fins o restante da vida social; essa ordem veio a
  129. dominar a totalidade da vida humana porque o que quer que pudesse ter acontecido
  130. nessa vida tornou-se irrelevante e ineficaz no que diz respeito à implacável e contínua
  131. reprodução dessa ordem.
  132. Esse estágio na carreira da modernidade foi bem descrito por Claus Offe (em "A utopia
  133. da opção zero' publicado originalmente em 1987 em Praxis international): as
  134. sociedades "complexas se tornaram rígidas a tal ponto que a própria tentativa de
  135. refletir normativamente sobre elas ou de renovar sua 'ordem isto é, a natureza da
  136. coordenação dos processos que nelas têm lugar, é virtualmente impedida por força de
  137. sua própria futilidade, donde sua inadequação essencial' Por mais livres e voláteis
  138. que sejam os "subsistemas" dessa ordem, isoladamente ou em conjunto, o modo como
  139. são entretecidos é "rígido, fatal e desprovido de qualquer liberdade de escolha'
  140. A ordem das coisas como um todo não está aberta a opções; está longe de ser claro
  141. quais poderiam ser essas opções, e ainda menos claro como uma opção
  142. ostensivamente
  143. viável poderia ser real no caso pouco provável de a vida social ser capaz de concebê-
  144. la e gestá-la. Entre a ordem como um todo e cada uma das agências, veículos
  145. e estratagemas da ação proposital há uma clivagem - uma brecha que se amplia
  146. perpetuamente, sem ponte à vista.
  147. Ao contrário da maioria dos cenários distópicos, este efeito não foi alcançado via
  148. ditadura, subordinação, opressão ou escravização; nem através da "colonização"
  149. da esfera privada pelo "sistema' Ao contrário: a situação presente emergiu do
  150. derretimento radical dos grilhões e das algemas que, certo ou errado, eram suspeitos
  151. de limitar a liberdade individual de escolher e de agir. A rigidez da ordem é o artefato e
  152. o sedimento da liberdade dos agentes humanos. Essa rigidez é o resultado
  153. de "soltar o freio": da desregulamentação, da liberalização, da "flexibilização' da
  154. "fluidez" crescente, do descontrole dos mercados financeiro, imobiliário e
  155. 12 Modernidade Líquida
  156. Prefácio 13
  157. de trabalho, tornando mais leve o peso dos impostos etc. (como Offe observou em
  158. "Amarras, algemas, grades", publicado original- mente em 1987); ou (para citar Richard
  159. Senett em Flesh and Stone) das técnicas de "velocidade, fuga, passividade" - em
  160. outras palavras, técnicas que permitem que o sistema e os agentes livres se
  161. mantenham
  162. radicalmente desengajados e que se desencontrem em vez de encontrar-se. Se o
  163. tempo das revoluções sistêmicas passou, é porque não há edificios que alojem as
  164. mesas
  165. de controle do sistema, que poderiam ser atacados e capturados pelos revolucionários;
  166. e também porque é terrivelmente dificil, para não dizer impossível, imaginar
  167. o que os vencedores, uma vez dentro dos edjficios (se os tivessem achado), poderiam
  168. fazer para virar a mesa e pôr fim à miséria que os levou à rebelião. Ninguém
  169. ficaria surpreso ou intrigado pela evidente escassez de pessoas que se disporiam a ser
  170. revolucionários: do tipo de pessoas que articulam o desejo de mudar seus planos
  171. individuais como projeto para mudar a ordem da sociedade.
  172. A tarefa de construir uma ordem nova e melhor para substituir a velha ordem
  173. defeituosa não está hoje na agenda - pelo menos não na agenda daquele domínio em
  174. que
  175. se supõe que a ação política resida. O "derretimento dos sólidos' traço permanente da
  176. modernidade, adquiriu, portanto, um novo sentido, e, mais que tudo, foi redirecionado
  177. a um novo alvo, e um dos principais efeitos desse redirecionamento foi a dissolução
  178. das forças que poderiam ter mantido a questão da ordem e do sistema na agenda
  179. política. Os sólidos que estão para ser lançados no cadinho e os que estão derretendo
  180. neste momento, o momento da modernidade fluida, são os elos que entrelaçam
  181. as escolhas individuais em projetos e ações coletivas - os padrões de comunicação e
  182. coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado,
  183. e as ações políticas de coletividades humanas, de outro.
  184. Numa entrevista a Jonathan Rutherford no dia três de fevereiro de 1999, Ulrich Beck
  185. (que alguns anos antes cunhara o termo "segunda modernidade" para conotar a fase
  186. marcada pela modernidade "voltando-se sobre si mesma': a era da assim chamada
  187. "modernização da modernidade") fala de "categorias zumbi" e "instituições zumbi': que
  188. estão "mortas e ainda vivas' Ele mencio n
  189. a família, a classe e o bairro como principais exemplos do novo fenômeno. A família,
  190. por exemplo:
  191. Pergunte-se o que é realmente uma família hoje em dia? O que sigriifica? E claro que
  192. há crianças, meus filhos, nossos filhos. Mas, mesmo a paternidade e a maternidade,
  193. o núcleo da vida familiar, estão começando a se desintegrar no divórcio ... Avós e avôs
  194. são incluídos e excluídos sem meios de participar nas decisões de seus filhos
  195. e filhas. Do ponto de vista de seus netos, o significado das avós e dos avôs tem que
  196. ser determinado por decisões e escolhas individuais.
  197. O que está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição e realocação dos
  198. "poderes de derretimento" da modernidade. Primeiro, eles afetaram as instituições
  199. existentes, as molduras que circunscreviam o domínio das ações-escolhas possíveis,
  200. como os estamentos hereditários com sua alocação por atribuição, sem chance de
  201. apelação. Configurações, constelações, padrões de dependência e interação, tudo isso
  202. foi posto a derreter no cadinho, para ser depois novamente moldado e refeito;
  203. essa foi a fase de "quebrar a forma" na história da modernidade inerentemente
  204. transgressiva, rompedora de fronteiras e capaz de tudo desmoronar. Quanto aos
  205. indivíduos,
  206. porém - eles podem ser desculpados por ter deixado de notá-lo; passaram a ser
  207. confrontados por padrões e figurações que, ainda que "novas e aperfeiçoadas' eram
  208. tão
  209. duras e indomáveis como sempre.
  210. Na verdade, nenhum molde foi quebrado sem que fosse sub stituído por outro; as
  211. pessoas foram libertadas de suas velhas gaiolas apenas para ser admoestadas e
  212. censuradas
  213. caso não conseguissem se realocar, através de seus próprios esforços dedicados,
  214. contínuos e verdadeiramente infindáveis, nos nichos pré-fabricados da nova ordem:
  215. nas classes, as molduras que (tão intransigentemente como os estamentosjá
  216. dissolvidos) encapsulavam a totalidade das condições e perspectivas de vida e
  217. determinavam
  218. o âmbito dos projetos e estratégias realistas de vida. A tarefa dos indivíduos livres era
  219. usar sua nova liberdade para encontrar o nicho apropriado e ali se acomodar
  220. e adaptar: seguindo fielmente as regras e modos de conduta identificados como
  221. corretos e apropriados para aquele lugar.
  222. 14 Modernidade Líquida
  223. Prefácio 15
  224. São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos
  225. selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar
  226. depois
  227. guiar, que estão cada vez mais em falta. Isso não quer dizer que nossos
  228. contemporâneos sejam guiados tão somente por sua própria imaginação e resolução e
  229. sejam livres
  230. para construir seu modo de vida a partir do zero e segundo sua vontade, ou que não
  231. sejam mais dependentes da sociedade para obter as plantas e os materiais de
  232. construção.
  233. Mas quer dizer que estamos passando de uma era de "grupos de referência"
  234. predeterminados a uma outra de "comparação universal' em que o destino dos
  235. trabalhos de
  236. autoconstrução individual está endêmica e incuravelmente subdeterminado, não está
  237. dado de antemão, e tende a sofrer numerosas e profundas mudanças antes que esses
  238. trabalhos alcancem seu único fim genuíno: o fim da vida do indivíduo.
  239. Hoje, os padrões e configurações não são mais "dados' e menos ainda "autoevidentes";
  240. eles são muitos, chocando-se entre si e contradizendo-se em seus
  241. comandos conflitantes,
  242. de tal forma que todos e cada um foram desprovidos de boa parte de seus poderes de
  243. coercitivamente compelir e restringir. E eles mudaram de natureza e foram
  244. reclassificados
  245. de acordo: como itens no inventário das tarefas individuais. Em vez de preceder a
  246. política- vida e emoldurar seu curso futuro, eles devem segui-la (derivar dela),
  247. para serem formados e reformados por suas flexões e torções. Os poderes que
  248. liquefazem passaram do "sistema" para a "sociedade' da "política" para as "políticas
  249. da vida" - ou desceram do nível "macro" para o nível "micro" do convívio social.
  250. A nossa é, como resukadn, um rjoidivi.daalizada e privatizada da modernidade, e o pp
  251. da trama dos padrões e -a principalmente sobre os ombrí do.jndjxíduns. Cli ou
  252. vez ilaliquefação dos padrões de dqaendudaeinterao. Eles são agora maleáveis a um
  253. ponto que ageraespasassada.srpeijmentaram e nem poderiam imagin&r: mas, com
  254. todos
  255. os fluidos ele não mantêm a forma por muitojçrnpo. DarJ.horma é mais fácil que
  256. mantê-los nela. Os sólid.oara sçmpre. Manter os fluidos em uma vigilância constante
  257. e esforço perpé tu
  258. - e mesmo assim o sucesso do esforço é tudo menos inevitável.
  259. smsuhstinianarofunda
  260. adïemo da "modernidade fluida" pioiuziiina
  261. O fato de que a estrutura sistêmica seja remota
  262. e inalcançável, aliado ao estado fluido e não-estruturado do cenário imediato da
  263. política-vida, muda aquela condição de um modo
  264. radical e requer que repensemos os velhos conceitos que costumavam cercar suas
  265. narrativas. Como zumbis, esses conceitos são hoje
  266. mortos-vivos. A questão prática consiste em saber se sua ressurreição, ainda que em
  267. nova forma ou encarnação, é possível; ou - se não for - como fazer com que eles
  268. tenham um enterro decente
  269. e eficaz.
  270. Este livro se dedica a essa questão. Foram selecionados para exame cinco dos
  271. conceitos básicos em torno dos quais as narrativas ortodoxas da condição humana
  272. tendem
  273. a se desenvolver: a emancipação, a individualidade, o tempo/espaço, o trabalho e a
  274. comunidade. Transformações sucessivas de seus significados e aplicações práticas
  275. são exploradas (ainda que de maneira muito fragmentária e preliminar) com a
  276. esperança de salvar os bebês do banho desta torrente de água poluída.
  277. A modernidade significa muitas coisas, e sua chegada e avanço podem ser aferidos
  278. utilizando-se muitos marcadores diferentes. Uma característica da vida moderna e
  279. de seu moderno entorno se impõe, no entanto, talvez como a "diferença que faz a
  280. diferença"; como o atributo crucial que todas as demais características seguem. Esse
  281. atributo é a relação cambiante entre espaço e tempo.
  282. A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida
  283. e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias distintas e mutuamente
  284. independentes
  285. da estratégia e da ação; quando deixam de ser, como eram ao longo dos séculos pré-
  286. modernos, aspectos entrelaçados e dificilmente distinguíveis da experiência vivida,
  287. presos numa estável e aparentemente invulnerável correspondência biunívoca. Na
  288. modernidade, o tempo tem histdria, tem história por causa de sua "capacidade de
  289. carga'
  290. perpetuamente em expansão - o alongamento dos trechos do espaço que unidades de
  291. tempo permitem "passar' "atravessar'
  292. 16 Modernidade Líquida
  293. Prefácio 17
  294. "cobrir" - ou conquütar. O tempo adquire história uma vez que a velocidade do
  295. movimento através do espaço (diferentemente do espaço eminentemente inflexível,
  296. que
  297. não pode ser esticado e que não encolhe) se torna uma questão do engenho, da
  298. imaginação e da capacidade humanas.
  299. A própria idéia de velocidade (e mais ainda a de aceleração), quando se refere à
  300. relação entre tempo e espaço, supõe sua variabilidade, e dificilmente teria qualquer
  301. significado se não fosse aquela uma relação verdadeiramente variável, se fosse um
  302. atributo da realidade inumana e pré-humana e não uma questão de inventividade e
  303. resolução humanas, e se não sc lançasse para muito além da estreita gama de
  304. variações a que as ferramentas naturais da mobilidade - as pernas humanas ou
  305. eqüinas
  306. - costumavam confinar os movimentos dos corpos pré-modernos. Quando a distância
  307. percorrida numa unidade de tempo passou a depender da tecnologia, de meios
  308. artificiais
  309. de transporte, todos os limites à velocidade do movimento, existentes ou herdados,
  310. poderiam, em princípio, ser transgredidos. Apenas o céu (ou, como acabou sendo
  311. depois, a velocidade da luz) era agora o limite, e a modernidade era um esforço
  312. contínuo, rápido e irrefreável para alcançá-lo.
  313. Graças a sua flexibilidade e expansividade recentemente adquiridas, o tempo moderno
  314. se tornou, antes e acima de tudo, a arma na conquista do espaço. Na moderna luta
  315. entre tempo e espaço, o espaço era o lado sólido e impassível, pesado e inerte, capaz
  316. apenas de uma guerra defensiva, de trincheiras - um obstáculo aos avanços do
  317. tempo. O tempo era o lado dinâmico e ativo na batalha, o lado sempre na ofensiva: a
  318. força invasora, conquistadora e colonizadora. A velocidade do movimento e o acesso
  319. a meios mais rápidos de mobilidade chegaram nos tempos modernos à posição de
  320. principal ferramenta do poder e da dominação.
  321. Michel Foucault utilizou o projeto do Panóptico de Jeremy Bentham como
  322. arquimetáfora do poder moderno. No Panóptico, os internos estavam presos ao lugar e
  323. impedidos
  324. de qualquer movimento, confinados entre muros grossos, densos e bem-guardados, e
  325. fixados a suas camas, celas ou bancadas. Eles não podiam se mover porque estavam
  326. sob vigilância; tinham que se ater aos lugares indicados sempre porque não sabiam, e
  327. nem tinham como
  328. saber, onde estavam no momento seus vigias, livres para mover-se à vontade. As
  329. instalações e a facilidade de movimento dos vigias eram a garantia de sua dominação;
  330. dos múltiplos laços de sua subordinação, a "fixação" dos internos ao lugar era o mais
  331. seguro e difícil de romper. O domínio do tempo era o segredo do poder dos
  332. administradores
  333. - e imobilizar os subordinados no espaço, negando-lhes o direito ao movimento e
  334. rotinizando o ritmo a que dtviam obedecer era a principal estratégia em seu exercício
  335. do poder. A pirâmide do poder era feita de velocidade, de acesso aos meios de
  336. transporte e da resultante liberdade de movimento.
  337. O Panóptico era um modelo de engajamento e confrontação mútuos entre os dois
  338. lados da relação de poder. As estratégias dos administradores, mantendo sua própria
  339. volatilidade e rotinizando o fluxo do tempo de seus subordinados, se tornavam uma só.
  340. Mas havia tensão entre as duas tarefas. A segunda tarefa punha limites à primeira
  341. - prendia os "rotinizadores" ao lugar dentro do qual os objetos da rotinização do tempo
  342. estavam confinados. Os rotinizadores não eram verdadeira e inteiramente livres
  343. para se mover: a opção "ausente" estava fora de questão em termos práticos.
