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- Dom Casmurro
- Texto de referenda:
- Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
- Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
- Publicado originalmente pela Editora Gamier, Rio de Janeiro, 1899.
- CAPITULO PRIMEI RO
- DO TI TULO
- Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da
- Central um rapaz aqui do bairro, que eu conhego de vista e de chapeu.
- Cumprimentou-me, sentou-se ao pe de mim, falou da Lua e dos ministros, e
- acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que nao
- fossem inteiramente maus. Sucedeu, porem, que, como eu estava cansado, fechei
- os olhos tres ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e
- metesse os versos no bolso.
- — Continue, disse eu acordando.
- — Ja acabei, murmurou ele.
- — Sao muito bonitos.
- Vi-lhe fazer um gesto para tira-los outra vez do bolso, mas nao passou do gesto;
- estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou
- alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que nao gostam dos meus habitos
- reclusos e calados, deram curso a alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me
- zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graga, chamam-me
- assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com voce”.—
- "Vou para Petropolis, Dom Casmurro; a casa e a mesma da Renania; ve se deixas
- essa caverna do Engenho Novo, e vai la passar uns quinze dias comigo".— "Meu
- caro Dom Casmurro, nao cuide que o dispenso do teatro amanha; venha e dormira
- aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe cha, dou-lhe cama; so nao Ihe dou
- moga”.
- Nao consultes dicionarios. Casmurro nao esta aqui no sentido que eles Ihe dao,
- mas no que Ihe pos o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por
- ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Tambem nao
- achei melhor tftulo para a minha narragao; se nao tiver outro daqui ate ao fim do
- livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficara sabendo que nao Ihe guardo
- rancor. E com pequeno esforgo, sendo o tftulo seu, podera cuidar que a obra e
- sua. Ha livros que apenas terao isso dos seus autores; alguns nem tanto.
- CAPITULO II
- DO LI VRO
- Agora que expliquei o tftulo, passo a escrever o livro. Antes disso, porem, digamos
- os motivos que me poem a pena na mao.
- Vivo so, com um criado. A casa em que moro e propria; fi-la construir de
- proposito, levado de um desejo tao particular que me vexa imprimi-lo, mas va la.
- Um dia, ha bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em
- que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e
- economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem
- as indicates que Ihes fiz: e o mesmo predio assobradado, tres janelas de frente,
- varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do
- teto e das paredes e mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miudas e
- grandes passaros que as tomam nos bicos, de espago a espago. Nos quatro cantos
- do teto as figuras das estagoes, e ao centra das paredes os medalhoes de Cesar,
- Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Nao alcango a razao de
- tais personagens. Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, ja ela estava assim
- decorada; vinha do decenio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter
- sabor classico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais e tambem
- analogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um pogo e
- lavadouro. Uso louga velha e mobflia velha. Enfim, agora, como outrora, ha aqui o
- mesmo contraste da vida interior, que e pacata, com a exterior, que e ruidosa.
- O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a
- adolescencia. Pois, senhor, nao consegui recompor o que foi nem o que fui. Em
- tudo, se o rosto e igual, a fisionomia e diferente. Se so me faltassem os outros,
- va; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu
- mesmo, e esta lacuna e tudo. O que aqui esta e, mal comparando, semelhante a
- pintura que se poe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o habito
- externo, como se diz nas autopsias; o interno nao aguenta tinta. Uma certidao que
- me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os
- documentos falsos, mas nao a mim. Os amigos que me restam sao de data
- recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto as
- amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na
- mocidade. Duas ou tres fariam crer nela aos outros, mas a lingua que falam obriga
- muita vez a consultar os dicionarios, e tal frequencia e cansativa.
- Entretanto, vida diferente nao quer dizer vida pior; e outra coisa. A certos
- respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que Ihe
- achei; mas e tambem exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de
- memoria, conservo alguma recordagao doce e feiticeira. Em verdade, pouco
- aparego e menos falo. Distragoes raras. O mais do tempo e gasto em hortar,
- jardinar e ler; como bem e nao durmo mal.
- Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me tambem. Quis
- variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudence, filosofia e polftica
- acudiram-me, mas nao me acudiram as forgas necessarias. Depois, pensei em
- fazer uma Historia dos Suburbios, menos seca que as memorias do padre Luis
- Gongalves dos Santos, relativas a cidade; era obra modesta, mas exigia
- documentos e datas, como preliminares, tudo arido e longo. Foi entao que os
- bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que
- eles nao alcangavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse
- alguns. Talvez a narragao me desse a ilusao, e as sombras viessem perpassar
- ligeiras, como ao poeta, nao o do trem, mas o do Fausto: Af vindes outra vez,
- inquietas sombras?...
- Fiquei tao alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mao. Sim,
- Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande Cesar, que me incitas a fazer os meus
- comentarios, agradego-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscencias
- que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mao para
- alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocagao por uma celebre tarde de
- novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas
- aquela nunca se me apagou do espfrito. E o que vais entender, lendo.
- CAPITULO III
- A DENUNCIA
- la a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me
- atras da porta. A casa era a da rua de Mata-cavalos, o mes novembro, o ano e que
- e um tanto remoto, mas eu nao hei de trocar as datas a minha vida so para
- agradar as pessoas que nao amam historias velhas; o ano era de 1857.
- — D. Gloria, a senhora persiste na ideia de meter o nosso Bentinho no seminario?
- E mais que tempo, e ja agora pode haver uma dificuldade.
- — Que dificuldade?
- — Uma grande dificuldade.
- Minha mae quis saber o que era. Jose Dias, depois de alguns instantes de
- concentragao, veio ver se havia alguem no corredor; nao deu por mim, voltou e,
- abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pe, a gente do Padua.
- — A gente do Padua?
- — Ha algum tempo estou para Ihe dizer isto, mas nao me atrevia. Nao me parece
- bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e
- esta e a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora tera muito que
- lutar para separa-los.
- — Nao acho. Metidos nos cantos?
- — E um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase nao sai de
- la. A pequena e uma desmiolada; o pai faz que nao ve; tomara ele que as coisas
- corressem de maneira que... Compreendo o seu gesto; a senhora nao ere em tais
- calculos, parece-lhe que todos tern a alma Candida...
- — Mas, Sr. Jose Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que
- faga desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tern quinze anos. Capitu fez quatorze
- a semana passada; sao dois criangolas. Nao se esquega que foram criados juntos,
- desde aquela grande enchente, ha dez anos, em que a famflia Padua perdeu tanta
- coisa; daf vieram as nossas relagoes. Pois eu hei de crer? ... Mano Cosme, voce
- que acha?
- Tio Cosme respondeu com um "Ora!" que, traduzido em vulgar, queria dizer: "Sao
- imaginagoes do Jose Dias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde esta o
- gamao?"
- — Sim, creio que o senhor esta enganado.
- — Pode ser, minha senhora. Oxala tenham razao; mas creia que nao falei senao
- depois de muito examinar...
- — Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mae; vou tratar de mete-lo
- no seminario quanto antes.
- — Bern, uma vez que nao perdeu a ideia de o fazer padre, tem-se ganho o
- principal. Bentinho ha de satisfazer os desejos de sua mae. E depois a igreja
- brasileira tern altos destinos. Nao esquegamos que um bispo presidiu a
- Constituinte, e que o padre Feijo governou o Imperio...
- — Governo como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores
- politicos.
- — Perdao, doutor, nao estou defendendo ninguem, estou citando. O que eu quero
- e dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.
- — Voce o que quer e um capote; ande, va buscar o gamao. Quanto ao pequeno,
- se tem de ser padre, realmente e melhor que nao comece a dizer missa atras das
- portas. Mas, olhe ca, mana Gloria, ha mesmo necessidade de faze-lo padre?
- — E promessa, ha de cumprir-se.
- — Sei que voce fez promessa... mas uma promessa assim... nao sei... Creio que,
- bem pensado... Voce que acha, prima Justina?
- — Eu?
- — Verdade e que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus e que
- sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas, que e isso, mana
- Gloria? Esta chorando? Ora esta! Pois isto e coisa de lagrimas?
- Minha mae assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter
- com ela. Seguiu-se um alto silencio, durante o qual estive a pique de entrar na
- sala, mas outra forga maior, outra emogao... Nao pude ouvir as palavras que tio
- Cosme entrou a dizer. Prima Justina exortava: "Prima Gloria! Prima Gloria!" Jose
- Dias desculpava-se: "Se soubesse, nao teria falado, mas falei pela veneragao, pela
- estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amanssimo..."
- CAPITULO IV
- UM DEVER AMARI SSI MO!
- Jose Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feigao monumental as
- ideias; nao as havendo, servia a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o
- gamao, que estava no interior da casa. Cosi-me muito a parede, e vi-o passar com
- as suas calgas brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos
- ultimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as
- calgas curtas para que Ihe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com
- um arco de ago por dentro, imobilizava-lhe o pescogo; era entao moda. O rodaque
- de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimonia. Era magro,
- chupado, com um princfpio de calva; teria os seus cinquenta e cinco anos.
- Levantou-se com o passo vagaroso do costume, nao aquele vagar arrastado dos
- preguigosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a
- premissa antes da consequencia, a consequencia antes da conclusao. Um dever
- amanssimo!
- CAPITULO V
- O AGREGADO
- Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rfgido. Tambem se descompunha em
- acionados, era muita vez rapido e lepido nos movimentos, tao natural nesta como
- naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem
- vontade, mas comunicativo, a tal ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a
- cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves,
- gravfssimo.
- Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda
- de Itaguaf, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se por medico
- homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia entao um andago de febres;
- Jose Dias curou o feitor e uma escrava, e nao quis receber nenhuma remuneragao.
- Entao meu pai propos-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado. Jose Dias
- recusou, dizendo que era justo levar a saude a casa de sape do pobre.
- — Quern Ihe impede que va a outras partes? Va aonde quiser, mas fique morando
- conosco.
- — Voltarei daqui a tres meses.
- Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipendio, salvo o
- que quisessem dar por festas. Quando meu pai foi eleito deputado e veio para o
- Rio de Janeiro com a famflia, ele veio tambem, e teve o seu quarto ao fundo da
- chacara. Um dia, reinando outra vez febres em Itaguaf, disse-lhe meu pai que
- fosse ver a nossa escravatura. Jose Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou
- confessando que nao era medico. Tomara este tftulo para ajudar a propaganda da
- nova escola, e nao o fez sem estudar muito e muito; mas a consciencia nao Ihe
- permitia aceitar mais doentes.
- — Mas, voce curou das outras vezes.
- — Creio que sim; o mais acertado, porem, e dizer que foram os remedios
- indicados nos livros. Eles, sim; eles, abaixo de Deus. Eu era um charlatao... Nao
- negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia
- e a verdade, e, para servir a verdade, menti; mas e tempo de restabelecer tudo.
- Nao foi despedido, como pedia entao; meu pai ja nao podia dispensa-lo. Tinha o
- dom de se fazer aceito e necessario; dava-se por falta dele, como de pessoa da
- famflia. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme, disseram-me,
- nao me lembra. Minha mae ficou-lhe muito grata, e nao consentiu que ele
- deixasse o quarto da chacara; ao setimo dia, depois da missa, ele foi despedir-se
- dela.
- — Fique, J ose Dias.
- — Obedego, minha senhora.
- Teve um pequeno legado no testamento, uma apolice e quatro palavras de louvor.
- Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama.
- "Esta e a melhor apolice", dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa
- autoridade na famflia, certa audiencia, ao menos; nao abusava, e sabia opinar
- obedecendo. Ao cabo, era amigo, nao direi otimo, mas nem tudo e otimo neste
- mundo. E nao Ihe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham
- antes do calculo que da indole. A roupa durava-lhe muito; ao contrario das
- pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e
- liso, cerzido, abotoado, de uma elegancia pobre e modesta. Era lido, posto que de
- atropelo, o bastante para divertir ao serao e a sobremesa, ou explicar algum
- fenomeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos polos e de Robespierre. Contava
- muita vez uma viagem que fizera a Europa, e confessava que a nao sermos nos, ja
- teria voltado para la; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa famflia, dizia ele,
- abaixo de Deus, era tudo.
- — Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia.
- — Abaixo, repetiu Jose Dias cheio de veneragao.
- E minha mae, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido
- lugar, e sorriu aprovando. Jose Dias agradeceu de cabega. Minha mae dava-lhe de
- quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a
- copia de papeis de autos.
- CAPI TULO VI
- TIO COSME
- Tio Cosme vivia com minha mae, desde que ela enviuvou. Ja entao era viuvo,
- como prima Justina; era a casa dos tres viuvos.
- A fortuna troca muita vez as maos a natureza. Formado para as serenas fungoes
- do capitalismo, tio Cosme nao enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritorio
- na antiga rua das Violas, perto do juri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no
- crime. Jose Dias nao perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quern Ihe vestia e
- despia a toga, com muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio
- Cosme, por mais modesto que quisesse ser, sorria de persuasao.
- Era gordo e pesado, tinha a respiragao curta e os olhos dorminhocos. Uma das
- minhas recordagoes mais antigas era ve-lo montar todas as manhas a besta que
- minha mae Ihe deu e que o levava ao escritorio. O preto que a tinha ido buscar a
- cocheira, segurava o freio, enquanto ele erguia o pee pousava no estribo; a isto
- seguia-se um minuto de descanso ou reflexao. Depois, dava um impulso, o
- primeiro, o corpo ameagava subir, mas nao subia; segundo impulso, igual efeito.
- Enfim, apos alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forgas ffsicas e
- morais, dava o ultimo surto da terra, e desta vez cafa em cima do selim.
- Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o
- mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote.
- Tambem nao me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roga
- (donde vim com dois anos) e apesar dos costumes do tempo, eu nao sabia
- montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em
- cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o
- chao la embaixo, entrei a gritar desesperadamente: "Mamae! mamae!" Ela acudiu,
- palida e tremula, cuidou que me estivessem matando, apeou-me, afagou-me,
- enquanto o irmao perguntava:
- — Mana Gloria, pois um tamanhao destes tern medo de besta mansa?
- — Nao esta acostumado.
- — Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigario na roga, e preciso que monte
- a cavalo; e, aqui mesmo, ainda nao sendo padre, se quiser florear como os outros
- rapazes, e nao souber, ha de queixar-se de voce, mana Gloria.
- — Pois que se queixe; tenho medo.
- — Medo! Ora, medo!
- A verdade e que eu so vim a aprender equitagao mais tarde, menos por gosto que
- por vergonha de dizer que nao sabia montar. "Agora e que ele vai namorar
- deveras", disseram quando eu comecei as ligoes. Nao se diria o mesmo de tio
- Cosme. Nele era velho costume e necessidade. Ja nao dava para namoros.
- Contam que, em rapaz, foi aceito de muitas damas, alem de partidario exaltado;
- mas os anos levaram-lhe o mais do ardor politico e sexual, e a gordura acabou
- com o resto de ideias publicas e especfficas. Agora so cumpria as obrigagoes do
- offcio e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez
- dizia pilherias.
- CAPITULO VII
- D. GLORIA
- Minha mae era boa criatura. Quando Ihe morreu o marido, Pedro de Albuquerque
- Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaf. Nao
- quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a
- fazendola e os escravos, comprou alguns que pos ao ganho ou alugou, uma duzia
- de predios, certo numero de apolices, e deixou-se estar na casa de Mata-cavalos,
- onde vivera os dois ultimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira,
- descendente de outra paulista, a famflia Fernandes.
- Ora, pois, naquele ano da graga de 1857, D. Maria da Gloria Fernandes Santiago
- contava quarenta e dois anos de idade. Era ainda bonita e moga, mas teimava em
- esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preserva-la da
- agao do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um
- xale preto, dobrado em triangulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os
- cabelos, em bandos, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de
- tartaruga; alguma vez trazia a touca branca de folhos. Lidava assim, com os seus
- sapatos de cordovao rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os
- servigos todos da casa inteira, desde manha ate a noite.
- Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A
- pintura escureceu muito, mas ainda da ideia de ambos. Nao me lembra nada dele,
- a nao ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns
- olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que
- me assombrava em pequeno. O pescogo sai de uma gravata preta de muitas
- voltas, a cara e toda rapada, salvo um trechozinho pegado as orelhas. O de minha
- mae mostra que era linda. Contava entao vinte anos, e tinha uma flor entre os
- dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se le na cara de ambos e
- que, se a felicidade conjugal pode ser comparada a sorte grande, eles a tiraram no
- bilhete comprado de sociedade.
- Concluo que nao se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda
- de imorais, como ninguem tachou de ma a boceta de Pandora, por Ihe ter ficado a
- esperanga no fundo; em alguma parte ha de ela ficar. Aqui os tenho aos dois bem
- casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta
- para a outra vida, continuar um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora
- me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esquego os bilhetes brancos e a boceta
- fatfdica. Sao retratos que valem por originais. O de minha mae, estendendo a flor
- ao marido, parece dizer: "Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!" O de meu pai,
- olhando para a gente, faz este comentario: "Vejam como esta moga me quer..."
- Se padeceram molestias, nao sei, como nao sei se tiveram desgostos: era crianga
- e comecei por nao ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou
- muito; mas aqui estao os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo Ihes
- tirasse a primeira expressao. Sao como fotografias instantaneas da felicidade.
- CAPITULO VIII
- E TEMPO
- Mas e tempo de tornar aquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca,
- sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que moravamos.
- Verdadeiramente foi o princfpio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi
- como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das
- luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora e que eu ia comegar a minha
- opera. "A vida e uma opera", dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e
- morreu... E explicou-me um dia a definigao, em tal maneira que me fez crer nela.
- Talvez valha a pena da-la; e so um capftulo.
- CAPI TULO IX
- A OPERA
- Ja nao tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. "O desuso e que me faz mal",
- acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao
- empresario e expunha-lhe todas as injustigas da Terra e do Ceu; o empresario
- cometia mais uma, e ele safa a bradar contra a iniquidade. Trazia ainda os bigodes
- dos seus papeis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa
- de Babilonia. As vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais
- idoso que ele ou tanto; vozes assim abafadas sao sempre possfveis. Vinha aqui
- jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a
- definigao do costume, e como eu Ihe dissesse que a vida tanto podia ser uma
- opera como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabega e replicou:
- — A vida e uma opera e uma grande opera. O tenor e o barftono lutam pelo
- soprano, em presenga do baixo e dos comprimarios, quando nao sao o soprano e o
- contralto que lutam pelo tenor, em presenga do mesmo baixo e dos mesmos
- comprimarios. Ha coros numerosos, muitos bailados, e a orquestragao e
- excelente...
- — Mas, meu caro Marcolini...
- — Que?...
- E, depois, de beber um gole de licor, pousou o calice, e expos-me a historia da
- criagao, com palavras que vou resumir.
- Deus e o poeta. A musica e de Satanas, jovem maestro de muito futuro, que
- aprendeu no conservatorio do ceu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, nao tolerava
- a precedence que eles tinham na distribuigao dos premios. Pode ser tambem que
- a musica em demasia doce e rmstica daqueles outros condiscfpulos fosse
- aborrecfvel ao seu genio essencialmente tragico. Tramou uma rebeliao que foi
- descoberta a tempo, e ele expulso do conservatorio. Tudo se teria passado sem
- mais nada, se Deus nao houvesse escrito um libreto de opera, do qual abrira mao,
- por entender que tal genero de recreio era improprio da sua eternidade. Satanas
- levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais
- que os outros, — e acaso para reconciliar-se com o ceu, — compos a partitura, e
- logo que a acabou foi leva-la ao Padre Eterno.
- — Senhor, nao desaprendi as ligoes recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura,
- escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-
- me com ela a vossos pes...
- — Nao, retorquiu o Senhor, nao quero ouvir nada.
- — Mas, Senhor...
- — Nada! nada!
- Satanas suplicou ainda, sem melhor fortuna, ate que Deus, cansado e cheio de
- misericordia, consentiu em que a opera fosse executada, mas fora do ceu. Criou
- um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as
- partes, primarias e comprimarias, coros e bailarinos.
- — Ouvi agora alguns ensaios!
- — Nao, nao quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou
- pronto a dividir contigo os direitos de autor.
- Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a
- audiencia previa e a colaboragao amiga teriam evitado. Com efeito, ha lugares em
- que o verso vai para a direita e a musica, para a esquerda. Nao falta quem diga
- que nisso mesmo esta a beleza da composigao, fugindo a monotonia, e assim
- explicam o terceto do Eden, a aria de Abel, os coros da guilhotina e da escravidao.
- Nao e raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razao suficiente. Certos
- motivos cansam a forga de repetigao. Tambem ha obscuridades; o maestro abusa
- das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As
- partes orquestrais sao alias tratadas com grande pencia. Tal e a opiniao dos
- imparciais.
- Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa acha obra tao bem
- acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o
- andar da opera e provavel que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas
- desaparegam inteiramente, nao se negando o maestro a emendar a obra onde
- achar que nao responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Ja nao dizem o
- mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura
- corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada
- com arte em outros, e absolutamente diversa e ate contraria ao drama. O
- grotesco, por exemplo, nao esta no texto do poeta; e uma excrescencia para
- imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto e contestado pelos satanistas
- com alguma aparencia de razao. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem
- Satanas compos a grande opera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos.
- Chegam a afirmar que o poeta ingles nao teve outro genio senao transcrever a
- letra da opera, com tal arte e fidelidade, que parece ele proprio o autor da
- composigao; mas, evidentemente, e um plagiario.
- — Esta pega, concluiu o velho tenor, durara enquanto durar o teatro, nao se
- podendo calcular em que tempo sera ele demolido por utilidade astronomica. O
- exito e crescente. Poeta e musico recebem pontualmente os seus direitos autorais,
- que nao sao os mesmos, porque a regra da divisao e aquilo da Escritura: "Muitos
- sao os chamados, poucos os escolhidos". Deus recebe em ouro, Satanas em papel.
- — Tern graga...
- — Graga? bradou ele com furia; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago,
- eu nao tenho graga, eu tenho horror a graga. Isto que digo e a verdade pura e
- ultima. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inuteis, ha de haver
- alguem, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos
- homens. Tudo e musica, meu amigo. No princfpio era o do, e do do fez-se re, etc.
- Este calice (e enchia-o novamente), este calice e um breve estribilho. Nao se
- ouve? Tambem nao se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma
- opera...
- CAPI TULO X
- ACEITO A TEORIA
- Que e demasiada metaffsica para um so tenor, nao ha duvida; mas a perda da voz
- explica tudo, e ha filosofos que sao, em resumo, tenores desempregados.
- Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, nao so pela
- verossimilhanga, que e muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se
- casa bem a definigao. Cantei um duo termssimo, depois um trio, depois um
- quatuor... Mas nao adiantemos; vamos a primeira parte, em que eu vim a saber
- que ja cantava, porque a denuncia de Jose Dias, meu caro leitor, foi dada
- principalmente a mim. A mim e que ele me denunciou.
- CAPITULO XI
- A PROMESSA
- Tao depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri
- a varanda do fundo. Nao quis saber de lagrimas nem da causa que as fazia verter
- a minha mae. A causa eram provavelmente os seus projetos eclesiasticos, e a
- ocasiao destes e a que vou dizer, por ser ja entao historia velha; datava de
- dezesseis anos.
- Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o
- primeiro filho, minha mae pegou-se com Deus para que o segundo vingasse,
- prometendo, se fosse varao, mete-lo na igreja. Talvez esperasse uma menina.
- Nao disse nada a meu pai, nem antes, nem depois de me dar a luz; contava faze-
- lo quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viuva, sentiu o
- terror de separar-se de mim; mas era tao devota, tao temente a Deus, que
- buscou testemunhas da obrigagao, confiando a promessa a parentes e familiares.
- Unicamente, para que nos separassemos o mais tarde possfvel, fez-me aprender
- em casa primeiras letras, latim e doutrina, por aquele padre Cabral, velho amigo
- do tio Cosme, que ia la jogar as noites.
- Prazos largos sao faceis de subscrever; a imaginagao os faz infinitos. Minha mae
- esperou que os anos viessem vindo. Entretanto, ia-me afeigoando a ideia da
- igreja; brincos de crianga, livros devotos, imagens de santos, conversagoes de
- casa, tudo convergia para o altar. Quando famos a missa, dizia-me sempre que
- era para aprender a ser padre, e que reparasse no padre, nao tirasse os olhos do
- padre. Em casa, brincava de missa, — um tanto as escondidas, porque minha mae
- dizia que missa nao era coisa de brincadeira. Arranjavamos um altar, Capitu e eu.
- Ela servia de sacristao, e alteravamos o ritual, no sentido de dividirmos a hostia
- entre nos; a hostia era sempre um doce. No tempo em que brincavamos assim,
- era muito comum ouvir a minha vizinha: "Hoje ha missa?" Eu ja sabia o que isto
- queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir hostia por outro nome. Voltava
- com ela, arranjavamos o altar, engrolavamos o latim e precipitavamos as
- cerimonias. Dominus, non sum dignus... Isto, que eu devia dizer tres vezes, penso
- que so dizia uma, tal era a gulodice do padre e do sacristao. Nao bebfamos vinho
- nem agua; nao tinhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do
- sacriffcio.
- Ultimamente nao me falavam ja do seminario, a tal ponto que eu supunha ser
- negocio findo. Quinze anos, nao havendo vocagao, pediam antes o seminario do
- mundo que o de Sao Jose. Minha mae ficava muita vez a olhar para mim, como
- alma perdida, ou pegava-me na mao, a pretexto de nada, para aperta-la muito.
- CAPI TULO XII
- NA VARANDA
- Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coragao parecendo
- querer sair-me pela boca fora. Nao me atrevia a descer a chacara, e passar ao
- quintal vizinho. Comecei a andar de um lado para outro, estacando para amparar-
- me, e andava outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso do Jose
- Dias:
- "Sempre juntos..."
- "Em segredinhos..."
- "Se eles pegam de namoro..."
- Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes a
- direita ou a esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vos me ficou a melhor parte da
- crise, a sensagao de um gozo novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me
- dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava nao sei que balsamo interior. As
- vezes dava por mim, sorrindo, um ar de riso de satisfagao, que desmentia a
- abominagao do meu pecado. E as vozes repetiam-se confusas:
- "Em segredinhos..."
- "Sempre juntos..."
- "Se eles pegam de namoro..."
- Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si
- que nao era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as
- meninas de quatorze; ao contrario, os adolescentes daquela idade nao tinham
- outro offcio, nem os cantos outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos
- coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros. Passaros, borboletas, uma
- cigarra que ensaiava o estio, toda a gente viva do ar era da mesma opiniao.
- Com que entao eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido as
- saias dela, mas nao me ocorria nada entre nos que fosse deveras secreto. Antes
- dela ir para o colegio, eram tudo travessuras de crianga; depois que saiu do
- colegio, e certo que nao restabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou
- pouco a pouco, e no ultimo ano era completa. Entretanto, a materia das nossas
- conversagoes era a de sempre. Capitu chamava-me as vezes bonito, mocetao,
- uma flor; outras pegava-me nas maos para contar-me os dedos. E comecei a
- recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ela me
- passava a mao pelos cabelos, dizendo que os achava lindfssimos. Eu, sem fazer o
- mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos que os meus. Entao
- Capitu abanava a cabega com uma grande expressao de desengano e melancolia,
- tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiraveis; mas eu
- retorquia chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na
- vespera, e eu dizia que nao, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram
- aventuras extraordinarias, que subfamos ao Corcovado pelo ar, que dangavamos
- na Lua, ou entao que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar
- a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andavamos
- unidinhos. Os que eu tinha com ela nao eram assim, apenas reproduziam a nossa
- familiaridade, e muita vez nao passavam da simples repetigao do dia, alguma
- frase, algum gesto. Tambem eu os contava. Capitu um dia notou a diferenga,
- dizendo que os dela eram mais bonitos que os meus; eu, depois de certa
- hesitagao, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de
- pitanga.
- Pois, francamente, so agora entendia a comogao que me davam essas e outras
- confidences. A emogao era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu
- a buscasse nem suspeitasse. Os silencios dos ultimos dias, que me nao
- descobriam nada, agora os sentia como sinais de alguma coisa, e assim as meias
- palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de
- recordar a infancia. Tambem adverti que era fenomeno recente acordar com o
- pensamento em Capitu, e escuta-la de memoria, e estremecer quando Ihe ouvia
- os passos. Se se falava nela, em minha casa, prestava mais atengao que dantes,
- e, segundo era louvor ou crftica, assim me trazia gosto ou desgosto mais intensos
- que outrora, quando eramos somente companheiros de travessuras. Cheguei a
- pensar nela durante as missas daquele mes, com intervalos, e verdade, mas com
- exclusivismo tambem.
- Tudo isto me era agora apresentado pela boca dejose Dias, que me denunciara a
- mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o
- que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade nao Valeria
- mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava
- Capitu! Capitu amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam,
- estacavam, tremulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da
- seiva, essa revelagao da conscience a si propria, nunca mais me esqueceu, nem
- achei que Ihe fosse comparavel qualquer outra sensagao da mesma especie.
- Naturalmente por ser minha. Naturalmente tambem por ser a primeira.
- CAPITULO XIII
- CAPITU
- De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pe:
- — Capitu!
- E no quintal:
- — Mamae!
- E outra vez na casa:
- — Vem ca!
- Nao me pude ter. As pernas desceram-me os tres degraus que davam para a
- chacara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, as tardes, e as
- manhas tambem. Que as pernas tambem sao pessoas, apenas inferiores aos
- bragos, e valem de si mesmas, quando a cabega nao as rege por meio de ideias.
- As minhas chegaram ao pe do muro. Havia ali uma porta de comunicagao
- mandada rasgar por minha mae, quando Capitu e eu eramos pequenos. A porta
- nao tinha chave nem taramela; abria-se empurrando de um lado ou puxando de
- outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente de uma corda. Era quase que
- exclusivamente nossa. Em criangas, fazfamos visita batendo de um lado, e sendo
- recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitu adoeciam,
- o medico era eu. Entrava no quintal dela com um pau debaixo do brago, para
- imitar o bengalao do doutor J oao da Costa; tomava o pulso a doente, e pedia-lhe
- que mostrasse a lingua. "E surda, coitada!", exclamava Capitu. Entao eu cogava o
- queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas sanguessugas ou
- dar-lhe um vomitorio: era a terapeutica habitual do medico.
- — Capitu!
- — Mamae!
- — Deixa de estar esburacando o muro; vem ca.
- A voz da mae era agora mais perto, como se viesse ja da porta dos fundos. Quis
- passar ao quintal, mas as pernas, ha pouco tao andarilhas, pareciam agora presas
- ao chao. Afinal fiz um esforgo, empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pe do
- muro fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fe-la
- olhar para tras; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder
- alguma coisa. Caminhei para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque
- ela veio a mim, e perguntou-me inquieta:
- — Que e que voce tern?
- — Eu? Nada.
- — Nada, nao; voce tem alguma coisa.
- Quis insistir que nada, mas nao achei lingua. Todo eu era olhos e coragao, um
- coragao que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Nao podia tirar os
- olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um
- vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas trangas, com
- as pontas atadas uma a outra, a moda do tempo, desciam-lhe pelas costas.
- Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo
- largo. As maos, a despeito de alguns offcios rudes, eram curadas com amor; nao
- cheiravam a saboes finos nem aguas de toucador, mas com agua do pogo e sabao
- comum trazia-as sem macula. Calgava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que
- ela mesma dera alguns pontos.
- — Que e que voce tem? repetiu.
- — Nao e nada, balbuciei finalmente.
- E emendei logo:
- — E uma notfcia.
- — Notfcia de que?
- Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminario e espreitar a impressao que Ihe
- faria. Se a consternasse e que realmente gostava de mim; se nao, e que nao
- gostava. Mas todo esse calculo foi obscuro e rapido; senti que nao poderia falar
- claramente, tinha agora a vista nao sei como...
- — Entao?
- — Voce sabe...
- Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo ou
- esburacando, como dissera a mae. Vi uns riscos abertos, e lembrou-me o gesto
- que ela fizera para cobri-los. Entao quis ve-los de perto, e dei um passo. Capitu
- agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra
- maneira, correu adiante e apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em mim o
- desejo de ler o que era.
- CAPI TU LO XIV
- A I NSCRI CAO
- Tudo o que contei no fim do outro capftulo foi obra de um instante. O que se Ihe
- seguiu foi ainda mais rapido. Dei um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li
- estes dois nomes, abertos ao prego, e assim dispostos:
- BENTO
- CAPITOLINA
- Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chao. Ergueu-os logo, devagar, e
- ficamos a olhar um para o outro... Confissao de criangas, tu valias bem duas ou
- tres paginas, mas quero ser poupado. Em verdade, nao falamos nada; o muro
- falou por nos. Nao nos movemos, as maos e que se estenderam pouco a pouco,
- todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Nao marquei a hora exata
- daquele gesto. Devia te-la marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela
- mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas
- nao traria nenhum, tal era a diferenga entre o estudante e o adolescente.
- Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e
- era virgem de mulheres.
- Nao soltamos as maos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas.
- Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a
- meter-se uns pelos outros... Padre futuro, estava assim diante dela como de um
- altar, sendo uma das faces a Epfstola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o
- calice, os labios a patena. Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguem
- aprende, e e a lingua catolica dos homens. Nao me tenhas por sacrflego, leitora
- minha devota; a limpeza da intengao lava o que puder haver menos curial no
- estilo. Estavamos ali com o ceu em nos. As maos, unindo os nervos, faziam das
- duas criaturas uma so, mas uma so criatura serafica. Os olhos continuaram a dizer
- coisas infinitas, as palavras de boca e que nem tentavam sair, tornavam ao
- coragao caladas como vinham...
- CAPITULO XV
- OUTRA VOZ REPENTI NA
- Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem:
- — Voces estao jogando o siso?
- Era o pai de Capitu, que estava a porta dos fundos, ao pe da mulher. Soltamos as
- maos depressa, e ficamos atrapalhados. Capitu foi ao muro, e, com o prego,
- disfargadamente, apagou os nossos nomes escritos.
- — Capitu!
- — Papai!
- — Nao me estragues o reboco do muro.
- Capitu riscava sobre o riscado, para apagar bem o escrito. Padua saiu ao quintal, a
- ver o que era, mas ja a filha tinha comegado outra coisa, um perfil, que disse ser o
- retrato dele, e tanto podia ser dele como da mae; fe-lo rir, era o essencial. De
- resto, ele chegou sem colera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso ou menos que
- duvidoso em que nos apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e bragos
- curtos, costas abauladas, donde Ihe veio a alcunha de Tartaruga, que J ose Dias Ihe
- pos. Ninguem Ihe chamava assim la em casa; era so o agregado.
- — Voces estavam jogando o siso? perguntou.
- Olhei para um pe de sabugueiro que ficava perto; Capitu respondeu por ambos.
- — Estavamos, sim, senhor; mas Bentinho ri logo, nao aguenta.
- — Quando eu cheguei a porta, nao ria.
- — J a tinha rido das outras vezes; nao pode. Papai quer ver?
- E seria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto e naturalmente
- serio; eu estava ainda sob a agao do que trouxe a entrada de Padua, e nao fui
- capaz de rir, por mais que devesse faze-lo, para legitimar a resposta de Capitu.
- Esta, cansada de esperar, desviou o rosto, dizendo que eu nao ria daquela vez por
- estar ao pe do pai. E nem assim ri. Ha coisas que so se aprendem tarde; e mister
- nascer com elas para faze-las cedo. E melhor e naturalmente cedo que
- artificialmente tarde. Capitu, apos duas voltas, foi ter com a mae, que continuava
- a porta da casa, deixando-nos a mim e ao pai encantados dela; o pai, olhando
- para ela e para mim, dizia-me, cheio de ternura:
- — Quern dira que esta pequena tern quatorze anos? Parece dezessete. Mamae
- esta boa? continuou voltando-se inteiramente para mim.
- — Esta.
- — Ha muitos dias que nao a vejo. Estou com vontade de dar um capote ao doutor,
- mas nao tenho podido, ando com trabalhos da repartigao em casa; escrevo todas
- as noites que e um desespero; negocio de relatorio. Voce ja viu o meu gaturamo?
- Esta ali no fundo. la agora mesmo buscar a gaiola; ande ver.
- Que o meu desejo era nenhum, cre-se facilmente, sem ser preciso jurar pelo Ceu
- nem pela Terra. Meu desejo era ir atras de Capitu e falar-lhe agora do mal que nos
- esperava; mas o pai era o pai, e demais amava particularmente os passarinhos.
- Tinha-os de varia especie, cor e tamanho. A area que havia no centra da casa era
- cercada de gaiolas de canarios, que faziam cantando um barulho de todos os
- diabos. Trocava passaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns,
- no proprio quintal, armando algapoes. Tambem, se adoeciam, tratava deles como
- se fossem gente.
- CAPI TULO XVI
- O ADMI Nl STRADOR I NTERI NO
- Padua era empregado em repartigao dependente do ministerio da guerra. Nao
- ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa
- em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade
- dele. Comprou-a com a sorte grande que Ihe saiu num meio bilhete de loteria, dez
- contos de reis. A primeira ideia do Padua, quando Ihe saiu o premio, foi comprar
- um cavalo do Cabo, um aderego de brilhantes para a mulher, uma sepultura
- perpetua de famflia, mandar vir da Europa alguns passaros, etc.; mas a mulher,
- esta D. Fortunata que ali esta a porta dos fundos da casa, em pe, falando a filha,
- alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabega, os mesmos olhos claros, a
- mulher e que Ihe disse que o melhor era comprar a casa, e guardar o que
- sobrasse para acudir as molestias grandes. Padua hesitou muito; afinal, teve de
- ceder aos conselhos de minha mae, a quern D. Fortunata pediu auxilio. Nem foi so
- nessa ocasiao que minha mae Ihes valeu; um dia chegou a salvar a vida do Padua.
- Escutai; a anedota e curta.
- O administrador da repartigao em que Padua trabalhava teve de ir ao Norte, em
- comissao. Padua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designagao, ficou
- substituindo o administrador com os respectivos honorarios. Esta mudanga de
- fortuna trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. Nao se contentou de
- reformar a roupa e a copa, atirou-se as despesas superfluas, deu joias a mulher,
- nos dias de festa matava um leitao, era visto em teatros, chegou aos sapatos de
- verniz. Viveu assim vinte e dois meses na suposigao de uma eterna interinidade.
- Uma tarde entrou em nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque
- chegara o efetivo naquela manha. Pediu a minha mae que velasse pelas infelizes
- que deixava; nao podia sofrer a desgraga, matava-se. Minha mae falou-lhe com
- bondade, mas ele nao atendia a coisa nenhuma.
- — Nao, minha senhora, nao consentirei em tal vergonha! Fazer descer a famflia,
- tornar atras... Ja disse, mato-me! Nao hei de confessar a minha gente esta
- miseria. E os outros? Que dirao os vizinhos? E os amigos? E o publico?
- — Que publico, Sr. Padua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre-se que sua
- mulher nao tern outra pessoa... e que ha de fazer? Pois um homem... Seja
- homem, ande.
- Padua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo,
- fechado na alcova, — ou entao no quintal, ao pe do pogo, como se a ideia da
- morte teimasse nele. D. Fortunata ralhava:
- — J oaozinho, voce e crianga?
- Mas, tanto Ihe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir a
- minha mae que Ihe fizesse o favor de ver se Ihe salvava o marido que se queria
- matar. Minha mae foi acha-lo a beira do pogo, e intimou-lhe que vivesse. Que
- maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgragado, por causa de uma
- gratificagao menos, e perder um emprego interino? Nao, senhor, devia ser
- homem, pai de famflia, imitar a mulher e a filha... Padua obedeceu; confessou que
- acharia forgas para cumprir a vontade de minha mae.
- — Vontade minha, nao; obrigagao sua.
- — Pois seja obrigagao; nao desconhego que e assim mesmo.
- Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido a parede, cara no
- chao. Nao era o mesmo homem que estragava o chapeu em cortejar a vizinhanga,
- risonho, olhos no ar, antes mesmo da administragao interina. Vieram as semanas,
- a ferida foi sarando. Padua comegou a interessar-se pelos negocios domesticos, a
- cuidar dos passarinhos, a dormir tranquilo as noites e as tardes, a conversar e dar
- notfcias da rua. A serenidade regressou; atras dela veio a alegria, um domingo, na
- figura de dois amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Ja ele ria, ja brincava, tinha
- o ar do costume; a ferida sarou de todo.
- Com o tempo veio um fenomeno interessante. Padua comegou a falar da
- administragao interina, nao somente sem as saudades dos honorarios, nem o
- vexame da perda, mas ate com desvanecimento e orgulho. A administragao ficou
- sendo a hegira, donde ele contava para diante e para tras.
- — No tempo em que eu era administrador...
- Ou entao:
- — Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administragao, um ou dois meses
- antes... Ora espere; a minha administragao comegou... E isto, mes e meio antes;
- foi mes e meio antes, nao foi mais.
- Ou ainda:
- — J ustamente; havia ja seis meses que eu administrava...
- Tal e o sabor postumo das glorias interinas. Jose Dias bradava que era a vaidade
- sobrevivente; mas o padre Cabral, que levava tudo para a Escritura, dizia que com
- o vizinho Padua se dava a ligao de Elifas a Jo: "Nao desprezes a corregao do
- Senhor; Ele fere e cura".
- CAPITULO XVII
- OS VERMES
- "Ele fere e cura!". Quando, mais tarde, vim a saber que a langa de Aquiles
- tambem curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma
- dissertagao a este proposito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos,
- livros enterrados, a abri-los, a compara-los, catando o texto e o sentido, para
- achar a origem comum do oraculo pagao e do pensamento israelita. Catei os
- proprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos rofdos
- por eles.
- — Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nos nao sabemos
- absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem
- amamos ou detestamos o que roemos; nos roemos.
- Nao Ihe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado
- palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silencio sobre os textos
- rofdos fosse ainda um modo de roer o rofdo.
- CAPITU LO XVIII
- UM PLANO
- Pai nem mae foram ter conosco, quando Capitu e eu, na sala de visitas, falavamos
- do seminario. Com os olhos em mim, Capitu queria saber que notfcia era a que me
- afligia tanto. Quando Ihe disse o que era, fez-se cor de cera.
- — Mas eu nao quero, acudi logo, nao quero entrar em seminarios; nao entro, e
- escusado teimarem comigo; nao entro.
- Capitu, a princfpio, nao disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixou-se
- estar com as pupilas vagas e surdas, a boca entreaberta, toda parada. Entao eu,
- para dar forga as afirmagoes, comecei a jurar que nao seria padre. Naquele tempo
- jurava muito e rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me
- faltasse na hora da morte se fosse para o seminario. Capitu nao parecia crer nem
- descrer, nao parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis chama-la, sacudi-
- la, mas faltou-me animo. Essa criatura que brincara comigo, que pulara, dangara,
- creio ate que dormira comigo, deixava-me agora com os bragos atados e
- medrosos. Enfim, tornou a si, mas tinha a cara Ifvida, e rompeu nestas palavras
- furiosas:
- — Beata! carola! papa-missas!
- Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha mae, e minha mae dela, que eu
- nao podia entender tamanha explosao. E verdade que tambem gostava de mim, e
- naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, coisa bastante a explicar o
- despeito que Ihe trazia a ameaga da separagao; mas os improperios, como
- entender que Ihe chamasse nomes tao feios, e principalmente para deprimir
- costumes religiosos, que eram os seus? Que ela tambem ia a missa, e tres ou
- quatro vezes minha mae e que a levou, na nossa velha sege. Tambem Ihe dera
- um rosario, uma cruz de ouro e um livro de Horas... Quis defende-la, mas Capitu
- nao me deixou, continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz tao alta que tive
- medo fosse ouvida dos pais. Nunca a vi tao irritada como entao; parecia disposta
- a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a cabega... Eu, assustado, nao
- sabia que fizesse; repetia os juramentos, prometia ir naquela mesma noite
- declarar em casa que, por nada neste mundo, entraria no seminario.
- — Voce? Voce entra.
- — Nao entro.
- — Voce vera se entra ou nao.
- Calou-se outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; nao era ainda a Capitu
- do costume, mas quase. Estava seria, sem afligao, falava baixo. Quis saber a
- conversagao da minha casa; eu contei-lha toda, menos a parte que Ihe dizia
- respeito.
- — E que interesse tem J ose Dias em lembrar isto? perguntou-me no fim.
- — Acho que nenhum; foi so para fazer mal. E um sujeito muito ruim; mas, deixe
- estar que me ha de pagar. Quando eu for dono da casa, quern vai para a rua e
- ele, voce vera; nao me fica um instante. Mamae e boa demais; da-lhe atengao
- demais. Parece ate que chorou.
- — J ose Dias?
- — Nao, mamae.
- — Chorou por que?
- — Nao sei; ouvi so dizer que ela nao chorasse, que nao era coisa de choro... Ele
- chegou a mostrar-se arrependido, e saiu; eu entao, para nao ser apanhado, deixei
- o canto e corri para a varanda. Mas, deixe estar, que ele me paga!
- Disse isto fechando o punho, e proferi outras ameagas. Ao relembra-las, nao me
- acho ridfculo; a adolescencia e a infancia nao sao, neste ponto, ridfculas; e um dos
- seus privi legios. Este mal ou este perigo comega na mocidade, cresce na
- madureza e atinge o maior grau na velhice. Aos quinze anos, ha ate certa graga
- em ameagar muito e nao executar nada.
- Capitu refletia. A reflexao nao era coisa rara nela, e conheciam-se as ocasioes pelo
- apertado dos olhos. Pediu-me algumas circunstancias mais, as proprias palavras
- de uns e de outros, e o tom delas. Como eu nao queria dizer o ponto inicial da
- conversa, que era ela mesma, nao Ihe pude dar toda a significagao. A atengao de
- Capitu estava agora particularmente nas lagrimas de minha mae; nao acabava de
- entende-las. Em meio disto, confessou que certamente nao era por mal que minha
- mae me queria fazer padre; era a promessa antiga, que ela, temente a Deus, nao
- podia deixar de cumprir. Fiquei tao satisfeito de ver que assim espontaneamente
- reparava as injurias que Ihe safram do peito, pouco antes, que peguei da mao dela
- e apertei-a muito. Capitu deixou-se ir, rindo; depois a conversa entrou a cochilar e
- dormir. Tfnhamos chegado a janela; um preto, que, desde algum tempo, vinha
- apregoando cocadas, parou em frente e perguntou:
- — Sinhazinha, que cocada hoje?
- — Nao, respondeu Capitu.
- — Cocadinha ta boa.
- — Va-se embora, replicou ela sem rispidez.
- — De ca! disse eu descendo o brago para receber duas.
- Comprei-as, mas tive de as comer sozinho; Capitu recusou. Vi que, em meio da
- crise, eu conservava um canto para as cocadas, o que tanto pode ser perfeigao
- como imperfeigao, mas o momento nao e para definigoes tais; fiquemos em que a
- minha amiga, apesar de equilibrada e lucida, nao quis saber de doce, e gostava
- muito de doce. Ao contrario, o pregao que o preto foi cantando, o pregao das
- velhas tardes, tao sabido do bairro e da nossa infancia:
- Chora, menina, chora,
- Chora, porque nao tem
- Vintem,
- a modo que Ihe deixara uma impressao aborrecida. Da toada nao era; ela a sabia
- de cor e de longe, usava repeti-la nos nossos jogos da puerfcia, rindo, saltando,
- trocando os papeis comigo, ora vendendo, ora comprando um doce ausente. Creio
- que a letra, destinada a picar a vaidade das criangas, foi que a enojou agora,
- porque logo depois me disse:
- — Se eu fosse rica, voce fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa.
- Dito isto, espreitou-me os olhos, mas creio que eles nao Ihe disseram nada, ou so
- agradeceram a boa intengao. Com efeito, o sentimento era tao amigo que eu
- podia escusar o extraordinario da aventura.
- Como ves, Capitu, aos quatorze anos, tinha ja ideias atrevidas, muito menos que
- outras que Ihe vieram depois; mas eram so atrevidas em si, na pratica faziam-se
- habeis, sinuosas, surdas, e alcangavam o fim proposto, nao de salto, mas aos
- saltinhos. Nao sei se me explico bem. Suponde uma concepgao grande executada
- por meios pequenos. Assim, para nao sair do desejo vago e hipotetico de me
- mandar para a Europa, Capitu, se pudesse cumpri-lo, nao me faria embarcar no
- paquete e fugir; estenderia uma fila de canoas daqui ate la, por onde eu,
- parecendo ir a fortaleza da Laje em ponte movediga, iria realmente ate Bordeus,
- deixando minha mae na praia, a espera. Tal era a feigao particular do carater da
- minha amiga; pelo que, nao admira que, combatendo os meus projetos de
- resistencia franca, fosse antes pelos meios brandos, pela agao do empenho, da
- palavra, da persuasao lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com quern
- podfamos contar. Rejeitou tio Cosme; era um "boa-vida"; se nao aprovava a
- minha ordenagao, nao era capaz de dar um passo para suspende-la. Prima Justina
- era melhor que ele, e melhor que os dois seria o Padre Cabral, pela autoridade,
- mas o padre nao havia de trabalhar contra a igreja; so se eu Ihe confessasse que
- nao tinha vocagao...
- — Posso confessar?
- — Pois, sim, mas seria aparecer francamente, e o melhor e outra coisa. Jose
- Dias...
- — Que tern J ose Dias?
- — Pode ser um bom empenho.
- — Mas se foi ele mesmo que falou...
- — Nao importa, continuou Capitu; dira agora outra coisa. Ele gosta muito de voce.
- Nao Ihe fale acanhado. Tudo e que voce nao tenha medo, mostre que ha de vir a
- ser dono da casa, mostre que quer e que pode. De-lhe bem a entender que nao e
- favor. Faga-lhe tambem elogios; ele gosta muito de ser elogiado. D. Gloria presta-
- Ihe atengao; mas o principal nao e isso; e que ele, tendo de servir a voce, falara
- com muito mais calor que outra pessoa.
- — Nao acho, nao, Capitu.
- — Entao va para o seminario.
- — Isso nao.
- — Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; faga o que Ihe digo.
- Dona Gloria pode ser que mude de resolugao; se nao mudar, faz-se outra coisa,
- mete-se entao o Padre Cabral. Voce nao se lembra como e que foi ao teatro pela
- primeira vez, ha dois meses? D. Gloria nao queria, e bastava isso para que Jose
- Dias nao teimasse; mas ele queria ir, e fez um discurso, lembra-se?
- — Lembra-me; disse que o teatro era uma escola de costumes.
- — Justo; tanto falou que sua mae acabou consentindo, e pagou a entrada aos
- dois... Ande, pega, mande. Olhe; diga-lhe que esta pronto a ir estudar leis em Sao
- Paulo.
- Estremeci de prazer. Sao Paulo era um fragil biombo, destinado a ser arredado um
- dia, em vez da grossa parede espiritual e eterna. Prometi falar a Jose Dias nos
- termos propostos. Capitu repetiu-os, acentuando alguns, como principals; e
- inquiria-me depois sobre eles, a ver se entendera bem, se nao trocara uns por
- outros. E insistia em que pedisse com boa cara, mas assim como quern pede um
- copo de agua a pessoa que tern obrigagao de o trazer. Conto estas minucias para
- que melhor se entenda aquela manha da minha amiga; logo vira a tarde, e da
- manha e da tarde se fara o primeiro dia, como no Genesis, onde se fizeram
- sucessivamente sete.
- CAPI TU LO XIX
- SEM FALTA
- Quando voltei a casa era noite. Vim depressa, nao tanto, porem, que nao
- pensasse nos termos em que falaria ao agregado. Formulei o pedido de cabega,
- escolhendo as palavras que diria e o tom delas, entre seco e benevolo. Na
- chacara, antes de entrar em casa, repeti-as comigo, depois em voz alta, para ver
- se eram adequadas e se obedeciam as recomendagoes de Capitu: "Preciso falar-
- Ihe, sem falta, amanha; escolha o lugar e diga-me". Proferi-as lentamente, e mais
- lentamente ainda as palavras sem falta, como para sublinha-las. Repeti-as ainda,
- e entao achei-as secas demais, quase rfspidas, e, francamente, improprias de um
- criangola para um homem maduro. Cuidei de escolher outras, e parei.
- Afinal disse comigo que as palavras podiam servir, tudo era dize-las em tom que
- nao ofendesse. E a prova e que, repetindo-as novamente, safram-me quase
- suplices. Bastava nao carregar tanto, nem adogar muito, um meio-termo. "E
- Capitu tern razao, pensei, a casa e minha, ele e um simples agregado... Jeitoso e,
- pode muito bem trabalhar por mim, e desfazer o piano de mamae."
- CAPITULO XX
- Ml L PADRE-NOSSOS E Ml L AVE-MARI AS
- Levantei os olhos ao ceu, que comegava a embruscar-se, mas nao foi para ve-lo
- coberto ou descoberto. Era ao outro Ceu que eu erguia a minha alma; era ao meu
- refugio, ao meu amigo. E entao disse de mim para mim: "Prometo rezar mil
- padre-nossos e mil ave-marias, se Jose Dias arranjar que eu nao va para o
- seminario".
- A soma era enorme. A razao e que eu andava carregado de promessas nao
- cumpridas. A ultima foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias, se nao
- chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. Nao choveu, mas eu nao rezei
- as oragoes. Desde pequenino acostumara-me a pedir ao Ceu os seus favores,
- mediante oragoes que diria, se eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram
- adiadas, e a medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei
- aos numeros vinte, trinta, cinquenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era
- um modo de peitar a vontade divina pela quantia das oragoes; alem disso, cada
- promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a dfvida antiga. Mas vao la
- matar a preguiga de uma alma que a trazia do bergo e nao a sentia atenuada pela
- vida! O Ceu fazia-me o favor, eu adiava a paga. Afinal perdi-me nas contas.
- — Mil, mil, repeti comigo.
- Realmente, a materia do beneffcio era agora imensa, nao menos que a salvagao
- ou o naufragio da minha existencia inteira. Mil, mil, mil. Era preciso uma soma que
- pagasse os atrasados todos. Deus podia muito bem, irritado com os
- esquecimentos, negar-se a ouvir-me sem muito dinheiro... Homem grave, e
- possfvel que estas agitagoes de menino te enfadem, se e que nao as achas
- ridfcu las. Sublimes nao eram. Cogitei muito no modo de resgatar a dfvida
- espiritual. Nao achava outra especie em que, mediante a intengao, tudo se
- cumprisse, fechando a escrituragao da minha consciencia moral sem deficit.
- Mandar dizer cem missas, ou subir de joelhos a ladeira da Gloria para ouvir uma,
- ir a Terra Santa, tudo o que as velhas escravas me contavam de promessas
- celebres, tudo me acudia sem se fixar de vez no espfrito. Era muito duro subir
- uma ladeira de joelhos; devia feri-los por forga. A Terra Santa ficava muito longe.
- As missas eram numerosas, podiam empenhar-me outra vez a alma...
- CAPI TULO XXI
- PRI MA J USTI NA
- Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro. Veio ao
- patamar e perguntou-me onde estivera.
- — Estive aqui ao pe, conversando com D. Fortunata, e distraf-me. E tarde, nao e?
- Mamae perguntou por mim?
- — Perguntou, mas eu disse que voce ja tinha vindo.
- A mentira espantou-me, nao menos que a franqueza da notfcia. Nao e que prima
- Justina fosse de biocos, dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e
- a Paulo o que pensava de Pedro; mas, confessar que mentira e que me pareceu
- novidade. Era quadragenaria, magra e palida, boca fina e olhos curiosos. Vivia
- conosco por favor de minha mae, e tambem por interesse; minha mae queria ter
- uma senhora fntima ao pe de si, e antes parenta que estranha.
- Passeamos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampiao. Quis saber se
- eu nao esquecera os projetos eclesiasticos de minha mae, e dizendo-lhe eu que
- nao, inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha a vida de padre. Respondi esquivo:
- — Vida de padre e muito bonita.
- — Sim, e bonita; mas o que pergunto e se voce gostaria de ser padre, explicou
- rindo.
- — Eu gosto do que mamae quiser.
- — Prima Gloria deseja muito que voce se ordene, mas ainda que nao desejasse,
- ha ca em casa quern Ihe meta isso na cabega.
- — Quern e?
- — Ora, quern! Quern e que ha de ser? Primo Cosme nao e, que nao se importa
- com isso; eu tambem nao.
- — J ose Dias? concluf.
- — Naturalmente.
- Enruguei a testa interrogativamente, como se nao soubesse nada. Prima Justina
- completou a notfcia dizendo que ainda naquela tarde Jose Dias lembrara a minha
- mae a promessa antiga.
- — Prima Gloria pode ser que, em passando os dias, va esquecendo a promessa;
- mas como ha de esquecer se uma pessoa estiver sempre, nos ouvidos, zas que
- daras, falando do seminario? E os discursos que ele faz, os elogios da igreja, e que
- a vida de padre e isto e aquilo, tudo com aquelas palavras que so ele conhece, e
- aquela afetagao... Note que e so para fazer mal, porque ele e tao religioso como
- este lampiao. Pois e verdade, ainda hoje. Voce nao se de por achado... Hoje de
- tarde falou como voce nao imagina...
- — Mas falou a toa? perguntei, a ver se ela contava a denuncia do meu namoro
- com a vizinha.
- Nao contou; fez apenas um gesto como indicando que havia outra coisa que nao
- podia dizer. Novamente me recomendou que nao me desse por achado, e
- recapitulou todo o mal que pensava de J ose Dias, e nao era pouco, um intrigante,
- um bajulador, um especulador, e, apesar da casca de polidez, um grosseirao. Eu,
- passados alguns instantes, disse:
- — Prima J ustina, a senhora era capaz de uma coisa?
- — De que?
- — Era capaz de... Suponha que eu nao gostasse de ser padre... a senhora podia
- pedir a mamae...
- — Isso nao, atalhou prontamente; prima Gloria tern este negocio firme na cabega,
- e nao ha nada no mundo que a faga mudar de resolugao; so o tempo. Voce ainda
- era pequenino, ja ela contava isto a todas as pessoas da nossa amizade, ou so
- conhecidas. La avivar-lhe a memoria, nao, que eu nao trabalho para a desgraga
- dos outros; mas tambem, pedir outra coisa, nao pego. Se ela me consultasse,
- bem; se ela me dissesse: "Prima J ustina, voce que acha?", a minha resposta era:
- "Prima Gloria, eu penso que, se ele gosta de ser padre, pode ir; mas, se nao
- gosta, o melhor e ficar". E o que eu diria e direi se ela me consultar algum dia.
- Agora, ir falar-lhe sem ser chamada, nao fago.
- CAPITU LO XXII
- SENSACOES ALHEIAS
- Nao alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o
- conselho de Capitu. Entao, como eu quisesse ir para dentro, prima J ustina reteve-
- me alguns minutos, falando do calor e da proxima festa da Conceigao, dos meus
- velhos oratorios, e finalmente de Capitu. Nao disse mal dela; ao contrario,
- insinuou-me que podia vir a ser uma moga bonita. Eu, que ja a achava lindfssima,
- bradaria que era a mais bela criatura do mundo, se o receio me nao fizesse
- discreto. Entretanto, como prima J ustina se metesse a elogiar-lhe os modos, a
- gravidade, os costumes, o trabalhar para os seus, o amor que tinha a minha mae,
- tudo isto me acendeu a ponto de elogia-la tambem. Quando nao era com palavras,
- era com o gesto de aprovagao que dava a cada uma das assergoes da outra, e
- certamente com a felicidade que devia iluminar-me a cara. Nao adverti que assim
- confirmava a denuncia de Jose Dias, ouvida por ela, a tarde, na sala de visitas, se
- e que tambem ela nao desconfiava ja. So pensei nisso na cama. So entao senti
- que os olhos de prima J ustina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me,
- cheirar-me, gostar-me, fazer o offcio de todos os sentidos. Ciumes nao podiam
- ser; entre um pirralho da minha idade e uma viuva quarentona nao havia lugar
- para ciumes. E certo que, apos algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e ate
- Ihe fez algumas crfticas, disse-me que era um pouco trefega e olhava por baixo;
- mas ainda assim, nao creio que fossem ciumes. Creio antes... sim... sim, creio
- isto. Creio que prima Justina achou no espetaculo das sensagoes alheias uma
- ressurreigao vaga das proprias. Tambem se goza por influ igao dos labios que
- narram.
- CAPITULO XXIII
- PRAZO DADO
- — Preciso falar-lhe amanha, sem falta; escolha o lugar e diga-me.
- Creio que Jose Dias achou desusado este meu falar. O tom nao me safra tao
- imperativo como eu receava, mas as palavras o eram, e o nao interrogar, nao
- pedir, nao hesitar, como era proprio da crianga e do meu estilo habitual,
- certamente Ihe deu ideia de uma pessoa nova e de uma nova situagao. Foi no
- corredor, quando famos para o cha; Jose Dias vinha andando cheio da leitura de
- Walter Scott que fizera a minha mae e a prima Justina. Lia cantado e compassado.
- Os castelos e os parques safam maiores da boca dele, os lagos tinham mais agua
- e a "abobada celeste" contava alguns milhares mais de estrelas cintilantes. Nos
- dialogos, alternava o som das vozes, que eram levemente grossas ou finas,
- conforme o sexo dos interlocutores, e reproduziam com moderagao a ternura e a
- colera.
- Ao despedir-se de mim, na varanda, disse-me ele:
- — Amanha, na rua. Tenho umas compras que fazer, voce pode ir comigo, pedirei a
- mamae. E dia de ligao?
- — A ligao foi hoje.
- — Perfeitamente. Nao Ihe pergunto o que e; afirmo desde ja que e materia grave
- e pura.
- — Sim, senhor.
- — Ate amanha.
- Fez-se tudo o melhor possfvel. Houve so uma alteragao; minha mae achou o dia
- quente e nao consentiu que eu fosse a pe; entramos no onibus, a porta de casa.
- — Nao importa, disse-me Jose Dias; podemos apear-nos a porta do Passeio
- Publico.
- CAPI TULO XXIV
- DE MAE E DE SERVO
- Jose Dias tratava-me com extremos de mae e atengoes de servo. A primeira coisa
- que conseguiu logo que comecei a andar fora, foi dispensar-me o pajem; fez-se
- pajem, ia comigo a rua. Cuidava dos meus arranjos em casa, dos meus livros, dos
- meus sapatos, da minha higiene e da minha prosodia. Aos oito anos os meus
- plurais careciam, alguma vez, da desinencia exata, ele a corrigia, meio serio para
- dar autoridade a ligao, meio risonho para obter o perdao da emenda. Ajudava
- assim o mestre de primeiras letras. Mais tarde, quando o Padre Cabral me
- ensinava latim, doutrina e historia sagrada, ele assistia as ligoes, fazia reflexoes
- eclesiasticas, e, no fim, perguntava ao padre: "Nao e verdade que o nosso jovem
- amigo caminha depressa?" Chamava-me "urn prodfgio"; dizia a minha mae ter
- conhecido outrora meninos muito inteligentes, mas que eu excedia a todos esses,
- sem contar que, para a minha idade, possufa ja certo numero de qualidades
- morais solidas. Eu, posto nao avaliasse todo o valor deste outro elogio, gostava do
- elogio; era um elogio.
- CAPI TULO XXV
- NO PASSEIO PUBLICO
- Entramos no Passeio Publico. Algumas caras velhas, outras doentes ou so vadias
- espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terrago.
- Seguimos para o terrago. Andando, para me dar animo, falei do jardim:
- — Ha muito tempo que nao venho aqui, talvez um ano.
- — Perdoe-me, atalhou ele, nao ha tres meses que esteve aqui com o nosso vizinho
- Padua; nao se lembra?
- — E verdade, mas foi tao de passagem. . .
- — Ele pediu a sua mae que o deixasse trazer consigo, e ela, que e boa como a
- mae de Deus, consentiu; mas ouga-me, ja que falamos nisto, nao e bonito que
- voce ande com o Padua na rua.
- — Mas eu andei algumas vezes...
- — Quando era mais jovem; era crianga, era natural, ele podia passar por criado.
- Mas voce esta ficando mogo e ele vai tomando confianga. D. Gloria, afinal, nao
- pode gostar disso. A gente Padua nao e de todo ma. Capitu, apesar daqueles olhos
- que o Diabo Ihe deu... Voce ja reparou nos olhos dela? Sao assim de cigana
- oblfqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se nao fosse a vaidade e
- a adulagao. Oh! a adulagao! D. Fortunata merece estima, e ele nao nego que seja
- honesto, tern um bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade e
- estima nao bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com as mas
- companhias em que ele anda. Padua tern uma tendencia para gente reles. Em Ihe
- cheirando a homem chulo e com ele. Nao digo isto por odio, nem porque ele fale
- mal de mim e se ria, como se riu, ha dias, dos meus sapatos acalcanhados...
- — Perdao, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal do
- senhor; pelo contrario, um dia, nao ha muito tempo, disse ele a um sujeito, em
- minha presenga, que o senhor era "um homem de capacidade e sabia falar como
- um deputado nas camaras."
- Jose Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforgo grande e fechou outra vez o
- rosto; depois replicou:
- — Nao Ihe agradego nada. Outros, de melhor sangue, me tern feito o favor de
- jufzos altos. E nada disso impede que ele seja o que Ihe digo.
- Tfnhamos outra vez andado, subimos ao terrago, e olhamos para o mar.
- — Vejo que o senhor nao quer senao o meu beneffcio, disse eu depois de alguns
- instantes.
- — Pois que outra coisa, Bentinho?
- — Neste caso, pego-lhe um favor.
- — Um favor? Mande, ordene, que e?
- — Mamae...
- Durante algum tempo nao pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cor. Jose
- Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o
- queixo e espetava os olhos em mim, ansioso tambem, como a prima Justina na
- vespera.
- — Mamae que? Que e que tern mamae?
- — Mamae quer que eu seja padre, mas eu nao posso ser padre, disse finalmente.
- Jose Dias endireitou-se pasmado.
- — Nao posso, continuei eu, nao menos pasmado que ele, nao tenho jeito, nao
- gosto da vida de padre. Estou por tudo o que ela quiser; mamae sabe que eu fago
- tudo o que ela manda; estou pronto a ser o que for do seu agrado, ate cocheiro de
- onibus. Padre, nao; nao posso ser padre. A carreira e bonita, mas nao e para mim.
- Todo esse discurso nao me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente, peremptorio,
- como pode parecer do texto, mas aos pedagos, mastigado, em voz um pouco
- surda e tfmida. Nao obstante, Jose Dias ouvira-o espantado. Nao contava
- certamente com a resistencia, por mais acanhada que fosse; mas o que ainda
- mais o assombrou foi esta conclusao:
- — Conto com o senhor para salvar-me.
- Os olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer
- que eu contava dar-lhe com a escolha da protegao nao se mostrou em nenhum
- dos musculos. Toda a cara dele era pouca para a estupefagao. Realmente, a
- materia do discurso revelara em mim uma alma nova; eu proprio nao me
- conhecia. Mas a palavra final e que trouxe um vigor unico. Jose Dias ficou
- aturdido. Quando os olhos tornaram as dimensoes ordinarias:
- — Mas que posso eu fazer? perguntou.
- — Pode muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam. Mamae pede
- muita vez os seus conselhos, nao e? Tio Cosme diz que o senhor e pessoa de
- talento. . .
- — Sao bondades, retorquiu lisonjeado. Sao favores de pessoas dignas, que
- merecem tudo... Af esta! nunca ninguem me ha de ouvir dizer nada de pessoas
- tais; por que? porque sao ilustres e virtuosas. Sua mae e uma santa, seu tio e um
- cavalheiro perfeitfssimo. Tenho conhecido famflias distintas; nenhuma podera
- veneer a sua em nobreza de sentimentos. O talento que seu tio acha em mim
- confesso que o tenho, mas e so um, — e o talento de saber o que e bom e digno
- de admiragao e de aprego.
- — Ha de ter tambem o de proteger os amigos, como eu.
- — Em que Ihe posso valer, anjo do ceu? Nao hei de dissuadir sua mae de um
- projeto que e, alem de promessa, a ambigao e o sonho de longos anos. Quando
- pudesse, e tarde. Ainda ontem fez-me o favor de dizer: "Jose Dias, preciso meter
- Bentinho no seminario".
- Timidez nao e tao ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, e provavel
- que, com a indignagao que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas
- entao seria preciso confessar-lhe que estivera a escuta, atras da porta, e uma
- agao valia outra. Contentei-me de responder que nao era tarde.
- — Nao e tarde, ainda e tempo, se o senhor quiser.
- — Se eu quiser? Mas que outra coisa quero eu, senao servi-lo. Que desejo, senao
- que seja feliz, como merece?
- — Pois ainda e tempo. Olhe, nao e por vadiagao. Estou pronto para tudo; se ela
- quiser que eu estude leis, vou para Sao Paulo...
- CAPI TULO XXVI
- AS LEIS SAO BELAS
- Pela cara de Jose Dias passou algo parecido com o reflexo de uma ideia, — uma
- ideia que o alegrou extraordinariamente. Calou-se alguns instantes; eu tinha os
- olhos nele, ele voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse:
- — E tarde, disse ele; mas, para Ihe provar que nao ha falta de vontade, irei falar a
- sua mae. Nao prometo veneer, mas lutar; trabalharei com alma. Deveras, nao
- quer ser padre? As leis sao belas, meu querido... Pode ir a Sao Paulo, a
- Pernambuco, ou ainda mais longe. Ha boas universidades por esse mundo fora. Va
- para as leis, se tal e a sua vocagao. Vou falar a Dona Gloria, mas nao conte so
- comigo; fale tambem a seu tio.
- — Hei de falar.
- — Pegue-se tambem com Deus, — com Deus e a Virgem Santfssima, concluiu
- apontando para o ceu.
- O ceu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes passaros negros
- faziam giros, avangando ou pairando, e desciam a rogar os pes na agua, e
- tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem as sombras do ceu, nem
- as dangas fantasticas dos passaros me desviavam o espfrito do meu interlocutor.
- Depois de Ihe responder que sim, emendei-me:
- — Deus fara o que o senhor quiser.
- — Nao blasfeme. Deus e dono de tudo; ele e, so por si, a Terra e o Ceu, o
- passado, o presente e o futuro. Pega-lhe a sua felicidade, que eu nao fago outra
- coisa... Uma vez que voce nao pode ser padre, e prefere as leis... As leis sao
- belas, sem desfazer na teologia, que e melhor que tudo, como a vida eclesiastica e
- a mais santa. Por que nao ha de ir estudar leis fora daqui? Melhor e ir logo para
- alguma universidade, e ao mesmo tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos;
- veremos as terras estrangeiras, ouviremos ingles, frances, italiano, espanhol,
- russo e ate sueco. Dona Gloria provavelmente nao podera acompanha-lo; ainda
- que possa e va, nao querera guiar os negocios, papeis, matnculas, e cuidar de
- hospedarias, e andar com voce de um lado para outro... Oh! as leis sao
- belfssimas!
- — Esta dito, pede a mamae que me nao meta no seminario?
- — Pedir, pego, mas pedir nao e alcangar. Anjo do meu coragao, se vontade de
- servir e poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo. Ah! voce nao imagina o
- que e a Europa; oh! a Europa...
- Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambigoes era tornar a Europa,
- falava dela muitas vezes, sem acabar de tentar minha mae nem tio Cosme, por
- mais que louvasse os ares e as belezas... Nao contava com esta possibilidade de ir
- comigo, e la ficar durante a eternidade dos meus estudos.
- — Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo!
- CAPITULO XXVII
- AO PORTAO
- No portao do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mao. Jose Dias passou adiante,
- mas eu pensei em Capitu e no seminario, tirei dois vintens do bolso e dei-os ao
- mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim de
- que eu pudesse satisfazer todos os meus desejos.
- — Sim, meu devoto!
- — Chamo-me Bento, acrescentei para esclarece-lo.
- CAPITULO XXVI 1 1
- NA RUA
- Jose Dias ia tao contente que trocou o homem dos momentos graves, como era na
- rua, pelo homem dobradigo e inquieto. Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me
- parar a cada passo diante de um mostrador ou de um cartaz de teatro. Contava-
- me o enredo de algumas pegas, recitava monologos em verso. Fez os recados
- todos, pagou contas, recebeu alugueis de casa; para si comprou um vigesimo de
- loteria. Afinal, o homem teso rendeu o flexfvel, e passou a falar pausado, com
- superlativos. Nao vi que a mudanga era natural; temi que houvesse mudado a
- resolugao assentada, e entrei a trata-lo com palavras e gestos carinhosos, ate
- entrarmos no onibus.
- CAPI TULO XXIX
- O IMPERADOR
- Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O
- onibus em que famos parou, como todos os veiculos; os passageiros desceram a
- rua e tiraram o chapeu, ate que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu
- lugar, trazia uma ideia fantastica, a ideia de ir ter com o Imperador, contar-lhe
- tudo e pedir-lhe a intervengao. Nao confiaria esta ideia a Capitu. "Sua Majestade
- pedindo, mamae cede", pensei comigo.
- Vi entao o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que
- iria falar a minha mae; eu beijava-lhe a mao, com lagrimas. E logo me achei em
- casa, a esperar, ate que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; e o
- Imperador! e o Imperador! toda a gente chegava as janelas para ve-lo passar,
- mas nao passava, o coche parava a nossa porta, o Imperador apeava-se e
- entrava. Grande alvorogo na vizinhanga: "O Imperador entrou em casa de D.
- Gloria! Que sera? Que nao sera?" A nossa familia safa a recebe-lo; minha mae era
- a primeira que Ihe beijava a mao. Entao o Imperador, todo risonho, sem entrar na
- sala ou entrando, — nao me lembra bem, os sonhos sao muita vez confusos, —
- pedia a minha mae que me nao fizesse padre, — e ela, lisonjeada e obediente,
- prometia que nao.
- — A Medicina, — por que Ihe nao manda ensinar Medicina?
- — Uma vez que e do agrado de Vossa Majestade...
- — Mande ensinar-lhe Medicina; e uma bonita carreira, e nos temos aqui bons
- professores. Nunca foi a nossa Escola? E uma bela Escola. Ja temos medicos de
- primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A
- Medicina e uma grande ciencia; basta so isto de dar a saude aos outros, conhecer
- as molestias, combate-las, vence-las... A senhora mesma ha de ter visto
- milagres. Seu marido morreu, mas a doenga era fatal, e ele nao tinha cuidado em
- si... E uma bonita carreira; mande-o para a nossa Escola. Faga isso por mim, sim?
- Voce quer, Bentinho?
- — Mamae querendo...
- — Quero, meu filho. Sua Majestade manda.
- Entao o Imperador dava outra vez a mao a beijar, e safa, acompanhado de todos
- nos, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silencio de assombro; o
- Imperador entrava no coche, inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo
- ainda: "A Medicina, a nossa Escola." E o coche partia entre invejas e
- agradecimentos.
- Tudo isso vi e ouvi. Nao, a imaginagao de Ariosto nao e mais fertil que a das
- criangas e dos namorados, nem a visao do impossfvel precisa mais que de um
- recanto de onibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, ate destruir-se o
- piano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros.
- CAPI TULO XXX
- O SANTI SSI MO
- Teras entendido que aquela lembranga do Imperador acerca da Medicina nao era
- mais que a sugestao da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos
- do acordado sao como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas
- inclinagoes e das nossas recordagoes. Va que fosse para Sao Paulo, mas a
- Europa... Era muito longe, muito mar e muito tempo. Viva a Medicina! Iria contar
- estas esperangas a Capitu.
- — Parece que vai sair o Santfssimo, disse alguem no onibus. Ougo um sino; e,
- creio que e em Santo Antonio dos Pobres. Pare, Sr. recebedor!
- O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao brago do cocheiro, o
- onibus parou, e o homem desceu. Jose Dias deu duas voltas rapidas a cabega,
- pegou-me no brago e fez-me descer consigo. Irfamos tambem acompanhar o
- Santfssimo. Efetivamente, o sino chamava os fieis aquele servigo da ultima hora.
- Ja havia algumas pessoas na sacristia. Era a primeira vez que me achava em
- momento tao grave; obedeci, a princfpio constrangido, mas logo depois satisfeito,
- menos pela caridade do servigo que por me dar um offcio de homem. Quando o
- sacristao comegou a distribuir as opas, entrou um sujeito esbaforido; era o meu
- vizinho Padua, que tambem ia acompanhar o Santfssimo. Deu conosco, veio
- cumprimentar-nos. Jose Dias fez um gesto de aborrecido, e apenas Ihe respondeu
- com uma palavra seca, olhando para o padre, que lavava as maos. Depois, como
- Padua falasse ao sacristao, baixinho, aproximou-se deles; eu fiz a mesma coisa.
- Padua solicitava ao sacristao uma das varas do palio. Jose Dias pediu uma para si.
- — Ha so uma disponfvel, disse o sacristao.
- — Pois essa, disse Jose Dias.
- — Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Padua.
- — Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu Jose Dias; eu ja ca estava. Leve
- uma tocha.
- Padua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a vara, tudo isto
- em voz baixa e surda. O sacristao achou meio de conciliar a rivalidade, tomando a
- si obter de um dos outros seguradores do palio que cedesse a vara ao Padua,
- conhecido na paroquia, como Jose Dias. Assim fez; mas Jose Dias transtornou
- ainda esta combinagao. Nao, uma vez que tfnhamos outra vara disponfvel, pedia-a
- para mim, "jovem seminarista", a quern esta distingao cabia mais diretamente.
- Padua ficou palido, como as tochas. Era por a prova o coragao de um pai. O
- sacristao, que me conhecia de me ver ali com minha mae, aos domingos,
- perguntou de curioso se eu era deveras seminarista.
- — Ainda nao, mais vai se-lo, respondeu Jose Dias, piscando o olho esquerdo para
- mim, que, apesar do aviso, fiquei zangado.
- — Bern, cedo ao nosso Bentinho, suspirou o pai de Capitu.
- Pela minha parte, quis ceder-lhe a vara; lembrou-me que ele costumava
- acompanhar o Santfssimo Sacramento aos moribundos, levando uma tocha, mas
- que a ultima vez conseguira uma vara do palio. A distingao especial do palio vinha
- de cobrir o vigario e o Sacramento; para tocha qualquer pessoa servia. Foi ele
- mesmo que me contou e explicou isto, cheio de uma gloria pia e risonha. Assim
- fica entendido o alvorogo com que entrara na igreja; era a segunda vez do palio,
- tanto que cuidou logo de ir pedi-lo. E nada! E tornava a tocha comum, outra vez a
- interinidade interrompida; o administrador regressava ao antigo cargo... Quis
- ceder-lhe a vara; o agregado tolheu-me esse ato de generosidade, e pediu ao
- sacristao que nos pusesse, a ele e a mim, com as duas varas da frente, rompendo
- a marcha do palio.
- Opas enfiadas, tochas distribufdas e acesas, padre e ciborio prontos, o sacristao de
- hissope e campainha nas maos, saiu o prestito a rua. Quando me vi com uma das
- varas, passando pelos fieis, que se ajoelhavam, fiquei comovido. Padua rofa a
- tocha amargamente. E uma metafora, nao acho outra forma mais viva de dizer a
- dor e a humilhagao do meu vizinho. De resto, nao pude mira-lo por muito tempo,
- nem ao agregado, que, paralelamente a mim, erguia a cabega com o ar de ser ele
- proprio o Deus dos exercitos. Com pouco, senti-me me cansado; os bragos cafam-
- me, felizmente a casa era perto, na Rua do Senado.
- A enferma era uma senhora viuva, tfsica, tinha uma filha de quinze ou dezesseis
- anos, que estava chorando a porta do quarto. A moga nao era formosa, talvez
- nem tivesse graga; os cabelos cafam despenteados, e as lagrimas faziam-lhe
- encarquilhar os olhos. Nao obstante, o total falava e cativava o coragao. O vigario
- confessou a doente, deu-lhe a comunhao e os santos oleos. O pranto da moga
- redobrou tanto que senti os meus olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma
- janela. Pobre criatura! A dor era comunicativa em si mesma; complicada da
- lembranga de minha mae, doeu-me mais, e, quando enfim pensei em Capitu, senti
- um frnpeto de solugar tambem, enfiei pelo corredor, e ouvi alguem dizer-me:
- — Nao chore assim!
- A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginagao, assim como Ihe atribufra
- lagrimas, ha pouco, assim Ihe encheu a boca de riso agora; vi-a escrever no muro,
- falar-me, andar a volta, com os bragos no ar; ouvi distintamente o meu nome, de
- uma dogura que me embriagou, e a voz era dela. As tochas acesas, tao lugubres
- na ocasiao, tinham-me ares de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial? Nao
- sei; era alguma coisa contraria a morte, e nao vejo outra mais que bodas. Esta
- nova sensagao me dominou tanto que Jose Dias veio a mim, e me disse ao ouvido,
- em voz baixa:
- — Nao ria assim!
- Fiquei serio depressa. Era o momento da safda. Peguei da minha vara; e, como ja
- conhecia a distancia, e agora voltavamos para a igreja, o que fazia a distancia
- menor, — o peso da vara era muito pequeno. Demais, o sol ca fora, a animagao
- da rua, os rapazes da minha idade que me fitavam cheios de inveja, as devotas
- que chegavam as janelas ou entravam nos corredores e se ajoelhavam a nossa
- passagem, tudo me enchia a alma de lepidez nova.
- Padua, ao contrario, ia mais humilhado. Apesar de substitufdo por mim, nao
- acabava de se consolar da tocha, da miseravel tocha. E contudo havia outros que
- tambem traziam tocha, e apenas mostravam a compostura do ato; nao iam
- garridos, mas tambem nao iam tristes. Via-se que caminhavam com honra.
- CAPITULO XXXI
- AS CURI OSI DADES DE CAPITU
- Capitu preferia tudo ao seminario. Em vez de ficar abatida com a ameaga da larga
- separagao, se vingasse a ideia da Europa, mostrou-se satisfeita. E quando eu Ihe
- contei o meu sonho imperial:
- — Nao, Bentinho, deixemos o Imperador sossegado, replicou; fiquemos por ora
- com a promessa de J ose Dias. Quando e que ele disse que falaria a sua mae?
- — Nao marcou dia; prometeu que ia ver, que falaria logo que pudesse, e que me
- pegasse com Deus.
- Capitu quis que Ihe repetisse as respostas todas do agregado, as alteragoes do
- gesto e ate a pirueta, que apenas Ihe contara. Pedia o som das palavras. Era
- minuciosa e atenta; a narragao e o dialogo, tudo parecia remoer consigo. Tambem
- se pode dizer que conferia, rotulava e pregava na memoria a minha exposigao.
- Esta imagem e porventura melhor que a outra, mas a otima delas e nenhuma.
- Capitu era Capitu, isto e, uma criatura muito particular, mais mulher do que eu
- era homem. Se ainda o nao disse, af fica. Se disse, fica tambem. Ha conceitos que
- se devem incutir na alma do leitor, a forga de repetigao.
- Era tambem mais curiosa. As curiosidades de Capitu dao para um capftulo. Eram
- de varia especie, explicaveis e inexplicaveis, assim uteis como inuteis, umas
- graves, outras frfvolas; gostava de saber tudo. No colegio onde, desde os sete
- anos, aprendera a ler, escrever e contar, frances, doutrina e obras de agulha, nao
- aprendeu, por exemplo, a fazer renda; por isso mesmo, quis que prima Justina Ihe
- ensinasse. Se nao estudou latim com o Padre Cabral foi porque o padre, depois de
- Ihe propor gracejando, acabou dizendo que latim nao era lingua de meninas.
- Capitu confessou-me um dia que esta razao acendeu nela o desejo de o saber. Em
- compensagao, quis aprender ingles com um velho professor amigo do pai e
- parceiro deste ao solo, mas nao foi adiante. Tio Cosme ensinou-lhe gamao.
- — Anda apanhar um capotinho, Capitu, dizia-lhe ele.
- Capitu obedecia e jogava com facilidade, com atengao, nao sei se diga com amor.
- Um dia fui acha-la desenhando a lapis um retrato; dava os ultimos rasgos, e
- pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. Era o de meu pai, copiado
- da tela que minha mae tinha na sala e que ainda agora esta comigo. Perfeigao nao
- era; ao contrario, os olhos safram esbugalhados, e os cabelos eram pequenos
- cfrculos uns sobre outros. Mas, nao tendo ela rudimento algum de arte, e havendo
- feito aquilo de memoria em poucos minutos, achei que era obra de muito
- merecimento; descontai-me a idade e a simpatia. Ainda assim, estou que
- aprenderia facilmente pintura, como aprendeu musica mais tarde. Ja entao
- namorava o piano da nossa casa, velho traste inutil, apenas de estimagao. Lia os
- nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das
- rufnas, das pessoas, das campanhas, o nome, a historia, o lugar. Jose Dias dava-
- Ihe essas notfcias com certo orgulho de erudito. A erudigao deste nao avultava
- muito mais que a sua homeopatia de Cantagalo.
- Um dia, Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas. O agregado
- disse-lho sumariamente, demorando-se um pouco mais em Cesar, com
- exclamagoes e latins:
- — Cesar! Julio Cesar! Grande homem! Tu quoque, Brute?
- Capitu nao achava bonito o perfil de Cesar, mas as agoes citadas por Jose Dias
- davam-lhe gestos de admiragao. Ficou muito tempo com a cara virada para ele.
- Um homem que podia tudo! que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora
- uma perola do valor de seis milhoes de sestercios!
- — E quanto valia cada sestercio?
- Jose Dias, nao tendo presente o valor do sestercio, respondeu entusiasmado:
- — E o maior homem da historia!
- A perola de Cesar acendia os olhos de Capitu. Foi nessa ocasiao que ela perguntou
- a minha mae por que e que ja nao usava as joias do retrato; referia-se ao que
- estava na sala, com o de meu pai; tinha um grande colar, um diadema e brincos.
- — Sao joias viuvas, como eu, Capitu.
- — Quando e que botou estas?
- — Foi pelas festas da Coroagao.
- — Oh! conte- me as festas da Coroagao!
- Sabia ja o que os pais Ihe haviam dito, mas naturalmente tinha para si que eles
- pouco mais conheceriam do que o que se passou nas ruas. Queria a notfcia das
- tribunas da Capela Imperial e dos saloes dos bailes. Nascera muito depois
- daquelas festas celebres. Ouvindo falar varias vezes da Maioridade, teimou um dia
- em saber o que fora este acontecimento; disseram-lho, e achou que o Imperador
- fizera muito bem em querer subir ao trono aos quinze anos. Tudo era materia as
- curiosidades de Capitu, mobflias antigas, alfaias velhas, costumes, notfcias de
- Itaguaf, a infancia e a mocidade de minha mae, um dito daqui, uma lembranga
- dali, um adagio dacola...
- CAPI TU LO XXXII
- OLHOS DE RESSACA
- Tudo era materia as curiosidades de Capitu. Caso houve, porem, no qual nao sei
- se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as coisas, como eu. E o que contarei no
- outro capftulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o
- agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manha. D. Fortunata, que
- estava no quintal, nem esperou que eu Ihe perguntasse pela filha.
- — Esta na sala, penteando o cabelo, disse-me; va devagarzinho para Ihe pregar
- um susto.
- Fui devagar, mas ou o pe ou o espelho traiu-me. Este pode ser que nao fosse; era
- um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano,
- moldura tosca, argolinha de latao, pendente da parede, entre as duas janelas. Se
- nao foi ele, foi o pe. Um ou outro, a verdade e que, apenas entrei na sala, pente,
- cabelos, toda ela voou pelos ares, e so Ihe ouvi esta pergunta:
- — Ha alguma coisa?
- — Nao ha nada, respondi; vim ver voce antes que o Padre Cabral chegue para a
- ligao. Como passou a noite?
- — Eu bem. Jose Dias ainda nao falou?
- — Parece que nao.
- — Mas entao quando fala?
- — Disse-me que hoje ou amanha pretende tocar no assunto; nao vai logo de
- pancada, falara assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrara em materia.
- Quer primeiro ver se mamae tern a resolugao feita...
- — Que tern, tern, interrompeu Capitu. E se nao fosse preciso alguem para veneer
- ja, e de todo, nao se Ihe falaria. Eu ja nem sei se Jose Dias podera influir tanto;
- acho que fara tudo, se sentir que voce realmente nao quer ser padre, mas podera
- alcangar?... Ele e atendido; se, porem... E um inferno isto! Voce teime com ele,
- Bentinho.
- — Teimo; hoje mesmo ele ha de falar.
- — Voce jura?
- — J uro! Deixe ver os olhos, Capitu.
- Tinha-me lembrado a definigao que Jose Dias dera deles, "olhos de cigana oblfqua
- e dissimulada." Eu nao sabia o que era oblfqua, mas dissimulada sabia, e queria
- ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. So me
- perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinario; a cor e a
- dogura eram minhas conhecidas. A demora da contemplagao creio que Ihe deu
- outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mira-los mais de
- perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que
- entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressao que...
- Retorica dos namorados, da-me uma comparagao exata e poetica para dizer o que
- foram aqueles olhos de Capitu. Nao me acode imagem capaz de dizer, sem quebra
- da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Va, de
- ressaca. E o que me da ideia daquela feigao nova. Traziam nao sei que fluido
- misterioso e energico, uma forga que arrastava para dentro, como a vaga que se
- retira da praia, nos dias de ressaca. Para nao ser arrastado, agarrei-me as outras
- partes vizinhas, as orelhas, aos bragos, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas
- tao depressa buscava as pupilas, a onda que safa delas vinha crescendo, cava e
- escura, ameagando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos
- gastamos naquele jogo? So os relogios do Ceu terao marcado esse tempo infinito
- e breve. A eternidade tern as suas pendulas; nem por nao acabar nunca deixa de
- querer saber a duragao das felicidades e dos suplfcios. Ha de dobrar o gozo aos
- bem-aventurados do Ceu conhecer a soma dos tormentos que ja terao padecido
- no inferno os seus inimigos; assim tambem a quantidade das delfcias que terao
- gozado no Ceu os seus desafetos aumentara as dores aos condenados do inferno.
- Este outro suplfcio escapou ao divino Dante; mas eu nao estou aqui para emendar
- poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo nao marcado, agarrei-me
- definitivamente aos cabelos de Capitu, mas entao com as maos, e disse-lhe, —
- para dizer alguma coisa, — que era capaz de os pentear, se quisesse.
- — Voce?
- — Eu mesmo.
- — Vai embaragar-me o cabelo todo, isso sim.
- — Se embaragar, voce desembaraga depois.
- — Vamos ver.
- CAPITULO XXXIII
- O PENTEADO
- Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos cabelos,
- colhi-os todos e entrei a alisa-los com o pente, desde a testa ate as ultimas
- pontas, que Ihe desciam a cintura. Em pe nao dava jeito: nao esquecestes que ela
- era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe
- que se sentasse.
- — Senta aqui, e melhor.
- Sentou-se. "Vamos ver o grande cabeleireiro", disse-me rindo. Continuei a alisar
- os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porgoes iguais, para compor
- as duas trangas. Nao as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os
- cabeleireiros de offcio, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles
- fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, as vezes por
- desazo, outras de proposito para desfazer o feito e refaze-lo. Os dedos rogavam
- na nuca da pequena ou nas espaduas vestidas de chita, e a sensagao era um
- deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse
- interminaveis. Nao pedi ao Ceu que eles fossem tao longos como os da Aurora,
- porque nao conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram
- depois; mas, desejei pentea-los por todos os seculos dos seculos, tecer duas
- trangas que pudessem envolver o infinito por um numero inominavel de vezes. Se
- isto vos parecer enfatico, desgragado leitor, e que nunca penteastes uma
- pequena, nunca pusestes as maos adolescentes na jovem cabega de uma ninfa...
- Uma ninfa! Todo eu estou mitologico. Ainda ha pouco, falando dos seus olhos de
- ressaca, cheguei a escrever Tetis; risquei Tetis, risquemos ninfa; digamos
- somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potencias cristas e
- pagas. Enfim, acabei as duas trangas. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas?
- Em cima da mesa, um triste pedago de fita enxovalhada. Juntei as pontas das
- trangas, uni-as por um lago, retoquei a obra alargando aqui, achatando ali, ate
- que exclamei:
- — Pronto!
- — Estara bom?
- — Veja no espelho.
- Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Nao vos esquegais que
- estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabega, a tal ponto que me
- foi preciso acudir com as maos e ampara-la; o espaldar da cadeira era baixo.
- Inclinei-me depois sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na
- linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabega, podia ficar tonta,
- machucar o pescogo. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razao a
- moveu.
- — Levanta, Capitu!
- Nao quis, nao levantou a cabega, e ficamos assim a olhar um para o outro, ate
- que ela abrochou os labios, eu desci os meus, e...
- Grande foi a sensagao do beijo; Capitu ergueu-se, rapida, eu recuei ate a parede
- com uma especie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me
- clarearam, vi que Capitu tinha os seus no chao. Nao me atrevi a dizer nada; ainda
- que quisesse, faltava-me lingua. Preso, atordoado, nao achava gesto nem frnpeto
- que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras calidas e
- mimosas... Nao mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des
- Grieux (e mais era Des Grieux) nao pensava ainda na diferenga dos sexos.