  344. O Panóptico apresenta também outras desvantagens. E uma estratégia cara: a
  345. conquista do espaço e sua manutenção, assim como a manutenção dos internos no
  346. espaço vigiado,
  347. abarcava ampla gama de tarefas administrativas custosas e complicadas. Havia os
  348. edifícios a erigir e manter em bom estado, os vigias profissionais a contratar e
  349. remunerar, a sobrevivência e capacidade de trabalho dos internos a ser preservada e
  350. cultivada. Finalmente, administrar significa, ainda que a contragosto, responsabilizar-se
  351. pelo bem-estar geral do lugar, mesmo que em nome de um interesse pessoal
  352. consciente - e a responsabilidade, outra vez, significa estar preso ao lugar. Ela requer
  353. presença, e engajamento, pelo menos como uma confrontação e um cabo-de-guerra
  354. permanentes.
  355. O que leva tantos a falar do "fim da história' da pós-modernidade, da "segunda
  356. modernidade" e da "sobremodernidade' ou
  357. a articular a intuição de uma mudança radical no arranjo do convívio humano e nas
  358. condições sociais sob as quais a política-vida
  359. é hoje levada, é o fato de que o longo esforço para acelerar a
  360. 18 Modernidade Líquida
  361. Prefácio 19
  362. velocidade do movimento chegou a seu "limite natural' O poder pode se mover com a
  363. velocidade do sinal eletrônico - e assim o tempo requerido para o movimento de
  364. seus ingredientes essenciais se reduziu à instantaneidade. Em termos práticos, o
  365. poder se tornou verdadeiramente extraterrÜoriat não mais limitado, nem mesmo
  366. desacelerado,
  367. pela resistência do espaço (o advento do telefone celular serve bem como "golpe de
  368. misericórdia" simbólico na dependência em relação ao espaço: o próprio acesso
  369. a um ponto telefônico não é mais necessário para que uma ordem seja dada e
  370. cumprida. Não importa mais onde está quem dá a ordem
  371. - a diferença entre "próximo" e "distante' ou entre o espaço selvagem e o civilizado e
  372. ordenado, está a ponto de desaparecer). Isso dá aos detentores do poder uma
  373. oportunidade verdadeiramente sem precedentes: eles podem se livrar dos aspectos
  374. irritantes e atrasados da técnica de poder do Panóptico. O que quer que a história
  375. da modernidade seja no estágio presente, ela é também, e talvez acima de tudo, p6sPano'ptica.
  376. O que importava no Panóptico era que os encarregados "estivessem lá'
  377. próximos, na torre de controle. O que importa, nas relações de poder pós-panópticas é
  378. que as pessoas que operam as alavancas do poder de que depende o destino dos
  379. parceiros menos voláteis na relação podem fugir do alcance a qualquer momento -
  380. para a pura inacessibilidade.
  381. O fim do Panóptico é o arauto dofim da era do engajamento mu'tuo: entre supervisores
  382. e supervisados, capital e trabalho, líderes e seguidores, exércitos em guerra.
  383. As principais técnicas do poder são agora a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação, a
  384. efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial, com os complicados corolários
  385. de construção e manutenção da ordem, e com a responsabilidade pelas
  386. conseqüências de tudo, bem como com a necessidade de arcar com os custos.
  387. Essa nova técnica do poder foi vividamente ilustrada pelas estratégias desenvolvidas
  388. pelos atacantes nas guerras do Golfo e da Iugoslávia. A relutância em utilizar
  389. forças terrestres na guerra foi impressionante; quaisquer que tenham sido as
  390. explicações oficiais, essa relutância foi ditada não apenas pela amplamente referida
  391. síndrome dos "cadáveres ensacados' O engajamento num combate terrestre foi
  392. evitado não só por seus possíveis efeitos
  393. adversos na política interna, mas também (talvez principalmente) por sua total
  394. inutilidade e mesmo contra-produtividade em relação aos objetivos da guerra. Afinal,
  395. a conquista do território com todas suas conseqüências administrativas e gerenciais
  396. não só estava ausente da lista de objetivos das ações de guerra, como era uma
  397. eventualidade a ser evitada a todo custo, vista com repugnância como outro tipo de
  398. "prejuízo colateral' desta vez infligido à própria força atacante.
  399. Golpes desferidos por bombardeiros furtivos e "espertos" mísseis autodingidos
  400. capazes de seguir seus alvos - lançados de surpresa, vindos do nada e
  401. desaparecendo
  402. imediatamente de vista
  403. - substituíram os avanços territoriais das tropas de infantaria e o esforço para expulsar
  404. o inimigo de seu território - o esforço de ocupar o território possuído,
  405. controlado e administrado pelo inimigo. Os atacantes definitivamente não queriam mais
  406. ser "os últimos no campo de batalha" depois da fuga ou retirada do inimigo.
  407. A força militar e seu plano de guerra de "atingir e correr" prefigura, incorpora e
  408. pressagia o que de fato está em jogo no novo tipo de guerra na era da modernidade
  409. liquida: não a conquista de novo território, mas a destruição das muralhas que
  410. impediam o fluxo dos novos e fluidos poderes globais; expulsar da cabeça do inimigo
  411. o desejo de formular suas próprias regras, abrindo assim o até então inacessível,
  412. defendido e protegido espaço para a operação dos outros ramos, não-militares, do
  413. poder. A guerra hoje, pode-se dizer (parafraseando a famosa fórmula de Clausewitz),
  414. parece cada vez mais uma "promoção do livre comércio por outros meios'
  415. Jim MacLaughlin nos lembrou recentemente (em Socio/ogy 1/99) de que o advento da
  416. era moderna significou, entre outras coisas, o ataque consistente e sistemático
  417. dos "assentados' convertidos ao modo sedentário de vida, contra os povos e o estilo de
  418. vida nómades, completamente alheios às preocupações territoriais e de fronteiras
  419. do emergente Estado moderno. Ibn Khaldoun, no século xiv, podia elogiar o
  420. nomadismo, que faz com que os nómades "sejam melhores que os povos assentados
  421. porque ...
  422. estão mais afastados de todos os maus hábitos que infectaram o coração dos
  423. assentados" - mas a febre de construção de nações e Estados-na20
  424.  
  425. Modernidade Líquida
  426. Prefácio
  427. 21
  428. 1
  429. ção que logo em seguida começou a sério por toda a Europa colocou o "1" firmemente
  430. acima do "sangue" ao lançar as fundações da nova ordem legislada e ao codificar
  431. os direitos e deveres dos cidadãos. Os nómades, que faziam pouco das preocupações
  432. territoriais dos legisladores e ostensivamente desrespeitavam seus zelosos esforços
  433. em traçar fronteiras, foram colocados entre os principais vilões na guerra santa travada
  434. em nome do progresso e da civilização. A "cronopolitica" moderna os situa
  435. não apenas como seres inferiores e primitivos, "subdesenvolvidos" e necessitados de
  436. profunda reforma e esclarecimento, mas também como atrasados e "aquém dos
  437. tempos'
  438. vítimas da "defasagem cultural' arrastando-se nos degraus mais baixos da escala
  439. evolutiva, e imperdoavelmente lentos ou morbidamente relutantes em subir nela, para
  440. seguir o "padrão universal de desenvolvimento"
  441. Ao longo do estágio sólido da era moderna, os hábitos nómades foram mal vistos. A
  442. cidadania andava de mãos dadas com o assentamento, e a falta de "endereço fixo"
  443. e de "estado de origem" significava exclusão da comunidade obediente e protegida
  444. pelas leis, freqüentemente tornando os nômades vítimas de discriminação legal,
  445. quando
  446. não de perseguição ativa. Embora isso ainda se aplique à "subclasse" andarilha e
  447. "sem-teto': sujeita às antigas técnicas de controle panóptico (técnicas quase
  448. abandonadas
  449. como veículo principal para integração e disciplina do grosso da população), a era da
  450. superioridade incondicional do sedentarismo sobre o nomadismo e da dominação
  451. dos assentados sobre os nômades está chegando ao fim. Estamos testemunhando a
  452. vingança do nomadismo contra o princípio da territorialidade e do assentamento. No
  453. estágio fluido da modernidade, a maioria assentada é dominada pela elite nômade e
  454. extraterritorial. Manter as estradas abertas para o tráfego nômade e tornar mais
  455. distantes as barreiras remanescentes tornou-se hoje o meta-propósito da política, e
  456. também das guerras, que, como Clausewitz originalmente declarou, não são mais
  457. que "a extensão da política por outros meios'
  458. A elite global contemporânea é formada no padrão do velho estilo dos "senhores
  459. ausentes' Ela pode dominar sem se ocupar com a administração, gerenciamento, bemestar,
  460.  
  461. ou, ainda, com a missão de "levar a luz': "reformar os modos': elevar moralmente,
  462. "civilizar" e com cruzadas culturais. O engajamento ativo na vida das populações
  463. subordinadas não é mais necessário (ao contrário, é fortemente evitado como
  464. desnecessariamente
  465. custoso e ineficaz)
  466. - e, portanto, o "maior" não só não é mais o "melhor' mas carece de significado
  467. racional. Agora é o menor, mais leve e mais portátil que significa melhoria e "progresso'
  468. Mover-se leve, e não mais aferrar-se a coisas vistas como atraentes por sua
  469. confiabilidade e solidez - isto é, por seu peso, substancialidade e capacidade de
  470. resistência
  471. - é hoje recurso de poder.
  472. Fixar-se ao solo não é tão importante se o solo pode ser alcançado e abandonado à
  473. vontade, imediatamente ou em pouquíssimo tempo. Por outro lado, fixar-se muito
  474. fortemente, sobrecarregando os laços com compromissos mutuamente vinculantes,
  475. pode ser positivamente prejudicial, dadas as novas oportunidades que surgem em
  476. outros
  477. lugares. Rockefeller pode ter desejado construir suas fábricas, estradas de ferro e
  478. torres de petróleo altas e volumosas e ser dono delas por um longo tempo (pela
  479. eternidade, se medirmos o tempo pela duração da própria vida ou pela da família). Bill
  480. Gates, no entanto, não sente remorsos quando abandona posses de que se orgulhava
  481. ontem; é a velocidade atordoante da circulação, da reciclagem, do envelhecimento, do
  482. entulho e da substituição que traz lucro hoje - não a durabilidade e confiabilidade
  483. do produto. Numa notável reversão da tradição milenar, são os grandes e poderosos
  484. que evitam o durável e desejam o transitório, enquanto os da base da pirâmide -
  485. contra todas as chances
  486. - lutam desesperadamente para fazer suas frágeis, mesquinhas e transitórias posses
  487. durarem mais tempo. Os dois se encontram hoje em dia principalmente nos lados
  488. opostos dos balcões das mega-liquidações ou de vendas de carros usados.
  489. A desintegração da rede social, a derrocada das agências efetivas de ação coletiva, é
  490. recebida muitas vezes com grande ansiedade e lamentada como "efeito colateral"
  491. não previsto da nova leveza e fluidez do poder cada vez mais móvel, escorregadio,
  492. evasivo e fugitivo. Mas a desintegração social é tanto uma condição quanto um
  493. resultado
  494. da nova técnica do poder, que tem como ferramentas
  495. 22 Modernidade Líquida
  496. principais o desengajamento e a arte da fuga. Para que o poder tenha liberdade de
  497. fluir, o mundo deve estar livre de cercas, barreiras, fronteiras fortificadas e
  498. barricadas. Qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja
  499. territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado. Os poderes globais se
  500. inclinam a desmantelar tais redes em proveito de sua continua e crescente fluidez,
  501. principal fonte de sua força e garantia de sua invencibilidade. E são esse derrocar,
  502. a fragilidade, o quebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitem que
  503. esses poderes operem.
  504. Se essas tendências entrelaçadas se desenvolvessem sem freios, homens e mulheres
  505. seriam reformulados no padrão da toupeira eletr6nica, essa orgulhosa invenção dos
  506. tempos pioneiros da cibernética imediatamente aclamada como arauto do porvir: um
  507. plugue em castores atarantados na desesperada busca de tomadas a que se ligar.
  508. Mas
  509. no futuro anunciado pelos telefones celulares, as tomadas serão provavelmente
  510. declaradas obsoletas e de mau gosto, e passarão a ser fornecidas em quantidades
  511. cada
  512. vez menores e com qualidade cada vez mais duvidosa. No momento, muitos
  513. fornecedores de eletricidade exaltam as vantagens da conexão a suas respectivas
  514. redes e disputam
  515. os favores dos que procuram por tomadas. Mas a longo prazo (o que quer que "longo
  516. prazo" signifique na era da instantaneidade) as tomadas serão provavelmente banidas
  517. e suplantadas por baterias descartáveis compradas individualmente nas lojas e em
  518. oferta em cada quiosque de aeroporto e posto de gasolina ao longo das estradas.
  519. Essa parece ser a distopia feita sob medida para a modernidade líquida - e capaz de
  520. substituir os terrores dos pesadelos de
  521. Orwell e Huxley.
  522. Junho de 1999
  523. 1 'EMANCIPAÇÃO
  524. Ao fim das "três décadas gloriosas" que se seguiram ao final da Segunda Guerra
  525. Mundial - as três décadas de crescimento sem precedentes e de estabelecimento da
  526. riqueza
  527. e da segurança econômica no próspero Ocidente - Herbert Marcuse reclamava:
  528. Em relação a hoje e à nossa própria condição, creio que estamos diante de uma
  529. situação nova na história, porque temos que ser libertados de uma sociedade rica,
  530. poderosa
  531. e que funciona relativamente bem ... O problema que enfrentamos é a necessidade de
  532. nos libertarmos de uma sociedade que desenvolve em grande medida as
  533. necessidades
  534. materiais e mesmo culturais do homem - uma sociedade que, para usar um siogan,
  535. cumpre o que prometeu a uma parte crescente da população. E isso implica que
  536. enfrentamos
  537. a libertação de uma sociedade na qual a libertação aparentemente não conta com uma
  538. base de massas.'
  539. Devermos nos emancipar, "libertar-nos da sociedade' não era problema para Marcuse.
  540. O que era um problema o problema específico para a sociedade que "cumpre o que
  541. prometeu" - era a falta de uma "base de massas" para a libertação. Para simplificar:
  542. poucas pessoas desejavam ser libertadas, menos ainda estavam dispostas a agir para
  543. isso, e virtualmente ninguém tinha certeza de como a "libertação da sociedade"
  544. poderia distinguir-se do Estado em que se encontrava.
  545. "Libertar-se" significa literalmente libertar-se de algum tipo de grilhão que obstrui ou
  546. impede os movimentos; começar a
  547. [ir-se livre para se mover ou agir. "Sentir-se livre" significa não experimentar
  548. dificuldade, obstáculo, resistência ou qualquer outro impedimento aos movimentos
  549. pretendidos ou concebíveis.
  550. 23
  551. 24 Modernidade Liquida
  552. Emancipação 25
  553. Como observou Arthur Schopenhauer, a "realidade" é criada pelo ato de querer; é a
  554. teimosa indiferença do mundo em relação à minha intenção, a relutância do mundo
  555. em se submeter à minha vontade, que resulta na percepção do mundo como "real",
  556. constrangedor, limitante e desobediente. Sentir-se livre das limitações, livre para
  557. agir conforme os desejos, significa atingir o equilíbrio entre os desejos, a imaginação e
  558. a capacidade de agir: sentimo-nos livres na medida em que a imaginação
  559. não vai mais longe que nossos desejos e que nem uma nem os outros ultrapassam
  560. nossa capacidade de agir. O equilíbrio pode, portanto, ser alcançado e mantido de
  561. duas
  562. maneiras diferentes: ou reduzindo os desejos e/ou a imaginação, ou ampliando nossa
  563. capacidade de ação. Uma vez alcançado o equilíbrio, e enquanto ele se mantiver,
  564. "libertação" é um siogan sem sentido, pois falta-lhe força motivacional.