- CAPI TULO XXXIV
- SOU HOMEM!
- Ouvimos passos no corredor; era D. Fortunata. Capitu compos-se depressa, tao
- depressa que, quando a mae apontou a porta, ela abanava a cabega e ria.
- Nenhum laivo amarelo, nenhuma contragao de acanhamento, um riso espontaneo
- e claro, que ela explicou por estas palavras alegres:
- — Mamae, olhe como este senhor cabeleireiro me penteou; pediu-me para acabar
- o penteado, e fez isto. Veja que trangas!
- — Que tern? acudiu a mae, transbordando de benevolencia . Esta muito bem,
- ninguem dira que e de pessoa que nao sabe pentear.
- — O que, mamae? Isto? redarguiu Capitu, desfazendo as trangas. Ora, mamae!
- E com um enfadamento gracioso e voluntario que as vezes tinha, pegou do pente
- e alisou os cabelos para renovar o penteado. D. Fortunata chamou-lhe tonta, e
- disse-me que nao fizesse caso, nao era nada, maluquices da filha. Olhava com
- ternura para mim e para ela. Depois, parece-me que desconfiou. Vendo-me
- calado, enfiado, cosido a parede, achou talvez que houvera entre nos algo mais
- que penteado, e sorriu por dissimulagao. . .
- Como eu quisesse falar tambem para disfargar o meu estado, chamei algumas
- palavras ca de dentro, e elas acudiram de pronto, mas de atropelo, e encheram-
- me a boca sem poder sair nenhuma. O beijo de Capitu fechava-me os labios. Uma
- exclamagao, um simples artigo, por mais que investissem com forga, nao
- logravam romper de dentro. E todas as palavras recolheram-se ao coragao,
- murmurando: "Eis aqui um que nao fara grande carreira no mundo, por menos
- que as emogoes o dominem..."
- Assim, apanhados pela mae, eramos dois e contrarios, ela encobrindo com a
- palavra o que eu publicava pelo silencio. D. Fortunata tirou-me daquela hesitagao,
- dizendo que minha mae me mandara chamar para a ligao de latim; o Padre Cabral
- estava a minha espera. Era uma safda; despedi-me e enfiei pelo corredor.
- Andando, ouvi que a mae censurava as maneira da filha, mas a filha nao dizia
- nada.
- Corri ao meu quarto, peguei dos livros, mas nao passei a sala da ligao; sentei-me
- na cama, recordando o penteado e o resto. Tinha estremegoes, tinha uns
- esquecimentos em que perdia a consciencia de mim e das coisas que me
- rodeavam, para viver nao sei onde nem como. E tornava a mim, e via a cama, as
- paredes, os livros, o chao, ouvia algum som de fora, vago, proximo ou remoto, e
- logo perdia tudo para sentir somente os beigos de Capitu... Sentia-os estirados,
- embaixo dos meus, igualmente esticados para os dela, e unindo-se uns aos
- outros. De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de
- orgulho:
- — Sou homem!
- Supus que me tivessem ouvido, porque a palavra saiu em voz alta, e corri a porta
- da alcova. Nao havia ninguem fora. Voltei para dentro e, baixinho, repeti que era
- homem. Ainda agora tenho o eco aos meus ouvidos. O gosto que isto me deu foi
- enorme. Colombo nao o teve maior, descobrindo a America, e perdoai a
- banalidade em favor do cabimento; com efeito, ha em cada adolescente um
- mundo encoberto, um almirante e um Sol de outubro. Fiz outros achados mais
- tarde; nenhum me deslumbrou tanto. A denuncia de Jose Dias alvorogara-me, a
- ligao do velho coqueiro tambem, a vista dos nossos nomes abertos por ela no
- muro do quintal deu-me grande abalo, como vistes; nada disso valeu a sensagao
- do beijo. Podiam ser mentira ou ilusao. Sendo verdade, eram os ossos da verdade,
- nao eram a carne e o sangue dela. As proprias maos, tocadas, apertadas, como
- que fundidas, nao podiam dizer tudo.
- — Sou homem!
- Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminario, mas como se pensa em
- perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos os meus nervos
- me disseram que homens nao sao padres. O sangue era da mesma opiniao. Outra
- vez senti os beigos de Capitu. Talvez abuso um pouco das reminiscencias
- osculares; mas a saudade e isto mesmo; e o passar e repassar das memorias
- antigas. Ora, de todas as daquele tempo creio que a mais doce e esta, a mais
- nova, a mais compreensiva, a que inteiramente me revelou a mim mesmo. Outras
- tenho, vastas e numerosas, doces tambem, de varia especie, muitas intelectuais,
- igualmente intensas. Grande homem que fosse, a recordagao era menor que esta.
- CAP ITU LO XXXV
- O PROTONOTARI O APOSTOLI CO
- Enfim, peguei dos livros e corri a ligao. Nao corri precisamente; a meio caminho
- parei, advertindo que devia ser muito tarde, e podiam ler-me no semblante
- alguma coisa. Tive ideia de mentir, alegar uma vertigem que me houvesse deitado
- ao chao; mas o susto que causaria a minha mae fez-me rejeita-la. Pensei em
- prometer algumas dezenas de padre-nossos; tinha, porem, outra promessa em
- aberto e outro favor pendente... Nao, vamos ver; fui andando, ouvi vozes alegres,
- conversavam ruidosamente. Quando entrei na sala, ninguem ralhou comigo.
- O Padre Cabral recebera na vespera um recado do internuncio; foi ter com ele, e
- soube que, por decreto pontiffcio, acabava de ser nomeado protonotario
- apostolico. Esta distingao do papa dera-lhe grande contentamento e a todos os
- nossos. Tio Cosme e prima Justina repetiam o tftulo com admiragao; era a
- primeira vez que ele soava aos nossos ouvidos, acostumados a conegos,
- monsenhores, bispos, nuncios, e internuncios; mas que era protonotario
- apostolico? O Padre Cabral explicou que nao era propriamente o cargo da curia,
- mas as honras dele. Tio Cosme viu exalgar-se no parceiro de voltarete, e repetia:
- — Protonotario apostolico!
- E voltando-se para mim:
- — Prepara-te, Bentinho; tu podes vir a ser protonotario apostolico.
- Cabral ouvia com gosto a repetigao do tftulo. Estava em pe, dava alguns passos,
- sorria ou tamborilava na tampa da boceta. O tamanho do tftulo como que Ihe
- dobrava a magnificencia, posto que, para liga-lo ao nome, era demasiado
- comprido; esta segunda reflexao foi tio Cosme que a fez. Padre Cabral acudiu que
- nao era preciso dize-lo todo, bastava que Ihe chamassem o protonotario Cabral.
- Subentendia-se apostolico.
- — Protonotario Cabral.
- — Sim, tem razao; protonotario Cabral.
- — Mas, Sr. protonotario, — acudiu prima Justina para se ir acostumando ao uso do
- tftulo, — isto o obriga a ir a Roma?
- — Nao, D. J ustina.
- — Nao, sao so as honras, observou minha mae.
- — Agora, nao impede — disse Cabral, que continuava a refletir, — nao impede que
- nos casos de maior formalidade, atos publicos, cartas de cerimonia, etc; se
- empregue o tftulo inteiro: protonotario apostolico. No uso comum, basta
- protonotario.
- — Justamente, assentiram todos.
- Jose Dias, que entrou pouco depois de mim, aplaudia a distingao, e recordou, a
- proposito, os primeiros atos politicos de Pio IX, grandes esperangas da Italia; mas
- ninguem pegou do assunto; o principal da hora e do lugar era o meu velho mestre
- de latim. Eu, voltando a mim do receio, entendi que devia cumprimenta-lo
- tambem, e este aplauso nao Ihe foi menos ao coragao que os outros. Bateu-me na
- bochecha paternalmente, e acabou dando-me ferias. Era muita felicidade para
- uma so hora. Um beijo e ferias! Creio que o meu rosto disse isto mesmo, porque
- tio Cosme, sacudindo a barriga, chamou-me peralta; mas Jose Dias corrigiu a
- alegria:
- — Nao tem que festejar a vadiagao; o latim sempre Ihe ha de ser preciso, ainda
- que nao venha a ser padre.
- Conheci aqui o meu homem. Era a primeira palavra, a semente langada a terra,
- assim de passagem, como para acostumar os ouvidos da famflia. Minha mae sorriu
- para mim, cheia de amor e de tristeza, mas respondeu logo:
- — Ha de ser padre, e padre bonito.
- — Nao se esquega, mana Gloria, e protonotario tambem. Protonotario apostolico.
- — O protonotario Santiago, acentuou Cabral.
- Se a intengao do meu mestre de latim era ir acostumando ao uso do tftulo com o
- nome, nao sei bem; o que sei e que quando ouvi o meu nome ligado a tal tftulo,
- deu-me vontade de dizer um desaforo. Mas a vontade aqui foi antes uma ideia,
- uma ideia sem lingua, que se deixou ficar quieta e muda, tal como daf a pouco
- outras ideias... Mas essas pedem um capftulo especial. Rematemos este dizendo
- que o mestre de latim falou algum tempo da minha ordenagao eclesiastica, ainda
- que sem grande interesse. Ele buscava um assunto alheio para se mostrar
- esquecido da propria gloria, mas era esta que o deslumbrava na ocasiao. Era um
- velho magro, sereno, dotado de qualidades boas. Alguns defeitos tinha; o mais
- excelso deles era ser guloso, nao propriamente glutao; comia pouco, mas
- estimava o fino e o raro, e a nossa cozinha, se era simples, era menos pobre que
- a dele. Assim, quando minha mae Ihe disse que viesse jantar, a fim de se Ihe fazer
- uma saude, os olhos com que aceitou seriam de protonotario, mas nao eram
- apostolicos. E para agradar a minha mae, novamente pegou em mim,
- descrevendo o meu futuro eclesiastico, e queria saber se ia para o seminario
- agora, no ano proximo, e oferecia-se a falar ao "senhor bispo", tudo marchetado
- do "protonotario Santiago."
- CAPITULO XXXVI
- I DEI A SEM PERNAS E I DEI A SEM BRACOS
- Deixei-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na aventura da
- manha. Era o que melhor podia fazer, sem latim, e ate com latim. Ao cabo de
- cinco minutos, lembrou-me ir correndo a casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe
- as trangas, refaze-las e concluf-las daquela maneira particular, boca sobre boca. E
- isto, vamos, e isto... Ideia so! ideia sem pernas! As outras pernas nao queriam
- correr nem andar. Muito depois e que safram vagarosamente e levaram-me a casa
- de Capitu. Quando ali cheguei, dei com ela na sala, na mesma sala, sentada na
- marquesa, almofada no regago, cosendo em paz. Nao me olhou de rosto, mas a
- furto e a medo, ou, se preferes a fraseologia do agregado, oblfqua e dissimulada.
- As maos pararam, depois de encravada a agulha no pano. Eu, do lado oposto da
- mesa, nao sabia que fizesse; e outra vez me fugiram as palavras que trazia. Assim
- gastamos alguns minutos compridos, ate que ela deixou inteiramente a costura,
- ergueu-se e esperou-me. Fui ter com ela, e perguntei se a mae havia dito alguma
- coisa; respondeu-me que nao. A boca com que respondeu era tal que cuido haver-
- me provocado um gesto de aproximagao. Certo e que Capitu recuou um pouco.
- Era ocasiao de pega-la, puxa-la, beija-la... Ideia so! ideia sem bragos! Os meus
- ficaram cafdos e mortos. Nao conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, e
- provavel que o espfrito de Satanas me fizesse dar a lingua mfstica do Cantico um
- sentido direto e natural. Entao obedeceria ao primeiro versfculo: "Aplique ele os
- labios, dando-me o osculo da sua boca". E pelo que respeita aos bragos, que tinha
- inertes, bastaria cumprir o vers. 6.° do cap. II: "A sua mao esquerda se pos ja
- debaixo da minha cabega, e a sua mao direita me abragara depois". Vedes af a
- cronologia dos gestos. Era so executa-la; mas ainda que eu conhecesse o texto, as
- atitudes de Capitu eram agora tao retrafdas, que nao sei se nao continuaria
- parado. Foi ela, entretanto, que me tirou daquela situagao.
- CAPITULO XXXVII
- A ALMA E CHEIA DE Ml STERI OS
- — Padre Cabral estava esperando ha muito tempo?
- — Floje nao dei ligao; tive ferias.
- Expliquei-lhe o motivo das ferias. Contei-lhe tambem que o Padre Cabral falara da
- minha entrada no seminario, apoiando a resolugao de minha mae, e disse dele
- coisas feias e duras. Capitu refletiu algum tempo, e acabou perguntando-me se
- podia ir cumprimentar o padre, a tarde, em minha casa.
- — Pode, mas para que?
- — Papai naturalmente ha de querer ir tambem, mas e melhor que ele va a casa do
- padre, e mais bonito. Eu nao, que ja sou meia moga, concluiu rindo.
- O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troga consigo mesma, uma vez
- que, desde manha, era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graga e, para dizer
- tudo, quis provar-lhe que era moga inteira. Peguei-lhe levemente na mao direita,
- depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e tremulo. Era a ideia com maos.
- Quis puxar as de Capitu, para obriga-la a vir atras delas, mas ainda agora a agao
- nao respondeu a intengao. Contudo, achei-me forte e atrevido. Nao imitava
- ninguem; nao vivia com rapazes, que me ensinassem anedotas de amor. Nao
- conhecia a violagao de Lucrecia. Dos romanos apenas sabia que falavam pela
- artinha do Padre Pereira e eram patrfcios de Poncio Pilatos. Nao nego que o final
- do penteado da manha era um grande passo no caminho da movimentagao
- amorosa, mas o gesto de entao foi justamente o contrario deste. De manha, ela
- derreou a cabega, agora fugia-me; nem e so nisso que os lances diferiam; em
- outro ponto, parecendo haver repetigao, houve contraste.
- Penso que ameacei puxa-la a mim. Nao juro, comegava a estar tao alvorogado,
- que nao pude ter toda a consciencia dos meus atos; mas concluo que sim, porque
- ela recuou e quis tirar as maos das minhas; depois, talvez por nao poder recuar
- mais, colocou um dos pes adiante e o outro atras, e fugiu com o busto. Foi este
- gesto que me obrigou a reter-lhe as maos com forga. O busto afinal cansou e
- cedeu, mas a cabega nao quis ceder tambem, e cafda para tras, inutilizava todos
- os meus esforgos, porque eu ja fazia esforgos, leitor amigo. Nao conhecendo a
- ligao do Cantico, nao me acudiu estender a mao esquerda por baixo da cabega
- dela; demais, este gesto supoe um acordo de vontades, e Capitu, que me resistia
- agora, aproveitaria o gesto para arrancar-se a outra mao e fugir-me inteiramente.
- Ficamos naquela luta, sem estrepito, porque apesar do ataque e da defesa, nao
- perdfamos a cautela necessaria para nao sermos ouvidos la de dentro; a alma e
- cheia de misterios. Agora sei que a puxava; a cabega continuou a recuar; ate que
- cansou; mas entao foi a vez da boca. A boca de Capitu iniciou um movimento
- inverso, relativamente a minha, indo para um lado, quando eu a buscava do outro
- oposto. Naquele desencontro estivemos, sem que ousasse um pouco mais, e
- bastaria um pouco mais...
- Nisto ouvimos bater a porta e falar no corredor. Era o pai de Capitu, que voltava
- da repartigao um pouco mais cedo, como usava as vezes. "Abre, Nanata! Capitu,
- abre!" Aparentemente era o mesmo lance da manha, quando a mae deu conosco,
- mas so aparentemente; verdade, era outro. Considerai que de manha tudo estava
- acabado, e o passo de D. Fortunata foi um aviso para que nos compusessemos.
- Agora lutavamos com as maos presas, e nada estava sequer comegado.
- Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno; era a mae que
- abria. Eu, uma vez que confesso tudo, digo aqui que nao tive tempo de soltar as
- maos da minha amiga; pensei nisso, cheguei a tenta-lo, mas Capitu, antes que o
- pai acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e
- deu de vontade o que estava a recusar a forga. Repito, a alma e cheia de
- misterios.
- CAPI TU LO XXXVIII
- QUE SUSTO, MEU DEUS!
- Quando Padua, vindo pelo interior, entrou na sala de visitas, Capitu, em pe, de
- costas para mim, inclinada sobre a costura, como a recolhe-la, perguntava em voz
- alta:
- — Mas, Bentinho, que e protonotario apostolico?
- — Ora, vivam! exclamou o pai.
- — Que susto, meu Deus!
- Agora e que o lance e o mesmo; mas se conto aqui, tais quais, ou dois lances de
- ha quarenta anos, e para mostrar que Capitu nao se dominava so em presenga da
- mae; o pai nao Ihe meteu mais medo. No meio de uma situagao que me atava a
- lingua, usava da palavra com a maior ingenuidade deste mundo. A minha
- persuasao e que o coragao nao Ihe batia mais nem menos. Alegou susto, e deu a
- cara um ar meio enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e fiquei com
- inveja. Foi logo falar ao pai, que apertou a minha mao, e quis saber por que a filha
- falava em protonotario apostolico. Capitu repetiu-lhe o que ouvira de mim, e
- opinou logo que o pai devia ir cumprimentar o padre em casa dele; ela iria a
- minha. E coligindo os petrechos da costura, enfiou pelo corredor, bradando
- infantilmente:
- — Mamae, jantar, papai chegou!
- CAPI TULO XXXIX
- A VOCAGAO
- Padre Cabral estava naquela primeira hora das honras em que as mfnimas
- congratulagoes valem por odes. Tempo chega em que os dignificados recebem os
- louvores como um tributo usual, cara morta, sem agradecimentos. O alvorogo da
- primeira hora e melhor; esse estado de alma que ve na inclinagao do arbusto,
- tocado do vento, um parabem da flora universal, traz sensagoes mais intimas e
- finas que qualquer outro. Cabral ouviu as palavras de Capitu com infinito prazer.
- — Obrigado, Capitu, muito obrigado; estimo que voce goste tambem. Papai esta
- bom? E mamae? A voce nao se pergunta; essa cara e mesmo de quern vende
- saude. E como vamos de rezas?
- A todas as perguntas, Capitu ia respondendo prontamente e bem. Trazia um
- vestidinho melhor e os sapatos de sair. Nao entrou com a familiaridade do
- costume, deteve-se um instante a porta da sala, antes de ir beijar a mao a minha
- mae e ao padre. Como desse a este, duas vezes em cinco minutos, o tftulo de
- protonotario, Jose Dias, para se desforrar da concorrencia, fez um pequeno
- discurso em honra "ao coragao paternal e augustfssimo de Pio IX."
- — Voce e um grande prosa, disse tio Cosme, quando ele acabou.
- Jose Dias sorriu sem vexame. Padre Cabral confirmou os louvores do agregado,
- sem os seus superlativos; ao que este acrescentou que o Cardeal Mastai
- evidentemente fora talhado para a tiara desde o princfpio dos tempos. E,
- piscando-me o olho, concluiu:
- — A vocagao e tudo. O estado eclesiastico e perfeitfssimo, contanto que o
- sacerdote venha ja destinado do bergo. Nao havendo vocagao, falo de vocagao
- sincera e real, um jovem pode muito bem estudar as letras humanas, que tambem
- sao uteis e honradas.
- Padre Cabral retorquia:
- — A vocagao e muito, mas o poder de Deus e soberano. Um homem pode nao ter
- gosto a igreja e ate persegui-la, e um dia a voz de Deus Ihe fala, e ele sai
- apostolo; veja Sao Paulo.
- — Nao contesto, mas o que eu digo e outra coisa. O que eu digo e que se pode
- muito bem servir a Deus sem ser padre, ca fora; pode-se ou nao se pode?
- — Pode-se.
- — Pois entao! exclamou Jose Dias triunfalmente, olhando em volta de si. Sem
- vocagao e que nao ha bom padre, e em qualquer profissao liberal se serve a Deus,
- como todos devemos.
- — Perfeitamente, mas vocagao nao e so do bergo que se traz.
- — Homem, e a melhor.
- — Um mogo sem gosto nenhum a vida eclesiastica pode acabar por ser muito bom
- padre; tudo e que Deus o determine. Nao me quero dar por modelo, mas aqui
- estou eu que nasci com a vocagao da Medicina; meu padrinho, que era coadjutor
- de Santa Rita, teimou com meu pai para que me metesse no seminario; meu pai
- cedeu. Pois, senhor, tomei tal gosto aos estudos e a companhia dos padres, que
- acabei ordenando-me. Mas, suponha que nao acontecia assim, e que eu nao
- mudava de vocagao, o que e que acontecia? Tinha estudado no seminario algumas
- materias que e bom saber, e sao sempre melhor ensinadas naquelas casas.
- Primajustina interveio:
- — Como? Entao pode-se entrar para o seminario e nao sair padre?
- Padre Cabral respondeu que sim, que se podia, e, voltando-se para mim, falou da
- minha vocagao, que era manifesta; os meus brinquedos foram sempre de igreja, e
- eu adorava os offcios divinos. A prova nao provava; todas as criangas do meu
- tempo eram devotas. Cabral acrescentou que o reitor de Sao Jose, a quern contara
- ultimamente a promessa de minha mae, tinha o meu nascimento por milagre; ele
- era da mesma opiniao. Capitu, cosida as saias de minha mae, nao atendia aos
- olhos ansiosos que eu Ihe mandava; tambem nao parecia escutar a conversagao
- sobre o seminario e suas consequencias, e, alias, decorou o principal, como vim a
- saber depois. Duas vezes fui a janela, esperando que ela fosse tambem, e
- ficassemos a vontade, sozinhos, ate acabar o mundo, se acabasse, mas Capitu
- nao me apareceu. Nao deixou minha mae, senao para ir embora. Eram ave-
- marias, despediu-se.
- — Vai com ela, Bentinho, disse minha mae.
- — Nao precisa, nao, D. Gloria, acudiu ela rindo, eu sei o caminho. Adeus, Sr.
- protonotario...
- — Adeus, Capitu.
- Tendo dado um passo no sentido de atravessar a sala, e claro que o meu dever, o
- meu gosto, todos os impulsos da idade e da ocasiao eram atravessa-la de todo,
- seguir a vizinha corredor fora, descer a chacara, entrar no quintal, dar-lhe terceiro
- beijo, e despedir-me. Nao me importou a recusa, que cuidei simulada, e enfiei
- pelo corredor; mas, Capitu que ia depressa, estacou e fez-me sinal que voltasse.
- Nao obedeci; cheguei-me a ela.
- — Nao venha, nao; amanha falaremos.
- — Mas eu queria dizer a voce...
- — Amanha.
- — Escuta!
- — Fica!
- Falava baixinho; pegou-me na mao, e pos o dedo na boca. Uma preta, que veio de
- dentro acender o lampiao do corredor, vendo-nos naquela atitude quase as
- escuras, riu de simpatia e murmurou, em tom que ouvfssemos, alguma coisa que
- nao entendi bem nem mal. Capitu segredou-me que a escrava desconfiara, e ia
- talvez contar as outras. Novamente me intimou que ficasse, e retirou-se; eu
- deixei-me estar parado, pregado, agarrado ao chao.
- CAPI TU LO XL
- UMA EGUA
- Ficando so, refleti algum tempo, e tive uma fantasia. Ja conheceis as minhas
- fantasias. Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a desta casa do Engenho
- Novo, reproduzindo a de Mata-cavalos... A imaginagao foi a companheira de toda
- a minha existencia, viva, rapida, inquieta, alguma vez tfmida e amiga de empacar,
- as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. Creio haver
- lido em Tacito que as eguas iberas concebiam pelo vento; se nao foi nele, foi
- noutro autor antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste
- particular, a minha imaginagao era uma grande egua ibera; a menor brisa Ihe
- dava um potro, que safa logo cavalo de Alexandre; mas deixemos de metaforas
- atrevidas e improprias dos meus quinze anos. Digamos o caso simplesmente. A
- fantasia daquela hora foi confessar a minha mae os meus amores para Ihe dizer
- que nao tinha vocagao eclesiastica. A conversa sobre vocagao tornava-me agora
- toda inteira, e, ao passo que me assustava, abria-me uma porta de safda. "Sim, e
- isto, pensei; vou dizer a mamae que nao tenho vocagao, e confesso o nosso
- namoro; se ela duvidar, conto-lhe o que se passou outro dia, o penteado e o
- resto..."
- CAPI TULO XLI
- A AUDI ENCI A SECRETA
- O resto fez- me ficar mais algum tempo, no corredor, pensando. Vi entrar o Doutor
- Joao da Costa, e preparou-se logo o voltarete do costume. Minha mae saiu da
- sala, e, dando comigo, perguntou se acompanhara Capitu.
- — Nao, senhora, ela foi so.
- E quase investindo para ela:
- — Mamae, eu queria dizer-lhe uma coisa.
- — Que e?
- Toda assustada, quis saber o que e que me dofa, se a cabega, se o peito, se o
- estomago, e apalpava-me a testa para ver se tinha febre.
- — Nao tenho nada, nao, senhora.
- — Mas entao que e?
- — E uma coisa, mamae... Mas, escute, olhe, e melhor depois do cha; logo... Nao e
- nada mau; mamae assusta-se por tudo; nao e coisa de cuidado.
- — Nao e molestia?
- — Nao, senhora.
- — E, isso e volta de constipagao. Disfargas para nao tomar suadouro, mas tu estas
- constipado; conhece-se pela voz.
- Tentei rir, para mostrar que nao tinha nada. Nem por isso permitiu adiar a
- confidence, pegou em mim, levou-me ao quarto dela, acendeu vela, e ordenou-
- me que Ihe dissesse tudo. Entao eu perguntei-lhe, para principiar, quando e que ia
- para o seminario.
- — Agora so para o ano, depois das ferias.
- — Vou... para ficar?
- — Como ficar?
- — Nao volto para casa?
- — Voltas aos sabados e pelas ferias; e melhor. Quando te ordenares padre, vens
- morar comigo.
- Enxuguei os olhos e o nariz. Ela afagou-me, depois quis repreender-me, mas creio
- que a voz Ihe tremia, e pareceu-me que tinha os olhos umidos. Disse-lhe que
- tambem sentia a nossa separagao. Negou que fosse separagao; era so alguma
- ausencia, por causa dos estudos; so os primeiros dias. Em pouco tempo eu me
- acostumaria aos companheiros e aos mestres, e acabaria gostando de viver com
- eles.
- — Eu so gosto de mamae.
- Nao houve calculo nesta palavra, mas estimei dize-la, por fazer crer que ela era a
- minha unica afeigao; desviava as suspeitas de cima de Capitu. Quantas intengoes
- viciosas ha assim que embarcam, a meio caminho, numa frase inocente e pura!
- Chega a fazer suspeitar que a mentira e, muita vez, tao involuntaria como a
- transpiragao. Por outro lado, leitor amigo, nota que eu queria desviar as suspeitas
- de cima de Capitu, quando havia chamado minha mae justamente para confirma-
- las; mas as contradigoes sao deste mundo. A verdade e que minha mae era
- Candida como a primeira aurora, anterior ao primeiro pecado; nem por simples
- intuigao era capaz de deduzir uma coisa de outra, isto e, nao concluiria da minha
- repentina oposigao que eu andasse em segredinhos com Capitu, como Ihe dissera
- Jose Dias. Calou-se durante alguns instantes; depois replicou-me sem imposigao
- nem autoridade, o que me veio animando a resistencia. Daf o falar-lhe na vocagao
- que se discutira naquela tarde, e que eu confessei nao sentir em mim.
- — Mas tu gostavas tanto de ser padre, disse ela; nao te lembras que ate pedias
- para ir ver sair os seminaristas de Sao Jose, com as suas batinas? Em casa,
- quando Jose Dias te chamava Reverendfssimo, tu rias com tanto gosto! Como e
- que agora?... Nao creio, nao, Bentinho. E depois... Vocagao? Mas a vocagao vem
- com o costume, continuou repetindo as reflexoes que ouvira ao meu professor de
- latim.
- Como eu buscasse contesta-la, repreendeu-me sem aspereza, mas com alguma
- forga, e eu tornei ao filho submisso que era. Depois, ainda falou gravemente e
- longamente sobre a promessa que fizera; nao me disse as circunstancias, nem a
- ocasiao, nem os motivos dela, coisas que so vim a saber mais tarde. Afirmou o
- principal, isto e, que a havia de cumprir, em pagamento a Deus.
- — Nosso Senhor me acudiu, salvando a tua existencia, nao Ihe hei de mentir nem
- faltar, Bentinho; sao coisas que nao se fazem sem pecado, e Deus que e grande e
- poderoso, nao me deixaria assim, nao, Bentinho; eu sei que seria castigada e bem
- castigada. Ser padre e bom e santo; voce conhece muitos, como o Padre Cabral,
- que vive tao feliz com a irma; um tio meu tambem foi padre, e escapou de ser
- bispo, dizem... Deixa de manha, Bentinho.
- Creio que os olhos que Ihe deitei foram tao queixosos, que ela emendou logo a
- palavra; manha, nao, nao podia ser manha, sabia muito bem que eu era amigo
- dela, e nao seria capaz de fingir um sentimento que nao tivesse. Moleza e o que
- queria dizer, que me deixasse de moleza, que me fizesse homem e obedecesse ao
- que cumpria, em beneffcio dela e para bem da minha alma. Todas essas coisas e
- outras foram ditas um pouco atropeladamente, e a voz nao Ihe safa clara, mas
- velada e esganada. Vi que a emogao dela era outra vez grande, mas nao recuava
- dos seus propositos, e aventurei-me a perguntar-lhe:
- — E se mamae pedisse a Deus que a dispensasse da promessa?
- — Nao, nao pego. Estas tonto, Bentinho? E como havia de saber que Deus me
- dispensava?
- — Talvez em sonho; eu sonho as vezes com anjos e santos.
- — Tambem eu, meu filho; mas e inutil... Vamos, e tarde; vamos para a sala. Esta
- entendido: no primeiro ou no segundo mes do ano que vem, iras para o seminario.
- O que eu quero e que saibas bem os livros que estas estudando; e bonito, nao so
- para ti, como para o Padre Cabral. No seminario ha interesse em conhecer-te,
- porque o Padre Cabral fala de ti com entusiasmo.
- Caminhou para a porta, safmos ambos. Antes de sair, voltou-se para mim, e quase
- a vi saltar-me ao colo e dizer-me que nao seria padre. Este era ja o seu desejo
- fntimo, a proporgao que se aproximava o tempo. Quisera um modo de pagar a
- dfvida contrafda, outra moeda, que valesse tanto ou mais, e nao achava nenhuma.
- CAPI TULO XLI I
- CAPITU REFLETINDO
- No dia seguinte fui a casa vizinha, logo que pude. Capitu despedia-se de duas
- amigas que tinham ido visita-la, Paula e Sancha, companheiras de colegio, aquela
- de quinze, esta de dezessete anos, a primeira filha de um medico, a segunda de
- um comerciante de objetos americanos. Estava abatida, trazia um lengo atado na
- cabega; a mae contou-me que fora excesso de leitura na vespera, antes e depois
- do cha, na sala e na cama, ate muito depois da meia-noite, e com lamparina...
- — Se eu acendesse vela, mamae zangava-se. Ja estou boa.
- E como desatasse o lengo, a mae disse-lhe timidamente que era melhor ata-lo,
- mas Capitu respondeu que nao era preciso, estava boa.
- Ficamos sos na sala; Capitu confirmou a narragao da mae, acrescentando que
- passara mal por causa do que ouvira em minha casa. Tambem eu Ihe contei o que
- se dera comigo, a entrevista com minha mae, as minhas suplicas, as lagrimas
- dela, e por fim as ultimas respostas decisivas; dentro de dois ou tres meses iria
- para o seminario. Que farfamos agora? Capitu ouvia-me com atengao sofrega,
- depois sombria; quando acabei, respirava a custo, como prestes a estalar de
- colera, mas conteve-se.
- Ha tanto tempo que isto sucedeu que nao posso dizer com seguranga se chorou
- deveras, ou se somente enxugou os olhos; cuido que os enxugou somente. Vendo-
- Ihe o gesto, peguei-lhe na mao para anima-la, mas tambem eu precisava ser
- animado. Cafmos no canape, e ficamos a olhar para o ar. Minto; ela olhava para o
- chao. Fiz o mesmo, logo que a vi assim... Mas eu creio que Capitu olhava para
- dentro de si mesma, enquanto que eu fitava deveras o chao, o rofdo das fendas,
- duas moscas andando e um pe de cadeira lascada. Era pouco, mas distrafa-me da
- afligao. Quando tornei a olhar para Capitu, vi que nao se mexia, e fiquei com tal
- medo que a sacudi brandamente. Capitu tornou ca fora e pediu-me que outra vez
- Ihe contasse o que se passara com minha mae. Satisfi-la, atenuando o texto desta
- vez, para nao amofina-la. Nao me chames dissimulado, chama-me compassivo; e
- certo que receava perder Capitu, se Ihe morressem as esperangas todas, mas
- dofa-me ve-la padecer. Agora, a verdade ultima, a verdade das verdades, e que ja
- me arrependia de haver falado a minha mae, antes de qualquer trabalho efetivo
- por parte de Jose Dias; examinando bem, nao quisera ter ouvido um desengano
- que eu reputava certo, ainda que demorado. Capitu refletia, refletia, refletia...
- CAPI TULO XLIII
- VOCE TEM MEDO?
- De repente, cessando a reflexao, fitou em mim os olhos de ressaca, e perguntou-
- me se tinha medo.
- — Medo?
- — Sim, pergunto se voce tem medo.
- — Medo de que?
- — Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de trabalhar...
- Nao entendi. Se ela tem dito simplesmente: "Vamos embora!" pode ser que eu
- obedecesse ou nao; em todo caso, entenderia. Mas aquela pergunta assim, vaga e
- solta, nao pude atinar o que era.
- — Mas... nao entendo. De apanhar?
- — Sim.
- — Apanhar de quern? Quern e que me da pancada?
- Capitu fez um gesto de impaciencia. Os olhos de ressaca nao se mexiam e
- pareciam crescer. Sem saber de mim, e, nao querendo interroga-la novamente,
- entrei a cogitar donde me viriam pancadas, e por que, e tambem por que e que
- seria preso, e quern e que me havia de prender. Valha-me Deus! vi de imaginagao
- o aljube, uma casa escura e infecta. Tambem vi a presiganga, o quartel dos
- Barbonos e a Casa de Corregao. Todas essas belas instituigoes sociais me
- envolviam no seu misterio, sem que os olhos de ressaca de Capitu deixassem de
- crescer para mim, a tal ponto que as fizeram esquecer de todo. O erro de Capitu
- foi nao deixa-los crescer infinitamente, antes diminuir ate as dimensoes normais, e
- dar-lhes o movimento do costume. Capitu tornou ao que era, disse-me que estava
- brincando, nao precisava afligir-me, e, com um gesto cheio de graga, bateu-me na
- cara, sorrindo, e disse:
- — Medroso!
- — Eu? Mas...
- — Nao e nada, Bentinho. Pois quern e que ha de dar pancada ao prender voce?
- Desculpe, que eu hoje estou meia maluca; quero brincar, e...
- — Nao, Capitu; voce nao esta brincando; nesta ocasiao, nenhum de nos tem
- vontade de brincar.
- — Tem razao, foi so maluquice; ate logo.
- — Como ate logo?
- — Esta-me voltando a dor de cabega; vou botar uma rodela de limao nas fontes.
- Fez o que disse, e atou o lengo outra vez na testa. Em seguida, acompanhou-me
- ao quintal para se despedir de mim; mas, ainda af nos detivemos por alguns
- minutos, sentados sobre a borda do pogo. Ventava, o ceu estava coberto. Capitu
- falou novamente da nossa separagao, como de um fato certo e definitivo, por mais
- que eu, receoso disso mesmo, buscasse agora razoes para anima-la. Capitu,
- quando nao falava, riscava no chao, com urn pedago de taquara, narizes e perfis.
- Desde que se metera a desenhar, era uma das suas diversoes; tudo Ihe servia de
- papel e lapis. Como me lembrassem os nossos nomes abertos por ela no muro,
- quis fazer o mesmo no chao, e pedi-lhe a taquara. Nao me ouviu ou nao me
- atendeu.
- CAPITU LO XLIV
- O PRIMEIRO FILHO
- — De ca, deixe escrever uma coisa.
- Capitu olhou para mim, mas de um modo que me fez lembrar a definigao dejose
- Dias, oblfquo e dissimulado; levantou o olhar, sem levantar os olhos. A voz, um
- tanto sumida, perguntou-me:
- — Diga-me uma coisa, mas fale verdade, nao quero disfarce; ha de responder com
- o coragao na mao.
- — Que e? Diga.
- — Se voce tivesse de escolher entre mim e sua mae, a quern e que escolhia?
- — Eu?
- Fez-me sinal que sim.
- — Eu escolhia... mas para que escolher? Mamae nao e capaz de me perguntar
- isso.
- — Pois sim, mas eu pergunto. Suponha voce que esta no seminario e recebe a
- notfcia de que eu vou morrer...
- — Nao diga isso!
- — ... Ou que me mato de saudades, se voce nao vier logo, e sua mae nao quiser
- que voce venha, diga-me, voce vem?
- — Venho.
- — Contra a ordem de sua mae?
- — Contra a ordem de mamae.
- — Voce deixa seminario, deixa sua mae, deixa tudo, para me ver morrer?
- — Nao fale em morrer, Capitu!
- Capitu teve um risinho descorado e incredulo, e com a taquara escreveu uma
- palavra no chao, inclinei-me e li: mentiroso.
- Era tao estranho tudo aquilo, que nao achei resposta. Nao atinava com a razao do
- escrito, como nao atinava com a do falado. Se me acudisse ali uma injuria grande
- ou pequena, e possfvel que a escrevesse tambem, com a mesma taquara, mas
- nao me lembrava nada. Tinha a cabega vazia. Ao mesmo tempo tomei-me de
- receio de que alguem nos pudesse ouvir ou ler. Quern, se eramos sos? D.
- Fortunata chegara uma vez a porta da casa, mas entrou logo depois. A solidao era
- completa. Lembra-me que umas andorinhas passaram por cima do quintal e foram
- para os lados do morro de Santa Teresa; ninguem mais. Ao longe, vozes vagas e
- confusas, na rua um tropel de bestas, do lado da casa o chilrear dos passarinhos
- do Padua. Nada mais, ou somente este fenomeno curioso, que o nome escrito por
- ela nao so me espiava do chao com gesto escarninho, mas ate me pareceu que
- repercutia no ar. Tive entao uma ideia ruim; disse-lhe que, afinal de contas, a vida
- de padre nao era ma, e eu podia aceita-la sem grande pena. Como desforgo, era
- pueril; mas eu sentia a secreta esperanga de ve-la atirar-se a mim lavada em
- lagrimas. Capitu limitou-se a arregalar muito os olhos, e acabou por dizer:
- — Padre e bom, nao ha duvida; melhor que padre so conego, por causa das meias
- roxas. O roxo e cor muito bonita. Pensando bem, e melhor conego.
- — Mas nao se pode ser conego sem ser primeiramente padre, disse-lhe eu
- mordendo os beigos.
- — Bem; comece pelas meias pretas, depois virao as roxas. O que eu nao quero
- perder e a sua missa nova; avise-me a tempo para fazer um vestido a moda, saia
- balao e babados grandes. . . Mas talvez nesse tempo a moda seja outra. A igreja
- ha de ser grande, Carmo ou Sao Francisco.
- — Ou Candelaria.
- — Candelaria tambem. Qualquer serve, contanto que eu ouga a missa nova. Hei
- de fazer um figurao. Muita gente ha de perguntar: "Quern e aquela moga faceira
- que ali esta com um vestido tao bonito?" — "Aquela e D. Capitolina, uma moga
- que morou na Rua de Mata-cavalos..."
- — Que morou? Voce vai mudar-se?
- — Quern sabe onde e que ha de morar amanha? disse ela com um tom leve de
- melancolia; mas, tornando logo ao sarcasmo: E voce no altar, metido na alva, com
- a capa de ouro por cima, cantando... Pater noster...
- Ah! como eu sinto nao ser um poeta romantico para dizer que isto era um duelo
- de ironias! Contaria os meus botes e os dela, a graga de um e a prontidao de
- outro, e o sangue correndo, e o furor na alma, ate ao meu golpe final que foi este:
- — Pois sim, Capitu, voce ouvira a minha missa nova, mas com uma condigao.
- Ao que ela respondeu:
- — Vossa Reverendfssima pode falar.
- — Promete uma coisa?
- — Que e?
- — Diga se promete.
- — Nao sabendo o que e, nao prometo.
- — A falar verdade sao duas coisas, continuei eu, por haver-me acudido outra
- ideia.
- — Duas? Diga quais sao.
- — A primeira e que so se ha de confessar comigo, para eu Ihe dar a penitencia e a
- absolvigao. A segunda e que...
- — A primeira esta prometida, disse ela vendo-me hesitar, e acrescentou que
- esperava a segunda.
- Palavra que me custou, e antes nao me chegasse a sair da boca; nao ouviria o que
- ouvi, e nao escreveria aqui uma coisa que vai talvez achar incredulos.
- — A segunda... sim... e que... Promete-me que seja eu o padre que case voce?
- — Que me case? disse ela um tanto comovida.
- Logo depois fez descair os labios, e abanou a cabega,
- — Nao, Bentinho, disse, seria esperar muito tempo; voce nao vai ser padre ja
- amanha, leva muitos anos... Olhe, prometo outra coisa; prometo que ha de
- batizar o meu primeiro filho.
- CAPITULO XLV
- ABANE A CABECA, LEI TOR
- Abane a cabega leitor; faga todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora
- este livro, se o tedio ja o nao obrigou a isso antes; tudo e possfvel. Mas, se o nao
- fez antes e so agora, fio que tome a pegar do livro e que o abra na mesma
- pagina, sem crer por isso na veracidade do autor. Todavia, nao ha nada mais
- exato. Foi assim mesmo que Capitu falou, com tais palavras e maneiras. Falou do
- primeiro filho, como se fosse a primeira boneca.
- Quanto ao meu espanto, se tambem foi grande, veio de mistura com uma
- sensagao esquisita. Percorreu-me um fluido. Aquela ameaga de um primeiro filho,
- o primeiro filho de Capitu, o casamento dela com outro, portanto, a separagao
- absoluta, a perda, a aniquilagao, tudo isso produzia um tal efeito, que nao achei
- palavra nem gesto; fiquei estupido. Capitu sorria; eu via o primeiro filho brincando
- no chao...
- CAPITULO XLVI
- AS PAZES
- As pazes fizeram-se como a guerra, depressa. Buscasse eu neste livro a minha
- gloria, e diria que as negociagoes partiram de mim; mas nao, foi ela que as
- iniciou. Alguns instantes depois, como eu estivesse cabisbaixo, ela abaixou
- tambem a cabega, mas voltando os olhos para cima a fim de ver os meus. Fiz-me
- de rogado; depois quis levantar-me para ir embora, mas nem me levantei, nem
- sei se iria. Capitu fitou-me uns olhos tao ternos, e a posigao os fazia tao suplices,
- que me deixei ficar, passei-lhe o brago pela cintura, ela pegou-me na ponta dos
- dedos, e...
- Outra vez D. Fortunata apareceu a porta da casa; nao sei para que, se nem me
- deixou tempo de puxar o brago; desapareceu logo. Podia ser um simples descargo
- de conscience, uma cerimonia, como as rezas de obrigagao, sem devogao, que se
- dizem de tropel; a nao ser que fosse para certificar aos proprios olhos a realidade
- que o coragao Ihe dizia...
- Fosse o que fosse, o meu brago continuou a apertar a cintura da filha, e foi assim
- que nos pacificamos. O bonito e que cada um de nos queria agora as culpas para
- si, e pedfamos reciprocamente perdao. Capitu alegava a insonia, a dor de cabega,
- o abatimento do espfrito, e finalmente "os seus calundus”.Eu, que era muito
- chorao por esse tempo, sentia os olhos molhados... Era amor puro, era efeito dos
- padecimentos da amiguinha, era a ternura da reconciliagao.
- CAPITULO XLVII
- "A SENHORA SAIU”
- — Esta bom, acabou, disse eu finalmente; mas, explique-me so uma coisa, por
- que e que voce me perguntou se eu tinha medo de apanhar?
- — Nao foi por nada, respondeu Capitu, depois de alguma hesitagao... Para que
- bulir nisso?
- — Diga sempre. Foi por causa do seminario?
- — Foi; ouvi dizer que la dao pancada... Nao? Eu tambem nao creio.
- A explicagao agradou-me; nao tinha outra. Se, como penso, Capitu nao disse a
- verdade, forga e reconhecer que nao podia dize-la, e a mentira e dessas criadas
- que se dao pressa em responder as visitas que "a senhora saiu", quando a
- senhora nao quer falar a ninguem. Fla nessa cumplicidade um gosto particular; o
- pecado em comum iguala por instantes a condigao das pessoas, nao contando o
- prazer que da a cara das visitas enganadas, e as costas com que elas descem... A
- verdade nao saiu, ficou em casa, no coragao de Capitu, cochilando o seu
- arrependimento. E eu nao desci triste nem zangado; achei a criada galante,
- apetecfvel, melhor que a ama.
- As andorinhas vinham agora em sentido contrario, ou nao seriam as mesmas. Nos
- e que eramos os mesmos; ali ficamos, somando as nossas ilusoes, os nossos
- temores, comegando ja a somar as nossas saudades.
- CAPITULO XLVII I
- J URAMENTO DO POQO
- — Nao! exclamei de repente.
- — Nao que?
- Tinha havido alguns minutos de silencio, durante os quais refleti muito e acabei
- por uma ideia; o tom da exclamagao, porem, foi tao alto que espantou a minha
- vizinha.
- — Nao ha de ser assim, continuei. Dizem que nao estamos em idade de casar, que
- somos criangas, criangolas, — ja ouvi dizer criangolas. Bern; mas dois ou tres anos
- passam depressa. Voce jura uma coisa? J ura que so ha de casar comigo?
- Capitu nao hesitou em jurar, e ate Ihe vi as faces vermelhas de prazer. Jurou duas
- vezes e uma terceira:
- — Ainda que voce case com outra, cumprirei o meu juramento, nao casando
- nunca.
- — Que eu case com outra?
- — Tudo pode ser, Bentinho. Voce pode achar outra moga que Ihe queira,
- apaixonar-se por ela e casar. Quern sou eu para voce lembrar-se de mim nessa
- ocasiao?
- — Mas eu tambem juro! Juro, Capitu, juro por Deus Nosso Senhor que so me
- casarei com voce. Basta isto?
- — Devia bastar, disse ela; eu nao me atrevo a pedir mais. Sim, voce jura... Mas
- juremos por outro modo; juremos que nos havemos de casar um com outro, haja
- o que houver.