  565. Tal uso nos permite distinguir entre liberdade "subjetiva" e "objetiva" - e também entre
  566. a "necessidade de libertação" subjetiva e objetiva. Pode ser que o desejo
  567. de melhorar tenha sido frustrado, ou nem tenha tido oportunidade de surgir (por
  568. exempio, pela pressão do "princípio de realidade" exercido, segundo Sigmund Freud,
  569. sobre a busca humana do prazer e da felicidade); as intenções, fossem elas realmente
  570. experimentadas ou apenas imagináveis, foram adaptadas ao tamanho da capacidade
  571. de agir, e particularmente à capacidade de agir razoavelmente - com chance de
  572. sucesso. Por outro lado, pode ser que, pela manipulação direta das intenções - uma
  573. forma de "lavagem cerebral" - nunca se pudesse chegar a verificar os limites da
  574. capacidade "objetiva" de agir, e menos ainda saber quais eram, em primeiro lugar,
  575. essas intenções, acabando-se, portanto, por colocá-las abaixo do nível da liberdade
  576. "objetiva'
  577. A distinção entre liberdade "subjetiva" e "objetiva" abriu uma genuína caixa de Pandora
  578. de questões embaraçosas como "fenômeno rei-sus essência" - de significação
  579. filosófica variada, mas no todo considerável, e de importância política potencialmente
  580. enorme. Urna dessas questões é a possibilidade de que o que se sente como
  581. liberdade não seja de fato liberdade; que as pessoas poderem estar satisfeitas com o
  582. que lhes cabe mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser "objetivamente"
  583. satisfatório; que, vivendo
  584. na escravidão, se sintam livres e, portanto, não experimentem a necessidade de se
  585. libertar, e assim percam a chance de se tornar genuinamente livres. O corolário
  586. dessa possibilidade é a suposição de que as pessoas podem ser juízes incompetentes
  587. de sua própria situação, e devem ser forçadas ou seduzidas, mas em todo caso
  588. guiadas,
  589. para experimentar a necessidade de ser "objetivamente" livres e para reunir a coragem
  590. e a determinação para lutar por isso. Ameaça mais sombria atormentava o coração
  591. dos filósofos: que as pessoas pudessem simplesmente não querer ser livres e
  592. rejeitassem a perspectiva da libertação pelas dificuldades que o exercício da liberdade
  593. pode acarretar.
  594. As bênçãos mistas da liberdade
  595. Numa versão apócrifa da Ocfisséia ("Odysseus und die Schweine:
  596. das Unbehagen an der Kultur"), Lion Feuchtwanger propôs que os marinheiros
  597. enfeitiçados por Circe e transformados em porcos gostaram de sua nova condição e
  598. resistiram
  599. desesperadamente aos esforços de Ulisses para quebrar o encanto e trazê-los de volta
  600. à forma humana. Quando informados por Ulisses de que ele tinha encontrado as
  601. ervas mágicas capazes de desfazer a maldição e de que logo seriam humanos
  602. novamente, fugiram numa velocidade que seu zeloso salvador não pôde acompanhar.
  603. Ulisses
  604. conseguiu afinal prender um dos suínos; esfregada com a erva maravilhosa, a pele
  605. eriçada deu lugar a Elpenoros - um marinheiro, como insiste Feuchtwanger, em todos
  606. os sentidos mediano e comum, exatamente "como todos os outros, sem se destacar
  607. por sua força ou por sua esperteza" O "libertado" Elpenoros não ficou nada grato por
  608. sua liberdade, e furiosamente atacou seu "libertador":
  609. Então voltaste, 6 tratante, 6 intrometido? Queres novamente nos aborrecer e
  610. importunar, queres novamente expor nossos corpos ao perigo e forçar nossos
  611. corações sempre
  612. a novas decisões? Eu estava tão feliz, eu podia chafurdar na lama e aquecer-me ao
  613. soi, eu podia comer e beber, grunhir e guinchar, e estava livre de meditações e
  614. dóvidas: "O que devo fazer, isto ou aquilo?" Por que vieste? Para jogar-me outra vez
  615. na vida odiosa que eu levava antes?
  616. 26 Modernidade Líquida
  617. Emancipação 27
  618. A libertação é uma bênção ou uma maldição? Uma maldição disfarçada de bênção, ou
  619. uma bênção temida como maldição? Tais questões assombraram os pensadores
  620. durante
  621. a maior parte da era moderna, que punha a "libertação" no topo da agenda da reforma
  622. política e a "liberdade" no alto da lista de valores - quando ficou suficientemente
  623. claro que a liberdade custava a chegar e os que deveriam dela gozar relutavam em
  624. dar-lhe as boas-vindas. Houve dois tipos de resposta. A primeira lançava dúvidas
  625. sobre a prontidão do "povo comum" para a liberdade. Como o escritor norte- americano
  626. Herbert Sebastian Agar dizia (em A Timefor Greatness, 1942), "a verdade que
  627. torna os homens livres é, na maioria dos casos, a verdade que os homens preferem
  628. não ouvir' A segunda inclinava-se a aceitar que os homens podem não estar
  629. inteiramente
  630. equivocados quando questionam os beneficios que as liberdades oferecidas podem
  631. lhes trazer.
  632. Respostas do primeiro tipo inspiram, intermitentemente, compaixão pelo "povo"
  633. desorientado, enganado e levado a desistir de sua chance de liberdade, ou desprezo
  634. e ultraje contra a "massa" que não quer assumir os riscos e responsabilidades que
  635. acompanham a autonomia e a auto-afirmação genuínas. O protesto de Marcuse
  636. envolve
  637. uma mistura das duas, além de uma tentativa de deixar na soleira da nova
  638. prosperidade a culpa pela reconciliação evidente dos não-livres com sua falta de
  639. liberdade.
  640. Outros discursos freqüentes para protestos semelhantes foram os do
  641. "aburguesamento" dos despossuídos (a substituição de "ser" por "ter' e a de "agir" por
  642. "ser" como
  643. os valores mais altos) e da "cultura de massas" (uma lesão cerebral coletiva causada
  644. pela "indústria cultural' plantando uma sede de entretenimento e diversão no
  645. lugar que - como diria Mathew Arnold - deveria ser ocupado pela "paixão pela doçura e
  646. pela luz e pela paixão de fazer com que estas triunfem").
  647. Respostas da segunda espécie sugerem que o tipo de liberdade louvada pelos
  648. libertários não é, ao contrário do que eles dizem, uma garantia de felicidade. Vai trazer
  649. mais tristeza que alegria. Segundo este ponto de vista, os libertários estão errados
  650. quando afirmam - como o faz, por exemplo, David Conway,2 seguindo o princípio
  651. de Henry Sidgwick - que a felicidade geral é promovida
  652. mais eficazmente se mantivermos nos adultos "a expectativa de que cada um será
  653. deixado com seus próprios recursos para prover suas próprias necessidades"; ou
  654. Charles
  655. Murray,3 que beira o lírico ao descrever a felicidade intrínseca à busca solitária: "O que
  656. faz um acontecimento causar satisfação é que você o produziu ... com
  657. responsabilidade
  658. substancial sobre seus ombros, sendo uma parte substancial do bem alcançado uma
  659. contribuição sud' "Ser abandonado a seus próprios recursos" anuncia tormentos
  660. mentais
  661. e a agonia da indecisão, enquanto a "responsabilidade sobre os próprios ombros"
  662. prenuncia um medo paralisante do risco e do fracasso, sem direito a apelação ou
  663. desistência.
  664. Esse não pode ser o significado real da "liberdade"; e se a liberdade "realmente
  665. existente' a liberdade oferecida, significar tudo isso, ela não pode ser nem a garantia
  666. da felicidade, nem um objetivo digno de luta.
  667. Respostas do segundo tipo nascem em última análise do horror visceral hobbesiano ao
  668. "homem à solta" Derivam sua credibilidade da suposição de que um ser humano
  669. dispensado
  670. das limitações sociais coercitivas (ou nunca submetido a elas) é uma besta e não um
  671. indivíduo livre; e o horror que ele gera vem de outra suposição: a de que a falta
  672. de limites eficazes faz a vida "detestável, brutal e curta" - e, assim, qualquer coisa,
  673. menos feliz. A mesma visão hobbesiana foi desenvolvida por Emile Durkheim
  674. numa filosofia social compreensiva, de acordo com a qual é a "norma'; medida pela
  675. média ou pelo mais comum, e apoiada em duras sanções punitivas, que
  676. verdadeiramente
  677. liberta os pseudo-humanos da mais horrenda e temível das escravidões; o tipo de
  678. escravidão que não se esconde em nenhuma pressão externa, mas dentro, na
  679. natureza
  680. pré-social ou associal do homem. A coerção social é, nessa filosofia, a força
  681. emancipadora, e a única esperança de liberdade a que um humano pode
  682. razoavelmente aspirar.
  683. O indivíduo se submete à sociedade e essa submissão é a condição de sua libertação.
  684. Para o homem a liberdade consiste em não estar sujeito às forças físicas cegas;
  685. ele chega a isso opondo-lhes a grande e inteligente força da sociedade, sob cuja
  686. proteção se abriga. Ao colocar-se sob as asas da sociedade, ele se toma, até certo
  687. ponto, dependente dela. Mas é uma dependência libertadora; não há nisso
  688. contradição.4
  689. 28 Modernidade Líquida
  690. Emancipação 29
  691. Não só não há contradição entre dependência e libertação:
  692. não há outro caminho para buscar a libertação senão "submeter-se à sociedade" e
  693. seguir suas normas. A liberdade não pode ser ganha contra a sociedade. O resultado
  694. da rebelião contra as normas, mesmo que os rebelados não tenham se tornado bestas
  695. de uma vez por todas, e, portanto, perdido a capacidade de julgar sua própria
  696. condição,
  697. é uma agonia perpétua de indecisão ligada a um Estado de incerteza sobre as
  698. intenções e movimentos dos outros ao redor - o que faz da vida um inferno. Padrões e
  699. rotinas impostos por pressões sociais condensadas poupam essa agonia aos homens;
  700. graças à monotonia e à regularidade de modos de conduta recomendados, para os
  701. quais
  702. foram treinados e a que podem ser obrigados, os homens sabem como proceder na
  703. maior parte do tempo e raramente se encontram em situações sem sinalização,
  704. aquelas
  705. situações em que as decisões devem ser tomadas com a própria responsabilidade e
  706. sem o conhecimento tranqüilizante de suas conseqüências, fazendo com que cada
  707. movimento
  708. seja impregnado de riscos dificeis de calcular. A ausência, ou a mera falta de clareza,
  709. das normas - anomia - é o pior que pode acontecer às pessoas em sua luta
  710. para dar conta dos afazeres da vida. As normas capacitam tanto quanto incapacitam; a
  711. anomia anuncia a pura e simples incapacitação. Uma vez que as tropas da
  712. regulamentação
  713. normativa abandonam o campo de batalha da vida, sobram apenas a dúvida e o medo.
  714. Quando (como notavelmente formulado por Erich Fromm) "cada indivíduo deve ir em
  715. frente e tentar sua sorte' quando "ele tem que nadar ou afundar" - "a busca compulsiva
  716. da certeza" se instala, começa a desesperada busca por "soluções" capazes
  717. de "eliminar a consciência da dúvida" - o que quer que prometa "assumir a
  718. responsabilidade pela 'certeza" é bem-vindo.5
  719. "A rotina pode apequenar, mas ela também pode proteger"; é o que diz Richard
  720. Sennett, para então lembrar seus leitores da velha controvérsia entre Adam Smith e
  721. Dennis
  722. Diderot. Enquanto Smith advertia contra os efeitos degradantes e estupidificantes da
  723. rotina de trabalho, "Diderot não acreditava que o trabalho rotineiro é degradante
  724. ... O maior herdeiro moderno de Diderot, o sociólogo Anthony Giddens, tentou manter
  725. viva a percepção diderotia na
  726. apontando para o valor primário do hábito tanto para as práticas sociais quanto para a
  727. autocompreensão' A proposição do próprio Sennett é direta: "Imaginar uma vida
  728. de impulsos momentâneos, de ações de curto prazo, destituída de rotinas
  729. sustentáveis, uma vida sem hábitos, é imaginar, de fato, uma existência sem sentido:"6
  730. A vida ainda não atingiu os extremos que a fariam sem sentido, mas muito dano foi
  731. causado, e todas as futuras ferramentas da certeza, inclusive as novíssimas rotinas
  732. (que provavelmente não durarão o suficiente para se tornarem hábitos) não poderão
  733. ser mais que muletas, artificios do engenho humano que só parecem a coisa em si
  734. se nos abstivermos de examiná-las muito de perto. Toda certeza alcançada depois do
  735. "pecado original" de desmantelar o mundo cotidiano cheio de rotina e vazio de
  736. reflexão terá que ser uma certeza manufaturada, uma certeza escancarada e
  737. desavergonhadamente "fabricada': sobrecarregada com toda a vulnerabilidade inata
  738. das decisões
  739. tomadas por humanos. De fato, como insistem Deleuze e Cuattari,
  740. não acreditamos mais no mito da existência de fragmentos que, como peças de uma
  741. antiga estátua, estão meramente esperando que apareça o último caco para que todas
  742. possam ser coladas novamente para criar uma unidade que é precisamente a mesma
  743. que a unidade original. Não mais acreditamos numa totalidade primordial que existiu
  744. uma vez, nem numa totalidade final que espera por nós numa data futura.7
  745. O que foi separado não pode ser colado novamente. Abandonai toda esperança de
  746. totalidade, tanto futura como passada, vós que entrais no mundo da modernidade
  747. fluida.
  748. Chegou o tempo de anunciar, como o fez recentemente Alain Touraine, "o fim da
  749. definição do ser humano como um ser social, definido por seu lugar na sociedade, que
  750. determina seu comportamento e ações' Em seu lugar, o princípio da combinação da
  751. "definição estratégica da ação social que não é orientada por normas sociais" e "a
  752. defesa, por todos os atores sociais, de sua especificidade cultural e psicológica" "pode
  753. ser encontrado dentro do indivíduo, e não mais em instituições sociais ou
  754. em princípios universais"8
  755. 1
  756. 30
  757. Modernidade Líquida
  758. Emancipação
  759. 31
  760. A suposição tácita que apóia uma tomada de posição tão radical é que a liberdade
  761. concebível e possível de alcançar já foi atingida; nada resta a fazer senão limpar
  762. os poucos cantos restantes e preencher os poucos lugares vazios - trabalho que será
  763. completado em pouco tempo. Os homens e as mulheres são inteira e verdadeiramente
  764. livres, e assim a agenda da libertação está praticamente esgotada. O protesto de
  765. Marcuse e a nostalgia comunitária da comunidade perdida podem ser manifestações
  766. de valores mutuamente opostos, mas são igualmente anacrônicos. Nem o reenraizar
  767. dos desenraizados, nem o "despertar do povo" para a tarefa não-realizada da
  768. libertação
  769. estão nas cartas. A perplexidade de Marcuse está ultrapassada, pois "o indivíduo" já
  770. ganhou toda a liberdade com que poderia sonhar e que seria razoável esperar;
  771. as instituições sociais estão mais que dispostas a deixar à iniciativa individual o
  772. cuidado com as definições e identidades, e os princípios universais contra os
  773. quais se rebelar estão em falta. Quanto ao sonho comunitário de "reacomodar os
  774. desacomodados': nada pode mudar o fato de que o que está disponível para a
  775. reacomodação
  776. são somente camas de motel, sacos de dormir e divãs de analistas, e que de agora em
  777. diante as comunidades - mais postulada.s que "imaginadas" - podem ser apenas
  778. artefatos efêmeros da peça da individualidade em curso, e não mais as forças
  779. determinantes e definidoras das identidades.
  780. As casualidades e a sorte com biantes da crítica
  781. O que está errado com a sociedade em que vivemos, disse Comelius Castoriadis, é
  782. que ela deixou de se questionar. E um tipo de sociedade que não mais reconhece
  783. qualquer
  784. alternativa para si mesma e, portanto, sente-se absolvida do dever de examinar,
  785. demonstrar, justificar (e que dirá provar) a validade de suas suposições tácitas
  786. e declaradas.
  787. Isso não significa, entretanto, que nossa sociedade tenha suprimido (Ou venha a
  788. suprimir) o pensamento crítico como tal. Ela não deixou seus membros reticentes (e
  789. menos ainda temerosos) em lhe dar voz. Ao contrário: nossa sociedade - uma
  790. sociedade
  791. de "indivíduos livres" - fez da crítica da realidade, da insatisfação com "o que aí está" e
  792. da expressão dessa insatisfação uma parte inevitável e obrigatória dos
  793. afazeres da vida de cada um de seus membros. Como Anthony Giddens nos lembra,
  794. estamos hoje engajados na "política-vida"; somos "seres reflexivos" que olhamos de
  795. perto cada movimento que fazemos, que estamos raramente satisfeitos com seus
  796. resultados e sempre prontos a corrigi-los. De alguma maneira, no entanto, essa
  797. reflexão
  798. não vai longe o suficiente para alcançar os complexos mecanismos que conectam
  799. nossos movimentos com seus resultados e os determinam, e menos ainda as
  800. condições que
  801. mantêm esses mecanismos em operação. Somos talvez mais "predispostos à crítica':
  802. mais assertivos e intransigentes em nossas críticas, que nossos ancestrais em sua
  803. vida cotidiana, mas nossa crítica é, por assim dizer, "desdentada' incapaz de afetar a
  804. agenda estabelecida para nossas escolhas na "política-vida' A liberdade sem
  805. precedentes que nossa sociedade oferece a seus membros chegou, como há tempo
  806. nos advertia Leo Strauss, e com ela também uma impotência sem precedentes.
  807. Ouve-se algumas vezes a opinião de que a sociedade contemporânea (que aparece
  808. sob o nome de última sociedade moderna ou pós-moderna, a sociedade da "segunda
  809. modernidade"
  810. de Ulrich Beck ou, como prefiro chamá-la, a "sociedade da modernidade fluida") é
  811. inóspita para a crítica. Essa opinião parece perder de vista a natureza da mudança
  812. presente, ao supor que o próprio significado de "hospitalidade" permanece invariável
  813. em sucessivas fases históricas. A questão é, porém, que a sociedade contemporânea
  814. deu à "hospitalidade à crítica" um sentido inteiramente novo e inventou um modo de
  815. acomodar o pensamento e a ação críticas, permanecendo imune às conseqüências
  816. dessa
  817. acomodação e saindo, assim, intacta e sem cicatrizes - reforçada, e não enfraquecida
  818. - das tentativas e testes da "política de portas abertas'
  819. O tipo de "hospitalidade à crítica" característico da sociedade moderna em sua forma
  820. presente pode ser aproximada do padrão do acampamento. O lugar está aberto a
  821. quem quer que venha com seu trailer e dinheiro suficiente para o aluguel; os hóspedes
  822. vêm e vão; nenhum deles presta muita atenção a como o lugar é gerido, desde
  823. que haja espaço suficiente para estacionar o trailer, as toma32
  824. Modernidade Líquida
  825. Emancipação 33
  826. das elétricas e encanamentos estejam em ordem e os donos dos trailers vizinhos não
  827. façam muito barulho e mantenham baixo o som de suas TV5 portáteis e aparelhos
  828. de som depois de escurecer. Os motoristas trazem para o acampamento suas próprias
  829. casas, equipadas com todos os aparelhos de que precisam para a estada, que em todo
  830. caso pretendem que seja curta. Cada um tem seu próprio itinerário e horário. O que os
  831. motoristas querem dos administradores do lugar não é muito mais (mas tampouco
  832. menos) do que ser deixados à vontade. Em troca, não pretendem desafiar a autoridade
  833. dos administradores e pagam o aluguel no prazo. Como pagam, também den3andam.
  834. Tendem a ser inflexíveis quando defendem seus direitos aos serviços prometidos, mas
  835. em geral querem seguir seu caminho e ficariam irritados se isso não lhes fosse
  836. permitido. Ocasionalmente podem reivindicar melhores serviços; se forem bastante
  837. incisivos, vociferantes e resolutos, podem até obtê-los. Se se sentirem prejudicados,
  838. podem reclamar e cobrar o que lhes é devido - mas nunca lhes ocorreria questionar e
  839. negociar a filosofia administrativa do lugar, e muito menos assumir a responsabilidade
  840. pelo gerenciamento do mesmo. Podem, no máximo, anotar mentalmente que não
  841. devem nunca mais usar o lugar novamente e nem recomendá-lo a seus amigos.
  842. Quando vão embora,
  843. seguindo seus próprios itinerários, o lugar fica como era antes de sua chegada, sem
  844. ser afetado pelos ocupantes anteriores e esperando por outros no futuro; embora,
  845. se algumas queixas continuarem a ser feitas por grupos sucessivos de hóspedes, os
  846. serviços oferecidos possam vir a ser modificados para impedir que as queixas sejam
  847. novamente manifestadas no futuro.
  848. Na era da modernidade líquida a hospitalidade à crítica da sociedade segue o padrão
  849. do acampamento. Quando Adorno e Horkheimer formularam a teoria crítica clássica,
  850. gerada pela experiência de outra modernidade, obcecada pela ordem, e assim
  851. informada e orientada pelo te/os da emancipação, era muito diferente o modelo em que
  852. se
  853. inscrevia, com bom fundamento empírico, a idéia de crítica: o modelo de uma casa
  854. compartilhada, com suas normas institucionalizadas e regras habituais, atribuição
  855. de deveres e desempenho supervisionado. Embora lide bem com a crítica à forma de
  856. hospitalidade do acampamento em relação aos donos
  857. dos trailers, nossa sociedade definitivamente não aceita bem a crítica como a que os
  858. fundadores da escola crítica supunham e à qual endereçaram sua teoria. Em termos
  859. diferentes, mas correspondentes, poderíamos dizer que uma "crítica ao estilo do
  860. consumidor" veio substituir sua predecessora, a "crítica ao estilo do produtor'
  861. Contrariamente a uma moda difundida, essa mudança não pode ser explicada
  862. meramente por referência à mudança na disposição do público, à diminuição do apetite
  863. pela
  864. reforma social, do interesse pelo bem comum e pelas imagens da boa sociedade, à
  865. decadência da popularidade do engajamento político, ou à alta dos sentimentos
  866. hedonísticos
  867. e do "eu primeiro" - ainda que tais fenômenos sem dúvida se destaquem entre as
  868. marcas do nosso tempo. As causas da mudança vão mais fundo; estão enraizadas na
  869. profunda
  870. transformação do espaço público e, de modo mais geral, no modo como a sociedade
  871. moderna opera e se perpetua.
  872. O tipo de modernidade que era o alvo, mas também o quadro cognitivo, da teoria
  873. crítica clássica, numa análise retrospectiva, parece muito diferente daquele que
  874. enquadra
  875. a vida das gerações de hoje. Ela parece "pesada" (contra a "leve" modernidade
  876. contemporânea); melhor ainda, "sólida" (e não "fluida' "líquida" ou "liquefeita");
  877. condensada (contra difusa ou "capilar"); e, finalmente, "sistêmica" (por oposição a "em
  878. forma de rede").
  879. Essa modernidade pesada/sólida/condensada/sistêmica da "teoria crítica" era
  880. impregnada da tendência ao totalitarismo. A sociedade totalitária da homogeneidade
  881. compulsória,
  882. imposta e onipresente, estava constante e ameaçadoramente no horizonte - como
  883. destino último, como uma bomba nunca inteiramente desarmada ou um fantasma
  884. nunca inteiramente
  885. exorcizado. Essa modernidade era inimiga jurada da contingência, da variedade, da
  886. ambigüidade, da instabilidade, da idiossincrasia, tendo declarado uma guerra santa
  887. a todas essas "anomalias"; e esperava-se que a liberdade e a autonomia individuais
  888. fossem as primeiras vítimas da cruzada. Entre os principais ícones dessa modernidade
  889. estavam af6bricafordtsta, que reduzia as atividades humanas a movimentos simples,
  890. rotineiros e predeterminados, destinados a serem obediente e mecanicamente
  891. seguidos,
  892. sem envolver as faculdades
  893. j
  894. 1
  895. 34 Modernidade Líquida
  896. mentais e excluindo toda espontaneidade e iniciativa individual; a burocracia, afim, pelo
  897. menos em suas tendências inatas, ao modelo ideal de Max Weber, em que as
  898. identidades e laços sociais eram pendurados no cabide da porta da entrada junto com
  899. os chapéus, guarda-chuvas e capotes, de tal forma que somente o comando e os
  900. estatutos poderiam dirigir, incontestados, as ações dos de dentro enquanto estivessem
  901. dentro; o pano'ptico com suas torres de controle e com os internos que nunca
  902. podiam contar com os eventuais lapsos de vigilância dos supervisores; o Grande
  903. Irnuio, que nunca cochila, sempre atento, rápido e expedito em premiar os fiéis e
  904. punir os infiéis; e - finalmente - o Konzlager (mais tarde acompanhado no contrapanteão
  905. dos demônios modernos pelo Culag), lugar onde os limites da maleabilidade
  906. humana eram testados em laboratório e onde aqueles que suposta ou realmente não
  907. eram maleáveis o suficiente eram condenados a morrer de exaustão ou mandados às
  908. câmaras
  909. de gás ou aos crematórios.
  910. Mais uma vez, em retrospecto, podemos dizer que a teoria crítica pretendia desarmar e
  911. neutralizar, e de preferência eliminar de uma vez, a tendência totalitária
  912. de uma sociedade que se supunha sobrecarregada de inclinações totalitárias
  913. intrínseca e permanentemente. O principal objetivo da teoria crítica era a defesa da
  914. autonomia,
  915. da liberdade de escolha e da auto-afirmação humanas, do direito de ser e permanecer
  916. diferente. Como nos antigos melodramas de Hollywood, que supunham que o
  917. momento
  918. em que os amantes se encontravam novamente e pronunciavam os votos do
  919. casamento assinalava o fim do drama e o começo do bem-aventurado "viveram felizes
  920. para sempre'
  921. a teoria crítica, no início, via a libertação do indivíduo da garra de ferro da rotina ou sua
  922. fuga da caixa de aço da sociedade afligida por um insaciável apetite
  923. totalitário, homogeneizante e uniformizante como o último ponto da emancipação e o
  924. fim do sofrimento humano - o momento da "missão cumprida" A crítica devia servir
  925. a esse propósito; não precisava procurar além disso, nem além do momento de
  926. alcançálo - nem tinha tempo para tanto.
  927. Na época em que foi escrito, o 7984 de George Orwell era o mais completo - e
  928. canônico - inventário dos medos e apreensões que assombravam a modernidade em
  929. seu estágio
  930. sólido. ProjetaEmancipação
  931. 35
  932. dos sobre os diagnósticos dos problemas e das causas dos sofrimentos
  933. contemporâneos, esses medos desenham o horizonte dos programas emancipatórios
  934. do período. Chegado
  935. o 1984 real, a visão de Orwell foi prontamente lembrada, trazida novamente ao debate
  936. público, como era de se esperar, e, uma vez mais (talvez a última), amplamente
  937. considerada. A maioria dos escritores, como também era de se esperar, afiou suas
  938. penas para separar a verdade da inverdade das profecias de Orwell, testadas pelo
  939. lapso de tempo que o próprio Orwell previra para que suas palavras se
  940. concretizassem. Não surpreende, no entanto, que em nossos tempos - quando mesmo
  941. a imortalidade
  942. dos marcos e monumentos da história cultural da humanidade está sujeita à
  943. reciclagem contínua e precisa ser periodicamente trazida de volta à atenção em
  944. comemorações
  945. ou pela excitação que precede e acompanha as exibições retrospectivas (apenas para
  946. desaparecer da vista e do pensamento tão logo as exibições terminem ou apareça
  947. outro aniversário para consumir o espaço da imprensa e o tempo da TV) - a encenação
  948. do "evento Orwell" não tenha sido muito diferente do tratamento dado
  949. intermitentemente
  950. a coisas como Tutancâmon, o ouro inca, Vermeer, Picasso ou Monet.
  951. Mesmo assim, a brevidade da celebração de 1984, a tepidez e o rápido esfriamento do
  952. interesse que produziu e a velocidade com que a obra-prima de Orwell novamente
  953. afundou no esquecimento uma vez cessada a excitação criada pela mídia nos fazem
  954. parar para pensar. Afinal, esse livro serviu durante muitas décadas (e até algumas
  955. décadas atrás) como o catálogo mais competente dos medos, pressentimentos e
  956. pesadelos públicos; então, por que não mais que um interesse passageiro em sua
  957. breve
  958. ressurreição? A única explicação razoável é que as pessoas que discutiram o livro em
  959. 1984 não se sentiram estimuladas e
  960. tenham rapidamente proclamado o "fim da modernidade" (ou mesmo, mais
  961. ousadamente, o fim da própria história, argumentando que ela tinha atingido seu te/os
  962. ao tornar
  963. a liberdade, pelo menos o tipo de liberdade exemplificado pelo mercado livre e pela
  964. escolha do consumidor, imune a quaisquer ameaças). E no entanto (créditos para
  965. Mark Twain) a notícia do falecimento da modernidade, mesmo os rumores sobre seu
  966. canto de cisne, era grosseiramente exagerado: sua profusão não faz os obituários
  967. menos prematuros. Parece que o tipo de sociedade diagnosticada e levada a juízo
  968. pelos fundadores da teoria crítica (ou pela distopia de Orwell) era apenas uma das
  969. formas que a versátil e variável sociedade moderna assumia. Seu desaparecimento
  970. não anuncia o fim da modernidade. Nem é o arauto do fim da miséria humana. Menos
  971. ainda assinala o fim da crítica como tarefa e vocação intelectual. E em nenhuma
  972. hipótese torna essa crítica dispensável.
  973. A sociedade que entra no século XXI não é menos "moderna" que a que entrou no
  974. século XX; o máximo que se pode dizer é que ela é moderna de um modo diferente. O
  975. que
  976. a faz tão moderna como era mais ou menos há um século é o que distingue a
  977. modernidade de todas as outras formas históricas do convívio humano:
  978. a compulsiva e obsessiva, continua, irrefreável e sempre incompleta modernizaçâo; a
  979. opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa (ou de criatividade
  980. destrutiva, se for o caso: de "limpar o lugar" em nome de um "novo e aperfeiçoado"
  981. projeto; de "desmantelar' "cortar' "defasar' "reunir" ou "reduzir' tudo isso em
  982. nome da maior capacidade de fazer o mesmo no futuro - em nome da produtividade ou
  983. da competitividade).
  984. Como assinalava Lessing há muito tempo, no limiar da era moderna fomos
  985. emancipados da crença no ato da criação, da re velaçã
  986. e da condenação eterna. Com essas crenças fora do caminho, nós, humanos, nos
  987. encontramos "por nossa própria conta" - o que significa que, desde então, não
  988. conhecemos
  989. mais limites ao aperfeiçoamento além das limitações de nossos próprios dons
  990. herdados ou adquiridos, de nossos recursos, coragem, vontade e determinação. E o
  991. que
  992. o homem faz o homem pode desfazer. Ser moderno passou a significar, como significa
  993. hoje em dia, ser incapaz de parar e ainda menos capaz de ficar parado. Movemo-nos
  994. e continuaremos a nos mover não tanto pelo "adiamento da satisfação' como sugeriu
  995. Max Weber, mas por causa da impossibilidade de atingir a satisfação: o horizonte
  996. da satisfação, a linha de chegada do esforço e o momento da auto-congratulação
  997. tranqüila movem-se rápido demais. A consumação está sempre no futuro, e os
  998. objetivos
  999. perdem sua atração e potencial de satisfação no momento de sua realização, se não
  1000. antes. Ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo, num Estado de
  1001. constante
  1002. transgressão (nos termos de Nietzsche, não podemos ser Men.çc/i sem ser, ou pelo
  1003. menos lutar para ser, Ubermensch); também significa ter uma identidade que só pode
  1004. existir como projeto não-realizado. A esse respeito, não há muito que distinga nossa
  1005. condição da de nossos avós.
  1006. Duas características, no entanto, fazem nossa situação - nossa forma de modernidade
  1007. - nova e diferente.