- Compreendeis a diferenga; era mais que a eleigao do conjuge, era a afirmagao do
- matrimonio. A cabega da minha amiga sabia pensar claro e depressa. Realmente,
- a formula anterior era limitada, apenas exclusiva. Podfamos acabar solteiroes,
- como o sol e a lua, sem mentir ao juramento do pogo. Esta formula era melhor, e
- tinha a vantagem de me fortalecer o coragao contra a investidura eclesiastica.
- Juramos pela segunda formula, e ficamos tao felizes que todo receio de perigo
- desapareceu. Eramos religiosos, tfnhamos o ceu por testemunha. Eu nem ja temia
- o seminario.
- — Se teimarem muito, irei; mas fago de conta que e um colegio qualquer; nao
- tomo ordens.
- Capitu temia a nossa separagao, mas acabou aceitando este alvitre, que era o
- melhor. Nao afligfamos minha mae, e o tempo correria ate o ponto em que o
- casamento pudesse fazer-se. Ao contrario, qualquer resistencia ao seminario
- confirmaria a denuncia dejose Dias. Esta reflexao nao foi minha, mas dela.
- CAPITU LO XLI X
- UMA VELA AOS SABADOS
- Eis aqui como, apos tantas canseiras, tocavamos o porto a que nos devfamos ter
- abrigado logo. Nao nos censures, piloto de ma morte, nao se navegam coragoes
- como os outros mares deste mundo. Estavamos contentes, entramos a falar do
- futuro. Eu prometia a minha esposa uma vida sossegada e bela, na roga ou fora
- da cidade. Vinamos aqui uma vez por ano. Se fosse em arrabalde, seria longe,
- onde ninguem nos fosse aborrecer. A casa, na minha opiniao, nao devia ser
- grande nem pequena, um meio-termo; plantei-lhe flores, escolhi moveis, uma
- sege e um oratorio. Sim, havfamos de ter um oratorio bonito, alto, de jacaranda,
- com a imagem de Nossa Senhora da Conceigao. Demorei-me mais nisto que no
- resto, em parte porque eramos religiosos, em parte para compensar a batina que
- eu ia deitar as urtigas; mas ainda restava uma parte que atribuo ao intuito secreto
- e inconsciente de captar a protegao do ceu. Havfamos de acender uma vela aos
- sabados...
- CAPI TU LO L
- UM MEIO-TERMO
- Meses depois fui para o seminario de Sao Jose. Se eu pudesse contar as lagrimas
- que chorei na vespera e na manha, somaria mais que todas as vertidas desde
- Adao e Eva. Ha nisto alguma exageragao; mas e bom ser enfatico, uma ou outra
- vez, para compensar este escrupulo de exatidao que me aflige. Entretanto, se eu
- me ativer so a lembranga da sensagao, nao fico longe da verdade; aos quinze
- anos, tudo e infinito. Realmente, por mais preparado que estivesse, padecia
- muito. Minha mae tambem padeceu, mas sofria com alma e coragao; demais, o
- Padre Cabral achara um meio-termo: experimentar-me a vocagao; se no fim de
- dois anos, eu nao revelasse vocagao eclesiastica, seguiria outra carreira.
- — As promessas devem ser cumpridas conforme Deus quer. Suponha que Nosso
- Senhor nega disposigao a seu filho, e que o costume do seminario nao Ihe da o
- gosto que me concedeu a mim, e que a vontade divina e outra. A senhora nao
- podia por em seu filho, antes de nascido, uma vocagao que Nosso Senhor Ihe
- recusou...
- Era uma concessao do padre. Dava a minha mae um perdao antecipado, fazendo
- vir do credor a relevagao da dfvida. Os olhos dela brilharam, mas a boca disse que
- nao. Jose Dias, nao tendo alcangado ir comigo para a Europa, agarrou-se ao mais
- proximo, e apoiou o "alvitre do Sr. protonotario"; so Ihe parecia que um ano era
- bastante.
- — Estou certo, disse ele, piscando-me o olho, que dentro de um ano a vocagao
- eclesiastica do nosso Bentinho se manifesta clara e decisiva. Ha de dar um padre
- de mao-cheia. Tambem, se nao vier em um ano...
- E a mim, mais tarde, em particular:
- — Va por um ano; um ano passa depressa. Se nao sentir gosto nenhum, e que
- Deus nao quer, como diz o padre, e nesse caso, meu amiguinho, o melhor remedio
- e a Europa.
- Capitu deu-me igual conselho, quando minha mae Ihe anunciou a minha ida
- definitiva para o seminario:
- — Minha filha, voce vai perder o seu companheiro de crianga...
- Fez-lhe tao bem este tratamento de filha (era a primeira vez que minha mae Iho
- dava), que nem teve tempo de ficar triste; beijou-lhe a mao, e disse-lhe que ja
- sabia disso por mim mesmo. Em particular animou-me a suportar tudo com
- paciencia; no fim de um ano as coisas estariam mudadas, e um ano andava
- depressa. Nao foi ainda a nossa despedida; esta fez-se na vespera, por um modo
- que pede capftulo especial. O que unicamente digo aqui e que, ao passo que nos
- prendfamos um ao outro, ela ia prendendo minha mae, fez-se mais assfdua e
- terna, vivia ao pe dela, com os olhos nela. Minha mae era de natural simpatico, e
- igualmente sensfvel; tanto se dofa como se aprazia de qualquer coisa. Entrou a
- achar em Capitu uma porgao de gragas novas, de dotes finos e raros; deu-lhe um
- anel dos seus e algumas galanterias. Nao consentiu em fotografar-se, como a
- pequena Ihe pedia, para Ihe dar um retrato; mas tinha uma miniatura, feita aos
- vinte e cinco anos, e, depois de algumas hesitagoes, resolveu dar-lha. Os olhos de
- Capitu, quando recebeu o mimo, nao se descrevem; nao eram oblfquos, nem de
- ressaca, eram direitos, claros, lucidos. Beijou o retrato com paixao, minha mae
- fez-lhe a mesma coisa a ela. Tudo isto me lembra a nossa despedida.
- CAPITULO LI
- ENTRE LUZ E FUSCO
- Entre luz e fusco, tudo ha de ser breve como esse instante. Nem durou muito a
- nossa despedida, foi o mais que pode, em casa dela, na sala de visitas, antes do
- acender das velas; af e que nos despedimos de uma vez. Juramos novamente que
- havfamos de casar um com o outro, e nao foi so o aperto de mao que selou o
- contrato, como no quintal, foi a conjungao das nossas bocas amorosas... Talvez
- risque isto na impressao, se ate la nao pensar de outra maneira; se pensar, fica. E
- desde ja fica, porque, em verdade, e a nossa defesa. O que o mandamento divino
- quer e que nao juremos em vao pelo santo nome de Deus. Eu nao ia mentir ao
- seminario, uma vez que levava um contrato feito no proprio cartorio do ceu.
- Quanto ao selo, Deus, como fez as maos limpas, assim fez os labios limpos, e a
- malfcia esta antes na tua cabega perversa que na daquele casal de adolescentes...
- Oh! minha doce companheira da meninice, eu era puro, e puro fiquei, e puro
- entrei na aula de Saojose, a buscar de aparencia a investidura sacerdotal, e antes
- dela a vocagao. Mas a vocagao eras tu, a investidura eras tu.
- CAPITULO LI I
- O VELHO PADUA
- Ja agora conto tambem os adeuses do velho Padua. Logo cedo veio a nossa casa.
- Minha mae disse-lhe que fosse falar-me ao quarto.
- — Da licenga? perguntou metendo a cabega pela porta.
- Fui apertar-lhe a mao; ele abragou-me com ternura.
- — Seja feliz! disse-me. A mim e a toda a minha gente creia que ficam muitas
- saudades. Todos nos estimamos muito ao senhor, como merece. Se Ihe disserem
- outra coisa, nao acredite. Sao intrigas. Tambem eu, quando me casei, fui vftima
- de intrigas; desfizeram-se. Deus e grande e descobre a verdade. Se algum dia
- perder sua mae e seu tio, — coisa que eu, por esta luz que me alumia, nao desejo,
- porque sao boas pessoas, excelentes pessoas, e eu sou grato as finezas
- recebidas... Nao, eu nao sou como outros, certos parasitas, vindos de fora para
- desuniao das famflias, aduladores baixos, nao; eu sou de outra especie; nao vivo
- papando os jantares nem morando em casa alheia... Enfim, sao os mais felizes!
- — Por que falara assim? pensei. Naturalmente sabe que J ose Dias diz mal dele."
- — Mas, como ia dizendo, se algum dia perder os seus parentes, pode contar com a
- nossa companhia. Nao e suficiente em importancia, mas a afeigao e imensa, creia.
- Padre que seja, a nossa casa esta as suas ordens. Quero so que me nao esquega;
- nao esquega o velho Padua...
- Suspirou e continuou:
- — Nao esquega o seu velho Padua, e, se tern algum trapinho que me deixe em
- lembranga, um caderno latino, qualquer coisa, um botao de colete, coisa que ja
- Ihe nao preste para nada. O valor e a lembranga.
- Tive um sobressalto. Havia embrulhado em um papel um cacho dos meus cabelos,
- tao grandes e tao bonitos, cortados na vespera. A intengao era leva-los a Capitu,
- ao sair; mas tive ideia de da-lo ao pai, a filha saberia toma-lo e guarda-lo. Peguei
- do embrulho e dei-lho.
- — Aqui esta, guarde.
- — Um cachinho dos seus cabelos! exclamou Padua abrindo e fechando o
- embrulho. Oh! obrigado! obrigado por mim e pela minha gente! Vou da-lo a velha,
- para guarda-lo, ou a pequena, que e mais cuidadosa que a mae. Que lindos que
- sao! Como e que se corta uma beleza destas? De ca um abrago! outro! mais outro!
- adeus!
- Tinha os olhos umidos deveras; levava a cara dos desenganados, como quern
- empregou em um so bilhete todas as suas economias de esperangas, e ve sair
- branco o maldito numero, — um numero tao bonito!
- CAPITULO LIN
- A CAMINHO!
- Fui para o seminario. Poupa-me as outras despedidas. Minha mae apertava-me ao
- peito. Prima Justina suspirava. Talvez chorasse mal ou nada. Ha pessoas a quern
- as lagrimas nao acodem logo nem nunca; diz-se que padecem mais que as outras.
- Prima Justina disfargava naturalmente os seus padecimentos fntimos, emendando
- os descuidos de minha mae, fazendo-me recomendagoes, dando ordens. Tio
- Cosme, quando eu Ihe beijei a mao em despedida, disse-me rindo:
- — Anda la, rapaz, volta-me papa!
- Jose Dias, composto e grave, nao dizia nada a princfpio; tfnhamos falado na
- vespera, no quarto dele, onde fui ver se era ainda possfvel evitar o seminario. Ja
- nao era, mas deu-me esperangas e principalmente animou-me muito. Antes de um
- ano estarfamos a bordo. Como eu achasse muito breve, explicou-se.
- — Dizem que nao e bom tempo de atravessar o Atlantico, vou indagar; se nao for,
- iremos em margo ou abril.
- — Posso estudar Medicina aqui mesmo.
- Jose Dias correu os dedos pelos suspensorios com um gesto de impaciencia,
- apertou os beigos, ate que formalmente rejeitou o alvitre.
- — Nao duvidaria aprovar a ideia, disse ele, se na Escola de Medicina nao
- ensinassem, exclusivamente, a podridao alopata. A alopatia e o erro dos seculos, e
- vai morrer; e o assassinato, e a mentira, e a ilusao. Se Ihe disserem que pode
- aprender na Escola de Medicina aquela parte da ciencia comum a todos os
- sistemas, e verdade; a alopatia e erro na terapeutica. Fisiologia, anatomia,
- patologia, nao sao alopaticas nem homeopaticas, mas e melhor aprender logo
- tudo de uma vez, por livros e por lingua de homens cultores da verdade...
- Assim falara na vespera e no quarto. Agora nao dizia nada, ou proferia algum
- aforismo sobre a religiao e a famflia; lembro-me deste: "Dividi-lo com Deus e
- ainda possuf-lo". Quando minha mae me deu o ultimo beijo: "Quadra
- amantfssimo!" suspirou ele. Era manha de um lindo dia. Os moleques
- cochichavam; as escravas tomavam a bengao: "Bengao, nho Bentinho! nao se
- esquega de sua Joana! Sua Miquelina fica rezando por voce!" Na rua, Jose Dias
- insistiu nas esperangas:
- — Aguente um ano; ate la tudo estara arranjado.
- CAPI TULO LIV
- PANEGIRICO DE SANTA MONICA
- No seminario... Ah! nao vou contar o seminario, nem me bastaria a isso um
- capftulo. Nao, senhor meu amigo; algum dia, sim, e possfvel que componha um
- abreviado do que ali vi e vivi, das pessoas que tratei, dos costumes, de todo o
- resto. Esta sarna de escrever, quando pega aos cinquenta anos, nao despega
- mais. Na mocidade e possfvel curar-se um homem dela; e, sem ir mais longe, aqui
- mesmo no seminario tive um companheiro que compos versos, a maneira dos de
- Junqueira Freire, cujo livro de frade-poeta era recente. Ordenou-se; anos depois
- encontrei-o no coro de Sao Pedro e pedi-lhe que me mostrasse os versos novos.
- — Que versos? perguntou meio espantado.
- — Os seus. Pois nao se lembra que no seminario...
- — Ah! sorriu ele.
- Sorriu, e continuando a procurar num livro aberto a hora em que tinha de cantar
- no dia seguinte, confessou-me que nao fizera mais versos depois de ordenado.
- Foram cocegas da mocidade; cogou-se, passou, estava bom. E falou-me em prosa
- de uma infinidade de coisas do dia, a vida cara, um sermao do Padre X..., uma
- vigairaria mineira...
- Contrario a isso foi um seminarista que nao seguiu a carreira. Chamava-se... Nao
- e preciso dizer o nome; baste o caso. Tinha composto um Panegfrico de Santa
- Monica, elogiado por algumas pessoas e entao lido entre os seminaristas. Alcangou
- licenga de imprimi-lo, e dedicou-o a Santo Agostinho. Tudo isso e historia velha; o
- que e mais mogo e que um dia, em 1882 , indo ver certo negocio em repartigao de
- marinha, ali dei com este meu colega, feito chefe de uma segao administrativa.
- Deixara seminario, deixara letras, casara e esquecera tudo, menos o Panegfrico de
- Santa Monica, umas vinte e nove paginas, que veio distribuindo pela vida fora.
- Como eu precisasse de algumas informagoes, fui pedir-lhas, e seria impossfvel
- achar melhor nem mais pronta vontade; deu-me tudo, claro, certo, copioso.
- Naturalmente conversamos do passado, memorias pessoais, casos de estudo,
- incidentes de nada, um livro, um verbo, um mote, toda a velha palhada saiu ca
- fora, e rimos juntos, e suspiramos de companhia. Vivemos algum tempo do nosso
- velho seminario. Ou porque eram dele, ou porque eramos entao mogos, as
- recordagoes traziam tal poder de felicidade que, se alguma sombra contraria
- houve entao, nao apareceu agora. Ele confessou-me que perdera de vista todos os
- companheiros do seminario.
- — Tambem eu, quase todos; uma vez ordenados, voltaram naturalmente as suas
- provfncias, e os daqui tomaram vigairarias fora.
- — Bom tempo! suspirou ele.
- E, apos alguma reflexao, fitando em mim uns olhos murchos e teimosos,
- perguntou-me:
- — Conservou o meu Panegfrico?
- Nao achei nada que dizer; tentei mover os beigos, mas nao tinha palavra; afinal,
- perguntei:
- — Panegfrico? Que panegfrico?
- — O meu Panegfrico de Santa Monica.
- Nao me lembrou logo, mas a explicagao devia bastar; e depois de alguns instantes
- de pesquisa mental, respondi que por muito tempo o conservara, mas as
- mudangas, as viagens...
- — Hei de levar-lhe um exemplar.
- Antes de vinte e quatro horas estava em minha casa, com o folheto, um velho
- folheto de vinte e seis anos, encardido, manchado do tempo, mas sem lacuna,
- com uma dedicatoria manuscrita e respeitosa.
- — E o penultimo exemplar, disse-me; agora so me resta um, que nao posso dar a
- ninguem.
- E como me visse folhear o opusculo:
- — Veja se Ihe lembra algum pedago, disse-me.
- Vinte e seis anos de intervalo fazem morrer amizades mais estreitas e assfduas,
- mas era cortesia, era quase caridade recordar alguma lauda; li uma delas,
- acentuando certas frases para Ihe dar a impressao de que achavam eco em minha
- memoria. Concordou que fossem belas, mas preferia outras, e apontou-as.
- — Recorda-se bem?
- — Perfeitamente. Panegfrico de Santa Monica! Como isto me faz remontar os anos
- da minha mocidade! Nunca me esqueceu o seminario, creia. Os anos passam, os
- acontecimentos vem uns sobre outros, e as sensagoes tambem, e vieram
- amizades novas, que tambem se foram depois, como e lei da vida... Pois, meu
- caro colega, nada fez apagar aquele tempo da nossa convivencia, os padres, as
- ligoes, os recreios... os nossos recreios, lembra-se? o Padre Lopes, oh! o Padre
- Lopes...
- Ele, com os olhos no ar, devia estar ouvindo, e naturalmente ouvia, mas so me
- disse uma palavra, e ainda assim depois de algum tempo de silencio, recolhendo
- os olhos e um suspiro!
- — Tern agradado muito este meu Panegfrico!
- CAPI TULO LV
- UM SONETO
- Dita a palavra, apertou-me as maos com as forgas todas de um vasto
- agradecimento, despediu-se e saiu. Fiquei so com o Panegfrico, e o que as folhas
- dele me lembraram foi tal que merece um capftulo ou mais. Antes, porem, e
- porque tambem eu tive o meu Panegfrico, contarei a historia de um soneto que
- nunca fiz. Era no tempo do seminario, e o primeiro verso e o que ides ler:
- Oh! flor do ceu! oh! flor Candida e pura!
- Como e por que me saiu este verso da cabega, nao sei; saiu assim, estando eu na
- cama, como uma exclamagao solta, e, ao notar que tinha a medida de verso,
- pensei em compor com ele alguma coisa, um soneto. A insonia, musa de olhos
- arregalados, nao me deixou dormir uma longa hora ou duas; as cocegas pediam-
- me unhas, e eu cogava-me com alma. Nao escolhi logo, logo, o soneto; a princfpio
- cuidei de outra forma, e tanto de rima como de verso solto, mas afinal ative-me
- ao soneto. Era um poema breve e prestadio. Quanto a ideia, o primeiro verso nao
- era ainda uma ideia, era uma exclamagao; a ideia viria depois. Assim na cama,
- envolvido no lengol, tratei de poetar. Tinha o alvorogo da mae que sente o filho, e
- o primeiro filho. la ser poeta, ia competir com aquele monge da Bahia, pouco
- antes revelado, e entao na moda; eu, seminarista, diria em verso as minhas
- tristezas, como ele dissera as suas no claustro. Decorei bem o verso, e repetia-o
- em voz baixa, aos lengois; francamente, achava-o bonito, e ainda agora nao me
- parece mau:
- Oh! flor do ceu! oh! flor Candida e pura!
- Quern era a flor? Capitu, naturalmente; mas podia ser a virtude, a poesia, a
- religiao, qualquer outro conceito a que coubesse a metafora da flor, e flor do ceu.
- Aguardei o resto, recitando sempre o verso, e deitado ora sobre o lado direito, ora
- sobre o esquerdo; afinal deixei-me estar de costas, com os olhos no teto, mas
- nem assim vinha mais nada. Entao adverti que os sonetos mais gabados eram os
- que conclufam com chave de ouro, isto e, um desses versos capitais no sentido e
- na forma. Pensei em forjar uma de tais chaves, considerando que o verso final,
- saindo cronologicamente dos treze anteriores, com dificuldade traria a perfeigao
- louvada; imaginei que tais chaves eram fundidas antes da fechadura. Assim foi
- que me determinei a compor o ultimo verso do soneto e, depois de muito suar,
- saiu este:
- Perde-se a vida, ganha-se a batalha!
- Sem vaidade, e falando como se fosse de outro, era um verso magmfico. Sonoro,
- nao ha duvida. E tinha um pensamento, a vitoria ganha a custa da propria vida,
- pensamento alevantado e nobre. Que nao fosse novidade, e possfvel, mas tambem
- nao era vulgar; e ainda agora nao explico por que via misteriosa entrou numa
- cabega de tao poucos anos. Naquela ocasiao achei-o sublime. Recitei uma e
- muitas vezes a chave de ouro; depois repeti os dois versos seguidamente, e
- dispus-me a liga-los pelos doze centrais. A ideia agora, a vista do ultimo verso,
- pareceu-me melhor nao ser Capitu; seria a justiga. Era mais proprio dizer que, na
- pugna pela justiga, perder-se-ia acaso a vida, mas a batalha ficava ganha.
- Tambem me ocorreu aceitar a batalha, no sentido natural, e fazer dela a luta pela
- patria, por exemplo; nesse caso a flor do ceu seria a liberdade. Esta acepgao,
- porem, sendo o poeta um seminarista, podia nao caber tanto como a primeira, e
- gastei alguns minutos em escolher uma ou outra. Achei melhor a justiga, mas
- afinal aceitei definitivamente uma ideia nova, a caridade, e recitei os dois versos,
- cada um a seu modo, um languidamente:
- Oh! flor do ceu! oh! flor Candida e pura!
- e o outro com grande brio:
- Perde-se a vida, ganha-se a batalha!
- A sensagao que tive e que ia sair um soneto perfeito. Comegar bem e acabar bem
- nao era pouco. Para me dar um banho de inspiragao, evoquei alguns sonetos
- celebres, e notei que os mais deles eram facflimos; os versos safam uns dos
- outros, com a ideia em si, tao naturalmente, que se nao acabava de crer se ela e
- que os fizera, se eles e que a suscitavam. Entao tornava ao meu soneto, e
- novamente repetia o primeiro verso e esperava o segundo; o segundo nao vinha,
- nem terceiro, nem quarto; nao vinha nenhum. Tive alguns fmpetos de raiva, e
- mais de uma vez pensei em sair da cama e ir ver tinta e papel; pode ser que,
- escrevendo, os versos acudissem, mas...
- Cansado de esperar, lembrou-me alterar o sentido do ultimo verso, com a simples
- transposigao de duas palavras, assim:
- Ganha-se a vida, perde-se a batalha!
- O sentido vinha a ser justamente o contrario, mas talvez isso mesmo trouxesse a
- inspiragao. Neste caso, era uma ironia: nao exercendo a caridade, pode-se ganhar
- a vida, mas perde-se a batalha do Ceu. Criei forgas novas e esperei. Nao tinha
- janela; se tivesse, e possfvel que fosse pedir uma ideia a noite. E quern sabe se os
- vaga-lumes, luzindo ca embaixo, nao seriam para mim como rimas das estrelas, e
- esta viva metafora nao me daria os versos esquivos, com os seus consoantes e
- sentidos proprios?
- Trabalhei em vao, busquei, catei, esperei, nao vieram os versos. Pelo tempo
- adiante escrevi algumas paginas em prosa, e agora estou compondo esta
- narragao, nao achando maior dificuldade que escrever, bem ou mal. Pois,
- senhores, nada me consola daquele soneto que nao fiz. Mas, como eu creio que os
- sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, e as demais obras de arte, por
- uma razao de ordem metaffsica, dou esses dois versos ao primeiro desocupado
- que os quiser. Ao domingo, ou se estiver chovendo, ou na roga, em qualquer
- ocasiao de lazer, pode tentar ver se o soneto sai. Tudo e dar-lhe uma ideia e
- encher o centro que falta.
- CAPI TU LO LVI
- UM SEMINARISTA
- Tudo me ia repetindo o diabo do opusculo, com as suas letras velhas e citagoes
- latinas. Vi sair daquelas folhas muitos perfis de seminaristas, os irmaos
- Albuquerques, por exemplo, um dos quais e conego na Bahia, enquanto o outro
- seguiu Medicina e dizem haver descoberto um especffico contra a febre amarela.
- Vi o Bastos, um magricela, que esta de vigario em Meia-Ponte, se nao morreu ja;
- Luis Borges, apesar de padre, fez-se politico, e acabou senador do imperio...
- Quantas outras caras me fitavam das paginas frias do Panegfrico! Nao, nao eram
- frias; traziam o calor da juventude nascente, o calor do passado, o meu proprio
- calor. Queria le-las outra vez, e lograva entender algum texto, tao recente como
- no primeiro dia, ainda que mais breve. Era um encanto ir por ele; as vezes,
- inconscientemente, dobrava a folha como se estivesse lendo de verdade; creio que
- era quando os olhos me cafam na palavra do fim da pagina, e a mao, acostumada
- a ajuda-los, fazia o seu offcio...
- Eis aqui outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Sousa Escobar. Era um rapaz
- esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as maos, como os pes, como a
- fala, como tudo. Quern nao estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se
- mal, nao sabendo por onde Ihe pegasse. Nao fitava de rosto, nao falava claro nem
- seguido; as maos nao apertavam as outras, nem se deixavam apertar delas,
- porque os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava te-los entre os
- seus, ja nao tinha nada. O mesmo digo dos pes, que tao depressa estavam aqui
- como la. Esta dificuldade em pousar foi a maior obstaculo que achou para tomar
- os costumes do seminario. O sorriso era instantaneo, mas tambem ria folgado e
- largo. Uma coisa nao seria tao fugitiva como o resto, a reflexao; famos dar com
- ele, muita vez, olhos enfiados em si, cogitando. Respondia-nos sempre que
- meditava algum ponto espiritual, ou entao que recordava a ligao da vespera.
- Quando ele entrou na minha intimidade pedia-me frequentemente explicagoes e
- repetigoes miudas, e tinha memoria para guarda-las todas, ate as palavras. Talvez
- esta faculdade prejudicasse alguma outra.
- Era mais velho que eu tres anos, filho de um advogado de Curitiba, aparentado
- com um comerciante do Rio de Janeiro, que servia de correspondente ao pai. Este
- era homem de fortes sentimentos catolicos. Escobar tinha uma irma, que era um
- anjo, dizia ele.
- — Nao e so na beleza que e um anjo, mas tambem na bondade. Nao imagina que
- boa criatura que ela e. Escreve-me muita vez, hei de mostrar-lhe as cartas dela.
- De fato, eram simples e afetuosas, cheias de carfcias e conselhos. Escobar
- contava-me historias dela, interessantes, todas as quais vinham a dar na bondade
- e no espfrito daquela criatura; tais eram que me fariam capaz de acabar casando
- com ela, se nao fosse Capitu. Morreu pouco depois. Eu, seduzido pelas palavras
- dele, estive quase a contar-lhe logo, logo, a minha historia. A princfpio fui tfmido,
- mas ele fez-se entrado na minha confianga. Aqueles modos fugitivos cessavam
- quando ele queria, e o meio e o tempo os fizeram mais pousados. Escobar veio
- abrindo a alma toda, desde a porta da rua ate ao fundo do quintal. A alma da
- gente, como sabes, e uma casa assim disposta, nao raro com janelas para todos
- os lados, muita luz e ar puro. Tambem as ha fechadas e escuras, sem janelas, ou
- com poucas e gradeadas, a semelhanga de conventos e prisoes. Outrossim,
- capelas e bazares, simples alpendres ou pagos suntuosos.
- Nao sei o que era a minha. Eu nao era ainda casmurro, nem dom casmurro; o
- receio e que me tolhia a franqueza, mas como as portas nao tinham chaves nem
- fechaduras, bastava empurra-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Ca o achei
- dentro, ca ficou, ate que...
- CAPITULO LVII
- DE PREPARAQAO
- Ah! mas nao eram so os seminaristas que me iam saindo daquelas folhas velhas
- do Panegfrico. Elas me trouxeram tambem sensagoes passadas, tais e tantas que
- eu nao poderia dize-las todas, sem tirar espago ao resto. Uma dessas, e das
- primeiras, quisera conta-la aqui em latim. Nao e que a materia nao ache termos
- honestos em nossa lingua, que e casta para os castos, como pode ser torpe para
- os torpes. Sim, leitora castfssima, como diria o meu finado Jose Dias, podeis ler o
- capftulo ate ao fim, sem susto nem vexame.
- Ja agora meto a historia em outro capftulo. Por mais composto que este me saia,
- ha sempre no assunto alguma coisa menos austera, que pede umas linhas de
- repouso e preparagao. Sirva este de preparagao. E isto e muito, leitor meu amigo;
- o coragao, quando examina a possibilidade do que ha de vir, as proporgoes dos
- acontecimentos e a copia deles, fica robusto e disposto, e o mal e menor mal.
- Tambem, se nao fica entao, nao fica nunca. E aqui veras tal ou qual esperteza
- minha; porquanto, ao ler o que vais ler, e provavel que o aches menos cru do que
- esperavas.
- CAPITULO LVIII
- O TRATADO
- Foi o caso que, uma segunda-feira, voltando eu para o seminario, vi cair na rua
- uma senhora. O meu primeiro gesto, em tal caso, devia ser de pena ou de riso;
- nao foi uma nem outra coisa, porquanto (e e isto que eu quisera dizer em latim),
- porquanto a senhora tinha as meias muito lavadas, e nao as sujou, levava ligas de
- seda, e nao as perdeu. Varias pessoas acudiram, mas nao tiveram tempo de a
- levantar; ela ergueu-se muito vexada, sacudiu-se, agradeceu, e enfiou pela rua
- proxima.
- — Este gosto de imitar as francesas da Rua do Ouvidor, dizia-me Jose Dias
- andando e comentando a queda, e evidentemente um erro. As nossas mogas
- devem andar como sempre andaram, com seu vagar e paciencia, e nao este tique-
- tique afrancesado...
- Eu mal podia ouvi-lo. As meias e as ligas da senhora branqueavam e enroscavam-
- se diante de mim, e andavam, cafam, erguiam-se e iam-se embora. Quando
- chegamos a esquina, olhei para a outra rua, e vi, a distancia, a nossa desastrada,
- que ia no mesmo passo, tique-tique, tique-tique...
- — Parece que nao se machucou, disse eu.
- — Tanto melhor para ela, mas e impossfvel que nao tenha arranhado os joelhos;
- aquela presteza e manha...
- Creio que foi "manha" que ele disse; eu fiquei "nos joelhos arranhados". Dali em
- diante, ate o seminario, nao vi mulher na rua, a quern nao desejasse uma queda;
- a algumas adivinhei que traziam as meias esticadas e as ligas justas... Tal haveria
- que nem levasse meias... Mas eu as via com elas... Ou entao... Tambem e
- possfvel...
- Vou esgargando isto com reticencias, para dar uma ideia das minhas ideias, que
- eram assim difusas e confusas; com certeza nao dou nada. A cabega ia-me
- quente, e o andar nao era seguro. No seminario, a primeira hora foi insuportavel.
- As batinas traziam ar de saias, e lembravam-me a queda da senhora. Ja nao era
- uma so que eu via cair; todas as que eu encontrara na rua, mostravam-me agora
- de relance as ligas azuis; eram azuis. De noite, sonhei com elas. Uma multidao de
- abominaveis criaturas veio andar a roda de mim, tique-tique... Eram belas, umas
- finas, outras grossas, todas ageis como o diabo. Acordei, busquei afugenta-las
- com esconjuros e outros metodos, mas tao depressa dormi como tornaram, e,
- com as maos presas em volta de mim, faziam um vasto cfrculo de saias, ou,
- trepadas no ar, choviam pes e pernas sobre a minha cabega. Assim fui ate
- madrugada. Nao dormi mais; rezei padre-nossos, ave-marias, e credos, e sendo
- este livro a verdade pura, e forga confessar que tive de interromper mais de uma
- vez as minhas oragoes para acompanhar no escuro uma figura ao longe, tique-
- tique, tique-tique... Pegava depressa na oragao, sempre no meio para concerta-la
- bem, como se nao tivesse havido interrupgao, mas certamente nao unia a frase
- nova a antiga.
- Vindo o mal pela manha adiante, tentei vence-lo, mas por um modo que o nao
- perdesse de todo. Sabios da Escritura, adivinhai o que podia ser. Foi isto. Nao
- podendo rejeitar de mim aqueles quadras, recorri a um tratado entre a minha
- consciencia e a minha imaginagao. As visoes feminis seriam de ora avante
- consideradas como simples encarnagoes dos vfcios, e por isso mesmo
- contemplaveis, como o melhor modo de temperar o carater e aguerri-lo para os
- combates asperos da vida. Nao formulei isto por palavras, nem foi preciso; o
- contrato fez-se tacitamente, com alguma repugnancia, mas fez-se. E por alguns
- dias, era eu mesmo que evocava as visoes para fortalecer-me, e nao as rejeitava,
- senao quando elas mesmas, de cansadas, se iam embora.
- CAPI TULO LIX
- CONVIVAS DE BOA MEMORIA
- Ha dessas reminiscencias que nao descansam antes que a pena ou a lingua as
- publique. Um antigo dizia arrenegar de conviva que tern boa memoria. A vida e
- cheia de tais convivas, e eu sou acaso um deles, conquanto a prova de ter a
- memoria fraca seja exatamente nao me acudir agora o nome de tal antigo; mas
- era um antigo, e basta.
- Nao, nao, a minha memoria nao e boa. Ao contrario, e comparavel a alguem que
- tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e
- somente raras circunstancias. A quern passe a vida na mesma casa de famflia,
- com os seus eternos moveis e costumes, pessoas e afeigoes, e que se Ihe grava
- tudo pela continuidade e repetigao. Como eu invejo os que nao esqueceram a cor
- das primeiras calgas que vestiram! Eu nao atino com a das que enfiei ontem. Jura
- so que nao eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser
- olvido e confusao.
- E antes seja olvido que confusao; explico-me. Nada se emenda bem nos livros
- confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum
- desta outra casta, nao me aflijo nunca. O que fago, em chegando ao fim, e cerrar
- os olhos e evocar todas as coisas que nao achei nele. Quantas ideias finas me
- acodem entao! Que de reflexoes profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que
- nao vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas aguas, as suas
- arvores, os seus altares; e os generais sacam das espadas que tinham ficado na
- bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com
- uma alma imprevista.
- E que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas
- alheias; assim podes tambem preencher as minhas.
- CAPITULO LX
- QUERI DO OPUSCULO
- Assim fiz eu ao Panegfrico de Santa Monica, e fiz mais: pus-lhe nao so o que
- faltava da santa, mas ainda coisas que nao eram dela. Viste o soneto, as meias,
- as ligas, o seminarista Escobar e varios outros. Vais agora ver o mais que naquele
- dia me foi saindo das paginas amarelas do opusculo.
- Querido opusculo, tu nao prestavas para nada, mas que mais presta um velho par
- de chinelas? Entretanto, ha muita vez no casal de chinelas um como aroma e calor
- de dois pes. Gastas e rotas, nao deixam de lembrar que uma pessoa as calgava de
- manha, ao erguer da cama, ou as descalgava a noite, ao entrar nela. E se a
- comparagao nao vale, porque as chinelas sao ainda uma parte da pessoa e
- tiveram o contato dos pes, aqui estao outras lembrangas, como a pedra da rua, a
- porta da casa, um assobio particular, um pregao de quitanda, como aquele das
- cocadas que contei no cap. XVIII. Justamente, quando contei o pregao das
- cocadas, fiquei tao curtido de saudades que me lembrou faze-lo escrever por um
- amigo, mestre de musica, e gruda-lo as pernas do capftulo. Se depois jarretei o
- capftulo, foi porque outro musico, a quern o mostrei, me confessou ingenuamente
- nao achar no trecho escrito nada que Ihe acordasse saudades. Para que nao
- acontega o mesmo aos outros profissionais que porventura me lerem, melhor e
- poupar ao editor do livro o trabalho e a despesa da gravura. Ves que nao pus
- nada, nem ponho. Ja agora creio que nao basta que os pregoes de rua, como os
- opusculos de seminario, encerrem casos, pessoas e sensagoes; e preciso que a
- gente os tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo e calado e incolor.
- Mas, vamos ao mais que me foi saindo das paginas amarelas.
- CAPI TULO LXI
- A VACA DE HOMERO
- O mais foi muito. Vi safrem os primeiros dias da separagao, duros e opacos, sem
- embargo das palavras de conforto que me deram os padres e os seminaristas, e
- as de minha mae e tio Cosme, trazidas por Jose Dias ao seminario.
- — Todos estao saudosos, disse-me este, mas a maior saudade esta naturalmente
- no maior dos coragoes; e qual e ele? perguntou escrevendo a resposta nos olhos.
- — Mamae, acudi eu.
- Jose Dias apertou-me as maos com alvorogo, e logo pintou a tristeza de minha
- mae, que falava de mim todos os dias, quase a todas as horas. Como a aprovasse
- sempre, e acrescentasse alguma palavra relativamente aos dotes que Deus Ihe
- dera, o desvanecimento de minha mae nessas ocasioes era indescritfvel; e
- contava-me tudo isso cheio de uma admiragao lacrimosa. Tio Cosme tambem se
- enternecia muito.
- — Ontem ate se deu um caso interessante. Tendo eu dito a Excelentfssima que
- Deus Ihe dera, nao um filho, mas um anjo do ceu, o doutor ficou tao comovido que
- nao achou outro modo de veneer o choro senao fazendo-me um daqueles elogios
- de galhofa que so ele sabe. Nao e preciso dizer que D. Gloria enxugou
- furtivamente uma lagrima. Ou ela nao fosse mae! Que coragao amantfssimo!
- — Mas, Sr. Jose Dias, e a minha safda daqui?
- — Isso e negocio meu. A viagem a Europa e o que e preciso, mas pode fazer-se
- daqui a um ou dois anos, em 1859 ou 1860...
- — Tao tarde!
- — Era melhor que fosse este mesmo ano, mas demos tempo ao tempo. Tenha
- paciencia, va estudando, nao se perde nada em ir sabendo ja daqui alguma coisa;
- e, demais, ainda nao acabando padre, a vida do seminario e util, e vale sempre
- entrar no mundo ungido com os santos oleos da teologia...
- Neste ponto, — lembra-me como se fosse hoje, — os olhos de Jose Dias
- fulguraram tao intensamente que me encheram de espanto. As palpebras cafram
- depois, e assim ficaram por alguns instantes, ate que novamente se ergueram, e
- os olhos fixaram-se na parede do patio, como que embebidos em alguma coisa, se
- nao era em si mesmos; depois despegaram-se da parede e entraram a vagar pelo
- patio todo. Podia compara-lo aqui a vaca de Homero; andava e gemia em volta da
- cria que acabava de parir. Nao Ihe perguntei o que e que tinha, ja por
- acanhamento, ja porque dois lentes, um deles de teologia, vinham caminhando na
- nossa diregao. Ao passarem por nos, o agregado, que os conhecia, cortejou-os
- com as deferencias devidas, e pediu-lhes notfcias minhas.
- — Por ora nada se pode afiangar, disse um deles, mas parece que dara conta da
- mao.
- — E o que eu Ihe dizia agora mesmo, acudiu Jose Dias. Conto ouvir-lhe a missa
- nova; mas ainda que nao chegue a ordenar-se, nao pode ter melhores estudos
- que os que fizer aqui. Para a viagem da existencia, concluiu demorando mais as
- palavras, ira ungido com os santos oleos da teologia...
- Desta vez a fulguragao dos olhos foi menor, as palpebras nao Ihe cafram nem as
- pupilas fizeram os movimentos anteriores. Ao contrario, todo ele era atengao e
- interrogagao; quando muito, um sorriso claro e amigo Ihe errava nos labios. O
- lente de teologia gostou da metafora, e disse-lho; ele agradeceu, explicando que
- eram ideias que Ihe escapavam no correr da conversagao; nao escrevia nem
- orava. Eu e que nao gostei nada; e logo que os lentes se foram, sacudi a cabega:
- — Nao quero saber dos santos oleos da teologia; desejo sair daqui o mais cedo
- que puder, ou ja...
- — Ja, meu anjo, nao pode ser; mas pode suceder que muito antes do que
- imaginamos. Quern sabe se este mesmo ano de 58? Tenho um piano feito, e
- penso ja nas palavras com que hei de expo-lo a D. Gloria; estou certo que ela
- cedera e ira conosco.
- — Duvido que mamae embarque.
- — Veremos. Mae e capaz de tudo; mas, com ela ou sem ela, tenho por certa a
- nossa ida, e nao havera esforgo que eu nao empregue, deixe estar. Paciencia e
- que e preciso. E nao faga aqui nada que de lugar a censuras ou queixas; muita
- docilidade e toda a aparente satisfagao. Nao ouviu o elogio do lente? E que voce
- tem-se portado bem. Pois continue.
- — Mas, 1859 ou 1860 e muito tarde.
- — Sera este ano, replicou Jose Dias.
- — Daqui a tres meses?
- — Ou seis.
- — Nao; tres meses.
- — Pois sim. Tenho agora um piano, que me parece melhor que outro qualquer. E
- combinar a ausencia de vocagao eclesiastica e a necessidade de mudar de ares.
- Voce por que nao tosse?
- — Por que nao tusso?
- — Ja, ja, nao, mas eu hei de avisar voce para tossir, quando for preciso, aos
- poucos, uma tossezinha seca, e algum fastio; eu irei preparando a
- Excelentfssima... Oh! tudo isto e em beneffcio dela. Uma vez que o filho nao pode
- servir a Igreja, como deve ser servida, o melhor modo de cumprir a vontade de
- Deus e dedica-lo a outra coisa. O mundo tambem e igreja para os bons...
- Pareceu-me outra vez a vaca de Homero, como se este "mundo tambem e igreja
- para os bons", fosse outro bezerro, irmao dos "santos oleos da teologia”.Mas nao
- dei tempo a ternura materna, e repliquei:
- — Ah! entendo! mostrar que estou doente para embarcar, nao e?
- Jose Dias hesitou um pouco, depois explicou-se:
- — Mostrar a verdade, porque, francamente, Bentinho, eu ha meses que desconfio
- do seu peito. Voce nao anda bom do peito. Em pequeno, teve umas febres e uma
- ronqueira... Passou tudo, mas ha dias em que esta mais descorado. Nao digo que
- ja seja o mal, mas o mal pode vir depressa. Numa hora cai a casa. Por isso, se
- aquela santa senhora nao quiser ir conosco, — ou para que va mais depressa,
- acho que uma boa tosse... Se a tosse ha de vir de verdade, melhor e apressa-la...
- Deixe estar, eu aviso...
- — Bern, mas em saindo daqui nao ha de ser para embarcar logo; saio primeiro,
- depois cuidaremos do embarque; o embarque e que pode ficar para o ano. Nao
- dizem que o melhor tempo e abril ou maio? Pois seja maio. Primeiro deixo o
- seminario, daqui a dois meses...
- E porque a palavra me estivesse a pigarrear na garganta, dei uma volta rapida, e
- perguntei-lhe a queima-roupa:
- — Capitu como vai?
- CAPITULO LXI I
- UMA PONTA DE I AGO
- A pergunta era imprudente, na ocasiao em que eu cuidava de transferir o
- embarque. Equivalia a confessar que o motivo principal ou unico da minha repulsa
- ao seminario era Capitu, e fazer crer improvavel a viagem. Compreendi isto depois
- que falei; quis emendar-me, mas nem soube como, nem ele me deu tempo.
- — Tern andado alegre, como sempre; e uma tontinha. Aquilo, enquanto nao pegar
- algum peralta da vizinhanga, que case com ela...
- Estou que empalideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo todo. A notfcia
- de que ela vivia alegre, quando eu chorava todas as noites, produziu-me aquele
- efeito, acompanhado de um bater de coragao, tao violento, que ainda agora cuido
- ouvi-lo. Ha alguma exageragao nisto; mas o discurso humano e assim mesmo, um
- composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustando-
- se. Por outro lado, se entendermos que a audiencia aqui nao e das orelhas, senao
- da memoria, chegaremos a exata verdade. A minha memoria ouve ainda agora as
- pancadas do coragao naquele instante. Nao esquegas que era a emogao do
- primeiro amor. Estive quase a perguntar a Jose Dias que me explicasse a alegria
- de Capitu, o que e que ela fazia, se vivia rindo, cantando ou pulando, mas retive-
- me a tempo, e depois outra ideia...
- Outra ideia, nao, — um sentimento cruel e desconhecido, o puro ciume, leitor das
- minhas entranhas. Tal foi o que me mordeu, ao repetir comigo as palavras dejose
- Dias: "Algum peralta da vizinhanga”. Em verdade, nunca pensara em tal desastre.
- Vivia tao nela, dela e para ela, que a intervengao de um peralta era como uma
- nogao sem realidade; nunca me acudiu que havia peraltas na vizinhanga, varia
- idade e feitio, grandes passeadores das tardes. Agora lembrava-me que alguns
- olhavam para Capitu, — e tao senhor me sentia dela que era como se olhassem
- para mim, um simples dever de admiragao e de inveja. Separados um do outro
- pelo espago e pelo destino, o mal aparecia-me agora, nao so possfvel, mas certo.
- E a alegria de Capitu confirmava a suspeita; se ela vivia alegre e que ja namorava
- a outro, acompanha-lo-ia com os olhos na rua, falar-lhe-ia a janela, as ave-
- marias, trocariam flores e...
- E... que? Sabes o que e que trocariam mais; se o nao achas por ti mesmo,
- escusado e ler o resto do capftulo e do livro, nao acharas mais nada, ainda que eu
- o diga com todas as letras da etimologia. Mas se o achaste, compreenderas que
- eu, depois de estremecer, tivesse um fmpeto de atirar-me pelo portao fora, descer
- o resto da ladeira, correr, chegar a casa do Padua, agarrar Capitu e intimar-lhe
- que me confessasse quantos, quantos, quantos ja Ihe dera o peralta da
- vizinhanga. Nao fiz nada. Os mesmos sonhos que ora conto nao tiveram, naqueles
- tres ou quatro minutos, esta logica de movimentos e pensamentos. Eram soltos,
- emendados e mal emendados, com o desenho truncado e torto, uma confusao, um
- turbilhao, que me cegava e ensurdecia. Quando tornei a mim, Jose Dias conclufa
- uma frase, cujo princfpio nao ouvi, e o mesmo fim era vago: "A conta que dara de
- si”. Que conta e quern? Cuidei naturalmente que falava ainda de Capitu, e quis
- perguntar-lho, mas a vontade morreu ao nascer, como tantas outras geragoes
- delas. Limitei-me a inquirir do agregado quando e que iria a casa ver minha mae.
- — Estou com saudades de mamae. Posso ir ja esta semana?
- — Vai sabado.
- — Sabado? Ah! sim! sim! Pega a mamae que me mande buscar sabado! Sabado!
- Este sabado, nao? Que me mande buscar, sem falta.
- CAPI TU LO LXIII
- METADES DE UM SONHO
- Fiquei ansioso pelo sabado. Ate la os sonhos perseguiam-me, ainda acordado, e
- nao os digo aqui para nao alongar esta parte do livro. Um so ponho, e no menor
- numero de palavras, ou antes porei dois, porque um nasceu de outro, a nao ser
- que ambos formem duas metades de um so. Tudo isto e obscuro, dona leitora,
- mas a culpa e do vosso sexo, que perturbava assim a adolescencia de um pobre
- seminarista. Nao fosse ele, e este livro seria talvez uma simples pratica paroquial,
- se eu fosse padre, ou uma pastoral, se bispo, ou uma encfclica, se papa, como me
- recomendara tio Cosme: "Anda la, meu rapaz, volta-me papa!" Ah! por que nao
- cumpri esse desejo? Depois de Napoleao, tenente e imperador, todos os destinos
- estao neste seculo.
- Quanto ao sonho foi isto. Como estivesse a espiar os peraltas da vizinhanga, vi um
- destes que conversava com a minha amiga ao pe da janela. Corri ao lugar, ele
- fugiu; avancei para Capitu, mas nao estava so, tinha o pai ao pe de si, enxugando
- os olhos e mirando um triste bilhete de loteria. Nao me parecendo isto claro, ia
- pedir a explicagao, quando ele de si mesmo a deu; o peralta fora levar-lhe a lista
- dos premios da loteria, e o bilhete safra branco. Tinha o numero 4004. Disse-me
- que esta simetria de algarismos era misteriosa e bela, e provavelmente a roda
- andara mal; era impossfvel que nao devesse ter a sorte grande. Enquanto ele
- falava, Capitu dava-me com os olhos todas as sortes grandes e pequenas. A maior
- destas devia ser dada com a boca. E aqui entra a segunda parte do sonho. Padua
- desapareceu, como as suas esperangas do bilhete, Capitu inclinou-se para fora, eu
- relancei os olhos pela rua, estava deserta. Peguei-lhe nas maos, resmunguei nao
- sei que palavras, e acordei sozinho no dormitorio.
- O interesse do que acabas de ler nao esta na materia do sonho, mas nos esforgos
- que fiz para ver se dormia novamente e pegava nele outra vez. Nunca dos nuncas
- poderas saber a energia e obstinagao que empreguei em fechar os olhos, aperta-
- los bem, esquecer tudo para dormir, mas nao dormia. Esse mesmo trabalho fez-
- me perder o sono ate a madrugada. Sobre a madrugada, consegui concilia-lo, mas
- entao nem peraltas, nem bilhetes de loteria, nem sortes grandes ou pequenas, —
- nada dos nadas veio ter comigo. Nao sonhei mais aquela noite, e dei mal as ligoes
- daquele dia.
- CAPI TU LO LXIV
- UMA I DEI A E UM ESCRUPULO
- Relendo o capftulo passado, acode-me uma ideia e um escrupulo. O escrupulo e
- justamente de escrever a ideia, nao a havendo mais banal na terra, posto que
- daquela banalidade do sol e da lua, que o Ceu nos da todos os dias e todos os
- meses. Deixei o manuscrito, e olhei para as paredes. Sabes que esta casa do
- Engenho Novo, nas dimensoes, disposigoes e pinturas, e reprodugao da minha
- antiga casa de Mata-cavalos. Outrossim, como te disse no capftulo II, o meu fim
- em imitar a outra foi ligar as duas pontas da vida, o que alias nao alcancei. Pois o
- mesmo sucedeu aquele sonho do seminario, por mais que tentasse dormir e
- dormisse. Donde concluo que um dos offcios do homem e fechar e apertar muito
- os olhos, e ver se continua pela noite velha o sonho truncado na noite moga. Tal e
- a ideia banal e nova que eu nao quisera por aqui, e so provisoriamente a escrevo.
- Antes de concluir este capftulo, fui a janela indagar da noite por que razao os
- sonhos hao de ser assim tao tenues que se esgargam ao menor abrir de olhos ou
- voltar de corpo, e nao continuam mais. A noite nao me respondeu logo. Estava
- deliciosamente bela, os morros palejavam de luar e o espago morria de silencio.
- Como eu insistisse, declarou-me que os sonhos ja nao pertencem a sua jurisdigao.
- Quando eles moravam na ilha que Luciano Ihes deu, onde ela tinha o seu palacio,
- e donde os fazia sair com as suas caras de varia feigao, dar-me-ia explicagoes
- possfveis. Mas os tempos mudaram tudo. Os sonhos antigos foram aposentados, e
- os modernos moram no cerebro da pessoa. Estes, ainda que quisessem imitar os
- outros, nao poderiam faze-lo; a ilha dos sonhos, como a dos amores, como todas
- as ilhas de todos os mares, sao agora objeto da ambigao e da rivalidade da Europa
- e dos Estados Unidos.
- Era uma alusao as Filipinas. Pois que nao amo a polftica, e ainda menos a polftica
- internacional, fechei a janela e vim acabar este capftulo para ir dormir. Nao pego
- agora os sonhos de Luciano, nem outros, filhos da memoria ou da digestao; basta-
- me um sono quieto e apagado. De manha, com a fresca, irei dizendo o mais da
- minha historia e suas pessoas.
- CAPI TU LO LXV
- A DISSIMULACAO
- Chegou o sabado, chegaram outros sabados, e eu acabei afeigoando-me a vida
- nova, la alternando a casa e o seminario. Os padres gostavam de mim, os rapazes
- tambem, e Escobar mais que os rapazes e os padres. No fim de cinco semanas
- estive quase a contar a este as minhas penas e esperangas; Capitu refreou-me.
- — Escobar e muito meu amigo, Capitu!
- — Mas nao e meu amigo.
- — Pode vir a ser; ele ja me disse que ha de vir ca para conhecer mamae.
- — Nao importa; voce nao tern direito de contar um segredo que nao e so seu, mas
- tambem meu, e eu nao Ihe dou licenga de dizer nada a pessoa nenhuma.
- Era justo, calei-me e obedeci. Outra coisa em que obedeci as suas reflexoes foi
- logo no primeiro sabado, quando eu fui a casa dela, e, apos alguns minutos de
- conversa, me aconselhou a ir embora.
- — Hoje nao fique aqui mais tempo; va para casa, que eu la vou logo. E natural
- que D. Gloria queira estar com voce muito tempo, ou todo, se puder.
- Em tudo isso mostrava a minha amiga tanta lucidez que eu bem podia deixar de
- citar um terceiro exemplo, mas os exemplos nao se fizeram senao para ser
- citados, e este e tao bom que a omissao seria um crime. Foi a minha terceira ou
- quarta vinda a casa. Minha mae, depois que Ihe respondi as mil perguntas que me
- fez sobre o tratamento que me davam, os estudos, as relagoes, a disciplina, e se
- me dofa alguma coisa, e se dormia bem, tudo o que a ternura das maes inventa
- para cansar a paciencia de um filho, concluiu voltando-se para Jose Dias:
- — Sr. Jose Dias, ainda duvida que saia daqui um bom padre?
- — Excelentfssima...
- — E voce, Capitu, interrompeu minha mae voltando-se para a filha do Padua que
- estava na sala, com ela, — voce nao acha que o nosso Bentinho dara um bom
- padre?
- — Acho que sim, senhora, respondeu Capitu cheia de convicgao.
- Nao gostei da convicgao. Assim Ihe disse, na manha seguinte, no quintal dela,
- recordando as palavras da vespera, e langando-lhe em rosto, pela primeira vez, a
- alegria que ela mostrara desde a minha entrada no seminario, quando eu vivia
- curtido de saudades. Capitu fez-se muito seria, e perguntou-me como e que
- queria que se portasse, uma vez que suspeitavam de nos; tambem tivera noites
- desconsoladas, e os dias, em casa dela, foram tao tristes como os meus; podia
- indaga-lo do pai e da mae. A mae chegou a dizer-lhe, por palavras encobertas,
- que nao pensasse mais em mim.
- — Com D. Gloria e D. Justina mostro-me naturalmente alegre, para que nao
- parega que a denuncia dejose Dias e verdadeira. Se parecesse, elas tratariam de
- separar-nos mais, e talvez acabassem nao me recebendo... Para mim, basta o
- nosso juramento de que nos havemos de casar um com outro.
- Era isto mesmo; devfamos dissimular para matar qualquer suspeita, e ao mesmo
- tempo gozar toda a liberdade anterior, e construir tranquilos o nosso futuro. Mas o
- exemplo completa-se com o que ouvi no dia seguinte, ao almogo; minha mae,
- dizendo tio Cosme que ainda queria ver com que mao havia eu de abengoar o
- povo a missa, contou que, dias antes, estando a falar de mogas que se casam
- cedo, Capitu Ihe dissera: "Pois a mim quern me ha de casar ha de ser o Padre
- Bentinho; eu espero que ele se ordene!" Tio Cosme riu da graga, Jose Dias nao
- dessorriu, so prima Justina e que franziu a testa, e olhou para mim
- interrogativamente. Eu, que havia olhado para todos, nao pude resistir ao gesto
- da prima, e tratei de comer. Mas comi mal; estava tao contente com aquela
- grande dissimulagao de Capitu que nao vi mais nada, e, logo que almocei, corri a
- referir-lhe a conversa e a louvar-lhe a astucia. Capitu sorriu de agradecida.
- — Voce tem razao, Capitu, concluf eu; vamos enganar toda esta gente.
- — Nao e? disse ela com ingenuidade.
- CAPITULO LX VI
- I NTI Ml DADE
- Capitu ia agora entrando na alma de minha mae. Viviam o mais do tempo juntas,
- falando de mim, a proposito do sol e da chuva, ou de nada; Capitu ia la coser, as
- manhas; alguma vez ficava para jantar.
- Prima Justina nao acompanhava a parenta naquelas finezas, mas nao tratava de
- todo mal a minha amiga. Era assaz sincera para dizer o mal que sentia de alguem,
- e nao sentia bem de pessoa alguma. Talvez do marido, mas o marido era morto;
- em todo caso, nao existira homem capaz de competir com ele na afeigao, no
- trabalho e na honestidade, nas maneiras e na agudeza de espfrito. Esta opiniao,
- segundo tio Cosme, era postuma, pois em vida andavam as brigas, e os ultimos
- seis meses acabaram separados. Tanto melhor para a justiga dela; o louvor dos
- mortos e um modo de orar por eles. Tambem gostaria de minha mae, ou se algum
- mal pensou dela foi entre si e o travesseiro. Compreende-se que, de aparencia,
- Ihe desse a estima devida. Nao penso que ela aspirasse a algum legado; as
- pessoas assim dispostas excedem os servigos naturais, fazem-se mais risonhas,
- mais assfduas, multiplicam os cuidados, precedem os famulos. Tudo isso era
- contrario a natureza de prima Justina, feita de azedume e de implicancia. Como
- vivesse de favor na casa, explica-se que nao desestimasse a dona e calasse os
- seus ressentimentos, ou so dissesse mal dela a Deus e ao Diabo.
- Caso tivesse ressentimentos de minha mae, nao era uma razao mais para detestar
- Capitu, nem ela precisava de razoes suplementares. Contudo, a intimidade de
- Capitu fe-la mais aborrecfvel a minha parenta. Se a princfpio nao a tratava mal,
- com o tempo trocou de maneiras e acabou fugindo-lhe. Capitu, atenta, desde que
- a nao via, indagava dela e ia procura-la. Prima Justina tolerava esses cuidados. A
- vida e cheia de obrigagoes que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as
- infringir deslavadamente. Demais, Capitu usava certa magia que cativa; prima
- Justina acabava sorrindo, ainda que azedo, mas a sos com minha mae achava
- alguma palavra ruim que dizer da menina.
- Como minha mae adoecesse de uma febre, que a pos as portas da morte, quis que
- Capitu Ihe servisse de enfermeira. Prima Justina, posto que isto a aliviasse de
- cuidados penosos, nao perdoou a minha amiga a intervengao. Um dia, perguntou-
- Ihe se nao tinha que fazer em casa; outro dia, rindo, soltou-lhe este epigrama:
- "Nao precisa correr tanto; o que tiver de ser seu as maos Ihe ha de ir".
- CAPI TULO LXVII
- UM PECADO
- Ja agora nao tiro a doente da cama sem contar o que se deu comigo. Ao cabo de
- cinco dias, minha mae amanheceu tao transtornada que ordenou me mandassem
- buscar ao seminario. Em vao tio Cosme:
- — Mana Gloria, voce assusta-se sem motivo, a febre passa...
- — Nao! nao! mandem busca-lo! Posso morrer, e a minha alma nao se salva, se
- Bentinho nao estiver ao pe de mim.
- — Vamos assusta-lo.
- — Pois nao Ihe digam nada, mas vao busca-lo, ja, ja, nao se demorem.
- Cuidaram fosse delfrio; mas, nao custando nada trazer-me, Jose Dias foi
- incumbido do recado. Entrou tao atordoado que me assustou. Contou
- particularmente ao reitor o que havia, e recebi licenga para ir a casa. Na rua,
- famos calados, ele nao alterando o passo do costume, — a premissa antes da
- consequencia, a consequencia antes da conclusao, — mas cabisbaixo e
- suspirando, eu temendo ler no rosto dele alguma notfcia dura e definitiva. So me
- falara na doenga, como negocio simples; mas o chamado, o silencio, os suspiros
- podiam dizer alguma coisa mais. O coragao batia-me com forga, as pernas
- bambeavam-me, mais de uma vez cuidei cair...
- O anseio de escutar a verdade complicava-se em mim com o temor de a saber.
- Era a primeira vez que a morte me aparecia assim perto, me envolvia, me
- encarava com os olhos furados e escuros. Quanto mais andava aquela Rua dos
- Barbonos, mais me aterrava a ideia de chegar a casa, de entrar, de ouvir os
- prantos, de ver um corpo defunto... Oh! eu nao poderia nunca expor aqui tudo o
- que senti naqueles terrfveis minutos. A rua, por mais que Jose Dias andasse
- superlativamente devagar, parecia fugir-me debaixo dos pes, as casas voavam de
- um e outro lado, e uma corneta que nessa ocasiao tocava no quartel dos
- Municipals Permanentes ressoava aos meus ouvidos como a trombeta do jufzo
- final.
- Fui, cheguei aos Arcos, entrei na Rua de Mata-cavalos. A casa nao era logo ali,
- mas muito alem da dos Invalidos, perto da do Senado. Tres ou quatro vezes,
- quisera interrogar o meu companheiro, sem ousar abrir a boca; mas agora, ja
- nem tinha tal desejo. la so andando, aceitando o pior, como um gesto do destino,
- como uma necessidade da obra humana, e foi entao que a Esperanga, para
- combater o Terror, me segredou ao coragao, nao estas palavras, pois nada
- articulou parecido com palavras, mas uma ideia que poderia ser traduzida por
- elas: "Mamae defunta, acaba o seminario".
- Leitor, foi um relampago. Tao depressa alumiou a noite, como se esvaiu, e a
- escuridao fez-se mais cerrada, pelo efeito do remorso que me ficou. Foi uma
- sugestao da luxuria e do egofsmo. A piedade filial desmaiou um instante, com a
- perspectiva da liberdade certa, pelo desaparecimento da dfvida e do devedor; foi
- um instante, menos que um instante, o centesimo de um instante, ainda assim o
- suficiente para complicar a minha afligao com um remorso.
- Jose Dias suspirava. Uma vez olhou para mim tao cheio de pena que me pareceu
- haver-me adivinhado, e eu quis pedir-lhe que nao dissesse nada a ninguem, que
- eu ia castigar-me, etc. Mas a pena trazia tanto amor, que nao podia ser pesar do
- meu pecado; mas entao era sempre a morte de minha mae... Senti uma angustia
- grande, um no na garganta, e nao pude mais, chorei de uma vez.
- — Que e, Bentinho?
- — Mamae...?
- — Nao! nao! Que ideia e essa? O estado dela e gravfssimo, mas nao e mal de
- morte, e Deus pode tudo. Enxugue os olhos, que e feio um mocinho da sua idade
- andar chorando na rua. Nao ha de ser nada, uma febre... As febres, assim como
- dao com forga, assim tambem se vao embora... Com os dedos, nao; onde esta o
- lengo?
- Enxuguei os olhos, posto que de todas as palavras de J ose Dias uma so me ficasse
- no coragao; foi aquele gravfssimo. Vi depois que ele so queria dizer grave, mas o
- uso do superlativo faz a boca longa, e, por amor do perfodo, Jose Dias fez crescer
- a minha tristeza. Se achares neste livro algum caso da mesma famflia, avisa-me,
- leitor, para que o emende na segunda edigao; nada ha mais feio que dar pernas
- longufssimas a ideias brevfssimas. Enxuguei os olhos, repito, e fui andando,
- ansioso agora por chegar a casa, e pedir perdao a minha mae do ruim
- pensamento que tive. Enfim, chegamos, entramos, subi tremulo os seis degraus
- da escada, e daf a pouco, debrugado sobre a cama, ouvia as palavras ternas de
- minha mae que me apertava muito as maos, chamando-me seu filho. Estava
- queimando, os olhos ardiam nos meus, toda ela parecia consumida por um vulcao
- interno. Ajoelhei-me ao pe do leito, mas como este era alto, fiquei longe das suas
- carfcias:
- — Nao, meu filho, levanta, levanta!
- Capitu, que estava na alcova, gostou de ver a minha entrada, os meus gestos,
- palavras e lagrimas, segundo me disse depois; mas nao suspeitou naturalmente
- todas as causas da minha afligao. Entrando no meu quarto, pensei em dizer tudo a
- minha mae, logo que ela ficasse boa, mas esta ideia nao me mordia, era uma
- veleidade pura, uma agao que eu nao faria nunca, por mais que o pecado me
- doesse. Entao, levado do remorso, usei ainda uma vez do meu velho meio das
- promessas espirituais, e pedi a Deus que me perdoasse e salvasse a vida de
- minha mae, e eu Ihe rezaria dois mil padre-nossos. Padre que me les, perdoa este
- recurso; foi a ultima vez que o empreguei. A crise em que me achava, nao menos
- que o costume e a fe, explica tudo. Eram mais dois mil; onde iam os antigos? Nao
- paguei uns nem outros, mas saindo de almas Candidas e verdadeiras tais
- promessas sao como a moeda fiduciaria, — ainda que o devedor as nao pague,
- valem a soma que dizem.
- CAPITULO LXVIII
- ADIEMOS A VIRTUDE
- Poucos teriam animo de confessar aquele meu pensamento da Rua de Mata-
- cavalos. Eu confessarei tudo o que importar a minha historia. Montaigne escreveu
- de si: ce ne sont pas mes gestes que j'escris; c'est moi, c'est mon essence. Ora,
- ha so um modo de escrever a propria essencia, e conta-la toda, o bem e o mal.
- Tal fago eu, a medida que me vai lembrando e convidando a construgao ou
- reconstrugao de mim mesmo. Por exemplo, agora que contei um pecado, diria
- com muito gosto alguma bela agao contemporanea, se me lembrasse, mas nao me
- lembra; fica transferida a melhor oportunidade.
- Nem perderas em esperar, meu amigo; ao contrario, acode-me agora que... Nao
- so as belas agoes sao belas em qualquer ocasiao, como sao tambem possfveis e
- provaveis, pela teoria que tenho dos pecados e das virtudes, nao menos simples
- que clara. Reduz-se a isto que cada pessoa nasce com certo numero deles e delas,
- aliados por matrimonio para se compensarem na vida. Quando um de tais
- conjuges e mais forte que o outro, ele so guia o indivfduo, sem que este, por nao
- haver praticado tal virtude ou cometido tal pecado, se possa dizer isento de um ou
- de outro; mas a regra e dar-se a pratica simultanea dos dois, com vantagem do
- portador de ambos, e alguma vez com resplendor maior da Terra e do Ceu. E pena
- que eu nao possa fundamentar isto com um ou mais casos estranhos; falta-me
- tempo.
- Pelo que me toca, e certo que nasci com alguns daqueles casais, e naturalmente
- ainda os possuo. Ja me sucedeu, aqui no Engenho Novo, por estar uma noite com
- muita dor de cabega, desejar que o trem da Central estourasse longe dos meus
- ouvidos e interrompesse a linha por muitas horas, ainda que morresse alguem; e
- no dia seguinte perdi o trem da mesma estrada, por ter ido dar a minha bengala a
- um cego que nao trazia bordao. Voila mes gestes, voila mon essence.
- CAPITULO LXI X
- A MISSA
- Um dos gestos que melhor exprimem a minha essencia foi a devogao com que
- corri no domingo proximo a ouvir missa em Sao Antonio dos Pobres. O agregado
- quis ir comigo, e principiou a vestir-se, mas era tao lento nos suspensorios e nas
- presilhas, que nao pude esperar por ele. Demais, eu queria estar so. Sentia
- necessidade de evitar qualquer conversagao que me desviasse o pensamento do
- fim a que ia, e era reconciliar-me com Deus, depois do que se passou no capftulo
- LXVII. Nem era so pedir-lhe perdao do pecado, era tambem agradecer o
- restabelecimento de minha mae, e, visto que digo tudo, faze-lo renunciar ao
- pagamento da minha promessa. Jeova, posto que divino, ou por isso mesmo, e
- um Rothschild muito mais humano, e nao faz moratorias, perdoa as dfvidas
- integralmente, uma vez que o devedor queira deveras emendar a vida e cortar nas
- despesas. Ora, eu nao queria outra coisa; dali em diante nao faria mais promessas
- que nao pudesse pagar, e pagaria logo as que fizesse.
- Ouvi missa; ao levantar a Deus, agradeci a vida e saude de minha mae; depois
- pedi perdao do pecado e revelagao da dfvida, e recebi a bengao final do oficiante
- como um ato solene de reconciliagao. No fim, lembrou-me que a Igreja
- estabeleceu no confessionario um cartorio seguro, e na confissao o mais autentico
- dos instrumentos para o ajuste de contas morais entre o homem e Deus. Mas a
- minha incorrigfvel timidez me fechou essa porta certa; receei nao achar palavras
- com que dizer ao confessor o meu segredo. Como o homem muda! Hoje chego a
- publica-lo.
- CAPITULO LXX
- DEPOIS DA MISSA
- Rezei ainda, persignei-me, fechei o livro de missa e caminhei para a porta. A
- gente nao era muita, mas a igreja tambem nao e grande, e nao pude sair logo,
- logo, mas devagar. Havia homens e mulheres, velhos e mogos, sedas e chitas, e
- provavelmente olhos feios e belos, mas eu nao vi uns nem outros. la na diregao
- da porta, com a onda, ouvindo as saudagoes e os cochichos. No adro, onde se fez
- claro, parei e olhei para todos. Vi entao uma moga e um homem, que safam da
- igreja e pararam; e a moga olhava para mim falando ao homem, e o homem
- olhava para mim, ouvindo a moga. E chegaram-me estas palavras:
- — Mas que queres?
- — Queria saber dela; papai pergunte.
- Era sinhazinha Sancha, a companheira de colegio de Capitu, que queria notfcias de
- minha mae. O pai veio a mim; disse-lhe que estava restabelecida. Depois safmos,
- mostrou-me a casa dele, e, como eu vinha na mesma diregao, viemos juntos.
- Gurgel era homem de quarenta anos ou pouco mais, com propensao a engrossar o
- ventre; era muito obsequioso; chegando a porta da casa, quis por forga que eu
- fosse almogar com ele.
- — Obrigado; mamae espera-me.
- — Manda-se la um preto dizer que o senhor fica almogando, e ira mais tarde.
- — Venho outro dia.
- Sinhazinha Sancha, voltada para o pai, ouvia e esperava. Nao era feia; so se Ihe
- podia notar a semelhanga do nariz, que tambem acabava grosso, mas ha feigoes
- que tiram a graga de uns para da-la a outros. Vestia simples. Gurgel era viuvo e
- morria pela filha. Como eu recusasse o almogo, quis que descansasse alguns
- minutos. Nao pude recusar e subi. Quis saber a minha idade, os meus estudos, a
- minha fe, e dava-me conselhos para o caso de vir a ser padre; disse-me o numero
- do armazem, Rua da Quitanda. Enfim, despedi-me, veio ao patamar da escada; a
- filha deu-me recomendagoes para Capitu e para minha mae. Da rua olhei para
- cima; o pai estava a janela e fez-me um gesto largo de despedida.
- CAPITU LO LXXI
- VISITA DE ESCOBAR
- Em casa, tinham ja mentido dizendo a minha mae que eu voltara e estava
- mudando de roupa.
- "A missa das oito ja ha de ter acabado... Bentinho devia estar de volta... Teria
- acontecido alguma coisa, mano Cosme?... Mandem ver..." Assim falava ela, de
- minuto a minuto, mas eu entrei e comigo a tranquilidade.
- Era o dia das boas sensagoes. Escobar foi visitar-me e saber da saude de minha
- mae. Nunca me visitara ate ali, nem as nossas relagoes estavam ja tao estreitas,
- como vieram a ser depois; mas, sabendo a razao da minha safda, tres dias antes,
- aproveitou o domingo para ir ter comigo e perguntar se continuava o perigo ou
- nao. Quando Ihe disse que nao, respirou.
- — Tive receio, disse ele.
- — Os outros souberam?
- — Parece que sim: alguns souberam.
- Tio Cosme e J ose Dias gostaram do mogo; o agregado disse-lhe que vira uma vez
- o pai no Rio de Janeiro. Escobar era muito polido; e, conquanto falasse mais do
- que veio a falar depois, ainda assim nao era tanto como os rapazes da nossa
- idade; naquele dia achei-o um pouco mais expansivo que de costume. Tio Cosme
- quis que jantasse conosco. Escobar refletiu um instante e acabou dizendo que o
- correspondente do pai esperava por ele. Eu, lembrando-me das palavras do
- Gurgel, repeti-as:
- — Manda-se la um preto dizer que o senhor janta aqui, e ira depois.
- — Tanto incomodo!
- — Incomodo nenhum, interveio tio Cosme.
- Escobar aceitou, e jantou. Notei que os movimentos rapidos que tinha e dominava
- na aula, tambem os dominava agora, na sala como na mesa. A hora que passou
- comigo foi de franca amizade. Mostrei-lhe os poucos livros que possufa. Gostou
- muito do retrato de meu pai; depois de alguns instantes de contemplagao, virou-
- se e disse-me:
- — Ve-se que era um coragao puro!
- Os olhos de Escobar, claros como ja disse, eram dulcissimos; assim os definiu Jose
- Dias, depois que ele saiu, e mantenho esta palavra, apesar dos quarenta anos que
- traz em cima de si. Nisto nao houve exageragao do agregado. A cara rapada
- mostrava uma pele alva e lisa. A testa e que era um pouco baixa, vindo a risca do
- cabelo quase em cima da sobrancelha esquerda; mas tinha sempre a altura
- necessaria para nao afrontar as outras feigoes, nem diminuir a graga delas.
- Realmente, era interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz curvo e
- delgado. Tinha o sestro de sacudir o ombro direito, de quando em quando, e veio
- a perde-lo, desde que um de nos Iho notou, um dia, no seminario; primeiro
- exemplo que vi de que um homem pode corrigir-se muito bem dos defeitos
- miudos.
- Nunca deixei de sentir tal ou qual desvanecimento em que os meus amigos
- agradassem a todos. Em casa, ficaram querendo bem a Escobar; a mesma prima
- Justina achou que era um mogo muito apreciavel, apesar... — Apesar de que?
- perguntou-lhe Jose Dias, vendo que ela nao acabava a frase. Nao teve resposta,
- nem podia te-la; prima Justina provavelmente nao viu defeito claro ou importante
- no nosso hospede; o apesar era uma especie de ressalva para algum que Ihe
- viesse a descobrir um dia; ou entao foi obra de uso velho, que a levou a restringir,
- onde nao achara restrigao.
- Escobar despediu-se logo depois de jantar; fui leva-lo a porta, onde esperamos a
- passagem de um onibus. Disse-me que o armazem do correspondente era na Rua
- dos Pescadores, e ficava aberto ate as nove horas: ele e que se nao queria
- demorar fora. Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do onibus, ainda me
- disse adeus, com a mao. Conservei-me a porta, a ver se, ao longe, ainda olharia
- para tras, mas nao olhou.
- — Que amigo e esse tamanho? perguntou alguem de uma janela ao pe.
- Nao e preciso dizer que era Capitu. Sao coisas que se adivinham na vida, como
- nos livros, sejam romances, sejam historias verdadeiras. Era Capitu, que nos
- espreitara desde algum tempo, por dentro da veneziana, e agora abrira
- inteiramente a janela, e aparecera. Viu as nossas despedidas tao rasgadas e
- afetuosas, e quis saber quern era que me merecia tanto.
- — E o Escobar, disse eu indo por-me embaixo da janela, a olhar para cima.
- CAPITULO LXXII
- UMA REFORMA DRAMATI CA
- Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta historia poderia
- responder mais, tao certo e que o destino, como todos os dramaturgos, nao
- anuncia as peripecias nem o desfecho. Eles chegam a seu tempo, ate que o pano
- cai, apagam-se as luzes, e os espectadores vao dormir. Nesse genero ha
- porventura alguma coisa que reformar, e eu proporia, como ensaio, que as pegas
- comegassem pelo fim. Otelo mataria a si e a Desdemona no primeiro ato, os tres
- seguintes seriam dados a agao lenta e decrescente do ciume, e o ultimo ficaria so
- com as cenas iniciais da ameaga dos turcos, as explicagoes de Otelo e Desdemona,
- e o bom conselho do fino I ago: "Mete dinheiro na bolsa”. Desta maneira, o
- espectador, por um lado, acharia no teatro a charada habitual que os periodicos
- Ihe dao, por que os ultimos atos explicam o desfecho do primeiro, especie de
- conceito, e, por outro lado, ia para a cama com uma boa impressao de ternura e
- de amor:
- Ela amou o que me afligira,
- Eu amei a piedade dela.
- CAPITULO LXXII I
- O CONTRA- REGRA
- O destino nao e so dramaturgo, e tambem o seu proprio contra-regra, isto e,
- designa a entrada dos personagens em cena, da-lhes as cartas e outros objetos, e
- executa dentro os sinais correspondentes ao dialogo, uma trovoada, um carro, um
- tiro. Quando eu era mogo, representou-se af, em nao sei que teatro, um drama
- que acabava pelo jufzo final. O principal personagem era Asaverus, que no ultimo
- quadra conclufa um monologo por esta exclamagao: "Ougo a trombeta do
- arcanjo!" Nao se ouviu trombeta nenhuma. Asaverus, envergonhado, repetiu a
- palavra, agora mais alto, para advertir o contra-regra, mas ainda nada. Entao
- caminhou para o fundo, disfargadamente tragico, mas efetivamente com o fim de
- falar ao bastidor, e dizer em voz surda: "O pistao! o pistao! o pistao!" O publico
- ouviu esta palavra e desatou a rir, ate que, quando a trombeta soou deveras, e
- Asaverus bradou pela terceira vez que era a do arcanjo, um gaiato da plateia
- corrigiu ca de baixo: "Nao, senhor, e o pistao do arcanjo!"
- Assim se explicam a minha estada debaixo da janela de Capitu e a passagem de
- um cavaleiro, um dandi, como entao dizfamos. Montava um belo cavalo alazao,
- firme na sela, redea na mao esquerda, a direita a cinta, botas de verniz, figura e
- postura esbeltas: a cara nao me era desconhecida. Tinham passado outros, e
- ainda outros viriam atras; todos iam as suas namoradas. Era uso do tempo
- namorar a cavalo. Rele Alencar: "Porque um estudante (dizia um dos seus
- personagens de teatro de 1858) nao pode estar sem estas duas coisas, um cavalo
- e uma namorada”.Rele Alvares de Azevedo. Uma das suas poesias e destinada a
- contar (1851) que residia em Catumbi, e, para ver a namorada no Catete, alugara
- um cavalo por tres mil-reis... Tres mil-reis! tudo se perde na noite dos tempos!
- Ora, o dandi do cavalo baio nao passou como os outros; era a trombeta do jufzo
- final e soou a tempo; assim faz o Destino, que e o seu proprio contra-regra. O
- cavaleiro nao se contentou de ir andando, mas voltou a cabega para o nosso lado,
- o lado de Capitu, e olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava, a
- cabega do homem deixava-se ir voltando para tras. Tal foi o segundo dente de
- ciume que me mordeu. A rigor, era natural admirar as belas figuras; mas aquele
- sujeito costumava passar ali, as tardes; morava no antigo Campo da Aclamagao, e
- depois... e depois... Vao la raciocinar com um coragao de brasa, como era o meu!
- Nem disse nada a Capitu; saf da rua a pressa, enfiei pelo meu corredor, e, quando
- dei por mim, estava na sala de visitas.
- CAPI TU LO LXXIV
- A PRESILHA
- Na sala de visitas, tio Cosme e Jose Dias conversavam, um sentado, outro
- andando e parando. A vista de Jose Dias lembrou-me o que ele me dissera no
- seminario: "Aquilo, enquanto nao pegar algum peralta da vizinhanga que case com
- ela..." Era certamente alusao ao cavaleiro. Tal recordagao agravou a impressao
- que eu trazia da rua; mas nao seria essa palavra, inconscientemente guardada,
- que me dispos a crer na malfcia dos seus olhares? A vontade que tive foi pegar em
- Jose Dias pela gola, leva-lo ao corredor e perguntar-lhe se falara de verdade ou
- por hipotese; mas Jose Dias, que parara ao ver-me entrar, continuou a andar e a
- falar. Eu, impaciente, queria ir a casa ao pe, imaginava que Capitu safsse da
- janela assustada e nao tardasse a aparecer, para indagar e explicar... E os dois
- falavam, ate que tio Cosme ergueu-se para ir ver a doente, e Jose Dias veio ter
- comigo, ao vao da outra janela.
- Ha um instante tinha eu desejo de Ihe perguntar o que havia entre Capitu e os
- peraltas do bairro; agora, imaginando que vinha justamente dizer-mo, fiquei com
- medo de ouvi-lo. Quis tapar-lhe a boca. Jose Dias viu no meu rosto algum sinal
- diferente da expressao habitual, e perguntou-me com interesse:
- — Que e, Bentinho?
- Para nao fita-lo, deixei cair os olhos. Os olhos, caindo, viram que uma das
- presilhas das calgas do agregado estava desabotoada, e, como ele insistisse em
- saber o que e que eu tinha, respondi apontando com o dedo:
- — Olhe a presilha, abotoe a presilha.
- Jose Dias inclinou-se, eu saf correndo.
- CAPITULO LXXV
- O DESESPERO
- Escapei ao agregado, escapei a minha mae nao indo ao quarto dela, mas nao
- escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atras de mim. Eu falava-me,
- eu perseguia-me, eu atirava-me a cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os
- solugos com a ponta do lengol. Jurei nao ir ver Capitu aquela tarde, nem nunca
- mais, e fazer-me padre de uma vez. Via-me ja ordenado, diante dela, que choraria
- de arrependimento e me pediria perdao, mas eu, frio e sereno, nao teria mais que
- desprezo, muito desprezo; voltava-lhe as costas. Chamava-lhe perversa. Duas
- vezes dei por mim mordendo os dentes, como se a tivesse entre eles.
- Da cama ouvi a voz dela, que viera passar o resto da tarde com minha mae, e
- naturalmente comigo, como das outras vezes; mas, por maior que fosse o abalo
- que me deu, nao me fez sair do quarto. Capitu ria alto, falava alto, como se me
- avisasse; eu continuava surdo, a sos comigo e o meu desprezo. A vontade que me
- dava era cravar-lhe as unhas no pescogo, enterra-las bem, ate ver-lhe sair a vida
- com o sangue...
- CAPITULO LXXVI
- EXPLI CACAO
- Ao fim de algum tempo, estava sossegado, mas abatido. Como me achasse
- estirado na cama, com os olhos no teto, lembrou-me a recomendagao que minha
- mae fazia de me nao deitar depois do jantar para evitar alguma congestao. Ergui-
- me de golpe, mas nao saf do quarto. Capitu ria agora menos e falava mais baixo;
- estaria aflita com a minha reclusao, mas nem por isso me abalou.
- Nao ceei e dormi mal. Na manha seguinte nao estava melhor, estava diferente. A
- minha dor agora complicava-se do receio de haver ido alem do que convinha,
- deixando de examinar o negocio. Posto que a cabega me doesse um pouco,
- simulei maior incomodo, com o fim de nao ir ao seminario e falar a Capitu. Podia
- estar zangada comigo, podia nao querer-me agora e preferir o cavaleiro. Quis
- resolver tudo, ouvi-la e julga-la; podia ser que tivesse defesa e explicagao.
- Tinha ambas as coisas. Quando soube a causa da minha reclusao da vespera,
- disse-me que era grande injuria que Ihe fazia; nao podia crer que depois da nossa
- troca de juramentos, tao leviana a julgasse que pudesse crer... E aqui romperam-
- Ihe lagrimas, e fez um gesto de separagao; mas eu acudi de pronto, peguei-lhe
- das maos e beijei-as com tanta alma e calor que as senti estremecer. Enxugou os
- olhos com os dedos, eu os beijei de novo, por eles e pelas lagrimas; depois
- suspirou, depois abanou a cabega. Confessou-me que nao conhecia o rapaz, senao
- como os outros que ali passavam as tardes, a cavalo ou a pe. Se olhara para ele,
- era prova exatamente de nao haver nada entre ambos; se houvesse, era natural
- dissimular.
- — E que poderia haver, se ele vai casar? concluiu.
- — Vai casar?
- la casar, disse-me com quem, com uma moga da Rua dos Barbonos. Esta razao
- quadrou-me mais que tudo, e ela o sentiu no meu gesto; nem por isso deixou de
- dizer que, para evitar nova equivocagao, deixaria de ir mais a janela.
- — Nao! nao! nao! nao Ihe pego isto!
- Consentiu em retirar a promessa, mas fez outra, e foi que, a primeira suspeita da
- minha parte, tudo estaria dissolvido entre nos. Aceitei a ameaga, e jurei que nunca
- a haveria de cumprir; era a primeira suspeita e a ultima.
- CAPITULO LXXVII
- PRAZER DAS DORES VELHAS
- Contando aquela crise do meu amor adolescente, sinto uma coisa que nao sei se
- explico bem, e e que as dores daquela quadra, a tal ponto se espiritualizaram com
- o tempo, que chegam a diluir-se no prazer. Nao e claro isto, mas nem tudo e claro
- na vida ou nos livros. A verdade e que sinto um gosto particular em referir tal
- aborrecimento, quando e certo que ele me lembra outros que nao quisera lembrar
- por nada.
- CAPITULO LXXVII I
- SEGREDO POR SEGREDO
- De resto, naquele mesmo tempo senti tal ou qual necessidade de contar a alguem
- o que se passava entre mim e Capitu. Nao referi tudo, mas so uma parte, e foi
- Escobar que a recebeu. Quando voltei ao seminario, na quarta-feira, achei-o
- inquieto; disse-me que era sua intengao ir ver-me, se eu me demorasse mais um
- dia em casa. Perguntava-me com interesse o que e que tivera, e se estava bom de
- todo.
- — Estou.
- Ouvia, espetando-me os olhos. Tres dias depois disse que me estavam achando
- muito distrafdo; era bom disfargar o mais que pudesse. Ele, a sua parte, tinha
- razoes para andar distrafdo tambem, mas buscava ficar atento.
- — Entao parece-lhe?...
- — Sim, voce as vezes esta que nao ouve nada, olhando para ontem; disfarce,
- Santiago.
- — Tenho motivos...
- — Creio; ninguem se distrai a toa.
- — Escobar...
- Hesitei; ele esperou.
- — Que e?
- — Escobar, voce e meu amigo, eu sou seu amigo tambem; aqui ao seminario voce
- e a pessoa que mais me tern entrado no coragao, e la fora, a nao ser a gente da
- famflia, nao tenho propriamente um amigo.
- — Se eu disser a mesma coisa, retorquiu ele sorrindo, perde a graga; parece que
- estou repetindo. Mas a verdade e que nao tenho aqui relagoes com ninguem, voce
- e o primeiro e creio que ja notaram; mas eu nao me importo com isso.
- Comovido, senti que a voz se me precipitava da garganta.
- — Escobar, voce e capaz de guardar um segredo?
- — Voce que pergunta e porque duvida, e nesse caso...
- — Desculpe, e um modo de falar. Eu sei que e mogo serio, e fago de conta que me
- confesso a um padre.
- — Se precisa de absolvigao, esta absolvido.
- — Escobar, eu nao posso ser padre. Estou aqui, os meus acreditam, e esperam;
- mas eu nao posso ser padre.
- — Nem eu, Santiago.
- — Nem voce?
- — Segredo por segredo; tambem eu tenho o proposito de nao acabar o curso;
- meu desejo e o comercio, mas nao diga nada, absolutamente nada; fica so entre
- nos. E nao e que eu nao seja religioso; sou religioso, mas o comercio e a minha
- paixao.
- — So isso?
- — Que mais ha de ser?
- Dei duas voltas e sussurrei a primeira palavra da minha confidence, tao escassa e
- surda, que nao a ouvi eu mesmo; sei porem que disse "uma pessoa..." com
- reticencia. Uma pessoa?... Nao foi preciso mais para que ele entendesse. Uma
- pessoa devia ser uma moga. Nem cuides que pasmou de me ver namorado; achou
- ate natural e espetou-me outra vez os olhos. Entao contei-lhe por alto o que
- podia, mas demoradamente para ter o gosto de repisar o assunto. Escobar
- escutava com interesse; no fim da nossa conversagao, declarou-me que era
- segredo enterrado em cemiterio. Deu-me de conselho que nao me fizesse padre.
- Nao podia levar para a igreja um coragao que nao era do Ceu, mas da Terra; seria
- um mau padre, nem seria padre. Ao contrario, Deus protegia os sinceros; uma vez
- que eu so podia servi-lo no mundo, af me cumpria ficar.
- Nao calculas o prazer que me deu a confidence que Ihe fiz. Era como que uma
- felicidade mais. Aquele coragao mogo que me ouvia e me dava razao, trazia a este
- mundo um aspecto extraordinario. Era um grande e belo mundo, a vida uma
- carreira excelente, e eu nem mais nem menos um mimoso do ceu; eis a minha
- sensagao. Nota que eu nao Ihe disse tudo, nem o melhor; nao Ihe referi o capftulo
- do penteado, por exemplo, nem outros assim; mas o contado era muito.
- Que voltamos ao assunto, nao e preciso dize-lo. Voltamos uma e muitas vezes; eu
- louvava as qualidades morais de Capitu, materia adequada a admiragao de um
- seminarista, a simpleza, a modestia, o amor do trabalho e os costumes religiosos.
- Nao Ihe tocava nas gragas ffsicas, nem ele me perguntava por elas; apenas
- insinuei a convenience de a conhecer de vista.
- — Agora nao e possfvel, disse-lhe na primeira semana, ao voltar de casa; Capitu
- vai passar uns dias com uma amiga da Rua dos Invalidos. Quando ela vier, voce
- ira la; mas pode ir antes, pode ir sempre; por que nao foi ontem jantar comigo?
- — Voce nao me convidou.
- — Pois precisa convidar? La em casa todos ficaram gostando muito de voce.
- — Tambem eu fiquei gostando de todos, mas se e possfvel fazer distingao,
- confesso-lhe que sua mae e uma senhora adoravel.
- — Nao e verdade? retorqui cheio de alvorogo.
- CAPI TULO LXXIX
- VAMOS AO CAPITULO
- Com efeito, gostei de ouvi-lo falar assim. Sabes a opiniao que eu tinha de minha
- mae. Ainda agora, depois de interromper esta linha para mirar-lhe o retrato que
- pende da parede, acho que trazia no rosto impressa aquela qualidade. Nem de
- outro modo se explica a opiniao de Escobar, que apenas trocara com ela quatro
- palavras. Uma so bastava a penetrar-lhe a essencia fntima; sim, sim, minha mae
- era adoravel. Por mais que me estivesse entao obrigando a uma carreira que eu
- nao queria, nao podia deixar de sentir que era adoravel, como uma santa.
- E porventura era certo que me obrigava a carreira eclesiastica? Aqui chego a um
- ponto, que esperei viesse depois, tanto que ja pesquisava em que altura Ihe daria
- um capftulo. Realmente, nao cabia dizer agora o que so mais tarde presumi
- descobrir; mas, uma vez que toquei no ponto, melhor e acabar com ele. E grave e
- complexo, delicado e sutil, um destes em que o autor tern de atender ao filho, e o
- filho ha de ouvir o autor, para que um e outro digam a verdade, so a verdade,
- mas toda a verdade. Cabe ainda notar que esse ponto e que torna justamente a
- santa mais adoravel, sem prejufzo (ao contrario!) da parte humana e terrestre que
- havia nela. Basta de prefacio ao capftulo; vamos ao capftulo.
- CAPITULO LXXX
- VENHAMOS AO CAPITULO
- Venhamos ao capftulo. Minha mae era temente a Deus; sabes disto, e das suas
- praticas religiosas, e da fe pura que as animava. Nem ignoras que a minha
- carreira eclesiastica era objeto de promessa feita quando fui concebido. Tudo esta
- contado oportunamente. Outrossim, sabes que, para o fim de apertar o vinculo
- moral da obrigagao, confiou os seus projetos e motivos a parentes e familiares. A
- promessa, feita com fervor, aceita com misericordia, foi guardada por ela, com
- alegria, no mais fntimo do coragao. Penso que Ihe senti o sabor da felicidade no
- leite que me deu a mamar. Meu pai, se vivesse, e possfvel que alterasse os
- pianos, e, como tinha a vocagao da polftica, e provavel que me encaminhasse
- somente a polftica, embora os dois offcios nao fossem nem sejam inconciliaveis, e
- mais de um padre entre na luta dos partidos e no governo dos homens. Mas meu
- pai morrera sem saber nada, e ela ficou diante do contrato, como unica devedora.
- Um dos aforismos de Franklin e que, para quern tern de pagar na pascoa, a
- quaresma e curta. A nossa quaresma nao foi mais longa que as outras, e minha
- mae, posto me mandasse ensinar latim e doutrina, comegou a adiar a minha
- entrada no seminario. E o que se chama, comercialmente falando, reformar uma
- letra. O credor era arquimilionario, nao dependia daquela quantia para comer, e
- consentiu nas transferences de pagamento, sem sequer agravar a taxa do juro.
- Um dia, porem, um dos familiares que serviam de endossantes da letra, falou da
- necessidade de entregar o prego ajustado; esta num dos capftulos primeiros.
- Minha mae concordou e recolhi-me a Sao Jose.