  1008. A primeira é o colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusão moderna: da crença
  1009. de que há um fim do caminho em que andamos, um te/os alcançável da mudança
  1010. histórica, um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no
  1011. próximo milênio, algum tipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em
  1012. todos ou alguns de seus aspectos postulados: do firme equilíbrio entre oferta e procura
  1013. e a satisfação de todas as necessidades; da ordem perfeita, em que tudo é
  1014. colocado no lugar certo, nada que esteja deslocado persiste e nenhum lugar é posto
  1015. em dúvida; das coisas humanas que se tornam totalmente transparentes porque se
  1016. sabe tudo o que deve ser sabido; do completo domínio sobre o futuro - tão completo
  1017. que põe fim a toda contingência, disputa, ambivalência e conseqüências imprevistas
  1018. das iniciativas humanas.
  1019. 38
  1020. Modernidade Líquida
  1021. Emancipação
  1022. 39
  1023. A segunda mudança é a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres
  1024. modernizantes. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana,
  1025. vista
  1026. como dotação e propriedade coletiva da espécie humana, foi fragmentado
  1027. ("individualizado"), atribuído às vísceras e energia individuais e deixado à
  1028. administração
  1029. dos indivíduos e seus recursos. Ainda que a idéia de aperfeiçoamento (ou de toda
  1030. modernização adicional do status quo) pela ação legislativa da sociedade como um
  1031. todo não tenha sido completamente abandonada, a ênfase (juntamente, o que é
  1032. importante, com o peso da responsabilidade) se transladou decisivamente para a autoafirmação
  1033.  
  1034. do indivíduo. Essa importante alteração se reflete na realocação do discurso
  1035. ético/político do quadro da "sociedade justa" para o dos "direitos humanos' isto é,
  1036. voltando o foco daquele discurso ao direito de os indivíduos permanecerem diferentes
  1037. e de escolherem à vontade seus próprios modelos de felicidade e de modo de vida
  1038. adequado.
  1039. As esperanças de aperfeiçoamento, em vez de convergir para grandes somas nos
  1040. cofres do governo, procuram o troco nos bolsos dos contribuintes. Se a modernidade
  1041. original
  1042. era pesada no alto, a modernidade de hoje é leve no alto, tendo se livrado de seus
  1043. deveres "emancipatórios' exceto o dever de ceder a questão da emancipação às
  1044. camadas
  1045. média e inferior, às quais foi relegada a maior parte do peso da modernização
  1046. contínua. "Não mais a salvação pela sociedade' proclamou o apóstolo do novo espírito
  1047. da empresa, Peter Drucker. "Não existe essa coisa de sociedade' declarou Margaret
  1048. Thatcher, mais ostensivamente. Não olhe para trás, ou para cima; olhe para dentro
  1049. de você mesmo, onde supostamente residem todas as ferramentas necessárias ao
  1050. aperfeiçoamento da vida - sua astúcia, vontade e poder.
  1051. E não há mais "o Grande Irmão à espreita"; sua tarefa agora é observar as fileiras
  1052. crescentes de Grandes Irmãos e Grandes Irmãs e observá-las atenta e avidamente,
  1053. na esperança de encontrar algo de útil para você mesmo: um exemplo a imitar ou uma
  1054. palavra de conselho sobre como lidar com seus problemas, que, como os deles,
  1055. devem
  1056. ser enfrentados individualmente e só podem ser enfrentados individualmente. Não
  1057. mais grandes líderes para lhe dizer o que fazer e para aliviá-lo da responsabilidade
  1058. pela conse qüênci
  1059. de seus atos; no mundo dos indivíduos há apenas outros indivíduos cujo exemplo
  1060. seguir na condução das tarefas da própria vida, assumindo toda a responsabilidade
  1061. pelas conseqüências de ter investido a confiança nesse e não em qualquer outro
  1062. exemplo.
  1063. O indivíduo em combate com o cidadão
  1064. O título dado por Norbert Elias a seu último livro, publicado postumamente, A
  1065. sociedade dos indivíduos, capta com perfeição a essência do problema que assombra
  1066. a
  1067. teoria social desde seu começo. Rompendo com uma tradição estabelecida desde
  1068. Hobbes e forjada novamente por John Stuart Mili, Herbert Spencer e a ortodoxia liberal
  1069. na doxa (o quadro não examinado de toda cognição adicional) de nosso século, Elias
  1070. substituiu o "e" e o "versus" pelo "de" e, assim, deslocou o discurso do imaginário
  1071. das duas forças, travadas numa batalha mortal mas infindável entre liberdade e
  1072. dominação, para uma "concepção recíproca": a sociedade dando forma à
  1073. individualidade
  1074. de seus membros, e os indivíduos formando a sociedade a partir de suas ações na
  1075. vida, enquanto seguem estratégias plausíveis e factíveis na rede socialmente tecida
  1076. de suas dependências.
  1077. A apresentação dos membros como indivíduos é a marca registrada da sociedade
  1078. moderna. Essa apresentação, porém, não foi uma peça de um ato: é uma atividade
  1079. reencenada
  1080. diariamente. A sociedade moderna existe em sua atividade incessante de
  1081. "individualização' assim como as atividades dos indivíduos consistem na reformulação
  1082. e renegociação
  1083. diárias da rede de entrelaçamentos chamada "sociedade' Nenhum dos dois parceiros
  1084. fica parado por muito tempo. E assim o significado da "individualização" muda.
  1085. assumindo
  1086. sempre novas formas - à medida que os resultados acumulados de sua história
  1087. passada solapam as regras herdadas, estabelecem novos preceitos comportamentais
  1088. e fazem
  1089. surgir novos prêmios no jogo. A "individualização" agora significa uma coisa muito
  1090. diferente do que significava há cem anos e do que implicava nos primeiros tempos
  1091. da era moderna - os tempos da
  1092. 1
  1093. j
  1094. 40
  1095. Modernidade Líquida
  1096. Emancipação
  1097. 41
  1098. 1
  1099. exaltada "emancipação" do homem da trama estreita da dependência, da vigilância e
  1100. da imposição comunitárias.
  1101. "Jenseits von Kiasse und Stand?' de Ulrich Beck, e poucos anos depois seu
  1102. "Risikogesellschaft: auf dem Weg in eine andere Moderne"9 (juntamente com "Em
  1103. Stiick eigenes
  1104. Leben: Frauen im Individualisierung Prozess' de Elisabeth Beck-Gernsheim) abriram
  1105. um novo capítulo em nossa compreensão do "processo de individualização" Esses
  1106. trabalhos
  1107. apresentaram o processo como uma história em curso e infindável, com seus distintos
  1108. estágios - ainda que com um horizonte móvel e uma lógica errática de giros e
  1109. curvas abruptos em lugar de um te/os ou um destino predeterminado. Pode-se dizer
  1110. que, assim como Elias historicizou a teoria de Sigmund Freud do "indivíduo civilizado"
  1111. explorando a civilização como um evento na história (moderna), Beck historicizou a
  1112. narrativa de Elias do nascimento do indivíduo ao reapresentar esse nascimento
  1113. como um aspecto perpétuo da contínua, compulsiva e obsessiva modernização. Beck
  1114. também estabeleceu o retrato da individualização liberta de suas roupagens
  1115. transitórias,
  1116. hoje mais obscurecedoras que clarificadoras da compreensão (antes e acima de tudo,
  1117. liberta de suas visões do desenvolvimento linear, uma progressão assinalada ao
  1118. longo dos eixos da emancipação, da crescente autonomia e da liberdade de autoafirmação),
  1119. expondo assim para exame a variedade de tendências à individualização e
  1120. seus produtos, e permitindo uma melhor compreensão das características distintivas
  1121. de seu estágio presente.
  1122. Resumidamente, a "individualização" consiste em transformar a "identidade" humana
  1123. de um "dado" em uma "tarefa" e encarregar os atores da responsabilidade de realizar
  1124. essa tarefa e das conseqüências (assim como dos efeitos colaterais) de sua
  1125. realização. Em outras palavras, consiste no estabelecimento de uma autonomia de jure
  1126. (independentemente
  1127. de a autonomia defacto também ter sido estabelecida).
  1128. Os seres humanos não mais "nascem" em suas identidades. Como disse Jean-Paul
  1129. Sartre em frase célebre: não basta ter nascido burguês - é preciso viver a vida como
  1130. burguês. (Note-se que o mesmo não precisaria ser nem poderia ser dito sobre
  1131. príncipes, cavaleiros ou servos da era pré-moderna; nem poderia ser dito de
  1132. modo tão resoluto dos ricos nem dos pobres de berço dos tempos modernos). Precisar
  1133. tornar-seo que já se éé a característica da vida moderna - e só da vida moderna
  1134. (não da "individualização moderna' a expressão sendo evidentemente pleonástica;
  1135. falar da individualização e da modernidade é falar de uma e da mesma condição
  1136. social).
  1137. A modernidade substitui a determinação heterônoma da posição social pela
  1138. autodeterminação compulsiva e obrigatória. Isso vale para a "individualização" por toda
  1139. a era moderna
  1140. - para todos os períodos e todos os setores da sociedade. No entanto, dentro daquela
  1141. condição compartilhada há variações significativas, que distinguem gerações
  1142. sucessivas e também as várias categorias de atores que compartilham o mesmo
  1143. cenário histórico.
  1144. A antiga modernidade "desacomodava" a fim de "reacomodar" Enquanto a
  1145. desacomodação era o destino socialmente sancionado, a reacomodação era tarefa
  1146. posta diante dos
  1147. indivíduos. Uma vez rompidas as rígidas molduras dos estamentos, a tarefa de "autoidentificação"
  1148. posta diante de homens e mulheres do princípio da era moderna se
  1149. resumia ao desafio de viver "de acordo" (não ficar atrás dos outros), de conformar-se
  1150. ativamente aos emergentes tipos sociais de classe e modelos de conduta, de
  1151. imitar, seguir o padrão, "aculturar-se' não sair da linha nem se desviar da norma. Os
  1152. "estamentos" enquanto lugares a que se pertencia por hereditariedade vieram
  1153. a ser substituídos pelas "classes" como objetivo de pertencimento fabricado. Enquanto
  1154. os estamentos eram uma questão de atribuição, o pertencimento às classes era
  1155. em grande medida uma realização; diferentemente dos estamentos, o pertencimento
  1156. às classes devia ser buscado, e continuamente renovado, reconfirmado e testado na
  1157. conduta diária.
  1158. Retrospectivamente, pode-se dizer que a divisão em classes (ou em gêneros) foi um
  1159. resultado secundário do acesso desigual aos recursos necessários para tornar a
  1160. auto-afirmação eficaz. As classes diferiam na gama de identidades disponíveis e na
  1161. facilidade de escolher entre elas e adotá-las. As pessoas com menos recursos e,
  1162. portanto, com menos escolha, tinham que compensar suas fraquezas individuais pela
  1163. "força do nómero" - cerrando fileiras e partindo para a ação coletiva. Como assinalou
  1164. Claus Offe, a ação coletiva, orientada pela classe, era tão natural e corriqueira
  1165. 42
  1166. Modernidade Líquida
  1167. Emancipação
  1168. 43
  1169. para os que estavam nos níveis mais baixos da escala social quanto a perseguição
  1170. individualde seus objetivos de vida o era para seus patrões.
  1171. As privações se somavam, por assim dizer; e, uma vez somadas, congelavam-se em
  1172. "interesses comuns" e eram vistas como tratáveis apenas com um remédio coletivo. O
  1173. "coletivismo" foi a primeira opção de estratégia para aqueles situados na ponta
  1174. receptora da individualização mas incapazes de se auto-afirmar enquanto indivíduos
  1175. se limitados a seus próprios recursos individuais, claramente inadequados. A
  1176. orientação de classe dos mais bem-aquinhoados era, por outro lado, parcial e, em
  1177. certo
  1178. sentido, derivativa; assumia o primeiro plano principalmente quando a distribuição
  1179. desigual dos recursos era desafiada e contestada. Qualquer que fosse o caso, porém,
  1180. os indivíduos da modernidade "clássica' deixados "desacomodados" pela
  1181. decomposição da ordem estamental, dispunham de seus novos poderes e autonomia
  1182. na busca frenética
  1183. da "reacomodação'
  1184. E não faltavam "camas" à espera e prontas para acomodá-los. A classe - embora
  1185. formada e negociável, e não herdada, como eram os estamentos - tendia a prender
  1186. seus
  1187. membros tão firme e fortemente quanto o estamento hereditário pré-moderno. Classe e
  1188. gênero projetavam-se pesadamente sobre a gama de escolhas do indivíduo; escapar
  1189. a esses limites não era muito mais fácil do que contestar o lugar ocupado na "cadeia
  1190. divina do ser" pré-moderna. Para todos os efeitos, a classe e o gênero eram
  1191. "fatos da natureza", e a tarefa reservada à auto-afirmação da maioria dos indivíduos
  1192. era "adaptar-se" ao nicho alocado, comportando-se como os demais ocupantes.
  1193. Isso é precisamente o que distingue a "individualização" de outrora da forma que veio a
  1194. tomar na Risikogesellschaf4 em tempos de "modernidade reflexiva" ou "segunda
  1195. modernidade" (nas diferentes formas como Ulrich Beck se refere à era
  1196. contemporânea). Não são fornecidos "lugares" para a "reacomodação", e os lugares
  1197. que podem ser
  1198. postulados e perseguidos mostram-se frágeis e freqüentemente desaparecem antes
  1199. que o trabalho de "reacomodação" seja completado. O que há são "cadeiras musicais"
  1200. de vários tamanhos e estilos, assim como em números e posições cam biantes
  1201. que fazem com que as pessoas estejam constantemente em movimento, e não
  1202. prometem nem a "realização", nem o descanso, nem a satisfação de "chegar", de
  1203. alcançar o
  1204. destino final, quando se pode desarmar-se, relaxar e deixar de se preocupar. Não há
  1205. perspectiva de "reacomodação" no final do caminho tomado pelos indivíduos (agora
  1206. cronicamente) desacomodados.
  1207. Não se engane: agora, como antes - tanto no estágio leve e fluido da modernidade
  1208. quanto no sólido e pesado -, a individualização é uma fatalidade, não uma escolha.
  1209. Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e
  1210. de se recusar a participar do jogo da individualização está decididamente fora
  1211. da jogada. A autocontenção e a auto-suficiência do indivíduo podem ser outra ilusão:
  1212. que homens e mulheres não tenham nada a que culpar por suas frustrações e
  1213. problemas
  1214. não precisa agora significar, não mais que no passado, que possam se proteger contra
  1215. a frustração utilizando suas próprias estratégias, ou que escapem de seus problemas
  1216. puxando-se, como o Barão de Munchausen, pelas próprias botas. E, no entanto, se
  1217. ficam doentes, supõe-se que foi porque não foram suficientemente decididos e
  1218. industriosos
  1219. para seguir seus tratamentos; se ficam desempregados, foi porque não aprenderam a
  1220. passar por uma entrevista, ou porque não se esforçaram o suficiente para encontrar
  1221. trabalho ou porque são, pura e simplesmente, avessos ao trabalho; se não estão
  1222. seguros sobre as perspectivas de carreira e se agoniam sobre o futuro, é porque não
  1223. são suficientemente bons em fazer amigos e influenciar pessoas e deixaram de
  1224. aprender e dominar, como deveriam, as artes da auto-expressão e da impressão que
  1225. causam.
  1226. Isto é, em todo caso, o que lhes é dito hoje, e aquilo em que passaram a acreditar, de
  1227. modo que agora se comportam como se essa fosse a verdade. Como Beck adequada
  1228. e pungentemente diz, "a maneira como se vive torna-se uma solução biogr4/ka das
  1229. contradições sisté'micas' 10 Riscos e contradições continuam a ser socialmente
  1230. produzidos;
  1231. são apenas o dever e a necessidade de enfrentá-los que estão sendo individualizados.
  1232. Para resumir: o abismo entre a individualidade como fatalidade e a individualidade
  1233. como capacidade realista e prática de auto- afirmação está aumentando. (Melhor
  1234. ser afastado da "individuali 1
  1235. 44 Modernidade Líquido
  1236. Emancipação 45
  1237. dade por atribuição' como "individuação": o termo escolhido por Beck para distinguir o
  1238. indivíduo auto-sustentado e auto-impulsionado daquele que não tem escolha
  1239. senão a de agir, ainda que contrafactualmente, como se a individualização tivesse sido
  1240. alcançada). Saltar sobre esse abismo não é- isso é crucial - parte dessa capacidade.
  1241. A capacidade auto-assertiva de homens e mulheres individualizados deixa a desejar,
  1242. como regra, em relação ao que a genuína autoconstituição requereria. Como observou
  1243. Leo Strauss, o outro lado da liberdade ilimitada é a insignificância da escolha, cada
  1244. lado condicionando o outro: por que cuidar de proibir o que será, de qualquer
  1245. modo, de pouca conseqüência? Um observador cínico diria que a liberdade chega
  1246. quando não faz mais diferença. Há um desagradável ar de impotência no temperado
  1247. caldo
  1248. da liberdade preparado no caldeirão da individualização; essa impotência é sentida
  1249. como ainda mais odiosa, frustrante e perturbadora em vista do aumento de poder
  1250. que se esperava que a liberdade trouxesse.
  1251. Qnem sabe não seria um remédio manter-se, como no passado, ombro a ombro e
  1252. marchar unidos? Quem sabe se, caso os poderes individuais, tão frágeis e impotentes
  1253. isoladamente,
  1254. fossem condensados em posições e ações coletivas, poderíamos realizar em conjunto
  1255. o que ninguém poderia realizar sozinho? Quem sabe... O problema é, porém, que essa
  1256. convergência e condensação das queixas individuais em interesses compartilhados, e
  1257. depois em ação conjunta, é uma tarefa assustadora, dado que as aflições mais
  1258. comuns
  1259. dos "indivíduos por fatalidade" nos dias de hoje são não- aditivas, não podem ser
  1260. "somadas" numa "causa comum' Podem ser postas lado a lado, mas não se fundirão.
  1261. Pode-se dizer que desde o começo são moldadas de tal maneira que lhes faltam
  1262. interfaces para combinar-se com os problemas das demais pessoas.
  1263. Os problemas podem ser semelhantes (e os cada vez mais populares programas de
  1264. entrevistas insistem em demonstrar sua semelhança, enquanto martelam a mensagem
  1265. de
  1266. que sua semelhança mais importante consiste em que são enfrentados por conta
  1267. própria pelos que os sofrem), mas não formam uma "totalidade que é maior que a
  1268. soma
  1269. de suas partes"; não adquirem qualquer qua lidad
  1270. nova, nem se tornam mais fáceis de manejar por serem enfrentados, confrontados e
  1271. trabalhados em conjunto. A única vantagem que a companhia de outros sofredores
  1272. pode
  1273. trazer é garantir a cada um deles que enfrentar os problemas solitariamente é o que
  1274. todos fazem diariamente - e portanto renovar e encorajar a fatigada decisão de
  1275. continuar a fazer o mesmo. Talvez possa-se também aprender da experiência de
  1276. outras pessoas a como sobreviver à nova rodada de "redução de tamanho"
  1277. (downsizing);
  1278. como lidar com crianças que pensam que são adolescentes e adolescentes que se
  1279. recusam a se tornar adultos; como pôr a gordura e outros "corpos estranhos"
  1280. indesejáveis
  1281. "para fora do sistema"; como livrar-se de um vício que não dá mais prazer ou de
  1282. parceiros que não são mais satisfatórios. Mas o que aprendemos antes de mais nada
  1283. da companhia de outros é que o único auxílio que ela pode prestar é como sobreviver
  1284. em nossa solidão irremível, e que a vida de todo mundo é cheia de riscos que
  1285. devem ser enfrentados solitariamente.
  1286. E assim há também outro obstáculo: como de Tocqueville há muito suspeitava, libertar
  1287. as pessoas pode torná-las indiferentes. O indivíduo é o pior inimigo do cidadão,
  1288. sugeriu ele. O "cidadão" é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar
  1289. através do bem-estar da cidade - enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou
  1290. prudente em relação à "causa comum' ao "bem comum' à "boa sociedade" ou à
  1291. "sociedade justa' Qual é o sentido de "interesses comuns" senão permitir que cada
  1292. indivíduo
  1293. satisfaça seus próprios interesses? O que quer que os indivíduos façam quando se
  1294. unem, e por mais benefícios que seu trabalho conjunto possa trazer, eles o perceberão
  1295. como limitação à sua liberdade de buscar o que quer que lhes pareça adequado
  1296. separadamente, e não ajudarão. As únicas duas coisas úteis que se espera e se
  1297. deseja
  1298. do "poder público" são que ele observe os "direitos humanos' isto é, que permita que
  1299. cada um siga seu próprio caminho, e que permita que todos o façam "em paz" -
  1300. protegendo a segurança de seus corpos e posses, trancando criminosos reais ou
  1301. potenciais nas prisões e mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes
  1302. e todo tipo de estranhos constrangedores e maus.
  1303. 46
  1304. Modernidade Líquido
  1305. Emancipação
  1306. 47
  1307. Com seu humor habitual e inimitável, Woody Alien aponta as modas e manias dos
  1308. "indivíduos por decreto" ao folhear os anúncios de imaginários cursos de verão do tipo
  1309. que os norte-americanos adorariam freqüentar. O curso de teoria econômica inclui o
  1310. item "inflação e depressão - como vestir-se para cada ocasião"; o curso de ética
  1311. envolve "O imperativo categórico - e seis maneiras de fazê-lo funcionar a seu favor'
  1312. enquanto o prospecto de astronomia informa que "o Sol, que é feito de gás, pode
  1313. explodir a qualquer momento, mandando nosso planeta inteiro pelos ares; os
  1314. estudantes são instruídos sobre o que o cidadão médio pode fazer em tal caso'
  1315. Em suma: o outro lado da individualização parece ser a corrosão e a lenta
  1316. desintegração da cidadania. Joël Roman, co-editor de Espri!, assinala em seu livro
  1317. recente
  1318. (La démocratie des individus, 1998) que "a vigilância é degradada à guarda dos bens,
  1319. enquanto o interesse geral não é mais que um sindicato de egoísmos, que envolve
  1320. emoções coletivas e o medo do vizinho" Roman concita os leitores a buscarem uma
  1321. "renovada capacidade de decidir em conjunto" - hoje notável por sua inexistência.
  1322. Se o indivíduo é o pior inimigo do cidadão, e se a individualização anuncia problemas
  1323. para a cidadania e para a política fundada na cidadania, é porque os cuidados
  1324. e preocupações dos indivíduos enquanto indivíduos enchem o espaço público até o
  1325. topo, afirmando-se como seus únicos ocupantes legítimos e expulsando tudo mais do
  1326. discurso público. O "público" é colonizado pelo "privado"; o "interesse público" é
  1327. reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas e a arte da
  1328. vida pública é reduzida à exposição pública das questões privadas e a confissões de
  1329. sentimentos privados (quanto mais íntimos, melhor). As "questões públicas" que
  1330. resistem a essa redução tornam-se quase incompreensíveis.
  1331. As perspectivas de que os atores individualizados sejam "reacomodados" no corpo
  1332. republicano dos cidadãos são nebulosas. O que os leva a aventurar-se no palco
  1333. público
  1334. não é tanto a busca de causas comuns e de meios de negociar o sentido do bem
  1335. comum e dos princípios da vida em comum quanto a necessidade desesperada de
  1336. "fazer parte
  1337. da rede' Compartilhar intimidades, como
  1338. Richard Sennett insiste, tende a ser o método preferido, e talvez o único que resta, de
  1339. "construção da comunidade' Essa técnica de construção só pode criar "comunidades"
  1340. tão frágeis e transitórias como emoções esparsas e fugidias, saltando erraticamente de
  1341. um objetivo a outro na busca sempre inconclusiva de um porto seguro: comunidades
  1342. de temores, ansiedades e ódios compartilhados
  1343. - mas em cada caso comunidades "cabide' reuniões momentâneas em que muitos
  1344. indivíduos solitários penduram seus solitários medos individuais. Como diz Ulrich Beck
  1345. (no ensaio "Sobre a mortalidade da sociedade industrial"),
  1346. O que emerge no lugar das normas sociais evanescentes é o ego nu, atemorizado e
  1347. agressivo à procura de amor e de ajuda. Na procura de si mesmo e de uma
  1348. sociabilidade
  1349. afetuosa, ele facilmente se perde na selva do eu ... Alguém que tateia na bruma de seu
  1350. próprio eu não é mais capaz de perceber que esse isolamento, esse "confinamento
  1351. solitário do ego': é uma sentença de massa.1'
  1352. A individualização chegou para ficar; toda elaboração sobre os meios de enfrentar seu
  1353. impacto sobre o modo como levamos nossas vidas deve partir do reconhecimento
  1354. desse fato. A individualização traz para um número sempre crescente de pessoas uma
  1355. liberdade sem precedentes de experimentar - mas (timeo danaos ei dona ferentes...)
  1356. traz junto a tarefa também sem precedentes de enfrentar as conseqüências. O abismo
  1357. que se abre entre o direito à auto-afirmação e a capacidade de controlar as situações
  1358. sociais que podem tornar essa auto-afirmação algo factível ou irrealista parece ser a
  1359. principal contradição da modernidade fluida - contradição que, por tentativa
  1360. e erro, reflexão crítica e experimentação corajosa, precisamos aprender a manejar
  1361. coletivamente.
  1362. O compromisso da teoria crítica
  1363. na sociedade dos indivíduos
  1364. O impulso modernizante, em qualquer de suas formas, significa a critica compulsiva da
  1365. realidade. A privatização do impulso signifi
  1366. 48 Modernidade Líquida
  1367. Emancipação 49
  1368. ca a compulsiva auto-crítica nascida da desafeição perpétua: ser um indivíduo de jure
  1369. significa não ter ninguém a quem culpar pela própria miséria, significa não
  1370. procurar as causas das próprias derrotas senão na própria indolência e preguiça, e não
  1371. procurar outro remédio senão tentar com mais e mais determinação.
  1372. Viver diariamente com o risco da auto-reprovação e do auto- desprezo não é fácil. Com
  1373. os olhos postos em seu próprio desempenho - e portanto desviados do espaço
  1374. social onde as contradições da existência individual são coletivamente produzidas -, os
  1375. homens e mulheres são naturalmente tentados a reduzir a complexidade de sua
  1376. situação a fim de tornarem as causas do sofrimento inteligíveis e, assim, tratáveis. Não
  1377. que considerem as "soluções biográficas" onerosas e embaraçosas; simplesmente
  1378. não há "soluçõ&s biográficas para contradições sistêmicas" eficazes, e assim a
  1379. escassez de soluções possíveis à disposição precisa ser compensada por soluções
  1380. imaginárias.
  1381. No entanto - imaginárias ou genuínas -' todas as "soluções", para parecerem razoáveis
  1382. e viáveis, devem ser acompanhadas pela "individualização" das tarefas e
  1383. responsabilidades.
  1384. Há, então, demanda por cabides individuais onde os indivíduos atemorizados possam
  1385. pendurar coletiva, ainda que brevemente, seus temores individuais. Nosso tempo
  1386. é propício aos bodes expiatórios - sejam eles políticos que fazem de suas vidas
  1387. privadas uma confusão, criminosos que se esgueiram nas ruas e nos bairros perigosos
  1388. ou "estrangeiros entre nós' O nosso é um tempo de cadeados, cercas de arame
  1389. farpado, ronda dos bairros e vigilantes; e também de jornalistas de tablóides
  1390. "investigativos"
  1391. que pescam conspirações para povoar de fantasmas o espaço público funestamente
  1392. vazio de atores, conspirações suficientemente ferozes para liberar boa parte dos
  1393. medos
  1394. e ódios reprimidos em nome de novas causas plausíveis para o "pânico moral'
  1395. Repito: há um grande e crescente abismo entre a condição de indivíduos de jure e
  1396. suas chances de se tornar indivíduos de facto
  1397. - isto é, de ganhar controle sobre seus destinos e tomar as decisões que em verdade
  1398. desejam. E desse abismo que emanam os eflúvios mais venenosos que contaminam
  1399. as vidas dos indivíduos contemporâneos. Esse abismo não pode ser transposto
  1400. apenas por esforços individuais: não pelos meios e recursos disponíveis den tr
  1401. da política-vida auto-administrada. Transpor o abismo é a tarefa da Política com P
  1402. maiúsculo. Pode-se supor que o abismo em questão emergiu e cresceu precisamente
  1403. por causa do esvaziamento do espaço público, e particularmente da ágora, aquele
  1404. lugar intermediário, público/privado, onde a política-vida encontra a Política com
  1405. p maiúsculo, onde os problemas privados são traduzidos para a linguagem das
  1406. questões públicas e soluções públicas para os problemas privados são buscadas,
  1407. negociadas
  1408. e acordadas.
  1409. A mesa foi virada, por assim dizer: a tarefa da teoria crítica foi invertida. Essa tarefa
  1410. costumava ser a defesa da autonomia privada contra as tropas avançadas
  1411. da "esfera pública", soçobrando sob o domínio opressivo do Estado onipotente e
  1412. impessoal e de seus muitos tentáculos burocráticos ou réplicas em escala menor. Hoje
  1413. a tarefa é defender o evanescente domínio público, ou, antes, reequipar e repovoar o
  1414. espaço público que se esvazia rapidamente devido à deserção de ambos os lados:
  1415. a retirada do "cidadão interessado" e a fuga do poder real para um território que, por
  1416. tudo que as instituições democráticas existentes são capazes de realizar,
  1417. só pode ser descrito como um "espaço cósmico"
  1418. Não é mais verdade que o "público" tente colonizar o "privado' O que se dá é o
  1419. contrário: é o privado que coloniza o espaço público, espremendo e expulsando o que
  1420. quer que não possa ser expresso inteiramente, sem deixar resíduos, no vernáculo dos
  1421. cuidados, angústias e iniciativas privadas. Repetidamente informado de que é
  1422. o senhor de seu próprio destino, o indivíduo não tem razão de atribuir "relevância
  1423. tópica" (o termo é de Alfred Schütz) ao que quer que resista a ser engolfado no
  1424. eu e trabalhado com os recursos do eu; mas ter essa razão e agir sobre ela é
  1425. precisamente a marca registrada do cidadão.
  1426. Para o indivíduo, o espaço público não é muito mais que uma tela gigante em que as
  1427. aflições privadas são projetadas sem cessar, sem deixarem de ser privadas ou
  1428. adquirirem
  1429. novas qualidades coletivas no processo da ampliação: o espaço público é onde se faz
  1430. a confissão dos segredos e intimidades privadas. Os indivíduos retornam de suas
  1431. excursões diárias ao espaço "público" reforçados em sua individualidade de jure e
  1432. tranqüilizados de que o modo
  1433. 50
  1434. Modernidade Líquida
  1435. Emancipação
  1436. 51
  1437. solitário como levam sua vida é o mesmo de todos os outros "indivíduos como eles'
  1438. enquanto - também corno eles - dão seus próprios tropeços e sofrem suas (talvez
  1439. transitérias) derrotas no processo.
  1440. Quanto ao poder, ele navega para longe da rua e do mercado, das assembléias e dos
  1441. parlamentos, dos governos locais e nac
  1442. e oportunidades no que forçosamente continuará sendo uma relação ambivalente
  1443. mudaram radicalmente no curso da história moderna. Embora as razões para examiná-
  1444. la
  1445. de perto possam não ter desaparecido, a sociedade é hoje antes de tudo a condição
  1446. de que os indivíduos precisam muito, e que lhes faz falta - em sua luta vã e frustrante
  1447. para transformar seu status de jure em genuína autonomia e capacidade de autoafirmação.
  1448.  