- Ora, nesse mesmo capftulo, verteu ela umas lagrimas, que enxugou sem explicar,
- e que nenhum dos presentes, nem tio Cosme, nem prima Justina, nem o agregado
- Jose Dias entendeu absolutamente; eu, que estava atras da porta, nao as entendi
- mais que eles. Bem examinadas, apesar da distancia, ve-se que eram saudades
- previas, a magoa da separagao, — e pode ser tambem (e o princfpio do ponto),
- pode ser que arrependimento da promessa. Catolica e devota, sentia muito bem
- que as promessas se cumprem; a questao e se e oportuno e adequado faze-las
- todas, e naturalmente inclinava-se a negativa. Por que e que Deus a puniria,
- negando-lhe um segundo filho? A vontade divina podia ser a minha vida, sem
- necessidade de Ihe dedicar ab ovo. Era um raciodnio tardio; devia ter sido feito no
- dia em que fui gerado. Em todo caso, era uma conclusao primeira; mas, nao
- bastando concluir para destruir, tudo se manteve, e eu fui para o seminario.
- Um cochilo da fe teria resolvido a questao a meu favor, mas a fe velava com os
- seus grandes olhos ingenuos. Minha mae faria, se pudesse, uma troca de
- promessa, dando parte dos seus anos para conservar-me consigo, fora do clero,
- casado e pai; e o que presumo, assim como suponho que rejeitou tal ideia, por Ihe
- parecer uma deslealdade. Assim a senti sempre na corrente da vida ordinaria.
- Sucedeu que a minha ausencia foi logo temperada pela assiduidade de Capitu.
- Esta comegou a fazer-se-lhe necessaria. Pouco a pouco veio-lhe a persuasao de
- que a pequena me faria feliz. Entao (e o final do ponto anuncia-lo), a esperanga de
- que o nosso amor, tornando-me absolutamente incompatfvel com o seminario, me
- levasse a nao ficar la nem por Deus nem pelo Diabo, esta esperanga fntima e
- secreta entrou a invadir o coragao de minha mae. Neste caso, eu romperia o
- contrato sem que ela tivesse culpa. Ela ficava comigo sem ato propriamente seu.
- Era como se, tendo confiado a alguem a importancia de uma dfvida para leva-la ao
- credor, o portador guardasse o dinheiro consigo e nao levasse nada. Na vida
- comum, o ato de terceiro nao desobriga o contratante; mas a vantagem de
- contratar com o Ceu e que intengao vale dinheiro.
- Has de ter tido conflitos parecidos com esse, e, se es religioso, haveras buscado
- alguma vez conciliar o Ceu e a Terra, por modo identico ou analogo. O Ceu e a
- Terra acabam conciliando-se; eles sao quase irmaos gemeos, tendo o Ceu sido
- feito no segundo dia e a Terra no terceiro. Como Abraao, minha mae levou o filho
- ao monte da Visao, e mais a lenha para o holocausto, o fogo e o cutelo. E atou
- Isaac em cima do feixe de lenha, pegou do cutelo e levantou-o ao alto. No
- momento de faze-lo cair, ouve a voz do anjo que Ihe ordena da parte do Senhor:
- "Nao fagas mal algum a teu filho; conheci que femes a Deus". Tal seria a
- esperanga secreta de minha mae.
- Capitu era naturalmente o anjo da Escritura. A verdade e que minha mae nao
- podia te-la agora longe de si. A afeigao crescente era manifesta por atos
- extraordinarios. Capitu passou a ser a flor da casa, o sol das manhas, o frescor
- das tardes, a lua das noites; la vivia horas e horas, ouvindo, falando e cantando.
- Minha mae apalpava-lhe o coragao, revolvia-lhe os olhos, e o meu nome era entre
- ambas como a senha da vida futura.
- CAPI TU LO LXXXI
- UMA PA LAVRA
- Assim contado o que descobri mais tarde, posso trasladar para aqui uma palavra
- de minha mae. Agora se entendera que ela me dissesse, no primeiro sabado,
- quando eu cheguei a casa, e soube que Capitu estava na Rua dos Invalidos, com
- sinhazinha Gurgel:
- — Por que nao vais ve-la? Nao me disseste que o pai de Sancha te ofereceu a
- casa?
- — Ofereceu.
- — Pois entao? Mas e se queres. Capitu devia ter voltado hoje para acabar um
- trabalho comigo; certamente a amiga pediu-lhe que dormisse la.
- — Talvez ficassem namorando, insinuou prima J ustina.
- Nao a matei por nao ter a mao ferro nem corda, pistola nem punhal; mas os olhos
- que Ihe deitei, se pudessem matar, teriam suprido tudo. Um dos erros da
- Providencia foi deixar ao homem unicamente os bragos e os dentes, como armas
- de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos bastavam ao
- primeiro efeito. Um mover deles faria parar ou cair um inimigo ou um rival,
- exerceriam vinganga pronta, com este acrescimo que, para desnortear a justiga,
- os mesmos olhos matadores seriam olhos piedosos, e correriam a chorar a vftima.
- Prima J ustina escapou aos meus; eu e que nao escapei ao efeito da insinuagao, e
- no domingo, as onze horas, corri a Rua dos Invalidos.
- O pai de Sancha recebeu-me em desalinho e triste. A filha estava enferma; cafra
- na vespera com uma febre, que se ia agravando. Como ele queria muito a filha,
- pensava ja ve-la morta, e anunciou-me que se mataria tambem. Eis aqui um
- capftulo funebre como um cemiterio, mortes, suicfdios e assassinatos. Eu ansiava
- por um raio de luz clara e ceu azul. Foi Capitu que os trouxe a porta da sala, vindo
- dizer ao pai de Sancha que a filha o mandara chamar.
- — Esta pior? perguntou Gurgel assustado.
- — Nao, senhor, mas quer falar-lhe.
- — Fique aqui um bocadinho, disse-lhe ele; e voltando-se para mim: E a
- enfermeira de Sancha, que nao quer outra; eu ja volto.
- Capitu trazia sinais de fadiga e comogao, mas tao depressa me viu, ficou toda
- outra, a mocinha de sempre, fresca e lepida, nao menos que espantada. Custou-
- Ihe a crer que fosse eu. Falou-me, quis que Ihe falasse, e efetivamente
- conversamos por alguns minutos, mas tao baixo e abafado que nem as paredes
- ouviram, elas que tern ouvidos. De resto, se elas ouviram algo, nada entenderam,
- nem elas nem os moveis, que estavam tao tristes como o dono.
- CAPITULO LXXXII
- O CANAPE
- Deles, so o canape pareceu haver compreendido a nossa situagao moral, visto que
- nos ofereceu os servigos da sua palhinha, com tal insistencia que os aceitamos e
- nos sentamos. Data daf a opiniao particular que tenho do canape. Ele faz aliar a
- intimidade e o decoro, e mostra a casa toda sem sair da sala. Dois homens
- sentados nele podem debater o destino de um imperio, e duas mulheres a graga
- de um vestido; mas, um homem e uma mulher so por aberragao das leis naturais
- dirao outra coisa que nao seja de si mesmos. Foi o que fizemos, Capitu e eu.
- Vagamente lembra-me que Ihe perguntei se a demora ali seria grande...
- — Nao sei; a febre parece que cede... mas...
- Tambem me lembra, vagamente, que Ihe expliquei a minha visita a Rua dos
- Invalidos, com a pura verdade, isto e, a conselho de minha mae.
- — Conselho dela? murmurou Capitu.
- E acrescentou com os olhos, que brilhavam extraordinariamente:
- — Seremos felizes!
- Repeti estas palavras, com os simples dedos, apertando os dela. O canape, quer
- visse ou nao, continuou a prestar os seus servigo as nossas maos presas e as
- nossas cabegas juntas ou quase juntas.
- CAPITULO LXXXIII
- O RETRATO
- Gurgel tornou a sala e disse a Capitu que a filha chamava por ela. Eu levantei-me
- depressa e nao achei compostura; metia os olhos pelas cadeiras. Ao contrario,
- Capitu ergueu-se naturalmente e perguntou-lhe se a febre aumentara.
- — Nao, disse ele.
- Nem sobressalto nem nada, nenhum ar de misterio da parte de Capitu; voltou-se
- para mim, e disse-me que levasse lembrangas a minha mae e a prima Justina, e
- que ate breve; estendeu-me a mao e enfiou pelo corredor. Todas as minhas
- invejas foram com ela. Como era possfvel que Capitu se governasse tao facilmente
- e eu nao?
- — Esta uma moga, observou Gurgel olhando tambem para ela.
- Murmurei que sim. Na verdade, Capitu ia crescendo as carreiras, as formas
- arredondavam-se e avigoravam-se com grande intensidade; moralmente, a
- mesma coisa. Era mulher por dentro e por fora, mulher a direita e a esquerda,
- mulher por todos os lados, e desde os pes ate a cabega. Esse arvorecer era mais
- apressado, agora que eu a via de dias a dias; de cada vez que vinha a casa
- achava-a mais alta e mais cheia; os olhos pareciam ter outra reflexao, e a boca
- outro imperio. Gurgel, voltando-se para a parede da sala, onde pendia um retrato
- de moga, perguntou-me se Capitu era parecida com o retrato.
- Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opiniao provavel do
- meu interlocutor, desde que a materia nao me agrava, aborrece ou impoe. Antes
- de examinar se efetivamente Capitu era parecida com o retrato, fui respondendo
- que sim. Entao ele disse que era o retrato da mulher dele, e que as pessoas que a
- conheceram diziam a mesma coisa. Tambem achava que as feigoes eram
- semelhantes, a testa principalmente e os olhos. Quanto ao genio, era um;
- pareciam irmas.
- — Finalmente, ate a amizade que ela tern a Sanchinha; a mae nao era mais amiga
- dela... Na vida ha dessas semelhangas assim esquisitas.
- CAPI TULO LXXXI V
- CHAMADO
- No saguao e na rua, examinei ainda comigo se efetivamente ele teria desconfiado
- alguma coisa, mas achei que nao e pus-me a andar. la satisfeito com a visita, com
- a alegria de Capitu, com os louvores de Gurgel, a tal ponto que nao acudi logo a
- uma voz que me chamava:
- — Sr. Bentinho! Sr. Bentinho!
- So depois que a voz cresceu e o dono dela chegou a porta e que eu parei e vi o
- que era e onde estava. Estava ja na Rua de Mata-cavalos. A casa era uma loja de
- louga, escassa e pobre; tinha as portas meio cerradas, e a pessoa que me
- chamava era um pobre homem grisalho e mal vestido.
- — Sr. Bentinho, disse-me ele chorando; sabe que meu filho Manduca morreu?
- — Morreu?
- — Morreu ha meia hora, enterra-se amanha. Mandei recado a sua mae agora
- mesmo, e ela fez-me a caridade de mandar algumas flores para botar no caixao.
- Meu pobre filho! Tinha de morrer, e foi bom que morresse, coitado, mas apesar de
- tudo sempre doi. Que vida que ele teve!... Um dia destes ainda se lembrou do
- senhor, e perguntou se estava no seminario... Quer ve-lo? Entre, ande ve-lo...
- Custa-me dizer isto, mas antes peque por excessivo que por diminuto. Quis
- responder que nao, que nao queria ver o Manduca, e fiz ate um gesto para fugir.
- Nao era medo; noutra ocasiao pode ser ate que entrasse com facilidade e
- curiosidade, mas agora ia tao contente! Ver um defunto ao voltar de uma
- namorada... Ha coisas que se nao ajustam nem combinam. A simples notfcia era
- ja uma turvagao grande. As minhas ideias de ouro perderam todas a cor e o metal
- para se trocarem em cinza escura e feia, e nao distingui mais nada. Penso que
- cheguei a dizer que tinha pressa, mas provavelmente nao falei por palavras claras,
- nem sequer humanas, porque ele, encostado ao portal, abria-me espago com o
- gesto, e eu, sem alma para entrar nem fugir, deixei ao corpo fazer o que pudesse,
- e o corpo acabou entrando.
- Nao culpo ao homem; para ele, a coisa mais importante do momento era o filho.
- Mas tambem nao me culpem a mim; para mim, a coisa mais importante era
- Capitu. O mal foi que os dois casos se conjugassem na mesma tarde, e que a
- morte de um viesse meter o nariz na vida do outro. Eis o mal todo. Se eu
- passasse antes ou depois, ou se o Manduca esperasse algumas horas para morrer,
- nenhuma nota aborrecida viria interromper as melodias da minha alma. Por que
- morrer exatamente ha meia hora? Toda hora e apropriada ao obito; morre-se
- muito bem as seis ou sete horas da tarde.
- CAPI TULO LXXXV
- O DEFUNTO
- Tal foi o sentimento confuso com que entrei na loja de louga. A loja era escura, e o
- interior da casa menos luz tinha, agora que as janelas da area estavam cerradas.
- A um canto da sala de jantar vi a mae chorando; a porta da alcova duas criangas
- olhavam espantadas para dentro, com o dedo na boca. O cadaver jazia na cama; a
- cama...
- Suspendamos a pena e vamos a janela espairecer a memoria. Realmente, o
- quadra era feio, ja pela morte, ja pelo defunto, que era horrivel... Isto aqui, sim, e
- outra coisa. Tudo o que vejo la fora respira vida, a cabra que rumina ao pe de
- uma carroga, a galinha que marisca no chao da rua, o trem da Estrada Central que
- bufa, assobia, fumega e passa, a palmeira que investe para o ceu, e finalmente
- aquela torre de igreja, apesar de nao ter musculos nem folhagem. Um rapaz, que
- ali no beco empina um papagaio de papel, nao morreu nem morre, posto tambem
- se chame Manduca.
- Verdade e que o outro Manduca era mais velho que este, pouco mais velho. Teria
- dezoito ou dezenove anos, mas tanto Ihe darias quinze como vinte e dois, a cara
- nao permitia trazer a idade a vista, antes a escondia nas dobras da... Va, diga-se
- tudo; e morto, os seus parentes sao mortos, se existe algum nao e em tal
- evidencia que se vexe ou doa. Diga-se tudo; Manduca padecia de uma cruel
- enfermidade, nada menos que a lepra. Vivo era feio; morto pareceu-me horrfvel.
- Quando eu vi, estendido na cama, o triste corpo daquele meu vizinho, fiquei
- apavorado e desviei os olhos. Nao sei que mao oculta me compeliu a olhar outra
- vez, ainda que de fugida; cedi, olhei, tornei a olhar, ate que recuei de todo e saf
- do quarto.
- — Padeceu muito! suspirou o pai.
- — Coitado de Manduca! solugava a mae.
- Eu cuidei de sair, disse que era esperado em casa, e despedi-me. O pai
- perguntou-me se Ihe faria o favor de ir ao enterro; respondi com a verdade, que
- nao sabia, faria o que minha mae quisesse. E rapido saf, atravessei a loja, e saltei
- a rua.
- CAPITULO LXXXVI
- AMAI , RAPAZES!
- Era tao perto, que antes de tres minutos me achei em casa. Parei no corredor, a
- tomar folego; buscava esquecer o defunto, palido e disforme, e o mais que nao
- disse para nao dar a estas paginas um aspecto repugnante, mas podes imagina-lo.
- Tudo arredei da vista, em poucos segundos; bastou-me pensar na outra casa, e
- mais na vida e na cara fresca e lepida de Capitu... Amai, rapazes! e,
- principalmente, amai mogas lindas e graciosas; elas dao remedio ao mal, aroma
- ao infecto, trocam a morte pela vida... Amai, rapazes!
- CAPI TULO LXXXVI I
- A SEGE
- Chegara ao ultimo degrau, e uma ideia me entrou no cerebro, como se estivesse a
- esperar por mim, entre as grades da cancela. Ouvi de memoria as palavras do pai
- de Manduca pedindo-me que fosse ao enterro no dia seguinte. Parei no degrau.
- Refleti um instante; sim, podia ir ao enterro, pediria a minha mae que me
- alugasse um carro...
- Nao cuides que era o desejo de andar de carro, por mais que tivesse o gosto da
- condugao. Em pequeno, lembra-me que ia assim muita vez com minha mae as
- visitas de amizade ou de cerimonia, e a missa, se chovia. Era uma velha sege de
- meu pai, que ela conservou o mais que pode. O cocheiro, que era nosso escravo,
- tao velho como a sege, quando me via a porta, vestido, esperando minha mae,
- dizia-me rindo:
- — Pai J oao vai levar nhonho!
- E era raro que eu nao Ihe recomendasse:
- — Joao, demora muito as bestas; vai devagar.
- — Nha Gloria nao gosta.
- — Mas demora!
- Fica entendido que era para saborear a sege, nao pela vaidade, porque ela nao
- permitia ver as pessoas que iam dentro. Era uma velha sege obsoleta, de duas
- rodas, estreita e curta, com duas cortinas de couro na frente, que corriam para os
- lados quando era preciso entrar ou sair. Cada cortina tinha um oculo de vidro, por
- onde eu gostava de espiar para fora.
- — Senta, Bentinho!
- — Deixa espiar, mamae!
- E em pe, quando era mais pequeno, metia a cara no vidro, e via o cocheiro com as
- suas grandes botas, escanchado na mula da esquerda, e segurando a redea da
- outra; na mao levava o chicote grosso e comprido. Tudo incomodo, as botas, o
- chicote e as mulas, mas ele gostava e eu tambem. Dos lados via passar as casas,
- lojas ou nao, abertas ou fechadas, com gente ou sem ela, e na rua as pessoas que
- iam e vinham, ou atravessavam diante da sege, com grandes pernadas ou passos
- miudos. Quando havia impedimento de gente ou de animais, a sege parava, e
- entao o espetaculo era particularmente interessante; as pessoas paradas na
- calgada ou a porta das casas, olhavam para a sege e falavam entre si,
- naturalmente sobre quern iria dentro. Quando fui crescendo em idade imaginei
- que adivinhavam e diziam: "E aquela senhora da Rua de Mata-cavalos, que tern
- um filho, Bentinho..."
- A sege ia tanto com a vida recondita de minha mae, que quando ja nao havia
- nenhuma outra, continuamos a andar nela, e era conhecida na rua e no bairro
- pela "sege antiga". Afinal minha mae consentiu em deixa-la, sem a vender logo;
- so abriu mao dela porque as despesas de cocheira a obrigaram a isso. A razao de
- a guardar inutil foi exclusivamente sentimental; era a lembranga do marido. Tudo
- o que vinha de meu pai era conservado como um pedago dele, um resto da
- pessoa, a mesma alma integral e pura. Mas o uso, esse era filho tambem do
- carrancismo que ela confessava aos amigos. Minha mae exprimia bem a fidelidade
- aos velhos habitos, velhas maneiras, velhas ideias, velhas modas. Tinha o seu
- museu de relfquias, pentes desusados, um trecho de mantilha; umas moedas de
- cobre datadas de 1824 e 1825, e, para que tudo fosse antigo, a si mesma se
- queria fazer velha; mas ja deixei dito que, neste ponto, nao alcangava tudo o que
- queria.
- CAPITULO LXXXVI II
- UM PRETEXTO HONESTO
- Nao, a ideia de ir ao enterro nao vinha da lembranga do carro e suas doguras. A
- origem era outra: era porque, acompanhando o enterro no dia seguinte, nao iria
- ao seminario, e podia fazer outra visita a Capitu, um tanto mais demorada. Eis af
- o que era. A lembranga do carro podia vir acessoriamente depois, mas a principal
- e imediata foi aquela. Voltaria a Rua dos Invalidos, a pretexto de saber de
- sinhazinha Gurgel. Contava que tudo me safsse como naquele dia. Gurgel aflito,
- Capitu comigo no canape, as maos presas, o penteado...
- — Vou pedir a mamae.
- Abri a cancela. Antes de transpo-la, assim como ouvira da memoria a palavra do
- pai do morto, ouvi agora a da mae, e repeti a meia voz:
- — Coitado de Manduca!
- CAPI TULO LXXXIX
- A RECUSA
- Minha mae ficou perplexa quando Ihe pedi para ir ao enterro.
- — Perder um dia de seminario...
- Fiz-lhe notar a amizade que o Manduca me tinha, e depois era gente pobre... Tudo
- o que me lembrou dizer, disse. Prima Justina opinou pela negativa.
- — Voce acha que nao deve ir? perguntou-lhe minha mae.
- — Acho que nao. Que amizade e essa que eu nunca vi?
- Prima Justina venceu. Quando referi o caso ao agregado, este sorriu, e disse-me
- que o motivo escondido da prima era provavelmente nao dar ao enterro "o lustre
- da minha pessoa". Fosse o que fosse, fiquei amuado; no dia seguinte, pensando
- no motivo, nao me desagradou; mais tarde achei-lhe um sabor particular.
- CAPI TULO XC
- A POLEMICA
- No dia seguinte, passei pela casa do defunto, sem entrar nem parar, — ou, se
- parei, foi so um instante, ainda mais breve que este em que vo-lo digo. Se me nao
- engano, andei ate mais depressa, receando que me chamassem como na vespera.
- Uma vez que nao ia ao enterro, antes longe que proximo. Fui andando e pensando
- no pobre diabo.
- Nao eramos amigos, nem nos conhedamos de muito. Intimidade, que intimidade
- podia haver entre a doenga dele e a minha saude? Tivemos relagoes breves e
- distantes. Fui pensando nelas, recordando algumas. Reduziam-se todas a uma
- polemica, entre nos, dois anos antes, a proposito... Mai podeis crer a que
- proposito foi. Foi a guerra da Crimeia.
- Manduca vivia no interior da casa, deitado na cama, lendo por desfastio. Ao
- domingo, sobre a tarde, o pai enfiava-lhe uma camisola escura, e trazia-o para o
- fundo da loja, donde ele espiava um palmo da rua e a gente que passava. Era
- todo o seu recreio. Foi ali que o vi uma vez, e nao fiquei pouco espantado; a
- doenga ia-lhe comendo parte das carnes, os dedos queriam apertar-se; o aspecto
- nao atrafa, decerto. Tinha eu de treze para quatorze anos. Da segunda vez que o
- vi ali, como falassemos da guerra da Crimeia, que entao ardia e andava nos
- jornais, Manduca disse que os aliados haviam de veneer, e eu respondi que nao.
- — Pois veremos, tornou ele. So se a justiga nao veneer neste mundo, o que e
- impossfvel, e a justiga esta com os aliados.
- — Nao, senhor, a razao e dos russos.
- Naturalmente, famos com o que nos diziam os jornais da cidade, transcrevendo os
- de fora, mas pode ser tambem que cada um de nos tivesse a opiniao do seu
- temperamento. Fui sempre um tanto moscovita nas minhas ideias. Defendi o
- direito da Russia, Manduca fez o mesmo ao dos aliados, e o terceiro domingo em
- que entrei na loja tocamos outra vez no assunto. Entao Manduca propos que
- trocassemos a argumentagao por escrito, e na terga ou quarta-feira recebi duas
- folhas de papel contendo a exposigao e defesa do direito dos aliados, e da
- integridade da Turquia, concluindo por esta frase profetica:
- "Os russos nao hao de entrar em Constantinople!"
- Li-a e meti-me a refuta-la. Nao me recorda um so dos argumentos que empreguei,
- nem talvez interesse conhece-los, agora que o seculo esta a expirar; mas a ideia
- que me ficou deles e que eram irrespondfveis. Fui eu mesmo levar-lhe o meu
- papel. Fizeram-me entrar na alcova, onde ele jazia estirado na cama, mal coberto
- por uma colcha de retalhos. Ou gosto da polemica ou qualquer outra causa que
- nao alcango, nao me deixou sentir toda a repugnancia que safa da cama e do
- doente, e o prazer com que Ihe dei o papel foi sincero. Manduca, pela sua parte,
- por mais nojosa que tivesse entao a cara, o sorriso que a acendeu dissimulou o
- mal ffsico. A convicgao com que me recebeu o papel e disse que ia ler e
- responderia e que nao tern palavras nossas nem alheias que a digam de todo e
- com verdade; nao era exaltada, nao era ruidosa, nao tinha gestos, nem a molestia
- os permitiria; era simples, grande, profunda, um gozo infinito de vitoria, antes de
- saber os meus argumentos. Tinha ja papel, pena e tinta ao pe da cama. Dias
- depois recebi a replica; nao me lembra se trazia coisas novas ou nao; o calor e
- que crescia, e o final era o mesmo:
- "Os russos nao hao de entrar em Constantinople!"
- Trepliquei, e daf continuou por algum tempo uma polemica ardente, em que
- nenhum de nos cedia, defendendo cada um os seus clientes com forga e brio.
- Manduca era mais longo e pronto que eu. Naturalmente a mim sobravam mil
- coisas que distrafam, o estudo, os recreios, a famflia, e a propria saude, que me
- chamava a outros exercfcios. Manduca, salvo o palmo de rua ao domingo de tarde,
- tinha so esta guerra, assunto da cidade e do mundo, mas que ninguem ia tratar
- com ele. O acaso dera-lhe em mim um adversario; ele, que tinha gosto a escrita,
- deitou-se ao debate, como a um remedio novo e radical. As horas tristes e
- compridas eram agora breves e alegres; os olhos desaprenderam de chorar, se
- porventura choravam antes. Senti esta mudanga dele nas proprias maneiras do
- pai e da mae.
- — Nao imagina como ele anda agora, depois que o senhor Ihe escreve aqueles
- papeis, dizia-me o dono da loja, uma vez, a porta da rua. Fala e ri muito. Logo
- que eu mando o caixeiro levar-lhe os papeis dele, entra a indagar da resposta, e
- se demorara muito, e que pergunte ao moleque, quando passar. Enquanto espera,
- rele jornais e toma notas. Mas tambem, apenas recebe os seus papeis, atira-se a
- le-los, e comega logo a escrever a resposta. Ha ocasioes em que nao come ou
- come mal; tanto que eu queria pedir-lhe uma coisa, e que nao os mande a hora
- do almogo ou de jantar...
- Fui eu que cansei primeiro. Comecei a demorar as respostas, ate que nao dei mais
- nenhuma; ele ainda teimou duas ou tres vezes depois do meu silencio, mas nao
- recebendo contestagao alguma, por fadiga tambem ou por nao aborrecer, acabou
- de todo com as suas apologias. A ultima, como a primeira, como todas, afirmava a
- mesma predigao eterna:
- "Os russos nao hao de entrar em Constantinopla!"
- Nao entraram, efetivamente, nem entao, nem depois, nem ate agora. Mas a
- predigao sera eterna? Nao chegarao a entrar algum dia? Problema diffcil. O proprio
- Manduca, para entrar na sepultura, gastou tres anos de dissolugao, tao certo e
- que a natureza, como a historia, nao se faz brincando. A vida dele resistiu como a
- Turquia; se afinal cedeu foi porque Ihe faltou uma alianga como a anglo-francesa,
- nao se podendo considerar tal o simples acordo da Medicina e da farmacia. Morreu
- afinal, como os Estados morrem; no nosso caso particular, a questao e saber, nao
- se a Turquia morrera, porque a morte nao poupa a ninguem, mas se os russos
- entrarao algum dia em Constantinopla; essa era a questao para o meu vizinho
- leproso, debaixo da triste, rota e infecta colcha de retalhos...
- CAPI TULO XCI
- ACHADO QUE CONSOLA
- E claro que as reflexoes que af deixo nao foram feitas entao, a caminho do
- seminario, mas agora no gabinete do Engenho Novo. Entao, nao fiz propriamente
- nenhuma, a nao ser esta: que servi de alfvio um dia ao meu vizinho Manduca.
- Hoje, pensando melhor, acho que nao so servi de alfvio, mas ate Ihe dei felicidade.
- E o achado consola-me; ja agora nao esquecerei mais que dei dois ou tres meses
- de felicidade a um pobre diabo, fazendo-lhe esquecer o mal e o resto. E alguma
- coisa na liquidagao da minha vida. Se ha no outro mundo tal ou qual premio para
- as virtudes sem intengao, esta pagara um ou dois dos meus muitos pecados.
- Quanto ao Manduca, nao creio que fosse pecado opinar contra a Russia, mas, se
- era, ele estara purgando ha quarenta anos a felicidade que alcangou em dois ou
- tres meses, — donde concluira (ja tarde) que era ainda melhor haver gemido
- somente, sem opinar coisa nenhuma.
- CAPITULO XCII
- O Dl ABO NAO E TAO FEI O COMO SE PI NTA
- Manduca enterrou-se sem mim. A muitos outros aconteceu a mesma coisa, sem
- que eu sentisse nada, mas este caso afligiu-me particular mente pela razao ja
- dita. Tambem senti nao sei que melancolia ao recordar a primeira polemica da
- vida, o gosto com que ele recebia os meus papeis e se propunha a refuta-los, nao
- contando o gosto do carro... Mas o tempo apagou depressa todas essas saudades
- e ressurreigoes. Nem foi so ele; duas pessoas vieram ajuda-lo: Capitu, cuja
- imagem dormiu comigo na mesma noite, e outra que direi no capftulo que vem. O
- resto deste capftulo e so para pedir que, se alguem tiver de ler o meu livro com
- alguma atengao mais da que Ihe exigir o prego do exemplar, nao deixe de concluir
- que o Diabo nao e tao feio como se pinta. Quero dizer...
- Quero dizer que o meu vizinho de Mata-cavalos, temperando o mal com a opiniao
- anti-russa, dava a podridao das suas carnes um reflexo espiritual que as
- consolava. Ha consolagao maiores, decerto, e uma das mais excelentes e nao
- padecer esse nem outro mal algum, mas a natureza e tao divina que se diverte
- com tais contrastes, e aos mais nojentos ou mais aflitos acena com uma flor. E
- talvez saia assim a flor mais bela; o meu jardineiro afirma que as violetas, para
- terem um cheiro superior, hao mister de estrume de porco. Nao examinei, mas
- deve ser verdade.
- CAPITULO XCII I
- UM AMIGO POR UM DEFUNTO
- Quanto a outra pessoa que teve a forga obliterativa, foi o meu colega Escobar que
- no domingo, antes do meio-dia, veio ter a Mata-cavalos. Um amigo supria assim
- um defunto, e tal amigo que durante cerca de cinco minutos esteve com a minha
- mao entre as suas, como se me nao visse desde longos meses.
- — Voce janta comigo, Escobar?
- — Vim para isto mesmo.
- Minha mae agradeceu-lhe a amizade que me tinha, e ele respondeu com muita
- polidez, ainda que um tanto atado, como se carecesse de palavra pronta. Ja viste
- que nao era assim, a palavra obedecia-lhe, mas o homem nao e sempre o mesmo
- em todos os instantes. O que ele disse, em resumo, foi que me estimava pelas
- minhas boas qualidades e aprimorada educagao; no seminario todos me queriam
- bem, nem podia deixar de ser assim, acrescentou. Insistia na educagao, nos bons
- exemplos, "na doce e rara mae" que o ceu me deu... Tudo isso com a voz
- engasgada e tremula.
- Todos ficaram gostando dele. Eu estava tao contente como se Escobar fosse
- invengao minha. Jose Dias desfechou-lhe dois superlativos, tio Cosme dois
- capotes, e prima Justina nao achou tacha que Ihe por; depois, sim, no segundo ou
- terceiro domingo, veio ela confessar-nos que o meu amigo Escobar era um tanto
- metedigo e tinha uns olhos policiais a que nao escapava nada.
- — Sao os olhos dele, expliquei.
- — Nem eu digo que sejam de outro.
- — Sao olhos refletidos, opinou tio Cosme.
- — Seguramente, acudiu Jose Dias; entretanto, pode ser que a senhora D. Justina
- tenha alguma razao. A verdade e que uma coisa nao impede outra, e a reflexao
- casa-se muito bem a curiosidade natural. Parece curioso, isso parece, mas...
- — A mim parece-me um mocinho muito serio, disse minha mae.
- — J ustamente! confirmou J ose Dias para nao discordar dela.
- Quando eu referi a Escobar aquela opiniao de minha mae (sem Ihe contar as
- outras, naturalmente), vi que o prazer dele foi extraordinario. Agradeceu, dizendo
- que eram bondades, e elogiou tambem minha mae, senhora grave, distinta e
- moga, muito moga... Que idade teria?
- — J a fez quarenta, respondi eu vagamente por vaidade.
- — Nao e possfvel! exclamou Escobar. Quarenta anos! Nem parece trinta; esta
- muito moga e bonita. Tambem a alguem ha de voce sair, com esses olhos que
- Deus Ihe deu; sao exatamente os dela. Enviuvou ha muitos anos?
- Contei-lhe o que sabia da vida dela e de meu pai. Escobar escutava atento,
- perguntando mais, pedindo explicagao das passagens omissas ou so escuras.
- Quando eu Ihe disse que nao me lembrava nada da roga, tao pequenino viera,
- contou-me duas ou tres reminiscencias dos seus tres anos de idade, ainda agora
- frescas. E nao contavamos voltar a roga?
- — Nao, agora nao voltamos mais. Olhe, aquele preto que ali vai passando, e de la.
- Tomas!
- — Nhonho!
- Estavamos na horta da minha casa, e o preto andava em servigo; chegou-se a nos
- e esperou.
- — E casado, disse eu para Escobar. Maria onde esta?
- — Esta socando milho, sim, senhor.
- — Voce ainda se lembra da roga, Tomas?
- — Alembra, sim, senhor.
- — Bem, va-se embora.
- Mostrei outro, mais outro, e ainda outro, este Pedro, aquele Jose, aquele outro
- Damiao. . .
- — Todas as letras do alfabeto, interrompeu Escobar.
- Com efeito, eram diferentes letras, e so entao reparei nisto; apontei ainda outros
- escravos, alguns com os mesmos nomes, distinguindo-se por um apelido, ou da
- pessoa, como Joao Fulo, Maria Gorda, ou de nagao como Pedro Benguela, Antonio
- Mozambique...
- — E estao todos aqui em casa? perguntou ele.
- — Nao, alguns andam ganhando na rua, outros estao alugados. Nao era possfvel
- ter todos em casa. Nem sao todos os da roga; a maior parte ficou la.
- — O que me admira e que D. Gloria se acostumasse logo a viver em casa da
- cidade, onde tudo e apertado; a de la e naturalmente grande.
- — Nao sei, mas parece. Mamae tern outras casas maiores que esta; diz porem que
- ha de morrer aqui. As outras estao alugadas. Algumas sao bem grandes, como a
- da Rua da Quitanda...
- — Conhego essa; e bonita.
- — Tern tambem no Rio Comprido, na Cidade-Nova, uma no Catete...
- — Nao Ihe hao de faltar tetos, concluiu ele sorrindo com simpatia.
- Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante af,
- mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexoes a proposito do asseio; depois
- continuamos. Quais foram as reflexoes nao me lembra agora; lembra-me so que
- as achei engenhosas, e ri, ele riu tambem. A minha alegria acordava a dele, e o
- ceu estava tao azul, e o ar tao claro, que a natureza parecia rir tambem conosco.
- Sao assim as boas horas deste mundo. Escobar confessou esse acordo do interno
- com o externo, por palavras tao finas e altas que me comoveram; depois, a
- proposito da beleza moral que se ajusta a ffsica, tornou a falar de minha mae, "um
- anjo dobrado", disse ele.
- CAPITULO XCIV
- I DEI AS ARITMETI CAS
- Nao digo o mais, que foi muito. Nem ele sabia so elogiar e pensar, sabia tambem
- calcular depressa e bem. Era das cabegas aritmeticas de Holmes (2 + 2 = 4). Nao
- se imagina a facilidade com que ele somava ou multiplicava de cor. A divisao, que
- foi sempre uma das operagoes diffceis para mim, era para ele como nada: cerrava
- um pouco os olhos, voltados para cima, e sussurrava as denominagoes dos
- algarismos; estava pronto. Isto com sete, treze, vinte algarismos. A vocagao era
- tal que o fazia amar os proprios sinais das somas, e tinha esta opiniao que os
- algarismos, sendo poucos, eram muito mais conceituosos que as vinte e cinco
- letras do alfabeto.
- — Ha letras inuteis e letras dispensaveis, dizia ele. Que servigo diverso prestam o
- d e o t? Tern quase o mesmo som. O mesmo digo do b e do p, o mesmo do s, do c
- e do z, o mesmo do k e do g, etc. Sao trapalhices caligraficas. Veja os algarismos:
- nao ha dois que fagam o mesmo offcio; 4 e 4, e 7 e 7. E admire a beleza com que
- um 4 e um 7 formam esta coisa que se exprime por 11. Agora dobre 11 e tera 22;
- multiplique por igual numero, da 484, e assim por diante. Mas onde a perfeigao e
- maior e no emprego do zero. O valor do zero e, em si mesmo, nada; mas o offcio
- deste sinal negativo e justamente aumentar. Um 5 sozinho e um 5; ponha-lhe dois
- 00, e 500. Assim, o que nao vale nada faz valer muito, coisa que nao fazem as
- letras dobradas, pois eu tanto aprovo com um p como com dois pp.
- Criado na ortografia de meus pais, custava-me a ouvir tais blasfemias, mas nao
- ousava refuta-lo. Contudo, urn dia, proferi algumas palavras de defesa, ao que ele
- respondeu que era um preconceito, e acrescentou que as ideias aritmeticas
- podiam ir ao infinito, com a vantagem que eram mais faceis de menear. Assim
- que, eu nao era capaz de resolver de momento um problema filosofico ou
- lingufstico, ao passo que ele podia somar, em tres minutos, quaisquer quantias.
- — Por exemplo... de-me um caso, de-me uma porgao de numeros que eu nao
- saiba nem possa saber antes... olhe, de-me o numero das casas de sua mae e os
- alugueis de cada uma, e se eu nao disser a soma total em dois, em um minuto,
- enforque-me!
- Aceitei a aposta, e na semana seguinte levei-lhe escritos em um papel os
- algarismos das casas e dos alugueis. Escobar pegou o papel, passou-os pelos
- olhos a fim de os decorar, e enquanto eu fitava o relogio, ele erguia as pupilas,
- cerrava as palpebras, e sussurrava... Oh! o vento nao e mais rapido! Foi dito e
- feito; em meio minuto bradava-me:
- — Da tudo 1:070$000 mensais.
- Fiquei pasmado. Considera que eram nao menos de nove casas, e que os alugueis
- variavam de uma para outra, indo de 70$000 a 180$000. Pois tudo isto em que eu
- gastaria tres ou quatro minutos, — e havia de ser no papel, — fe-lo Escobar de
- cor, brincando. Olhava-me triunfalmente, e perguntava se nao era exato. Eu, so
- por Ihe mostrar que sim, tirei do bolso o papelzinho que levava com a soma total,
- e mostrei-lho; era aquilo mesmo, nem um erro: 1:070$000.
- — Isto prova que as ideias aritmeticas sao mais simples, e portanto mais naturais.
- A natureza e simples. A arte e atrapalhada.
- Fiquei tao entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que nao pude
- deixar de abraga-lo. Era no patio; outros seminaristas notaram a nossa efusao;
- um padre que estava com eles nao gostou.
- — A modestia, disse-nos, nao consente esses gestos excessivos; podem estimar-
- se com moderagao.
- Escobar observou-me que os outros e o padre falavam de inveja e propos-me
- viver separados. Interrompi-o dizendo que nao; se era inveja, tanto pior para eles.
- — Quebremos-lhe a castanha na boca!
- — Mas...
- — Fiquemos ainda mais amigos que ate aqui.
- Escobar apertou-me a mao as escondidas, com tal forga que ainda me doem os
- dedos. E ilusao, decerto, se nao e efeito das longas horas que tenho estado a
- escrever sem parar. Suspendamos a pena por alguns instantes...
- CAPITULO XCV
- O PAPA
- A amizade de Escobar fez-se grande e fecunda; a de Jose Dias nao Ihe quis ficar
- atras. Na primeira semana disse-me este em casa:
- — Agora e certo que voce vai sair ja do seminario.
- — Como?
- — Espere ate amanha. Vou jogar com eles que me chamaram; amanha, la no
- quarto, no quintal, ou na rua, indo a missa, conto-lhe o que ha. A ideia e tao santa
- que nao esta mal no santuario. Amanha, Bentinho.
- — Mas e coisa certa?
- — Certfssima!
- No dia seguinte revelou-me o misterio. Ao primeiro aspecto, confesso que fiquei
- deslumbrado. Trazia uma nota de grandeza e de espiritualidade que falava aos
- meus olhos de seminarista. Era nao menos que isto. Minha mae, ao parecer dele,
- estava arrependida do que fizera, e desejaria ver-me ca fora, mas entendia que o
- vinculo moral da promessa a prendia indissoluvelmente. Cumpria rompe-lo, e para
- tanto valia a Escritura, com o poder de desligar dado aos apostolos. Assim que, ele
- e eu inamos a Roma pedir a absolvigao do papa... Que me parecia?
- — Parece-me bem, respondi depois de alguns segundos de reflexao. Pode ser um
- bom remedio.
- — E o unico, Bentinho, e o unico! Vou ja hoje conversar com D. Gloria, exponho-
- Ihe tudo, e podemos partir daqui a dois meses, ou antes...
- — Melhor e falar domingo que vem; deixe-me pensar primeiro...
- — Oh! Bentinho! interrompeu o agregado. Pensar em que? Voce o que quer...
- Digo? Nao se amofina com o seu velho? Voce o que quer e consultar a uma
- pessoa.
- Rigorosamente, eram duas pessoas, Capitu e Escobar, mas eu neguei a pes juntos
- que quisesse consultar ninguem. E que pessoa, o reitor? Nao era natural que Ihe
- confiasse tal assunto. Nao, nem reitor, nem professor, nem ninguem; era so o
- tempo de refletir, uma semana, no domingo daria a resposta, e desde ja Ihe dizia
- que a ideia nao me parecia ma.
- — Nao?
- — Nao.
- — Pois resolvamos hoje mesmo.
- — Nao se vai a Roma brincando.
- — Quern tern boca vai a Roma, e boca no nosso caso e a moeda. Ora, voce pode
- muito bem gastar consigo... Comigo, nao; um par de calgas, tres camisas e o pao
- diario, nao preciso mais. Serei como Sao Paulo, que vivia do offcio enquanto ia
- pregando a palavra divina. Pois eu vou, nao prega-la, mas busca-la. Levaremos
- cartas do internuncio e do bispo, cartas para o nosso ministro, cartas de
- capuchinhos... Bem sei a objegao que se pode opor a esta ideia; dirao que e dado
- pedir a dispensa ca de longe; mas, alem do mais que nao digo, basta refletir que e
- muito mais solene e bonito ver entrar no Vaticano, e prostrar-se aos pes do papa
- o proprio objeto do favor, o levita prometido, que vai pedir para sua mae
- termssima e dulcissima a dispensa de Deus. Considere o quadro, voce beijando o
- pe ao prfncipe dos apostolos; Sua Santidade, com o sorriso evangelico, inclina-se,
- interroga, ouve, absolve e abengoa. Os anjos o contemplam, a Virgem recomenda
- ao santfssimo filho que todos os seus desejos, Bentinho, sejam satisfeitos, e que o
- que voce amar na Terra seja igualmente amado no Ceu...
- Nao digo mais, porque e preciso acabar o capftulo, e ele nao acabou o discurso.
- Falou a todos os meus sentimentos de catolico e de namorado. Vi a alma aliviada
- de minha mae, vi a alma feliz de Capitu, ambas em casa, e eu com elas, e ele
- conosco, tudo mediante uma pequena viagem a Roma, que eu so geograficamente
- sabia onde ficava; espiritualmente, tambem, mas a distancia que estaria da
- vontade de Capitu e que nao. Eis o ponto essencial. Se Capitu achasse longe, nao
- iria; mas era preciso ouvi-la, e assim tambem a Escobar, que me daria um bom
- conselho.
- CAPITU LO XCVI
- UM SUBSTITUTO
- Expus a Capitu a ideia dejose Dias. Ouviu-me atentamente, e acabou triste.
- — Voce indo, disse ela, esquece-me inteiramente.
- — Nunca!
- — Esquece. A Europa dizem que e tao bonita, e a Italia principalmente. Nao e de
- la que verm as cantoras? Voce esquece-me, Bentinho. E nao havera outro meio? D.
- Gloria esta morta para que voce saia do seminario.
- — Sim, mas julga-se presa pela promessa.
- Capitu nao achava outra ideia, nem acabava de adotar esta. De caminho, pediu-
- me que, se acaso fosse a Roma, jurasse que no fim de seis meses estaria de volta.
- — J uro.
- — Por Deus?
- — Por Deus, por tudo. J uro que no fim de seis meses estarei de volta.
- — Mas se o papa nao tiver ainda soltado a voce?
- — Mando dizer isso mesmo.
- — E se voce mentir?
- Esta palavra doeu-me muito, e nao achei logo que Ihe replicasse. Capitu meteu o
- negocio a bulha, rindo e chamando-me disfargado. Depois, declarou crer que eu
- cumpriria o juramento, mas ainda assim nao consentiu logo; ia ver se nao haveria
- outra coisa, e eu que visse tambem por meu lado.
- Quando voltei ao seminario, contei tudo ao meu amigo Escobar, que me ouviu com
- igual atengao e acabou com a mesma tristeza da outra. Os olhos, de costume
- fugidios, quase me comeram de contemplagao. De repente, vi-lhe no rosto um
- clarao, um reflexo de ideia. E ouvi-lhe dizer com volubilidade:
- — Nao, Bentinho, nao e preciso isso. Ha melhor, — nao digo melhor, porque o
- Santo Padre vale sempre mais que tudo, — mas ha coisa que produz o mesmo
- efeito.
- — Que e?
- — Sua mae fez promessa a Deus de Ihe dar um sacerdote, nao e? Pois bem, de-
- Ihe um sacerdote, que nao seja voce. Ela pode muito bem tomar a si algum
- mocinho orfao, faze-lo ordenar a sua custa, esta dado um padre ao altar, sem que
- voce...
- — Entendo, entendo, e isso mesmo.
- — Nao acha? continuou ele. Consulte sobre isto o protonotario; ele Ihe dira se nao
- e a mesma coisa, ou eu mesmo consulto, se quer; e se ele hesitar, fala-se ao Sr.
- bispo.
- Eu, refletindo:
- — Sim, parece que e isso; realmente, a promessa cumpre-se, nao se perdendo o
- padre.
- Escobar observou que, pelo lado economico, a questao era facil; minha mae
- gastaria o mesmo que comigo, e um orfao nao precisaria grandes comodidades.
- Citou a soma dos alugueis das casas, 1.070$000, alem dos escravos...
- — Nao ha outra coisa, disse eu.
- — E safmos juntos.
- — Voce tambem?
- — Tambem eu. Vou melhorar o meu latim e saio; nem dou teologia. O proprio
- latim nao e preciso; para que no comercio?
- — In hoc signo vinces, disse eu rindo.