  1449. Esta é, nos termos mais amplos, a situação que hoje se coloca para a teoria crítica - e,
  1450. em termos mais gerais, para a crítica social. Ela se reduz a unir novamente
  1451. o que a combinação da individualização formal e o divórcio entre o poder e a política
  1452. partiram em pedaços. Em outras palavras, redesenhar e repovoar a hoje quase
  1453. vazia ágora - o lugar de encontro, debate e negociação entre o indivíduo e o bem
  1454. comum, privado e público. Se o velho objetivo da teoria crítica - a emancipação
  1455. humana - tem qualquer significado hoje, ele é o de reconectar as duas faces do abismo
  1456. que se abriu entre a realidade do indivíduo de jure e as perspectivas do indivíduo
  1457. de facto. E indivíduos que reaprenderam capacidades esquecidas e reapropriaram
  1458. ferramentas perdidas da cidadania são os únicos construtores à altura da tarefa de
  1459. erigir essa ponte em particular.
  1460. A teoria crítica revisitada
  1461. A necessidade de pensar é o que nos faz pensar, disse Adorno.'2 Sua Dialética
  1462. negativa, essa longa e tortuosa exploração dos modos de ser humano num mundo
  1463. inóspito
  1464. à humanidade, acaba com essa frase contundente, mas em última análise vazia: ao fim
  1465. de centenas de páginas, nada foi explicado, nenhum mistério revelado, nenhuma
  1466. segurança alcançada. O segredo de ser humano permanece tão impenetrável como no
  1467. começo da jornada. Pensar nos faz humanos, mas é por sermos humanos que
  1468. pensamos.
  1469. O pensar não pode ser explicado; mas não precisa de explicação. O pensar não
  1470. precisa ser justificado; mas não poderia ser justificado, ainda que tentássemos.
  1471. Essa situação não é, Adorno nos dirá muitas e muitas vezes, nem um sinal de fraqueza
  1472. do pensamento, nem marca da vergonha de quem pensa. Talvez seja o contrário.
  1473. Na pena de Adorno, a triste necessidade se transforma em privilégio. Quanto menos
  1474. um pensamento puder ser explicado em termos familiares, que façam sentido para
  1475. os homens e mulheres imersos em sua busca diária da
  1476. ii'
  1477. sobrevivência, tanto mais próximo fica dos padrões da humanidade; quanto menos
  1478. puder ser justificado em termos de ganhos e usos tangíveis ou das etiquetas de preço
  1479. afixadas a ele no supermercado ou na bolsa de valores, tanto maior seu valor
  1480. humanizante. São a busca ativa do valor de mercado e a urgência do consumo
  1481. imediato
  1482. que ameaçam o genuíno valor do pensamento. "Nenhum pensamento é imune",
  1483. escreve Adorno,
  1484. à comunicação, e fazê-la no lugar errado e num acordo equivocado é o suficiente para
  1485. solapar sua verdade. ... Pois o isolamento intelectual inviolável é agora a
  1486. única maneira de mostrar algum grau de solidariedade. ... O observador distante está
  1487. tão envolvido quanto o participante ativo; a única vantagem do primeiro é a
  1488. visão desse envolvimento e a liberdade infinitesimal que reside no conhecimento
  1489. enquanto tal.13
  1490. Ficará claro que a visão é o começo da liberdade se lembrarmos que "para um sujeito
  1491. que age ingenuamente ... seu próprio condicionamento é não-transparente14 e que
  1492. a não-transparência do condicionamento é garantia de ingenuidade perpétua. Assim
  1493. como o pensamento não precisa de nada senão de si mesmo para perpetuar-se,
  1494. também
  1495. a ingenuidade é auto-suficiente; enquanto não for perturbada pela visão, manterá
  1496. intacto seu próprio condicioriamento.
  1497. "Não perturbado": em verdade, a chegada da visão quase nunca é bem-vinda para
  1498. aqueles que se acostumaram a viver sem ela como doce perspectiva da liberdade. A
  1499. inocência
  1500. da ingenuidade faz com que até mesmo a condição mais turbulenta e traiçoeira pareça
  1501. familiar e, portanto, segura, e qualquer visão de seus precários andaimes é um
  1502. prodígio de falta de confiança, dúvida e insegurança que poucos receberiam
  1503. esperançosamente. Parece que, para Adorno, essa ampla rejeição da visão é positiva,
  1504. embora
  1505. não anuncie um caminho fácil. A falta de liberdade do ingênuo é a liberdade da pessoa
  1506. que pensa. Ela torna o "isolamento inviolável" mais fácil. "Aquele que põe
  1507. à venda algo que ninguém quer comprar representa, mesmo contra sua vontade, a
  1508. liberdade em relação à troca'15 Há apenas um passo que leva dessa idéia a
  1509. outra: a do exílio como condição arquetípica da liberdade em relação à troca. Os
  1510. produtos que o exílio oferece são tais que ninguém teria qualquer inclinação de
  1511. comprá-los. "Todo intelectual emigrado está, sem exceção, mutilado", escreveu Adorno
  1512. em seu próprio exílio nos Estados Unidos. "Ele vive num ambiente que permanecerá
  1513. incompreensível" Não surpreende que ele esteja protegido contra o risco de produzir
  1514. qualquer coisa de valor no mercado local. Portanto, "se na Europa o gesto esotérico
  1515. era freqüentemente apenas um pretexto para o mais cego auto-interesse, o conceito
  1516. de austeridade parece, no exílio, o mais aceitável dos salva-vidas"6. O exílio
  1517. é para o pensador o que o lar é para o ingênuo; é no exílio que o distanciamento, modo
  1518. de vida habitual da pessoa que pensa, adquire valor de sobrevivência.
  1519. Ao lerem a edição dos Upanishads de Deussen, Adorno e Horkheimer comentam
  1520. amargamente que os sistemas teóricos e práticos dessas pessoas que buscam da
  1521. união entre
  1522. a verdade, a beleza e a justiça, esses "estranhos à história", "não são muito rigorosos e
  1523. centrados; distinguem-se dos sistemas acabados por um elemento de anarquia.
  1524. Atribuem maior importância à idéia e ao indivíduo que à administração e ao coletivo.
  1525. Portanto, despertam ódio"7. Para que as idéias tenham sucesso, para que atinjam
  1526. a imaginação dos habitantes da caverna, o elegante ritual védico deverá superar as
  1527. vagas meditações dos Upanishads; os frios e bem-comportados estóicos deverão
  1528. substituir
  1529. os impetuosos e arrogantes cínicos; e o absolutamente prático São Paulo deverá
  1530. substituir o estranhamente pouco prático São João Batista. A grande questão, porém,
  1531. é se o poder emancipatório dessas idéias pode sobreviver a seu sucesso mundano. A
  1532. resposta de Adorno a tal questão recende a melancolia: "A história das antigas
  1533. religiões e escolas, como a dos partidos e revoluções modernas, nos ensina que o
  1534. preço da sobrevivência é o envolvimento prático, a transformação das idéias em
  1535. dominação"8.
  1536. Nesta última frase, o principal dilema estratégico que assombrava o fundador e mais
  1537. notório escritor da "escola crítica" original encontra sua mais vivida expressão:
  1538. quem quer que pense e se aflija está condenado a navegar entre o Sila do pensamento
  1539. limpo
  1540. 52
  1541. Modernidade Líquida
  1542. Emancipação
  1543. 1
  1544. 53
  1545. ii
  1546. 54
  1547. Emancipação 55
  1548. Modernidade Líquida
  1549. mas impotente e o Caribdis da tentativa eficaz mas poluida pela dominação. Tertium
  1550. non datur. Nem a aposta na prática nem a recusa a ela constituem boa solução.
  1551. A primeira tende, inevitavelmente, a transformar-se em dominação - com todo seu
  1552. séquito de horrores: novas limitações à liberdade, a pragmática utilitária dos efeitos
  1553. tendo precedência sobre os princípios éticos das razões e a diluição e subseqüente
  1554. distorção das ambições da liberdade. A segunda pode talvez satisfazer o desejo
  1555. narcisístico da pureza intocada, mas manteria o pensamento ineficaz e, no limite,
  1556. estéril: a filosofia, como Ludwig Witgenstein observou com tristeza, deixaria tudo
  1557. como era; o pensamento nascido da revolta contra a inumanidade da condição
  1558. humana faria pouco ou nada para tornar mais humana essa condição. O dilema entre
  1559. vita
  1560. contemplativa e vila activa se resume a uma escolha entre duas perspectivas
  1561. igualmente pouco atraentes. Quanto mais os valores preservados no pensamento
  1562. forem protegidos
  1563. da poluição, menos significativos serão para a vida daqueles a quem devem servir.
  1564. Quanto maiores seus efeitos nessa vida, menos essa vida reformada fará lembrar
  1565. os valores que induziram e inspiraram a reforma.
  1566. O tormento de Adorno tem uma longa história, chegando à questão de Platão sobre a
  1567. sabedoria e a possibilidade do "retorno à caverna' Essa questão surgiu a partir
  1568. da invocação de Platão aos filósofos para que abandonassem a caverna escura do
  1569. quotidiano e - em nome da pureza do pensamento - recusassem qualquer intercmhio
  1570. com
  1571. os habitantes da caverna enquanto durasse sua jornada no iluminado mundo exterior
  1572. das idéias claras e lúcidas. O problema era se, na volta, os filósofos quereriam
  1573. compartilhar os troféus da jornada com os de dentro da caverna e - caso o quisessem -
  1574. se os outros os ouviriam e lhes dariam crédito. Fiel às idéias de seu tempo,
  1575. Platão esperava que o provável desencontro na comunicação resultasse na morte dos
  1576. portadores das notícias...
  1577. A versão de Adorno do problema de Platão tomou forma no mundo pós-iluminista,
  1578. quando queimar hereges e dar cicuta aos arautos de uma vida mais nobre estavam
  1579. definitivamente
  1580. fora de moda. Nesse novo mundo, os habitantes da caverna, reencarnados como
  1581. Bürger, não exibiam mais o entusiasmo pela verdade e pelos
  1582. valores mais altos dos onginais de Platão; esperava-se que opusessem firme e feroz
  1583. resistência a uma mensagem fadada a perturbar a tranqüilidade de sua rotina diária.
  1584. Fiel às novas idéias, porém, o resultado da ruptura na comunicação aparecia de forma
  1585. diferente. A união entre conhecimento e poder, mera fantasia nos tempos de Platão,
  1586. tornou-se um postulado rotineiro e quase axiomático da filosofia e uma afirmação
  1587. comum e diariamente repetida da política. De algo pelo quê se poderia morrer, a
  1588. verdade tornou-se algo que oferecia boas razões pelas quais se poderia matar. (Foi um
  1589. pouco das duas coisas todo o tempo, mas as proporções na mistura mudaram
  1590. drasticamente).
  1591. Era portanto natural e razoável esperai nos tempos de Adorno, que os rejeitados
  1592. apóstolos das boas notícias recorressem à força sempre que pudessem; e buscassem
  1593. a dominação para quebrar a resistência e compelir, impelir ou subornar seus
  1594. opositores a seguir a rota que relutavam a encetar. Ao velho dilema - como encontrar
  1595. as palavras adequadas aos ouvidos não-iniciados sem comprometer a essência da
  1596. mensagem; como expressar a verdade numa forma fácil de compreender e
  1597. suficientemente
  1598. atraente para que sua compreensão pudesse ser desejada sem deturpar ou diluir seu
  1599. conteúdo -, a esse dilema veio somar- se uma nova dificuldade, particularmente
  1600. dura e angustiante no caso de uma mensagem com ambições emancipadoras e
  1601. libertadoras: como evitar, ou ao menos limitar, o impacto corruptor do poder e da
  1602. dominação,
  1603. vistos agora como principal veículo portador da mensagem aos recalcitrantes e
  1604. indiferentes? As duas angústias se entrelaçam, às vezes se fundem - como na áspera,
  1605. ainda que inconclusiva, disputa entre Leo Strauss e Alexandre Kojève.
  1606. "A filosofia' insiste Strauss, é a busca da "ordem eterna e imutável na qual a história
  1607. acontece e que permanece inalterada pela história" O que é eterno e imutável
  1608. é também universal; embora a aceitação universal dessa ordem eterna e imutável
  1609. possa ser atingida somente com base no conhecimento genuíno ou na sabedoria - não
  1610. através da reconciliação ou do acordo entre opiniões.
  1611. O acordo fundado na opinião não pode nunca se tornar um acordo
  1612. universal. Toda fé que pretende a universalidade, isto é, a aceitação
  1613. 56
  1614. Modernidade Líquida
  1615. Emancipação
  1616. 57
  1617. universal, necessariamente provoca uma contra-fé com a mesma pretensão. A difusão
  1618. entre os não-iniciados do conhecimento genuíno adquirido pelos sábios não serviria
  1619. para nada, pois pela difusão ou diluição o conhecimento inevitavelmente se transforma
  1620. em opinião, preconceito ou mera crença.
  1621. Tanto para Strauss quanto para Kojéve, essa diferença entre o saber e a "mera crença'
  1622. bem como a dificuldade de comunicação entre elas, apontava imediata e
  1623. automaticamente
  1624. para a questão do poder e da política. Os dois polemistas viam a incompatibilidade
  1625. entre os dois tipos de conhecimento como a questão da direção, da coerção e do
  1626. engajamento político dos "portadores do saber' como o problema da relação entre a
  1627. filosofia e o Estado, considerado o lugar e foco por excelência da política. O
  1628. problema se reduz a uma escolha entre o envolvirneiito político e o radical
  1629. distanciamento da prática política, e ao cálculo cuidadoso dos ganhos, riscos e
  1630. prejuízos
  1631. potenciais de cada uma dessas posições.
  1632. Dado que a ordem eterna, a questão com que os filósofos verdadeiramente se
  1633. ocupam, não é "afetada pela história' de que maneira o comércio pode, com os
  1634. administradores
  1635. da história, os poderes do momento, auxiliar a causa da filosofia? Para Strauss,
  1636. tratava-se de urna questão retórica, pois "não há como" seria a única resposta razoável
  1637. e auto-evidente. A verdade da filosofia pode, de fato, não ser afetada pela história,
  1638. respondia Kojéve, mas daí não decorre que se possa evitar a história: o objetivo
  1639. dessa verdade é entrar na história para re-formá-la - e assim a tarefa prática do
  1640. comércio com os detentores do poder, os guardiões que vigiam essa entrada e
  1641. controlam
  1642. o tráfego, permanece como parte integrante e vital dos afazeres da filosofia. A história
  1643. é a realização da filosofia; a verdade da filosofia encontra seu teste e
  1644. confirmação últimos em sua aceitação e reconhecimento, tornando-se, nas palavras
  1645. dos filósofos, a carne dapolis. O reconhecimento é o te/os e verificação última
  1646. da filosofia; e assim o objeto da ação dos filósofos não são apenas os próprios
  1647. filósofos, seu pensamento, o "fazer interno" do filosofar, mas o mundo enquanto tal,
  1648. e, por fim, a harmonia entre os dois, ou, antes, o refazer o mundo à imagem da
  1649. verdade cujos guardiões são os filósofos. "Não ter intercâmbio"
  1650. com a política não é, portanto, uma resposta; cheira a traição não só ao "mundo que aí
  1651. está", mas também à própria filosofia.
  1652. Não há como evitar o problema da "ponte política" para o mundo. E como essa ponte
  1653. não pode senão ser controlada pelos servidores do Estado, a questão de como usá-los
  1654. para suavizar a passagem da filosofia ao mundo não desaparecerá e terá de ser
  1655. enfrentada. E tampouco há como evitar o fato duro de que - pelo menos no começo,
  1656. enquanto
  1657. a distância entre a verdade da filosofia e a realidade do mundo não for preenchida - o
  1658. Estado seja tirânico. A tirania (Kojéve é inflexível quanto à possibilidade
  1659. de essa forma de governo ser definida em termos moralmente neutros) ocorre quando
  1660. uma fração dos cidadãos (pouco importa que sejam minoria ou maioria) impõe a todos
  1661. os outros cidadãos suas idéias e ações, que são guiadas por uma autoridade que
  1662. essa fração reconhece espontaneamente, mas que não conseguiu fazer que os outros
  1663. reconheçam; e quando essa fração as impõe aos outros sem "chegar a acordo" com
  1664. eles,
  1665. sem tentar chegar a algum "compromisso" com eles e sem considerar suas idéias e
  1666. desejos (determinados por outra autoridade, que esses outros reconhecem
  1667. espontaneamente).
  1668. Como é essa desconsideração das idéias e desejos dos "outros" que faz a tirania
  1669. tirânica, a tarefa consiste em romper a corrente cismogenética (como diria Gregory
  1670. Bateson) da negligência arrogante, de um lado, e do dissenso mudo, de outro, e
  1671. encontrar algum terreno em que ambos possam se encontrar para uma conversação
  1672. frutífera.
  1673. Esse terreno (e aqui Kojève e Strauss concordam) só pode ser oferecido pela verdade
  1674. da filosofia, que se ocupa
  1675. - necessariamente - das coisas eternas e válidas absoluta e universalmente. (Todos os
  1676. outros terrenos, oferecidos pelas "meras crenças' só poderão servir como campos
  1677. de batalha, e nunca como salas de conferência). Kojéve acreditava que isso é possível,
  1678. mas Strauss não: "Não acredito na possibilidade de uma conversação entre Sócrates
  1679. e o povo" Quem quer que se envolva em tal conversação não é um filósofo, mas
  1680. "algum tipo de retórico" preocupado não tanto em construir o caminho pelo qual a
  1681. verdade
  1682. pode chegar ao povo quanto em obter a obediência ao que quer que os
  1683. 58
  1684. poderes precisem ou desejem estabelecer. Os filósofos pouco podem fazer além de
  1685. aconselhar os retóricos, e a probabilidade de seu sucesso está fadada a ser mínima.
  1686. As chances de a filosofia e a sociedade virem a se reconciliar e a se tornar uma só são
  1687. mínimas. 19
  1688. Strauss e Kojéve concordavam que o elo entre os valores universais e a realidade da
  1689. vida social historicamente constituída é a política; escrevendo de dentro da
  1690. modernidade pesada, tinham como ponto pacífico que a política se imbrica nas ações
  1691. do Estado. E assim se seguia sem maiores discussões que o problema diante dos
  1692. filósofos era o de uma simples escolha entre "pegar ou largar":
  1693. seja utilizando esse elo, a despeito de todos os riscos que uma tentativa de utilizá-lo
  1694. deve necessariamente envolver, seja (em nome da pureza de pensamento) mantendose
  1695.  
  1696. longe dele e cuidando da distancia em relação ao poder e seus detentores. A escolha
  1697. se dava, em outras palavras, entre a verdade fadada à impotência e a potência
  1698. fadada a ser infiel à verdade.
  1699. A modernidade pesada era, afinal, a época de moldar a realidade como na arquitetura
  1700. ou na jardinagem; a realidade adequada aos veredictos da razão deveria ser
  1701. "construída"
  1702. sob estrito controle de qualidade e conforme rígidas regras de procedimento, e mais
  1703. que tudo projetada antes da construção. Era uma época de pranchetas e projetos
  1704. - não tanto para mapear o território social como para erguer tal território até o nível de
  1705. lucidez e lógica de que só os mapas são capazes. Era uma época que pretendia
  1706. impor a razão à realidade por decreto, remanejar as estruturas de modo a estimular o
  1707. comportamento racional e a elevar os custos de todo comportamento contrário
  1708. à razão tão alto que os impedisse. Em razão do decreto, negligenciar os legisladores e
  1709. as agências coercitivas não era, obviamente, uma opção. A questão da relação
  1710. com
  1711. o Estado, fosse cooperativa ou contestadora, era seu dilema de formação; de fato, uma
  1712. questão de vida ou morte.
  1713. A crítica da política-vida
  1714. Como o Estado não mais promete ou deseja agir como plenipotenciário da razão e
  1715. mestre-de-obras da sociedade racional; como
  1716. Emancipação
  1717. 59
  1718. as pranchetas nos escritórios da boa sociedade estão em processo de ser eliminadas;
  1719. e como a variada multidão de conselheiros, intérpretes e assessores assume cada
  1720. vez mais as tarefas previa- mente reservadas aos legisladores não é de surpreender
  1721. que os críticos que desejavam ser instrumentais na atividade de emancipação
  1722. lamentem
  1723. sua privação. Não apenas o suposto veículo - e, simultanearnente, o alvo da luta pela
  1724. libertação -. está se esfacelando; o dilema central, constitutivo, da teoria
  1725. crítica, o próprio eixo em torno do qual girava o discurso crítico, dificilmente sobreviverá
  1726. ao desaparecimento do veículo. O discurso crítico, como muitos podem
  1727. sentir, está a ponto de ficar sem objeto. E muitos podem agarrar-se - e de fato o fazem
  1728. - desesperadamente à estratégia ortodoxa da crítica apenas para confirmar,
  1729. inadvertida- mente, que o discurso carece, de fato, de um objeto tangível, à medida
  1730. que os diagnósticos são cada vez mais desligados das realidades correntes e as
  1731. propostas são cada vez mais nebulosas; muitos insistem em travar velhas batalhas em
  1732. que ganham competência e preferem isso a uma mudança do campo de batalha
  1733. familiar
  1734. e confiável para um novo território ainda não inteiramente explorado, de muitas
  1735. maneiras uma terra incognita.
  1736. As perspectivas para urna teoria crítica (para não falar da demanda por ela) não estão,
  1737. porém, amarradas às formas de vida hoje em recuo da mesma maneira que a
  1738. autoconsciência
  1739. dos críticos está amarrada às formas, habilidades e programas desenvolvidos no curso
  1740. do enfrentamento com elas. Foi só o sentido atribuído à emancipação sob condições
  1741. passadas e não mais presentes que ficou obsoleto - não a tarefa da emancipação em
  1742. si. Outra coisa está agora em jogo. Há uma nova agenda pública de emancipação
  1743. ainda
  1744. à espera de ser ocupada pela teoria crítica. Essa nova agenda pública, ainda à espera
  1745. de sua política pública crítica, está emergindo junto com a versão "liquefeita"
  1746. da condição humana moderna - e em particular na esteira da "individualização" das
  1747. tarefas da vida que derivam dessa condição.
  1748. Essa nova agenda surge do hiato previamente discutido entre a individualidade dejure
  1749. e defacto, ou entre a "liberdade negativa" legalmente imposta e a ausente -
  1750. ou, pelo menos, longe de universalmente disponível - "liberdade positiva' isto é a
  1751. genuína
  1752. 11
  1753. Modernidade Líquida
  1754. 60 Modernidade Líquida
  1755. Emancipação 61
  1756. potência da auto-afirmação. A nova condição não é muito diferente daquela que,
  1757. segundo a Bíblia, levou à rebelião dos israelitas e ao êxodo do Egito. "O faraó ordenou
  1758. aos inspetores e seus capatazes que deixassem de suprir o povo com a palha utilizada
  1759. para fazer tijolos ... 'Que eles vão e colham sua própria palha, mas cuidem
  1760. para que atinjam a mesma quota de tijolos de antes." Quando os capatazes
  1761. argumentaram que não se pode fazer tijolos eficientemente a menos que a palha seja
  1762. devidamente
  1763. fornecida e acusaram o faraó de ordenar o impossível, ele inverteu a responsabilidade
  1764. pelo fracasso: "Vocês são preguiçosos, vocês são preguiçosos." Hoje não há
  1765. faraós dando ordens aos capatazes para que açoitem os displicentes. (Até o açoite se
  1766. tornou um trabalho "faça- você-mesmo" e foi substituído pela auto-flagelação).
  1767. Mas a tarefa de providenciar a palha foi igualmente abandonada pelas autoridades do
  1768. momento, que dizem aos produtores de tijolos que só sua preguiça os impede de
  1769. fazer o trabalho adequadamente - e acima de tudo que o façam para sua própria
  1770. satisfação.
  1771. O trabalho de que os homens estão encarregados hoje é muito semelhante ao que era
  1772. desde o começo dos tempos modernos: a autoconstituir a vida individual e tecer
  1773. e manter as redes de laços com outros indivíduos em processo de autoconstituição.
  1774. Esse trabalho nunca foi questionado pela teoria crítica. O que estes teóricos criticavam
  1775. era a sinceridade e rapidez com que os indivíduos eram libertados para realizar o
  1776. trabalho que lhes tinha sido atribuído. A teoria crítica acusava de duplicidade
  1777. ou ineficiência aqueles que deveriam ter providenciado as condições adequadas para a
  1778. auto-afirmação: havia limitações demais à liberdade de escolha e havia a tendência
  1779. totalitária intrínseca ao modo como a sociedade moderna fora estruturada e conduzida
  1780. - tendência essa que ameaçava abolir a liberdade de uma vez, substituindo a
  1781. liberdade de escolha pela tediosa homogeneidacie, imposta ou subrepticiamente
  1782. introduzida.
  1783. O destino do agente livre está cheio de antinomias difíceis de avaliar e ainda mais
  1784. dificejs de resolver. Consideremos, por exempio, a contradição das identidades
  1785. autoconstituidas que devem ser suficientemente sólidas para serem reconhecidas
  1786. como tais e ao mesmo tempo flexíveis o suficiente para não impedir a liberdade
  1787. de movimentos futuros em circunstâncias constantemente cambiantes e voláteis. Ou a
  1788. precariedade das parcerias humanas, agora sobrecarregadas de expectativas maiores
  1789. que nunca, mas mal institucionalizadas (se institucionalizadas), e portanto menos
  1790. resistentes à carga adicional. Ou o triste compromisso da responsabilidade repossuída,
  1791. perigosamente à deriva entre as rochas da indiferença e da coerção. Ou a fragilidade
  1792. de toda ação comum, que tem como apoio apenas o entusiasmo e a dedicação dos
  1793. atores, mas que precisa de algo mais durável para manter sua integridade durante o
  1794. tempo que leva para alcançar seus propósitos. Ou a notória dificuldade de generalizar
  1795. as experiências, vividas como inteiramente pessoais e subjetivas, em problemas que
  1796. possam ser inscritos na agenda pública e tornar-se questões de política pública.
  1797. Esses são apenas alguns exemplos, que oferecem uma visão justa do tipo de desafio
  1798. diante dos críticos que desejam reconectar sua disciplina à agenda da política
  1799. pública.
  1800. Com boas razões os críticos suspeitavam de que, na versão iluminista do "déspota
  1801. esclarecido' tal como incorporada nas práticas políticas da modernidade, o que conta
  1802. é o resultado - a sociedade racionalmente estruturada e dirigida; suspeitavam de que
  1803. as vontades, desejos e propósitos individuais, a vis formandi e a libidoformandi
  1804. individuais, a propensão poiética a criar novas significações independentes de funções,
  1805. usos e propósitos, não eram mais que recursos, ou mesmo obstáculos no caminho.
  1806. Contra essa prática, ou sua suposta tendência, os críticos formularam a visão de uma
  1807. sociedade que se rebela contra essa perspectiva, de uma sociedade em que
  1808. precisamente
  1809. essas vontades, desejos e propósitos, e sua satisfação, são o que conta e deve ser
  1810. honrado - visão de uma sociedade que, por isso, milita contra todos os esquemas
  1811. de perfeição impostos aos desejos (ou que os desconsideram) dos homens e mulheres
  1812. que são incluídos sob seu nome genérico. A única "totalidade" reconhecida e aceitável
  1813. pela maioria dos filósofos da escola crítica era a que poderia emergir das ações de
  1814. indivíduos criativos e livres para escolher.
  1815. Havia um traço anarquista em toda a teorização crítica: todo poder era suspeito, via-se
  1816. o inimigo apenas no lado do poder, e o mesmo inimigo era acusado de todos
  1817. os retrocessos e frustrações
  1818. 1
  1819. 62 Modernidade Líquida
  1820. sofridas pela liberdade (inclusive pela falta de valor das tropas que deveriam enfrentar
  1821. valentemente suas guerras de libertação, como no caso do debate da "cultura
  1822. de massas"). Esperava-se que o perigo viesse e os golpes fossem desferidos do lado
  1823. "público' sempre pronto a invadir e colonizar o "privado' o "subjetivo' o "individual'
  1824. Muito menos atenção - quase nenhuma - foi dada aos perigos que se ocultavam no
  1825. estreitamento e esvaziamento do espaço público e à possibilidade da invasão inversa:
  1826. a colonização da esfera pública pela privada. E no entanto essa eventualidade
  1827. subestimada e subdiscutida se tornou hoje o principal obstáculo à emancipação, que
  1828. em seu estágio presente só pode ser descrita como a tarefa de transformar a
  1829. autonomia individual de jure numa autonomia defacto.
  1830. O poder político implica uma liberdade individual incompleta, mas sua retirada ou
  1831. desaparecimento prenuncia a impotência pra'tica da liberdade legalmente vitoriosa.
  1832. A história da emancipação moderna desloca-se de um confronto com o primeiro perigo
  1833. para um confronto com o segundo. Para utilizar os termos de Isaiah Berlin, pode-se
  1834. dizer que, depois da luta vitoriosa pela "liberdade negativa': as alavancas necessárias
  1835. para transformá-la numa "liberdade positiva" - isto é, a liberdade para estabelecer
  1836. a gama de opções e a agenda para a escolha entre elas - quebraram. O poder político
  1837. perdeu muito de sua terrível e ameaçadora potência opressiva - mas também perdeu
  1838. boa parte de sua potência capacitadora. A guerra pela emancipação não acabou. Mas,
  1839. para progredir, deve agora ressuscitar o que na maior parte de sua história lutou
  1840. por destruir e afastar do caminho. A verdadeira libertação requer hoje mais, e não
  1841. menos, da "esfera pública "e do "poder público " Agora é a esfera pública que
  1842. precisa desesperadamente de defesa contra o invasor privado - ainda que,
  1843. paradoxalmente, não para reduzir, mas para viabilizar a liberdade individual.
  1844. Como sempre, o trabalho do pensamento crítico é trazer à luz os muitos obstáculos
  1845. que se amontoam no caminho da emancipação. Dada a natureza das tarefas de hoje,
  1846. os principais obstáculos que devem ser examinados urgentemente estão ligados às
  1847. crescentes dificuldades de traduzir os problemas privados em questões públicas, de
  1848. condensar problemas intrinsecamente privados
  1849. Emancipação 63
  1850. em interesses públicos que são maiores que a soma de seus ingredientes individuais,
  1851. de recoletivizar as utopias privatizadas da "política-vida" de tal modo que possam
  1852. assumir novamente a forma das visões da sociedade "boa" e "justa' Quando a política
  1853. pública abandona suas funções e a "política-vida" assume, os problemas enfrentados
  1854. pelos indivíduos de jure em seus esforços para se tornarem indivíduos de facto
  1855. passam a ser não-aditivos e não-cumulativos, destituindo assim a esfera pública de
  1856. toda substância que não seja a do lugar em que as aflições individuais são
  1857. confessadas e expostas publicamente. Do mesmo modo, a individualização parece ser
  1858. uma
  1859. via de mão única, e também parece destruir, ao avançar, todas as ferramentas que
  1860. poderiam ser usadas para implementar seus objetivos de outrora.
  1861. Essa tarefa coloca a teoria crítica cara a cara com um novo destinatário. O espectro do
  1862. Grande Irmão deixou de perambular pelos sótãos e porões do mundo quando o
  1863. déspota esclarecido deixou de habitar as salas de estar e recepção. Em suas novas
  1864. versões, moderno-líquidas e drasticamente encolhidas, ambos encontram abrigo no
  1865. domínio diminuto, em miniatura, da política- vida pessoal; é lá que as ameaças e
  1866. oportunidades da autonomia individual - essa autonomia que não se pode realizar
  1867. exceto na sociedade autônoma - devem ser procuradas e localizadas. A busca de uma
  1868. vida em comum alternativa deve começar pelo exame das alternativas de política-vida.
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