- Sentia-me pilherico. Oh! como a esperanga alegra tudo. Escobar sorriu, parecendo
- gostar da resposta. Depois ficamos a cuidar de nos mesmos, cada um com os seus
- olhos perdidos, provavelmente. Os dele estavam assim, quando tornei de longe, e
- agradeci de novo o piano lembrado; nao podia have-lo melhor. Escobar ouviu-me
- contentfssimo.
- — Ainda uma vez, disse ele gravemente, a religiao e a liberdade fazem boa
- companhia.
- CAPITULO XCVII
- A SAI DA
- Tudo se fez por esse teor. Minha mae hesitou um pouco, mas acabou cedendo,
- depois que o Padre Cabral, tendo consultado o bispo, voltou a dizer-lhe que sim,
- que podia ser. Saf do seminario no fim do ano.
- Tinha entao pouco mais de dezessete... Aqui devia ser o meio do livro, mas a
- inexperiencia fez-me ir atras da pena, e chego quase ao fim do papel, com o
- melhor da narragao por dizer. Agora nao ha mais que leva-la a grandes pernadas,
- capftulo sobre capftulo, pouca emenda, pouca reflexao, tudo em resumo. Ja esta
- pagina vale por meses, outras valerao por anos, e assim chegaremos ao fim. Um
- dos sacrifices que fago a esta dura necessidade e a analise das minhas emogoes
- dos dezessete anos. Nao sei se alguma vez tiveste dezessete anos. Se sim, deves
- saber que e a idade em que a metade do homem e a metade do menino formam
- um so curioso. Eu era um curiosfssimo, diria o meu agregado Jose Dias, e nao
- diria mal. O que essa qualidade superlativa me rendeu nao poderia nunca dize-lo
- aqui, sem cair no erro que acabo de condenar; a analise das minhas emogoes
- daquele tempo e que entrava no meu piano. Posto que filho do seminario e de
- minha mae, sentia ja debaixo do recolhimento casto uns assomos de petulancia e
- de atrevimento; eram do sangue, mas eram tambem das mogas que na rua ou da
- janela nao me deixavam viver sossegado. Achavam-me lindo, e diziam-mo;
- algumas queriam mirar de mais perto a minha beleza, e a vaidade e um princfpio
- de corrupgao.
- CAPITULO XCVIII
- Cl NCO ANOS
- Venceu a razao; fui-me aos estudos.
- Passei os dezoito anos, os dezenove, os vinte, os vinte e um; aos vinte e dois era
- bacharel em Direito.
- Tudo mudara em volta de mim. Minha mae resolvera-se a envelhecer; ainda assim
- os cabelos brancos vinham de ma vontade, aos poucos e espalhadamente; a
- touca, os vestidos, os sapatos rasos e surdos eram os mesmos de outrora. Ja nao
- andaria tanto de um lado para outro. Tio Cosme padecia do coragao e ia
- descansar. A prima Justina apenas estava mais idosa. Jose Dias tambem, nao
- tanto que me nao fizesse a fineza de ir assistir a minha graduagao, e descer
- comigo a serra, lepido e vigoso, como se o bacharel fosse ele. A mae de Capitu
- falecera, o pai aposentara-se no mesmo cargo em que quis dar demissao da vida.
- Escobar comegava a negociar em cafe depois de haver trabalhado quatro anos em
- uma das primeiras casas do Rio de Janeiro. Era opiniao de prima Justina que ele
- afagara a ideia de convidar minha mae a segundas nupcias; mas, se tal ideia
- houve, cumpre nao esquecer a grande diferenga de idade. Talvez ele nao pensasse
- em mais que associa-la aos seus primeiros tentamens comerciais, e de fato, a
- pedido meu, minha mae adiantou-lhe alguns dinheiros, que ele Ihe restituiu, logo
- que pode, nao sem este remoque: "D. Gloria e medrosa e nao tern ambigao."
- A separagao nao nos esfriou. Ele foi o terceiro na troca das cartas entre mim e
- Capitu. Desde que a viu animou-me muito no nosso amor. As relagoes que travou
- com o pai de Sancha estreitaram as que ja trazia com Capitu, e fe-lo servir a
- ambos nos, como amigo. A princfpio, custou-lhe a ela aceita-lo, preferia Jose Dias,
- mas Jose Dias repugnava-me por um resto de respeito de crianga. Venceu
- Escobar; posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira carta, que foi mae e
- avo das outras. Nem depois de casado suspendeu ele o obsequio... Que ele casou,
- — adivinha com quern, — casou com a boa Sancha, a amiga de Capitu, quase irma
- dela, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chamava a esta a "sua
- cunhadinha". Assim se formam as afeigoes e os parentescos, as aventuras e os
- livros.
- CAPITULO XCIX
- O FI LHO E A CARA DO PAI
- Minha mae, quando eu regressei bacharel quase estalou de felicidade. Ainda ougo
- a voz de Jose Dias, lembrando o evangelho de Sao J oao, e dizendo ao ver-nos
- abragados:
- — Mulher, eis af o teu filho! Filho, eis af a tua mae!
- Minha mae, entre lagrimas:
- — Mano Cosme, e a cara do pai, nao e?
- — Sim, tern alguma coisa, os olhos, a disposigao do rosto. E o pai, um pouco mais
- moderno, concluiu por chalaga. E diga-me agora, mana Gloria, nao foi melhor que
- ele nao teimasse em ser padre? Veja se este peralta daria um padre capaz.
- — Como vai o meu substituto?
- — Vai indo, ordena-se para o ano, respondeu tio Cosme. Has de ir ver a
- ordenagao; eu tambem, se o meu senhor coragao consentir. E bom que te sintas
- na alma do outro, como se recebesses em ti mesmo a sagragao.
- — Justamente! exclamou minha mae. Mas veja bem, mano Cosme, veja se nao e
- a figura do meu defunto. Olha, Bentinho, olha bem para mim. Sempre achei que
- te parecias com ele, agora e muito mais. O bigode e que desfaz um pouco...
- — Sim, mana Gloria, o bigode realmente... mas e muito parecido.
- E minha mae beijava-me com uma ternura que nao sei escrever. Tio Cosme, para
- alegra-la, chamava-me doutor, Jose Dias tambem, e todos em casa, a prima, os
- escravos, as visitas, Padua, a filha, e ela mesma repetiam-me o tftulo.
- CAPI TULO C
- "TU SERAS FELIZ, BENTINHO"
- No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de dentro da lata, ia
- pensando na felicidade e na gloria. Via o casamento e a carreira ilustre, enquanto
- Jose Dias me ajudava, calado e zeloso. Uma fada invisfvel desceu ali e me disse
- em voz igualmente macia e calida: "Tu seras feliz, Bentinho; tu vais ser feliz. "
- — E por que nao seria feliz? perguntou Jose Dias, endireitando o tronco e fitando-
- me.
- — Voce ouviu? perguntei eu erguendo-me tambem, espantado.
- — Ouviu o que?
- — Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz?
- — E boa! Voce mesmo e que esta dizendo...
- Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente as fadas,
- expulsas dos contos e dos versos, meteram-se no coragao da gente e falam de
- dentro para fora. Esta, por exemplo, muita vez a ouvi clara e distinta. Ha de ser
- prima das feiticeiras da Escocia: "Tu seras rei, Macbeth!" — "Tu seras feliz,
- Bentinho!" Ao cabo, e a mesma predigao, pela mesma toada universal e eterna.
- Quando voltei do meu espanto, ouvi o resto do discurso de J ose Dias:
- —...Ha de ser feliz, como merece, assim como mereceu esse diploma que ali esta,
- que nao e favor de ninguem. A distingao que tirou em todas as materias e prova
- disso; ja Ihe contei que ouvi da boca dos lentes, em particular, os maiores elogios.
- Demais, a felicidade nao e so a gloria, e tambem outra coisa... Ah! voce nao
- confiou tudo ao velhojose Dias! O pobre J ose Dias esta af para um canto, e caju
- chupado, nao vale nada; agora sao os novos, os Escobares... Nao Ihe nego que e
- mogo muito distinto, e trabalhador, e marido de truz; mas, enfim, velho tambem
- sabe amar...
- — Mas que e?
- — Que ha de ser? Quern e que nao sabe tudo?... Aquela intimidade de vizinhos
- tinha de acabar nisto, que e verdadeiramente uma bengao do ceu, porque ela e
- um anjo, e um anjfssimo... Perdoe a cincada, Bentinho, foi um modo de acentuar a
- perfeigao daquela moga. Cuidei o contrario, outrora; confundi os modos de crianga
- com expressoes de carater, e nao vi que essa menina travessa e ja de olhos
- pensativos era a flor caprichosa de um fruto sadio e doce... Por que e que nao me
- contou tambem o que outros sabem, e ca em casa esta mais que adivinhado e
- aprovado?
- — Mamae aprova deveras?
- — Pois entao? Temos falado sobre isso, e ela fez-me o favor de pedir a minha
- opiniao. Pergunte-lhe o que e que eu Ihe disse em termos claros e positivos;
- pergunte-lhe. Disse-lhe que nao podia desejar melhor nora para si, boa, discreta,
- prendada, amiga da gente... e uma dona de casa, que nao Ihe digo nada. Depois
- da morte da mae, tomou conta de tudo. Padua, agora que se aposentou, nao faz
- mais que receber o ordenado e entrega-lo a filha. A filha e que distribui o dinheiro,
- paga as contas, faz o rol das despesas, cuida de tudo, mantimento, roupa, luz;
- voce ja a viu o ano passado. E quanto a formosura voce sabe melhor que
- ninguem...
- — Mas, deveras, mamae consultou o senhor sobre o nosso casamento?
- — Positivamente, nao; fez-me o favor de perguntar se Capitu nao daria uma boa
- esposa; eu e que, na resposta, falei em nora. D. Gloria nao negou e ate deu um ar
- de riso.
- — Mamae sempre que me escrevia, falava de Capitu.
- — Voce sabe que elas se dao muito, e por isso e que sua prima anda cada vez
- mais amuada. Talvez agora case mais depressa.
- — Prima J ustina?
- — Nao sabe? Sao contos, naturalmente; mas enfim, o Doutor Joao da Costa
- enviuvou ha poucos meses, e dizem (nao sei, o protonotario e que me contou),
- dizem que os dois andam meio inclinados a acabar com a viuvez, entre si,
- casando-se. Ha de ver que nao ha nada, mas nao e fora de proposito, conquanto
- ela sempre achasse que o doutor era um feixe de ossos... So se ela e um
- cemiterio, comentou rindo; e logo serio: Digo isto por gracejo...
- Nao ouvi o resto. Ouvia so a voz da minha fada interior, que me repetia, mas ja
- entao sem palavras: "Tu seras feliz, Bentinho!" E a voz de Capitu me disse a
- mesma coisa, com termos diversos, e assim tambem a de Escobar, os quais
- ambos me confirmaram a notfcia dejose Dias pela sua propria impressao. Enfim,
- minha mae, algumas semanas depois, quando Ihe fui pedir licenga para casar,
- alem do consentimento, deu-me igual profecia, salva a redagao propria de mae:
- "Tu seras feliz, meu filho!
- CAPITULO Cl
- NO CEU
- Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de
- esperar, e va espairecer a outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma tarde de
- margo, por sinal que chovia. Quando chegamos ao alto da Tijuca, onde era o
- nosso ninho de noivos, o ceu recolheu a chuva e acendeu as estrelas, nao so as ja
- conhecidas, mas ainda as que so serao descobertas daqui a muitos seculos. Foi
- grande fineza e nao foi unica. Sao Pedro, que tern as chaves do Ceu, abriu-nos as
- portas dele, fez-nos entrar, e depois de tocar-nos com o baculo, recitou alguns
- versfculos da sua primeira epfstola: "As mulheres sejam sujeitas a seus maridos...
- Nao seja o adorno delas o enfeite dos cabelos rigados ou as rendas de ouro, mas o
- homem que esta escondido no coragao... Do mesmo modo, vos, maridos, coabitai
- com elas, tratando-as com honra, como a vasos mais fracos, e herdeiras convosco
- da graga da vida..." Em seguida, fez sinal aos anjos, e eles entoaram um trecho do
- Cantico, tao concertadamente, que desmentiriam a hipotese do tenor italiano, se a
- execugao fosse na Terra; mas era no Ceu. A musica ia com o texto, como se
- houvessem nascido juntos, a maneira de uma opera de Wagner. Depois, visitamos
- uma parte daquele lugar infinito. Descansa que nao farei descrigao alguma, nem a
- lingua humana possui formas idoneas para tanto.
- Ao cabo, pode ser que tudo fosse um sonho; nada mais natural a um ex-
- seminarista que ouvir por toda a parte latim e Escritura. E verdade que Capitu,
- que nao sabia Escritura nem latim, decorou algumas palavras, como estas, por
- exemplo: "Sentei-me a sombra daquele que tanto havia desej ado". Quanto as de
- Sao Pedro, disse-me no dia seguinte que estava por tudo, que eu era a unica
- renda e o unico enfeite que jamais poria em si. Ao que eu repliquei que a minha
- esposa teria sempre as mais finas rendas deste mundo.
- CAPI TULO Cl I
- DE CASADA
- Imagina um relogio que so tivesse pendulo, sem mostrador, de maneira que nao
- se vissem as horas escritas. O pendulo iria de um lado para outro, mas nenhum
- sinal externo mostraria a marcha do tempo. Tal foi aquela semana da Tijuca.
- De quando em quando, tornavamos ao passado e divertfamo-nos em relembrar as
- nossas tristezas e calamidades, mas isso mesmo era um modo de nao sairmos de
- nos. Assim vivemos novamente a nossa longa espera de namorados, os anos da
- adolescencia, a denuncia que esta nos primeiros capftulos, e namos de J ose Dias
- que conspirou a nossa desuniao, e acabou festejando o nosso consorcio. Uma ou
- outra vez, falavamos em descer, mas as manhas marcadas eram sempre de chuva
- ou de sol, e nos esperavamos um dia encoberto, que teimava em nao vir.
- Nao obstante, achei que Capitu estava um tanto impaciente por descer.
- Concordava em ficar, mas ia falando do pai e de minha mae, da falta de notfcias
- nossas, disto e daquilo, a ponto que nos arrufamos um pouco. Perguntei-lhe se ja
- estava aborrecida de mim.
- — Eu?
- — Parece.
- — Voce ha de ser sempre crianga, disse ela fechando-me a cara entre as maos e
- chegando muito os olhos aos meus. Entao eu esperei tantos anos para aborrecer-
- me em sete dias? Nao, Bentinho; digo isto porque e realmente assim, creio que
- eles podem estar desejosos de ver-nos e imaginar alguma doenga; e confesso,
- pela minha parte, que queria ver papai.
- — Pois vamos amanha.
- — Nao; ha de ser com tempo encoberto, redarguiu rindo.
- Peguei-lhe no riso e na palavra, mas a impaciencia continuou, e descemos com
- sol.
- A alegria com que pos o seu chapeu de casada, e o ar de casada com que me deu
- a mao para entrar e sair do carro, e o brago para andar na rua, tudo me mostrou
- que a causa da impaciencia de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado.
- Nao Ihe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas arvores; precisava do
- resto do mundo tambem. E quando eu me vi embaixo, pisando as ruas com ela,
- parando, olhando, falando, senti a mesma coisa. Inventava passeios para que me
- vissem, me confirmassem e me invejassem. Na rua, muitos voltavam a cabega
- curiosos, outros paravam, alguns perguntavam: "Quern sao?" e um sabido
- explicava: "Este e o Doutor Santiago, que casou ha dias com aquela moga, D.
- Capitolina, depois de uma longa paixao de criangas; moram na Gloria, as famflias
- residem em Mata-cavalos." E ambos os dois: "E uma mocetona!"
- CAPITULO Cl 1 1
- A FELI Cl DADE TEM BOA ALMA
- Mocetona e vulgar; Jose Dias achou melhor. Foi a unica pessoa ca de baixo que
- nos visitou na Tijuca, levando abragos dos nossos e palavras suas, mas palavras
- que eram musicas verdadeiras; nao as ponho aqui para ir poupando papel, mas
- foram deliciosas. Um dia, comparou-nos a aves criadas em dois vaos de telhados
- contfguos. Imagina o resto, as aves emplumando as asas e subindo ao ceu, e o
- ceu agora mais largo para poder conte-las tambem. Nenhum de nos riu; ambos
- escutavamos comovidos e convencidos, esquecendo tudo, desde a tarde de
- 1857... A felicidade tern boa alma.
- CAPITULO CIV
- AS PIRAMIDES
- Jose Dias dividia-se agora entre mim e minha mae, alternando os jantares da
- Gloria com os almogos de Mata-cavalos. Tudo corria bem. Ao fim de dois anos de
- casado, salvo o desgosto grande de nao ter um filho, tudo corria bem. Perdera
- meu sogro, e verdade, e o tio Cosme estava por pouco, mas a saude de minha
- mae era boa; a nossa excelente.
- Eu era advogado de algumas casas ricas, e os processos vinham chegando.
- Escobar contribufra muito para as minhas estreias no foro. Interveio com um
- advogado celebre para que me admitisse a sua banca, e arranjou-me algumas
- procuragoes, tudo espontaneamente.
- Demais, as nossas relagoes de famflia estavam previamente feitas; Sancha e
- Capitu continuavam depois de casadas a amizade da escola, Escobar e eu a do
- seminario. Eles moravam em Andaraf, aonde queriam que fossemos muitas vezes,
- e, nao podendo ser tantas como desejavamos, famos la jantar alguns domingos,
- ou eles vinham faze-lo conosco. Jantar e pouco. lamos sempre muito cedo, logo
- depois do almogo, para gozarmos o dia compridamente, e so nos separavamos as
- nove, dez e onze horas, quando nao podia ser mais. Agora que penso naqueles
- dias de Andaraf e da Gloria, sinto que a vida e o resto nao sejam tao rijos como as
- Piramides.
- Escobar e a mulher viviam felizes; tinham uma filhinha. Em tempo ouvi falar de
- uma aventura do marido, negocio de teatro, nao sei que atriz ou bailarina, mas se
- foi certo, nao deu escandalo. Sancha era modesta, o marido trabalhador. Como eu
- um dia dissesse a Escobar que lastimava nao ter um filho, replicou-me:
- — Homem, deixa la. Deus os dara quando quiser, e se nao der nenhum e que os
- quer para si, e melhor sera que fiquem no Ceu.
- — Uma crianga, um filho e o complemento natural da vida.
- — Vira, se for necessario.
- Nao vinha. Capitu pedia-o em suas oragoes, eu mais de uma vez dava por mim a
- rezar e a pedi-lo. Ja nao era como em crianga; agora pagava antecipadamente,
- como os alugueis da casa.
- CAPITULO CV
- OS BRAVOS
- No mais, tudo corria bem. Capitu gostava de rir e divertir-se, e, nos primeiros
- tempos, quando famos a passeios ou espetaculos, era como um passaro que
- safsse da gaiola. Arranjava-se com graga e modestia. Embora gostasse de joias,
- como as outras mogas, nao queria que eu Ihe comprasse muitas nem caras, e um
- dia afligiu-se tanto que prometi nao comprar mais nenhuma; mas foi so por pouco
- tempo.
- A nossa vida era mais ou menos placida. Quando nao estavamos com a famflia ou
- com amigos, ou se nao famos a algum espetaculo ou serao particular (e estes
- eram raros), passavamos as noites a nossa janela da Gloria, mirando o mar e o
- ceu, a sombra das montanhas e dos navios, ou a gente que passava na praia. As
- vezes, eu contava a Capitu a historia da cidade, outras dava-lhe notfcias de
- astronomia; notfcias de amador que ela escutava atenta e curiosa, nem sempre
- tanto que nao cochilasse um pouco. Nao sabendo piano, aprendeu depois de
- casada, e depressa, e daf a pouco tocava nas casas de amizade. Na Gloria era
- uma das nossas recreagoes; tambem cantava, mas pouco e raro, por nao ter voz;
- um dia chegou a entender que era melhor nao cantar nada e cumpriu o alvitre. De
- dangar gostava, e enfeitava-se com amor quando ia a um baile; os bragos e que...
- Os bragos merecem um perfodo.
- Eram belos, e na primeira noite que os levou nus a um baile, nao creio que
- houvesse iguais na cidade, nem os seus, leitora, que eram entao de menina, se
- eram nascidos, mas provavelmente estariam ainda no marmore, donde vieram, ou
- nas maos do divino escultor. Eram os mais belos da noite, a ponto que me
- encheram de desvanecimento. Conversava mal com as outras pessoas, so para
- ve-los, por mais que eles se entrelagassem aos das casacas alheias. Ja nao foi
- assim no segundo baile; nesse, quando vi que os homens nao se fartavam de
- olhar para eles, de os buscar, quase de os pedir, e que rogavam por eles as
- mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro nao fui, e aqui tive o apoio
- de Escobar, a quern confiei candidamente os meus tedios; concordou logo comigo.
- — Sanchinha tambem nao vai, ou ira de mangas compridas; o contrario parece-
- me indecente.
- — Nao e? Mas nao diga o motivo; hao de chamar-nos seminaristas. Capitu ja me
- chamou assim.
- Nem por isso deixei de contar a Capitu a aprovagao de Escobar. Ela sorriu e
- respondeu que os bragos de Sanchinha eram mal feitos, mas cedeu depressa, e
- nao foi ao baile; a outros foi, mas levou-os meio vestidos de escumilha ou nao sei
- que, que nem cobria nem descobria inteiramente, como o cendal de Camoes.
- CAPITULO CVI
- DEZ LI BRAS ESTERLI NAS
- Ja disse que era poupada, ou fica dito agora, e nao so de dinheiro mas tambem de
- coisas usadas, dessas que se guardam por tradigao, por lembranga ou por
- saudade. Uns sapatos, por exemplo, uns sapatinhos rasos de fitas pretas que se
- cruzavam no peito do pe e princfpio da perna, os ultimos que usou antes de calgar
- botinas, trouxe-os para casa, e tirava-os de longe em longe da gaveta da comoda,
- com outras velharias, dizendo-me que eram pedagos de crianga. Minha mae, que
- tinha o mesmo genio, gostava de ouvir falar e fazer assim.
- Quanto as puras economias de dinheiro, direi um caso, e basta. Foi justamente
- por ocasiao de uma ligao de astronomia, a Praia da Gloria. Sabes que alguma vez
- a fiz cochilar um pouco. Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal forga e
- concentragao, que me deu ciumes.
- — Voce nao me ouve, Capitu.
- — Eu? Ougo perfeitamente.
- — O que e que eu dizia?
- — Voce... voce falava de Sirius.
- — Qual Sirius, Capitu. Ha vinte minutos que eu falei de Sirius.
- — Falava de... falava de Marte, emendou ela apressada.
- Realmente, era de Marte, mas e claro que so apanhara o som da palavra, nao o
- sentido. Fiquei serio, e o fmpeto que me deu foi deixar a sala; Capitu, ao percebe-
- lo, fez-se a mais mimosa das criaturas, pegou-me na mao, confessou-me que
- estivera contando, isto e, somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que
- nao achava. Tratava-se de uma conversao de papel em ouro. A princfpio supus
- que era um recurso para desenfadar-me, mas daf a pouco estava eu mesmo
- calculando tambem, ja entao com papel e lapis, sobre o joelho, e dava a diferenga
- que ela buscava.
- — Mas que libras sao essas? perguntei-lhe no fim.
- Capitu fitou-me rindo, e replicou que a culpa de romper o segredo era minha.
- Ergueu-se, foi ao quarto e voltou com dez libras esterlinas, na mao; eram as
- sobras do dinheiro que eu Ihe dava mensalmente para as despesas.
- — Tudo isto?
- — Nao e muito, dez libras so; e o que a avarenta de sua mulher pode arranjar, em
- alguns meses, concluiu fazendo tinir o ouro na mao.
- — Quern foi o corretor?
- — O seu amigo Escobar.
- — Como e que ele nao me disse nada?
- — Foi hoje mesmo.
- — Ele esteve ca?
- — Pouco antes de voce chegar; eu nao disse para que voce nao desconfiasse.
- Tive vontade de gastar o dobro do ouro em algum presente comemorativo, mas
- Capitu deteve-me. Ao contrario, consultou-me sobre o que havfamos de fazer
- daquelas libras.
- — Sao suas, respondi.
- — Sao nossas, emendou.
- — Pois voce guarde-as.
- No dia seguinte, fui ter com Escobar ao armazem, e ri-me do segredo de ambos.
- Escobar sorriu e disse-me que estava para ir ao meu escritorio contar-me tudo. A
- cunhadinha (continuava a dar este nome a Capitu) tinha-lhe falado naquilo por
- ocasiao da nossa ultima visita a Andaraf, e disse-lhe a razao do segredo.
- — Quando contei isto a Sanchinha, concluiu ele, ficou espantada: "Como e que
- Capitu pode economizar, agora que tudo esta tao caro?” — "Nao sei, filha; sei que
- arranjou dez libras.”
- — Ve se ela aprende tambem.
- — Nao creio; Sanchinha nao e gastadeira, mas tambem nao e poupada; o que Ihe
- dou chega, mas so chega.
- Eu, depois de alguns instantes de reflexao:
- — Capitu e um anjo!
- Escobar concordou de cabega, mas sem entusiasmo, como quern sentia nao poder
- dizer o mesmo da mulher. Assim pensarias tu tambem, tao certo e que as virtudes
- das pessoas proximas nos dao tal ou qual vaidade, orgulho ou consolagao.
- CAPI TULO CVI I
- ci Ones do mar
- Se nao fosse a astronomia, nao descobriria eu tao cedo as dez libras de Capitu;
- mas nao e por isso que torno a ela, e para que nao cuides que a vaidade de
- professor e que me fez padecer com a desatengao de Capitu e ter ciumes do mar.
- Nao, meu amigo. Venho explicar-te que tive tais ciumes pelo que podia estar na
- cabega de minha mulher, nao fora ou acima dela. E sabido que as distragoes de
- uma pessoa podem ser culpadas, metade culpadas, um tergo, um quinto, um
- decimo de culpadas, pois que em materia de culpa a graduagao e infinita. A
- recordagao de uns simples olhos basta para fixar outros que os recordem e se
- deleitem com a imaginagao deles. Nao e mister pecado efetivo e mortal, nem
- papel trocado, simples palavra, aceno, suspiro ou sinal ainda mais miudo e leve.
- Um anonimo ou anonima que passe na esquina da rua faz com que metamos
- Sirius dentro de Marte, e tu sabes, leitor, a diferenga que ha de um a outro na
- distancia e no tamanho, mas a astronomia tern dessas confusoes. Foi isto que me
- fez empalidecer, calar e querer fugir da sala para voltar, Deus sabe quando;
- provavelmente, dez minutos depois. Dez minutos depois, estaria eu outra ve z na
- sala, ao piano ou a janela, continuando a ligao interrompida:
- — Marte esta a distancia de...
- Tao pouco tempo? Sim, tao pouco tempo, dez minutos. Os meus ciumes eram
- intensos, mas curtos; com pouco derrubaria tudo, mas com o mesmo pouco ou
- menos reconstruiria o ceu, a terra e as estrelas.
- A verdade e que fiquei mais amigo de Capitu, se era possfvel, ela ainda mais
- meiga, o ar mais brando, as noites mais claras, e Deus mais Deus. E nao foram
- propriamente as dez libras esterlinas que fizeram isto, nem o sentimento de
- economia que revelavam e que eu conhecia, mas as cautelas que Capitu
- empregou para o fim de descobrir-me um dia o cuidado de todos os dias. Escobar
- tambem se me fez mais pegado ao coragao. As nossas visitas foram-se tornando
- mais proximas, e as nossas conversagoes mais fntimas.
- CAPITULO CVII I
- UM FILHO
- Pois nem tudo isso me matava a sede de um filho, um triste menino que fosse,
- amarelo e magro, mas um filho, um filho proprio da minha pessoa. Quando famos
- a Andaraf e vfamos a filha de Escobar e Sancha, familiarmente Capituzinha, por
- diferenga-la de minha mulher, visto que Ihe deram o mesmo nome a pia,
- ficavamos cheios de invejas. A pequena era graciosa e gorducha, faladeira e
- curiosa. Os pais, como os outros pais, contavam as travessuras e agudezas da
- menina, e nos, quando voltavamos a noite para a Gloria, vfnhamos suspirando as
- nossas invejas, e pedindo mentalmente ao Ceu que no-las matasse...
- ...As invejas morreram, as esperangas nasceram, e nao tardou que viesse ao
- mundo o fruto delas. Nao era escasso nem feio, como eu ja pedia, mas um
- rapagao robusto e lindo.
- A minha alegria quando ele nasceu, nao sei dize-la; nunca a five igual, nem creio
- que a possa haver identica, ou que de longe ou de perto se parega com ela. Foi
- uma vertigem e uma loucura. Nao cantava na rua por natural vergonha, nem em
- casa para nao afligir Capitu convalescente. Tambem nao cafa, porque ha um deus
- para os pais novos. Fora, vivia com o espfrito no menino; em casa, com os olhos,
- a observa-lo, a mira-lo, a perguntar-lhe donde vinha, e por que e que eu estava
- tao inteiramente nele, e varias outras tolices sem palavras, mas pensadas ou
- deliradas a cada instante. Talvez perdi algumas causas no foro por descuido.
- Capitu nao era menos terna para ele e para mim. Davamos as maos um ao outro,
- e, quando nao olhavamos para o nosso filho, conversavamos de nos, do nosso
- passado e do nosso futuro. As horas de maior encanto e misterio eram as de
- amamentagao. Quando eu via o meu filho chupando o leite da mae, e toda aquela
- uniao da natureza para a nutrigao e vida de um ser que nao fora nada, mas que o
- nosso destino afirmou que seria, e a nossa constancia e o nosso amor fizeram que
- chegasse a ser, ficava que nao sei dizer nem digo; positivamente nao me lembra,
- e receio que o que dissesse me safsse escuro.
- Escusai minucias. Assim que, nao e preciso contar a dedicagao de minha mae e de
- Sancha, que tambem foi passar com Capitu os primeiros dias e noites. Quis
- rejeitar o obsequio de Sancha; respondeu-me que eu nao tinha nada com isso;
- tambem Capitu, em solteira, fora trata-la a Rua dos Invalidos.
- — Nao se lembra que o senhor foi la ve-la?
- — Lembra-me; mas Escobar...
- — Eu virei jantar com voces, e as noites sigo para Andaraf; oito dias, e esta tudo
- passado. Bern se ve que voce e pai de primeira viagem.
- — Tambem voce; onde esta a segunda?
- Usavamos entao estas gragas em famflia. Fioje, que me recolhi a minha
- casmurrice, nao sei se ainda ha tal linguagem, mas deve haver. Escobar cumpriu o
- que disse; jantava conosco, e ia-se a noite. Sobre tarde desefamos a praia ou
- famos ao Passeio Publico, fazendo ele os seus calculos, eu os meus sonhos. Eu via
- o meu filho medico, advogado, negociante, meti-o em varias universidades e
- bancos, e ate aceitei a hipotese de ser poeta. A possibilidade de politico foi
- consultada, e cri que me safsse orador, e grande orador.
- — Pode ser, redarguia Escobar; ninguem diria o que veio a se Demostenes.
- Escobar acompanhava muita vez as minhas criancices; tambem interrogava o
- futuro. Chegou a falar da hipotese de casar o pequeno com a filha. A amizade
- existe; esteve toda nas maos com que apertei as de Escobar, ao ouvir-lhe isto, e
- na total ausencia de palavras com que ali assinei o pacto; estas vieram depois, de
- atropelo, afinadas pelo coragao, que batia com grande forga. Aceitei a lembranga,
- e propus que os encaminhassemos a este fim, pela educagao igual e comum, pela
- infancia unida e correta.
- Era minha ideia que Escobar fosse padrinho do pequeno; a madrinha devia ser e
- seria minha mae. Mas a primeira parte se trocou por intervengao do tio Cosme,
- que, ao ver a crianga, disse-lhe entre outros carinhos:
- — Anda, toma a bengao a teu padrinho, velhaco.
- E, voltando-se para mim:
- — Nao desisto do favor; e ha de ser depressa o batizado, antes que a minha
- doenga me leve de vez.
- Contei discretamente a anedota a Escobar, para que ele me compreendesse e
- desculpasse; riu-se e nao se magoou. Fez mais, quis que o almogo do batizado
- fosse na chacara dele, e foi. Eu ainda tentei espagar a cerimonia a ver se tio
- Cosme sucumbia primeiro a doenga, mas parece que esta era mais de aborrecer
- que de matar. Nao houve remedio senao levar o menino a pia, onde se Ihe deu o
- nome de Ezequiel; era o de Escobar, e eu quis suprir deste modo a falta de
- compadrio.
- CAPI TULO CIX
- UM FILHO UNI CO
- Ezequiel, quando comegou o capftulo anterior, nao era ainda gerado; quando
- acabou era cristao e catolico. Este outro e destinado a fazer chegar o meu Ezequiel
- aos cinco anos, um rapagao bonito, com os seus olhos claros, ja inquietos, como
- se quisessem namorar todas as mogas da vizinhanga, ou quase todas.
- Agora, se considerares que ele foi unico, que nenhum outro veio, certo nem
- incerto, morto nem vivo, um so e unico, imaginaras os cuidados que nos deu, os
- sonos que nos tirou, e que sustos nos meteram as crises dos dentes e outras, a
- menor febrfcula, toda a existencia comum das criangas. A tudo acudfamos,
- segundo cumpria e urgia, coisa que nao era necessario dizer, mas ha leitores tao
- obtusos, que nada entendem, se Ihes nao relata tudo e o resto. Vamos ao resto.
- CAPITULO CX
- RASGOS DA I NFANCI A
- O resto come-me ainda muitos capftulos; ha vidas que os tern menos, e fazem-se
- ainda assim completas e acabadas.
- Aos cinco e seis anos, Ezequiel nao parecia desmentir os meus sonhos da Praia da
- Gloria; ao contrario, adivinhavam-se nele todas as vocagoes possfveis, desde
- vadio ate apostolo. Vadio e aqui posto no bom sentido, no sentido de homem que
- pensa e cala; metia-se as vezes consigo, e nisto fazia lembrar a mae, desde
- pequena. Assim tambem, agitava-se todo e instava por ir persuadir as vizinhas
- que os doces que eu Ihe trazia eram doces deveras; nao o fazia antes de farto
- deles, mas tambem os apostolos nao levam a boa doutrina senao depois de a
- terem toda no coragao. Escobar, bom negociante, opinava que a causa principal
- desta outra inclinagao, talvez fosse convidar implicitamente as vizinhas a igual
- apostolado, quando os pais Ihe trouxessem doces; e ria-se da propria graga, e
- anunciava-me que o faria seu socio.
- Gostava de musica, nao menos que de doce, e eu disse a Capitu que Ihe tirasse ao
- piano o pregao do preto das cocadas de Mata-cavalos...
- — Nao me lembra.
- — Nao diga isso; voce nao se lembra daquele preto que vendia doce, as tardes...
- — Lembra- me de um preto que vendia doce, mas nao sei mais da toada.
- — Nem das palavras?
- — Nem das palavras.
- A leitora, que ainda se lembrara das palavras, dado que me tenha lido com
- atengao, ficara espantada de tamanho esquecimento, tanto mais que Ihe
- lembrarao ainda as vozes da sua infancia e adolescencia; havera olvidado
- algumas, mas nem tudo fica na cabega. Assim me replicou Capitu, e nao achei
- treplica. Fiz, porem, o que ela nao esperava; corri aos meus papeis velhos. Em
- Sao Paulo, quando estudante, pedi a um professor de musica que me
- transcrevesse a toada do pregao; ele o fez com prazer (bastou-me repetir-lho de
- memoria), e eu guardei o papelzinho; fui procura-lo. Dai a pouco interrompi um
- romance que ela tocava, com o pedacinho de papel na mao. Expliquei-lho; ela
- teclou as dezesseis notas.
- Capitu achou a toada um sabor particular, quase delicioso; contou ao filho a
- historia do pregao, e assim o cantava e teclava. Ezequiel aproveitou a musica para
- pedir-me que desmentisse o texto, dando-lhe algum dinheiro.
- Fazia de medico, de militar, de ator e bailarino. Nunca Ihe dei oratorios; mas
- cavalos de pau e espada a cinta eram com ele. Ja nao falo dos batalhoes que
- passavam na rua, e que ele corria a ver; todas as criangas o fazem. O que nem
- todas fazem e ter os olhos que esta tinha. Em nenhuma vi as ansias de gosto com
- que assistia a passagem da tropa e ouvia tocar a marcha dos tambores.
- — Olha, papai! olha!
- — Estou vendo, meu filho!
- — Olha o comandante! Olha o cavalo do comandante! Olha os soldados!
- Um dia amanheceu tocando corneta com a mao; dei-lhe uma cornetinha de metal.
- Comprei-lhe soldadinhos de chumbo, gravuras de batalhas que ele mirava por
- muito tempo, querendo que Ihe explicasse uma pega de artilharia, um soldado
- cafdo, outro de espada algada, e todos os seus amores iam para o de espada
- algada. Um dia (ingenua idade!) perguntou-me impaciente:
- — Mas, papai, por que e que ele nao deixa cair a espada de uma vez?
- — Meu filho, e porque e pintado.
- — Mas entao por que e que ele se pintou?
- Ri-me do engano e expliquei-lhe que nao era o soldado que se tinha pintado no
- papel, mas o gravador, e tive de explicar tambem o que era gravador e o que era
- gravura: as curiosidades de Capitu, em suma.
- Tais sao os principals rasgos da infancia: mais um e acabo o capftulo. Um dia, na
- chacara de Escobar, deu com um gato que tinha um rato atravessado na boca. O
- gato nem deixava a presa, nem via por onde fugisse. Ezequiel nao disse nada,
- deteve-se, acocorou-se, e ficou olhando. Ao ve-lo assim atento, perguntamos-lhe
- de longe o que era; fez-nos sinal que nos calassemos. Escobar concluiu:
- — Vao ver que e o gato que apanhou algum rato. Os ratos continuam a infestar-
- me a casa, que e o diabo. Vamos ver.
- Capitu quis tambem ver o filho; acompanhei-os. Efetivamente, era um gato e um
- rato, lance banal, sem interesse nem graga. A unica circunstancia particular era
- estar o rato vivo, esperneando, e o meu pequeno enlevado. De resto, o instante
- foi curto. O gato, logo que sentiu mais gente, dispos-se a correr; o menino, sem
- tirar-lhe os olhos de cima, fez-nos outro sinal de silencio; e o silencio nao podia
- ser maior. la dizer religioso, risquei a palavra, mas aqui a ponho outra vez, nao so
- por significar a totalidade do silencio, mas tambem porque havia naquela agao do
- gato e do rato alguma coisa que prendia com ritual. O unico rumor eram os
- ultimos guinchos do rato, alias frouxfssimos; as pernas mal se Ihe moviam e
- desordenadamente. Um tanto aborrecido, bati palmas para que o gato fugisse, e o
- gato fugiu. Os outros nem tiveram tempo de atalhar-me, Ezequiel ficou abatido.
- — Ora, papai!
- — Que foi? A esta hora o rato esta comido.
- — Pois sim, mas eu queria ver.
- Os dois riram-se; eu mesmo achei-lhe graga.
- CAPI TU LO CXI
- CONTADO DEPRESSA
- Achei-lhe graga, e nao Ihe nego ainda agora, apesar do tempo passado, dos
- sucessos ocorridos e da tal ou qual simpatia ao rato que acho em mim; teve
- graga. Nao me pesa dize-lo; os que amam a natureza como ela quer ser amada,
- sem repudio parcial nem exclusoes injustas, nao acham nela nada inferior. Amo o
- rato, nao desamo o gato. Ja pensei em os fazer viver juntos, mas vi que sao
- incompatfveis. Em verdade, um roi-me os livros, outro o queijo; mas nao e muito
- que eu Ihes perdoe, se ja perdoei a um cachorro que me levou o descanso em
- piores circunstancias. Contarei o caso depressa.
- Foi quando nasceu Ezequiel; a mae estava com febre, Sancha vivia ao pe dela, e
- tres caes na rua latiam toda a noite. Procurei o fiscal, e foi como se procurasse o
- leitor, que so agora sabe disto. Entao resolvi mata-los; comprei veneno, mandei
- fazer tres bolas de carne, e eu mesmo inseri nelas a droga. De noite, saf; era uma
- hora; nem a doente, nem a enfermeira podiam dormir, com a bulha dos caes.
- Quando eles me viram, afastaram-se, dois desceram para o lado da Praia do
- Flamengo, um ficou a curta distancia, como que esperando. Fui-me a ele,
- assobiando e dando estalinhos com os dedos. O diabo ainda latiu, mas fiado nos
- sinais de amizade, foi-se calando, ate que se calou de todo. Como eu continuasse,
- ele veio a mim, devagar, mexendo a cauda, que e o seu modo de rir deles; eu
- tinha ja na mao as bolas envenenadas, e ia deitar-lhe uma delas, quando aquele
- riso especial, carinho, confianga ou o que quer que seja, me atou a vontade; fiquei
- assim nao sei como, tocado de pena e guardei as bolas no bolso. Ao leitor pode
- parecer que foi o cheiro da carne que remeteu o cao ao silencio. Nao digo que
- nao; eu cuido que ele nao me quis atribuir perffdia ao gesto, e entregou-se-me. A
- conclusao e que se livrou.
- CAPITULO CXI I
- AS IMITACOES DE EZEQUIEL
- Tal nao faria Ezequiel. Nao comporia bolas envenenadas, suponho, mas nao as
- recusaria tambem. O que faria com certeza era ir atras dos caes, a pedrada, ate
- onde Ihe dessem as pernas. E se tivesse um pau, iria a pau. Capitu morria por
- aquele batalhador futuro.
- — Nao sai a nos, que gostamos da paz, disse-me ela um dia, mas papai em mogo
- era assim tambem; mamae e que contava.
- — Sim, nao saira maricas, repliquei; eu so Ihe descubro um defeitozinho, gosta de
- imitar os outros.
- — I mitar como?
- — I mitar os gestos, os modos, as atitudes; imita prima J ustina, imita J ose Dias; ja
- Ihe achei ate um jeito dos pes de Escobar e dos olhos...
- Capitu deixou-se estar pensando e olhando para mim, e disse afinal que era
- preciso emenda-lo. Agora reparava que realmente era vezo do filho, mas parecia-
- Ihe que era so imitar por imitar, como sucede a muitas pessoas grandes, que
- tomam as maneiras dos outros; e para que nao fosse mais longe...
- — Tambem nao vamos mortifica-lo. Sempre ha tempo de corrigi-lo.
- — Ha, vou ver. Voce tambem nao era assim, quando se zangava com alguem...
- — Quando me zangava, concordo; vinganga de menino.
- — Sim, mas eu nao gosto de imitagoes em casa.
- — E naquele tempo gostavas de mim? disse eu batendo-lhe na face.
- A resposta de Capitu foi um riso doce de escarnio, um desses risos que nao se
- descrevem, e apenas se pintarao; depois estirou os bragos e atirou-mos sobre os
- ombros, tao cheios de graga que pareciam (velha imagem!) um colar de flores. Eu
- fiz o mesmo aos meus, e senti nao haver ali um escultor que nos transferisse a
- atitude a um pedago de marmore. So brilharia o artista, e certo. Quando uma
- pessoa ou um grupo saem bem, ninguem quer saber do modelo, mas da obra, e a
- obra e que fica. Nao importa; nos sabenamos que eramos nos.
- CAPITULO CXIII
- EMBARGOS DE TERCEI RO
- Por falar nisto, e natural que me perguntes se, sendo antes tao cioso dela, nao
- continuei a se-lo apesar do filho e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei, a
- tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais fnfima palavra, uma insistence
- qualquer; muita vez so a indiferenga bastava. Cheguei a ter ciumes de tudo e de
- todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, mogo ou maduro, me
- enchia de terror ou desconfianga. E certo que Capitu gostava de ser vista, e o
- meio mais proprio a tal fim (disse-me uma senhora, um dia) e ver tambem, e nao
- ha ver sem mostrar que se ve.
- A senhora que me disse isto cuido que gostou de mim, e foi naturalmente por nao
- achar da minha parte correspondence aos seus afetos que me explicou daquela
- maneira os seus olhos teimosos. Outros olhos me procuravam tambem, nao
- muitos, e nao digo nada sobre eles, tendo alias confessado a princfpio as minhas
- aventuras vindouras, mas eram ainda vindouras. Naquele tempo, por mais
- mulheres bonitas que achasse, nenhuma receberia a minima parte do amor que
- tinha a Capitu. A minha propria mae nao queria mais que metade. Capitu era tudo
- e mais que tudo; nao vivia nem trabalhava que nao fosse pensando nela. Ao
- teatro (arnos juntos; so me lembra que fosse duas vezes sem ela, um beneffcio de
- ator, e uma estreia de opera, a que ela nao foi por ter adoecido, mas quis por
- forga que eu fosse. Era tarde para mandar o camarote a Escobar; saf, mas voltei
- no fim do primeiro ato. Encontrei Escobar a porta do corredor.
- — Vinha falar-te, disse-me ele.
- Expliquei-lhe que tinha safdo para o teatro donde voltara receoso de Capitu, que
- ficara doente.
- — Doente de que? perguntou Escobar.
- — Queixava-se da cabega e do estomago.
- — Entao, vou-me embora. Vinha para aquele negocio dos embargos...
- Eram uns embargos de terceiro; ocorrera um incidente importante, e, tendo ele
- jantado na cidade, nao quis ir para casa sem dizer-me o que era, mas ja agora
- falaria depois...
- — Nao, falemos ja, sobe; ela pode estar melhor. Se estiver pior, desces.
- Capitu estava melhor e ate boa. Confessou-me que apenas tivera uma dor de
- cabega de nada, mas agravara o padecimento para que eu fosse divertir-me. Nao
- falava alegre, o que me fez desconfiar que mentia, para me nao meter medo, mas
- jurou que era a verdade pura. Escobar sorriu e disse:
- — A cunhadinha esta tao doente como voce ou eu. Vamos aos embargos.
- CAPITU LO CXIV
- EM QUE SE EXPLICA O EXPLICADO
- Antes de ir aos embargos, expliquemos ainda um ponto que ja ficou explicado,
- mas nao bem explicado. Viste que eu pedi (cap. CX) a um professor de musica de
- Sao Paulo que me escrevesse a toada daquele pregao de doces de Mata-cavalos.
- Em si, a materia e chocha, e nao vale a pena de um capftulo, quanto mais dois;
- mas ha materias tais que trazem ensinamentos interessantes, senao agradaveis.
- Expliquemos o explicado.
- Capitu e eu tfnhamos jurado nao esquecer mais aquele pregao; foi em momento
- de grande ternura, e o tabeliao divino sabe as coisas que se juram em tais
- momentos, ele que as registra nos livros eternos.
- — Voce jura?
- — J uro, disse ela estendendo tragicamente o brago.
- Aproveitei o gesto para beijar-lhe a mao; estava ainda no seminario. Quando fui
- para Sao Paulo, querendo um dia relembrar a toada, vi que a ia perdendo
- inteiramente; consegui recorda-la e corri ao professor, que me fez o obsequio de a
- escrever no pedacinho de papel. Foi para nao faltar ao juramento que fiz isto. Mas
- has de crer que, quando corri aos papeis velhos, naquela noite da Gloria, tambem
- nao me lembrava ja da toada nem do texto? Fiz-me de pontual ao juramento, e
- este e que foi o meu pecado; esquecer, qualquer esquece.
- Ao certo, ninguem sabe se ha de manter ou nao urn juramento. Coisas futuras!
- Portanto, a nossa constituigao polftica, transferindo o juramento a afirmagao
- simples, e profundamente moral. Acabou com um pecado ternvel. Faltar ao
- compromisso e sempre infidelidade, mas a alguem que tenha mais temor a Deus
- que aos homens nao Ihe importara mentir, uma vez ou outra, desde que nao mete
- a alma no purgatorio. Nao confundam purgatorio com inferno, que e o eterno
- naufragio. Purgatorio e uma casa de penhores, que empresta sobre todas as
- virtudes, a juro alto e prazo curto. Mas os prazos renovam-se, ate que um dia
- uma ou duas virtudes medianas pagam todos os pecados grandes e pequenos.
- CAPITULO CXV
- DUVI DAS SOBRE DUVI DAS
- Vamos agora aos embargos... E por que iremos aos embargos? Deus sabe o que
- custa escreve-los, quanto mais conta-los. Da circunstancia nova que Escobar me
- trazia apenas digo o que Ihe disse entao, isto e, que nao valia nada.
- — Nada?
- — Quase nada.
- — Entao vale alguma coisa.
- — Para reforgar as razoes que ja temos vale menos que o cha que voce vai tomar
- comigo.
- — E tarde para tomar cha.
- — Tomaremos depressa.
- Tomamos depressa. Durante ele, Escobar olhava para mim desconfiado, como se
- cuidasse que eu recusava a circunstancia nova por forrar-me a escreve-la; mas tal
- suspeita nao ia com a nossa amizade.
- Quando ele saiu, referi as minhas duvidas a Capitu; ela as desfez com a arte fina
- que possufa, um jeito, uma graga toda sua, capaz de dissipar as mesmas tristezas
- de Olfmpio.
- — Seria o negocio dos embargos, concluiu; e ele que veio ate aqui, a esta hora, e
- que esta impressionado com a demanda.
- — Tens razao.
- Palavra puxa palavra, falei de outras duvidas. Eu era entao um pogo delas;
- coaxavam dentro de mim, como verdadeiras ras, a ponto de me tirarem o sono
- algumas vezes. Disse-lhe que comegava a achar minha mae um tanto fria e
- arredia com ela. Pois aqui mesmo valeu a arte fina de Capitu!
- — J a disse a voce o que e; coisas de sogra. Mamaezinha tern ciumes de voce; logo
- que eles passem e as saudades aumentem, ela torna a ser o que era. Em Ihe
- faltando o neto...
- — Mas eu tenho notado que ja e fria tambem com Ezequiel. Quando ele vai
- comigo, mamae nao Ihe faz as mesmas gragas.
- — Quem sabe se nao anda doente?
- — Vamos nos jantar com ela amanha?
- — Vamos... Nao... Pois vamos.
- Fomos jantar com a minha velha. Ja Ihe podia chamar assim, posto que os seus
- cabelos brancos nao o fossem todos nem totalmente, e o rosto estivesse
- comparativamente fresco; era uma especie de mocidade quinquagenaria ou de
- ancianidade vigosa, a escolha... Mas nada de melancolias; nao quero falar dos
- olhos molhados, a entrada e a safda. Pouco entrou na conversagao. Tambem nao
- era diferente da costumada. Jose Dias falou do casamento e suas belezas, da
- polftica, da Europa e da homeopatia, tio Cosme das suas molestias, prima Justina
- da vizinhanga, ou de J ose Dias, quando este safa da sala.
- Quando voltamos, a noite, viemos por ali a pe, falando das minhas duvidas. Capitu
- novamente me aconselhou que esperassemos. Sogras eram todas assim; la vinha
- um dia e mudavam. Ao passo que me falava, recrudescia de ternura. Dali em
- diante foi cada vez mais doce comigo; nao me ia esperar a janela, para nao
- espertar-me os ciumes, mas quando eu subia, via no alto da escada, entre as
- grades da cancela, a cara deliciosa da minha amiga e esposa, risonha como toda a
- nossa infancia. Ezequiel as vezes estava com ela; nos o havfamos acostumado a
- ver o osculo da chegada e da safda, e ele enchia-me a cara de beijos.
- CAPITULO CXVI
- FILHO DO HOMEM
- Apalpei Jose Dias sobre as maneiras novas de minha mae; ficou espantado. Nao
- havia nada, nem podia haver coisa nenhuma, tantos eram os louvores incessantes
- que ele ouvia "a bela e virtuosa Capitu."
- — Agora, quando os ougo, entro tambem no coro; mas a princfpio ficava
- envergonhadfssimo. Para quem chegou, como eu, a arrenegar deste casamento,
- era duro confessar que ele foi uma verdadeira bengao do Ceu. Que digna senhora
- nos saiu a crianga travessa de Mata-cavalos! O pai e que nos separou um pouco,
- enquanto nao nos conhecfamos, mas tudo acabou em bem. Pois, sim, senhor,
- quando D. Gloria elogia a sua nora e comadre...
- — Entao, mamae?...
- — Perfeitamente!
- — Mas, por que e que nao nos visita ha tanto tempo?
- — Creio que tern andado mais achacada dos seus reumatismos. Este ano tern feito
- muito frio... Imagine a afligao dela, que andava o dia inteiro; agora e obrigada a
- estar quieta, ao pe do irmao, que la tern o seu mal...
- Quis observar-lhe que tal razao explicava a interrupgao das visitas, e nao a frieza
- quando famos nos a Mata-cavalos; mas nao estendi tao longe a intimidade do
- agregado. Jose Dias pediu para ver o nosso "profetazinho" (assim chamava a
- Ezequiel) e fez-lhe as festas do costume. Desta vez falou ao modo bfblico (estivera
- na vespera a folhear o livro de Ezequiel, como soube depois) e perguntava-lhe:
- "Como vai isso, filho do homem?" "Dize-me, filho do homem, onde estao os teus
- brinquedos?" "Queres comer doce, filho do homem?”
- — Que filho do homem e esse? perguntou-lhe Capitu agastada.
- — Sao os modos de dizer da Bfblia.
- — Pois eu nao gosto deles, replicou ela com aspereza.
- — Tern razao, Capitu, concordou o agregado. Voce nao imagina como a Bfblia e
- cheia de expressoes cruas e grosseiras. Eu falava assim para variar... Tu como
- vais, meu anjo? Meu anjo, como e que eu ando na rua?
- — Nao, atalhou Capitu; ja Ihe vou tirando esse costume de imitar os outros.
- — Mas tern muita graga; a mim, quando ele copia os meus gestos, parece-me que
- sou eu mesmo, pequenino. Outro dia chegou a fazer um gesto de D. Gloria, tao
- bem que ela Ihe deu um beijo em paga. Vamos, como e que eu ando?
- — Nao, Ezequiel, disse eu, mamae nao quer.
- Eu mesmo achava feio tal sestro. Alguns dos gestos ja Ihe iam ficando mais
- repetidos, como os das maos e pes de Escobar; ultimamente, ate apanhara o
- modo de voltar a cabega deste, quando falava, e o de deixa-la cair, quando ria.
- Capitu ralhava. Mas o menino era travesso, como o diabo; apenas comegamos a
- falar de outra coisa, saltou ao meio da sala, dizendo a J ose Dias:
- — O senhor anda assim.
- Nao podemos deixar de rir, eu mais que ninguem. A primeira pessoa que fechou a
- cara, que o repreendeu e chamou a si foi Capitu.
- — Nao quero isso, ouviu?
- CAPITULO CXVII
- AMIGOS PROXI MOS
- Ja entao Escobar deixara Andaraf e comprara uma casa no Flamengo, casa que
- ainda ali vi, ha dias, quando me deu na gana experimentar se as sensagoes
- antigas estavam mortas ou dormiam so; nao posso dize-lo bem, porque os sonos,
- quando sao pesados, confundem vivos e defuntos, a nao ser a respiragao. Eu
- respirava um pouco, mas pode ser que fosse do mar, meio agitado. Enfim, passei,
- acendi um charuto, e dei por mim no Catete; tinha subido pela Rua da Princesa,
- uma rua antiga... 6 ruas antigas! 6 casas antigas! 6 pernas antigas! Todos nos
- eramos antigos, e nao e preciso dizer que no mau sentido, no sentido de velho e
- acabado.
- Velha e a casa, mas nao Ihe alteraram nada. Nao sei ate se ainda tern o mesmo
- numero. Nao digo que numero e para nao irem indagar e cavar a historia. Nao e
- que Escobar ainda la more nem sequer viva; morreu pouco depois, por um modo
- que hei de contar. Enquanto viveu, uma vez que estavamos tao proximos,
- tfnhamos por assim dizer uma so casa, eu vivia na dele, ele na minha, e o pedago
- de praia entre a Gloria e o Flamengo era como um caminho de uso proprio e
- particular. Fazia-me pensar nas duas casas de Mata-cavalos, com o seu muro de
- permeio.
- Um historiador da nossa lingua, creio que Joao de Barros, poe na boca de um rei
- barbaro algumas palavras mansas, quando os portugueses Ihe propunham
- estabelecer ali ao pe uma fortaleza; dizia o rei que os bons amigos deviam ficar
- longe uns dos outros, nao perto, para se nao zangarem como as aguas do mar
- que batiam furiosas no rochedo que eles viam dali. Que a sombra do escritor me
- perdoe, se eu duvido que o rei dissesse tal palavra nem que ela seja verdadeira.
- Provavelmente foi o mesmo escritor que a inventou para adornar o texto, e nao
- fez mal, porque e bonita; realmente, e bonita. Eu creio que o mar entao batia na
- pedra, como e seu costume, desde Ulisses e antes. Agora que a comparagao seja
- verdadeira e que nao. Seguramente ha inimigos contfguos, mas tambem ha
- amigos de perto e do peito. E o escritor esquecia (salvo se ainda nao era do seu
- tempo), esquecia o adagio: longe dos olhos, longe do coragao. Nos nao podfamos
- ter os coragoes agora mais perto. As nossas mulheres viviam na casa uma da
- outra, nos passavamos as noites ca ou la conversando, jogando ou mirando o
- mar. Os dois pequenos passavam dias, ora no Flamengo, ora na Gloria.
- Como eu observasse que podia acontecer com eles o que se dera entre mim e
- Capitu, acharam todos que sim, e Sancha acrescentou que ate ja se iam
- parecendo. Eu expliquei:
- — Nao; e porque Ezequiel imita os gestos dos outros.
- Escobar concordou comigo, e insinuou que alguma vez as criangas que se
- frequentam muito acabam parecendo-se umas com as outras. Opinei de cabega,
- como me sucedia nas materias que eu nao sabia bem nem mal. Tudo podia ser. O
- certo e que eles se queriam muito, e podiam acabar casados, mas nao acabaram
- casados.
- CAPI TU LO CXVIII
- A MAO DE SANCHA
- Tudo acaba, leitor; e um velho trufsmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o
- que dura, dura muito tempo. Esta segunda parte nao acha crentes faceis; ao
- contrario, a ideia de que um castelo de vento dura mais que o mesmo vento de
- que e feito, dificilmente se despegara da cabega, e e bom que seja assim, para
- que se nao perca o costume daquelas construgoes quase eternas.
- O nosso castelo era solido, mas um domingo... Na vespera tfnhamos passado a
- noite no Flamengo, nao so os dois casais inseparaveis, como ainda o agregado e
- prima Justina. Foi entao que Escobar, falando-me a janela, disse-me que fossemos
- la jantar no dia seguinte; precisavamos falar de um projeto em famflia, um projeto
- para os quatro.
- — Para os quatro? Uma contradanga.
- — Nao. Nao es capaz de adivinhar o que seja, nem eu digo. Vem amanha.
- Sancha nao tirava os olhos de nos durante a conversa, ao canto da janela. Quando
- o marido saiu, veio ter comigo. Perguntou-me de que e que falaramos; disse-lhe
- que de um projeto que eu nao sabia qual fosse; ela pediu-me segredo, e revelou-
- me o que era: uma viagem a Europa dali a dois anos. Disse isto de costas para
- dentro, quase suspirando. O mar batia com grande forga na praia; havia ressaca.
- — Vamos todos? perguntei por fim.
- — Vamos.
- Sancha ergueu a cabega e olhou para mim com tanto prazer que eu, gragas as
- relagoes dela e Capitu, nao se me daria beija-la na testa. Entretanto, os olhos de
- Sancha nao convidavam a expansoes fraternais, pareciam quentes e intimativos,
- diziam outra coisa, e nao tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei
- olhando para o mar, pensativo. A noite era clara.
- Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pe do piano; encontrei-os em
- caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando que
- os outros passassem, mas nenhuns passavam. Tal se da na rua entre dois
- teimosos. A cautela desligou-nos; eu tornei a voltar-me para fora. E assim posto
- entrei a cavar na memoria se alguma vez olhara para ela com a mesma
- expressao, e fiquei incerto. Tive uma certeza so, e que um dia pensei nela, como
- se pensa na bela desconhecida que passa; mas entao dar-se-ia que ela,
- adivinhando. . . Talvez o simples pensamento me transluzisse ca fora, e ela me
- fugisse outrora irritada ou acanhada, e agora por um movimento invencfvel...
- Invencfvel; esta palavra foi como uma bengao de padre a missa, que a gente
- recebe e repete em si mesma.
- — O mar amanha esta de desafiar a gente, disse-me a voz de Escobar, ao pe de
- mim.
- — Voce entra no mar amanha?
- — Tenho entrado com mares maiores, muito maiores. Voce nao imagina o que e
- um bom mar em hora bravia. E preciso nadar bem, como eu, e ter estes pulmoes,
- disse ele batendo no peito, e estes bragos; apalpa.
- Apalpei-lhe os bragos, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta confissao,
- mas nao posso suprimi-la; era jarretar a verdade. Nao so os apalpei com essa
- ideia, mas ainda senti outra coisa; achei-os mais grossos e fortes que os meus, e
- tive-lhes inveja; acresce que sabiam nadar.
- Quando safmos, tornei a falar com os olhos a dona da casa. A mao dela apertou
- muito a minha, e demorou-se mais que de costume.
- A modestia pedia entao, como agora, que eu visse naquele gesto de Sancha uma
- sangao ao projeto do marido e um agradecimento. Assim devia ser, mas um fluido
- particular que me correu todo o corpo desviou de mim a conclusao que deixo
- escrita. Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros.
- Foi um instante de vertigem e de pecado. Passou depressa no relogio do tempo;
- quando cheguei o relogio ao ouvido trabalhavam so os minutos da virtude e da
- razao.
- — ... Uma senhora deliciosfssima, concluiu Jose Dias um discurso que vinha
- fazendo.
- — Deliciosfssima! repeti com algum ardor, que moderei logo, emendando-me:
- Realmente, uma bela noite!
- — Como devem ser todas as daquela casa, continuou o agregado. Ca fora, nao; ca
- fora o mar esta zangado; escute.
- Ouvia-se o mar forte, — como ja se ouvia de casa, — a ressaca era grande e, a
- distancia, viam-se crescer as ondas. Capitu e prima Justina, que iam adiante,
- detiveram-se numa das voltas da praia, e fomos conversando os quatro; mas eu
- conversava mal. Nao havia meio de esquecer inteiramente a mao de Sancha nem
- os olhos que trocamos. Agora achava-lhes isto, agora aquilo. Os instantes do
- Diabo intercalavam-se nos minutos de Deus, e o relogio foi assim marcando
- alternativamente a minha perdigao e a minha salvagao. Jose Dias despediu-se de
- nos a porta. Prima Justina dormiu em nossa casa; iria embora, no dia seguinte,
- depois do almogo e da missa. Eu recolhi-me ao meu gabinete, onde me demorei
- mais que de costume.
- O retrato de Escobar, que eu tinha ali, ao pe do de minha mae, falou-me como se
- fosse a propria pessoa. Combati sinceramente os impulsos que trazia do
- Flamengo; rejeitei a figura da mulher do meu amigo, e chamei-me desleal.
- Demais, quern me afirmava que houvesse alguma intengao daquela especie no
- gesto da despedida e nos anteriores? Tudo podia ligar-se ao interesse da nossa
- viagem. Sancha e Capitu eram tao amigas que seria um prazer mais para elas
- irem juntas. Quando houvesse alguma intengao sexual, quem me provaria que nao
- era mais que uma sensagao fulgurante, destinada a morrer com a noite e o sono?
- Ha remorsos que nao nascem de outro pecado, nem tern maior duragao. Agarrei-
- me a esta hipotese que se conciliava com a mao de Sancha, que eu sentia de
- memoria dentro da minha mao, quente e demorada, apertada e apertando...
- Sinceramente, eu achava-me mal entre um amigo e a atragao. A timidez pode ser
- que fosse outra causa daquela crise; nao e so o Ceu que da as nossas virtudes, a
- timidez tambem, nao contando o acaso, mas o acaso e um mero acidente; a
- melhor origem delas e o ceu. Entretanto, como a timidez vem do ceu, que nos da
- a compleigao, a virtude, filha dela, e, genealogicamente, o mesmo sangue
- celestial. Assim refletiria, se pudesse; mas a princfpio vaguei a toa. Paixao nao
- era, nem inclinagao. Capricho seria, ou que? Ao fim de vinte minutos era nada,
- inteiramente nada. O retrato de Escobar pareceu falar-me; vi-lhe a atitude franca
- e simples, sacudi a cabega e fui deitar-me.
- CAPITU LO CXIX
- NAO FACA I SSO, QUERI DA!
- A leitora, que e minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina
- de ontem para a valsa de hoje, quer fecha-lo as pressas, ao ver que beiramos um
- abismo. Nao faga isso, querida; eu mudo de rumo.
- CAPITULO CXX
- OS AUTOS
- Na manha seguinte acordei livre das abominagoes da vespera; chamei-lhes
- alucinagoes, tomei cafe, percorri os jornais e fui estudar uns autos. Capitu e prima
- Justina safram para a missa das nove, na Lapa. A figura de Sancha desapareceu
- inteiramente no meio das alegagoes da parte adversa, que eu ia lendo nos autos,
- alegagoes falsas, inadmissfveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era facil
- ganhar a demanda; consultei Dalloz, Pereira e Sousa...
- Uma so vez olhei para o retrato de Escobar. Era uma bela fotografia tirada um ano
- antes. Estava de pe, sobrecasaca abotoada, a mao esquerda no dorso de uma
- cadeira, a direita metida ao peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador.
- Tinha garbo e naturalidade. A moldura que Ihe mandei por nao encobria a
- dedicatoria, escrita embaixo, nao nas costas do cartao: "Ao meu querido Bentinho
- o seu querido Escobar 20- 4-70".Estas palavras fortaleceram-me os pensamentos
- daquela manha, e espancaram de todo as recordagoes da vespera. Naquele tempo
- a minha vista era boa; eu podia le-las do lugar em que estava. Tornei aos autos.
- CAPITULO CXXI
- A CATASTROFE
- No melhor deles, ouvi passos precipitados na escada, a campainha soou, soaram
- palmas, golpes na cancela, vozes, acudiram todos, acudi eu mesmo. Era um
- escravo da casa de Sancha que me chamava:
- — Para ir la... sinho nadando, sinho morrendo.
- Nao disse mais nada, ou eu nao Ihe ouvi o resto. Vesti-me, deixei recado a Capitu
- e corri ao Flamengo.
- Em caminho, fui adivinhando a verdade. Escobar meteu-se a nadar, como usava
- fazer, arriscou-se um pouco mais fora que de costume, apesar do mar bravio, foi
- enrolado e morreu. As canoas que acudiram mal puderam trazer-lhe o cadaver.
- CAPITULO CXXII
- O ENTERRO
- A viuva... Poupo-vos as lagrimas da viuva, as minhas, as da outra gente. Saf de la
- cerca de onze horas; Capitu e prima Justina esperavam-me, uma com o parecer
- abatido e estupido, outra enfastiada apenas.
- — Vao fazer companhia a pobre Sanchinha; eu vou cuidar do enterro.
- Assim fizemos. Quis que o enterro fosse pomposo, e a afluencia dos amigos foi
- numerosa. Praia, ruas, Praga da Gloria, tudo eram carros, muitos deles
- particulares. A casa nao sendo grande, nao podiam la caber todos; muitos
- estavam na praia, falando do desastre, apontando o lugar em que Escobar
- falecera, ouvindo referir a chegada do morto. Jose Dias ouviu tambem falar dos
- negocios do finado, divergindo alguns na avaliagao dos bens, mas havendo acordo
- em que o passivo devia ser pequeno. Elogiavam as qualidades de Escobar, um ou
- outro discutia o recente gabinete Rio Branco; estavamos em margo de 1871.
- Nunca me esqueceu o mes nem o ano.
- Como eu houvesse resolvido falar no cemiterio, escrevi algumas linhas e mostrei-
- as em casa a Jose Dias, que as achou realmente dignas do morto e de mim.
- Pediu-me o papel, recitou lentamente o discurso, pesando as palavras, e
- confirmou a primeira opiniao; no Flamengo espalhou a notfcia. Alguns conhecidos
- vieram interrogar-me:
- — Entao, vamos ouvi-lo?
- — Quatro palavras.
- Poucas mais seriam. Tinha-as escrito com receio de que a emogao me impedisse
- de improvisar. No tflburi em que andei uma ou duas horas, nao fizera mais que
- recordar o tempo do seminario, as relagoes de Escobar, as nossas simpatias, a
- nossa amizade, comegada, continuada e nunca interrompida, ate que um lance da
- fortuna fez separar para sempre duas criaturas que prometiam ficar por muito
- tempo unidas. De quando em quando enxugava os olhos. O cocheiro aventurou
- duas ou tres perguntas sobre a minha situagao moral; nao me arrancando nada,
- continuou o seu offcio. Chegando a casa, deitei aquelas emogoes ao papel; tal
- seria o discurso.
- CAPITULO CXXII I
- OLHOS DE RESSACA
- Enfim, chegou a hora da encomendagao e da partida. Sancha quis despedir-se do
- marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens
- choravam tambem, as mulheres todas. So Capitu, amparando a viuva, parecia
- vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arranca-la dali. A confusao era
- geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadaver tao fixa, tao
- apaixonadamente fixa, que nao admira Ihe saltassem algumas lagrimas poucas e
- caladas...
- As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa,
- olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carfcias para a
- amiga, e quis leva-la; mas o cadaver parece que a retinha tambem. Momento
- houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viuva, sem o
- pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar la fora,
- como se quisesse tragar tambem o nadador da manha.
- CAPITULO CXXIV
- O DISCURSO
- — Vamos, sao horas...
- Era Jose Dias que me convidava a fechar o ataude. Fechamo-lo, e eu peguei numa
- das argolas; rompeu o alarido final. Palavra que, quando cheguei a porta, vi o sol
- claro, tudo gente e carros, as cabegas descobertas, tive um daqueles meus
- impulsos que nunca chegavam a execugao: foi atirar a rua caixao, defunto e tudo.
- No carro disse a Jose Dias que se calasse. No cemiterio tive de repetir a cerimonia
- da casa, desatar as correias, e ajudar a levar o feretro a cova. O que isto me
- custou imagina. Descido o cadaver a cova, trouxeram a cal e a pa; sabes disto,
- teras ido a mais de um enterro, mas o que nao sabes nem pode saber nenhum
- dos teus amigos, leitor, ou qualquer outro estranho, e a crise que me tomou
- quando vi todos os olhos em mim, os pes quietos, as orelhas atentas, e, ao cabo
- de alguns instantes de total silencio, um sussurro vago, algumas vozes
- interrogativas, sinais, e alguem, Jose Dias, que me dizia ao ouvido:
- — Entao, fale.
- Era o discurso. Queriam o discurso. Tinham jus ao discurso anunciado.
- Maquinalmente, meti a mao no bolso, saquei o papel e li-o aos trambolhoes, nao
- todo, nem seguido, nem claro; a voz parecia-me entrar em vez de sair, as maos
- tremiam-me. Nao era so a emogao nova que me fazia assim, era o proprio texto,
- as memorias do amigo, as saudades confessadas, os louvores a pessoa e aos seus
- meritos; tudo isto que eu era obrigado a dizer e dizia mal. Ao mesmo tempo,
- temendo que me adivinhassem a verdade, forcejava por esconde-la bem. Creio
- que poucos me ouviram, mas o gesto geral foi de compreensao e de aprovagao.
- As maos que me deram a apertar eram de solidariedade; alguns diziam: "Muito
- bonito! muito bem! magmfico!" Jose Dias achou que a eloquencia estivera na
- altura da piedade. Um homem, que me pareceu jornalista, pediu-me licenga para
- levar o manuscrito e imprimi-lo. So a minha grande turvagao recusaria um
- obsequio tao simples.
- CAPITULO CXXV
- UMA COMPARACAO
- Priamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mao daquele que Ihe
- matou o filho. Homero e que relata isto, e e um bom autor, nao obstante conta-lo
- em verso, mas ha narragoes exatas em verso, e ate mau verso. Compara tu a
- situagao de Priamo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes do homem que
- recebera, defunto, aqueles olhos... E impossfvel que algum Homero nao tirasse da
- minha situagao muito melhor efeito, ou quando menos, igual. Nem digas que nos
- faltam Homeros, pela causa apontada em Camoes; nao, senhor, faltam-nos, e
- certo, mas e porque os Pnamos procuram a sombra e o silencio. As lagrimas, se
- as tern, sao enxugadas atras da porta, para que as caras aparegam limpas e
- serenas; os discursos sao antes de alegria que de melancolia, e tudo passa como
- se Aquiles nao matasse Heitor.
- CAPITULO CXXVI
- CISMANDO
- Pouco depois de sair do cemiterio, rasguei o discurso e deitei os pedagos pela
- portinhola fora, sem embargo dos esforgos de J ose Dias para impedi-lo.
- — Nao presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentagao de da-lo a
- imprimir, fica ja destrufdo de uma vez. Nao presta, nao vale nada.
- Jose Dias demonstrou longamente o contrario, depois elogiou o enterro, e por
- ultimo fez o panegfrico do morto, uma grande alma, espfrito ativo, coragao reto,
- amigo, bom amigo, digno da esposa amantfssima que Deus Ihe dera...
- Neste ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar comigo. O que
- cismei foi tao escuro e confuso que nao me deixou tomar pe. No Catete mandei
- parar o carro, disse a Jose Dias que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as
- levasse para casa; eu iria a pe.
- — Mas...
- — Vou fazer uma visita.
- A razao disto era acabar de cismar, e escolher uma resolugao que fosse adequada
- ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas; estas iriam pausadas
- ou nao, podia afrouxar o passo, parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabega
- cismasse a vontade. Fui andando e cismando. Tinha ja comparado o gesto de
- Sancha na vespera e o desespero daquele dia; eram inconciliaveis. A viuva era
- realmente amantfssima. Assim se desvaneceu de todo a ilusao da minha vaidade.
- Nao seria o mesmo caso de Capitu? Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posigao em
- que a vi, o ajuntamento de pessoas que devia naturalmente impor-lhe a
- dissimulagao, se houvesse algo que dissimular. O que aqui vai por ordem logica e
- dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de ideias e sensagoes, gragas aos
- solavancos do carro e as interrupgoes de Jose Dias. Agora, porem, raciocinava e
- evocava claro e bem. Concluf de mim para mim que era a antiga paixao que me
- ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.
- Quando cheguei a esta conclusao final, chegava tambem a porta de casa, mas
- voltei para tras, e subi outra vez a Rua do Catete. Eram as duvidas que me
- afligiam ou a necessidade de afligir Capitu com a minha grande demora?
- Ponhamos que eram as duas causas; andei largo espago, ate que me senti
- sossegar, e endireitei para casa. Batiam oito horas numa padaria.
- CAPITULO CXXVI I
- O BARBEIRO
- Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rabeca e
- nao tocava inteiramente mal. Na ocasiao em que ia passando, executava nao sei
- que pega. Parei na calgada a ouvi-lo (tudo sao pretextos a um coragao agoniado),
- ele viu-me, e continuou a tocar. Nao atendeu a um fregues, e logo a outro, que ali
- foram, a despeito da hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras a navalha.
- Perdeu-os sem perder uma nota; ia tocando para mim. Esta consideragao fez-me
- chegar francamente a porta da loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando a
- cortina de chita que fechava o interior da casa, vi apontar uma moga trigueira,
- vestido claro, flor no cabelo. Era a mulher dele; creio que me descobriu de dentro,
- e veio agradecer-me com a presenga o favor que eu fazia ao marido. Se me nao
- engano, chegou a dize-lo com os olhos. Quanto ao marido, tocava agora com mais
- calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face no instrumento,
- passava a alma ao arco, e tocava, tocava...
- Divina arte! la-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim andando para
- casa; enfiei pelo corredor e subi as escadas sem estrepito. Nunca me esqueceu o
- caso deste barbeiro, ou por estar ligado a um momento grave da minha vida, ou
- por esta maxima, que os compiladores podem tirar daqui e inserir nos compendios
- de escola. A maxima e que a gente esquece devagar as boas agoes que pratica, e
- verdadeiramente nao as esquece nunca. Pobre barbeiro! perdeu duas barbas
- naquela noite, que eram o pao do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um
- transeunte. Supoe agora que este, em vez de ir-se embora, como eu fui, ficava a
- porta a ouvi-lo e a enamorar-lhe a mulher; entao e que ele, todo arco, todo
- rabeca, tocaria desesperadamente. Divina arte!
- CAPITULO CXXVIII
- PUNHADO DE SUCESSOS
- Como ia dizendo, subi as escadas sem estrepito, empurrei a cancela, que estava
- apenas encostada, e dei com prima Justina e Jose Dias jogando cartas na saleta
- proxima. Capitu levantou-se do canape e veio a mim. O rosto dela era agora
- sereno e puro. Os outros suspenderam o jogo, e todos falamos do desastre e da
- viuva. Capitu censurou a imprudencia de Escobar, e nao dissimulou a tristeza que
- Ihe trazia a dor da amiga. Perguntei-lhe por que nao ficara com Sancha aquela
- noite.
- — Tern la muita gente; ainda assim ofereci-me, mas nao quis. Tambem Ihe disse
- que era melhor vir para ca, e passar aqui uns dias conosco.
- — Tambem nao quis?
- — Tambem nao.
- — Entretanto, a vista do mar ha de ser-lhe penosa, todas as manhas, ponderou
- Jose Dias, e nao sei como podera...
- — Mas passa; o que e que nao passa? atalhou prima J ustina.
- E como em torno desta ideia, comegassemos uma troca de palavras, Capitu saiu
- para ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, concertou os cabelos tao
- demoradamente que pareceria afetagao, se nao soubessemos que ela era muito
- amiga de si. Quando tornou trazia os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o
- filho dormindo, pensara na filhinha de Sancha, e na afligao da viuva. E, sem se Ihe
- dar das visitas, nem reparar se havia algum criado, abragou-me e disse-me que,
- se quisesse pensar nela, era preciso pensar primeiro na minha vida. Jose Dias
- achou a frase "lindfssima", e perguntou a Capitu por que e que nao fazia versos.
- Tentei meter o caso a bulha, e assim acabamos a noite.
- No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, nao que quisesse da-
- lo a imprimir, mas era lembranga do finado. Pensei em recompo-lo, mas so achei
- frases soltas, que uma vez juntas nao tinham sentido. Tambem pensei em fazer
- outro, mas era ja diffcil, e podia ser apanhado em falso pelos que me tinham
- ouvido no cemiterio. Quanto a recolher os pedacinhos de papel deitados a rua, era
- tarde; estariam ja varridos.
- Inventariei as lembrangas de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, uma bengala
- de marfim, um passaro, o album de Capitu, duas paisagens do Parana e outras.
- Tambem ele as possufa de minha mao. Vivemos assim a trocar memorias e
- regalos, ora em dia de anos, ora sem razao particular. Tudo isso me empanava os
- olhos... Vieram os jornais do dia: davam notfcia do desastre e da morte de
- Escobar, os estudos e os negocios deste, as qualidades pessoais, a simpatia do
- comercio, e tambem falavam dos bens deixados, da mulher e da filha. Tudo isso
- foi na segunda-feira. Na terga-feira foi aberto o testamento, que me nomeava
- segundo testamenteiro; o primeiro lugar cabia a mulher. Nao me deixava nada,
- mas as palavras que me escrevera em carta separada eram sublimes de amizade
- e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas compos-se depressa.
- Testamento, inventario, tudo andou quase tao depressa como aqui vai dito. Ao
- cabo de pouco tempo, Sancha retirou-se para a casa dos parentes no Parana.
- CAPITULO CXXIX
- A D. SANCHA
- D. Sancha, pego-lhe que nao leia este livro; ou, se o houver lido ate aqui,
- abandone o resto. Basta fecha-lo; melhor sera queima-lo, para Ihe nao dar
- tentagao e abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir ate o fim, a culpa e
- sua; nao respondo pelo mal que receber. O que ja Ihe tiver feito, contando os
- gestos daquele sabado, esse acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com
- eles, desmentimos a minha ilusao; mas o que agora a alcangar, esse e indelevel.
- Nao, amiga minha, nao leia mais. Va envelhecendo, sem marido nem filha, que eu
- fago a mesma coisa, e e ainda o melhor que se pode fazer depois da mocidade.
- Um dia, iremos daqui ate a porta do Ceu, onde nos encontraremos renovados,
- como as plantas novas, come piante novelle,
- Rinovellate di novelle fronde.
- O resto em Dante.
- CAPITULO CXXX
- UM DIA...
- Porquanto, um dia Capitu quis saber o que e que me fazia andar calado e
- aborrecido. E propos-me a Europa, Minas, Petropolis, uma serie de bailes, mil
- desses remedios aconselhados aos melancolicos. Eu nao sabia que Ihe
- respondesse; recusei as diversoes. Como insistisse, repliquei-lhe que os meus
- negocios andavam mal. Capitu sorriu para animar-me. E que tinha que andassem
- mal? Tornariam a andar bem, e ate la as joias, os objetos de algum valor seriam
- vendidos, e inamos residir em algum beco. Vivenamos sossegados e esquecidos;
- depois tornanamos a tona da agua. A ternura com que me disse isto era de
- comover as pedras. Pois nem assim. Respondi-lhe secamente que nao era preciso
- vender nada. Deixei-me estar calado e aborrecido. Ela propos-me jogar cartas ou
- damas, um passeio a pe, uma visita a Mata-cavalos; e, como eu nao aceitasse
- nada, foi para a sala, abriu o piano, e comegou a tocar; eu aproveitei a ausencia,
- peguei do chapeu e saf.
- ...Perdao, mas este capftulo devia ser precedido de outro, em que contasse um
- incidente, ocorrido poucas semanas antes, dois meses depois da partida de
- Sancha. Vou escreve-lo; podia antepo-lo a este, antes de mandar o livro ao prelo,
- mas custa muito alterar o numero das paginas; vai assim mesmo, depois a
- narragao seguira direita ate o fim. Demais, e curto.
- CAPI TULO CXXXI
- ANTERI OR AO ANTERI OR
- Foi o caso que a minha vida era outra vez doce e placida, a banca do advogado
- rendia-me bastante, Capitu estava mais bela, Ezequiel ia crescendo. Comegava o
- ano de 1872.
- — Voce ja reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressao esquisita?
- perguntou-me Capitu. So vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto
- Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papai, nao precisa
- revirar os olhos, assim, assim...
- Era depois de jantar; estavamos ainda a mesa, Capitu brincava com o filho, ou ele
- com ela, ou um com outro, porque, em verdade, queriam-se muito, mas e
- tambem certo que ele me queria ainda mais a mim. Aproximei-me de Ezequiel,
- achei que Capitu tinha razao; eram os olhos de Escobar, mas nao me pareceram
- esquisitos por isso. Afinal nao haveria mais que meia duzia de expressoes no
- mundo, e muitas semelhangas se dariam naturalmente. Ezequiel nao entendeu
- nada, olhou espantado para ela e para mim, e afinal saltou-me ao colo:
- — Vamos passear, papai?
- — Logo, meu filho.
- Capitu, alheia a ambos, fitava agora a outra borda da mesa; mas, dizendo-lhe eu
- que, na beleza, os olhos de Ezequiel safam aos da mae, Capitu sorriu, abanando a
- cabega com um ar que nunca achei em mulher alguma, provavelmente porque nao
- gostei tanto das outras. As pessoas valem o que vale a afeigao da gente, e e daf
- que mestre Povo tirou aquele adagio que quern o feio ama bonito Ihe parece.
- Capitu tinha meia duzia de gestos unicos na Terra. Aquele entrou-me pela alma
- dentro. Assim fica explicado que eu corresse a minha esposa e amiga e Ihe
- enchesse a cara de beijos; mas este outro incidente nao e radicalmente necessario
- a compreensao do capftulo passado e dos futuros; fiquemos nos olhos de Ezequiel.
- CAPITU LO CXXXII
- O DEBUXO E O COLORI DO
- Nem so os olhos, mas as restantes feigoes, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-
- se apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vai
- enchendo e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar
- quase, ate que a famflia pendura o quadro na parede, em memoria do que foi e ja
- nao pode ser. Aqui podia ser e era. O costume valeu muito contra o efeito da
- mudanga; mas a mudanga fez-se, nao a maneira de teatro, fez-se como a manha
- que aponta vagarosa, primeiro que se possa ler uma carta, depois le-se a carta na
- rua, em casa, no gabinete, sem abrir as janelas; a luz coada pelas persianas basta
- a distinguir as letras. Li a carta, mal a princfpio e nao toda, depois fui lendo
- melhor. Fugia-lhe, e certo, metia o papel no bolso, corria a casa, fechava-me, nao
- abria as vidragas, chegava a fechar os olhos. Quando novamente abria os olhos e
- a carta, a letra era clara e a notfcia clanssima.
- Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminario e do Flamengo para se
- sentar comigo a mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manha,
- ou pedir-me a noite a bengao do costume. Todas essas agoes eram repulsivas; eu
- tolerava-as e praticava-as, para me nao descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas
- o que pudesse dissimular ao mundo, nao podia faze-lo a mim, que vivia mais
- perto de mim que ninguem. Quando nem mae nem filho estavam comigo o meu
- desespero era grande, e eu jurava mata-los a ambos, ora de golpe, ora devagar,
- para dividir pelo tempo da morte todos os minutos da vida embagada e agoniada.
- Quando, porem, tornava a casa e via no alto da escada a criaturinha que me
- queria e esperava, ficava desarmado e diferia o castigo de um dia para outro.
- O que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, nao se notara aqui,
- por ser tao miudo e repetido, e ja tao tarde que nao se podera dize-lo sem falha
- nem canseira. Mas o principal ira. E o principal e que os nossos temporais eram
- agora contfnuos e ternveis. Antes de descoberta aquela ma terra da verdade,
- tivemos outros de pouca dura; nao tardava que o ceu se fizesse azul, o sol claro e
- o mar chao, por onde abrfamos novamente as velas que nos levavam as ilhas e
- costas mais belas do universo, ate que outro pe de vento desbaratava tudo, e nos,
- postos a capa, esperavamos outra bonanza, que nao era tardia nem dubia, antes
- total, proxima e firme.
- Releva-me estas metaforas; cheiram ao mar e a mare que deram morte ao meu
- amigo e comborgo Escobar. Cheiram tambem aos olhos de ressaca de Capitu.
- Assim, posto sempre fosse homem de terra, conto aquela parte da minha vida,
- como um marujo contaria o seu naufragio.
- Ja entre nos so faltava dizer a palavra ultima; nos a Ifamos, porem, nos olhos um
- do outro, vibrante e decisiva, e sempre que Ezequiel vinha para nos nao fazia mais
- que separar-nos. Capitu propos mete-lo em um colegio, donde so viesse aos
- sabados; custou muito ao menino aceitar esta situagao.
- — Quero ir com papai! Papai ha de ir comigo! bradava ele.
- Fui eu mesmo que o levei um dia de manha, uma segunda-feira. Era no antigo
- Largo da Lapa, perto da nossa casa. Levei-o a pe, pela mao, como levara o ataude
- do outro. O pequeno ia chorando e fazendo perguntas a cada passo, se voltaria
- para casa, e quando, e se eu iria ve-lo...
- — Vou.
- — Papai nao vai!
- — Vou sim.
- — J ura, papai!
- — Pois sim.
- — Papai nao diz que jura.
- — Pois juro.
- E la o levei e deixei. A ausencia temporaria nao atalhou o mal, e toda a arte fina
- de Capitu para faze-lo atenuar, ao menos, foi como se nao fosse; eu sentia-me
- cada vez pior. A mesma situagao nova agravou a minha paixao. Ezequiel vivia
- agora mais fora da minha vista; mas a volta dele, ao fim das semanas, ou pelo
- descostume em que eu ficava, ou porque o tempo fosse andando e completando a
- semelhanga, era a volta de Escobar mais vivo e ruidoso. Ate a voz, dentro de
- pouco, ja me parecia a mesma. Aos sabados, buscava nao jantar em casa e so
- entrar quando ele estivesse dormindo; mas nao escapava ao domingo, no
- gabinete, quando eu me achava entre jornais e autos. Ezequiel entrava turbulento,
- expansivo, cheio de riso e de amor, porque o demo do pequeno cada vez morria
- mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora uma aversao que mal podia
- disfargar, tanto a ela como aos outros. Nao podendo encobrir inteiramente esta
- disposigao moral, cuidava de me nao fazer encontradigo com ele, ou so o menos
- que pudesse; ora tinha trabalho que me obrigava a fechar o gabinete, ora safa ao
- domingo para ir passear pela cidade e arrabaldes o meu mal secreto.
- CAPITULO CXXXIII
- UMA I DEI A
- Um dia, — era uma sexta-feira, — nao pude mais. Certa ideia, que negrejava em
- mim, abriu as asas e entrou a bate-las de um lado para outro, como fazem as
- ideias que querem sair. O ser sexta-feira creio que foi acaso, mas tambem pode
- ter sido proposito; fui educado no terror daquele dia; ouvi cantar baladas em casa,
- vindas da roga e da antiga metropole, nas quais a sexta-feira era o dia de agouro.
- Entretanto, nao havendo almanaques no cerebro, e provavel que a ideia nao
- batesse as asas senao pela necessidade que sentia de vir ao ar e a vida. A vida e
- tao bela que a mesma ideia da morte precisa de vir primeiro a ela, antes de se ver
- cumprida. Ja me vais entendendo; le agora outro capftulo.
- CAPITULO CXXXI V
- O DIA DE SABADO
- A ideia saiu finalmente do cerebro. Era noite, e nao pude dormir, por mais que a
- sacudisse de mim. Tambem nenhuma noite me passou tao curta. Amanheceu,
- quando cuidava nao ser mais que uma ou duas horas. Saf, supondo deixar a ideia
- em casa; ela veio comigo. Ca fora tinha a mesma cor escura, as mesmas asas
- trepidas, e posto avoasse com elas, era como se fosse fixa; eu a levava na retina,
- nao que me encobrisse as coisas externas, mas via-as atraves dela, com a cor
- mais palida que de costume, e sem se demorarem nada.
- Nao me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas, comprei uma
- substancia, que nao digo, para nao espertar o desejo de prova-la. A farmacia faliu,
- e verdade; o dono fez-se banqueiro, e o banco prospera. Quando me achei com a
- morte no bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande,
- ou ainda maior, porque o premio da loteria gasta-se, e a morte nao se gasta. Fui a
- casa de minha mae, com o fim de despedir-me, a tftulo de visita. Ou de verdade
- ou por ilusao, tudo ali me pareceu melhor nesse dia, minha mae menos triste, tio
- Cosme esquecido do coragao, prima Justina da lingua. Passei uma hora em paz.
- Cheguei a abrir mao do projeto. Que era preciso para viver? Nunca mais deixar
- aquela casa, ou prender aquela hora a mim mesmo...
- CAPITULO CXXXV
- OTELO
- Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu nao
- vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidence. Vi as
- grandes raivas do mouro, por causa de um lengo, — um simples lengo!— e aqui
- dou materia a meditagao dos psicologos deste e de outros continentes, pois nao
- me pude furtar a observagao de que um lengo bastou a acender os ciumes de
- Otelo e compor a mais sublime tragedia deste mundo. Os lengos perderam-se,
- hoje sao precisos os proprios lengois; alguma vez nem lengois ha, e valem so as
- camisas. Tais eram as ideias que me iam passando pela cabega, vagas e turvas, a
- medida que o mouro rolava convulso, e I ago destilava a sua calunia. Nos
- intervalos nao me levantava da cadeira; nao queria expor-me a encontrar algum
- conhecido. As senhoras ficavam quase todas nos camarotes, enquanto os homens
- iam fumar. Entao eu perguntava a mim mesmo se alguma daquelas nao teria
- amado alguem que jazesse agora no cemiterio, e vinham outras incoerencias, ate
- que o pano subia e continuava a pega. O ultimo ato mostrou-me que nao eu, mas
- Capitu devia morrer. Ouvi as suplicas de Desdemona, as suas palavras amorosas e
- puras, e a furia do mouro, e a morte que este Ihe deu entre aplausos freneticos do
- publico.
- — E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; — que faria o publico, se ela
- deveras fosse culpada, tao culpada como Capitu? E que morte Ihe daria o mouro?
- Um travesseiro nao bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto,
- que a consumisse de todo, e a reduzisse a po, e o po seria langado ao vento, como
- eterna extingao...
- Vaguei pelas ruas o resto da noite. Ceei, e verdade, um quase nada, mas o
- bastante para ir ate a manha. Vi as ultimas horas da noite e as primeiras do dia, vi
- os derradeiros passeadores e os primeiros varredores, as primeiras carrogas, os
- primeiros rufdos, os primeiros albores, um dia que vinha depois do outro e me
- veria ir para nunca mais voltar. As ruas que eu andava como que me fugiam por si
- mesmas. Nao tornaria a contemplar o mar da Gloria, nem a serra dos Orgaos,
- nem a fortaleza de Santa Cruz e as outras. A gente que passava nao era tanta,
- como nos dias comuns da semana, mas era ja numerosa e ia a algum trabalho,
- que repetiria depois; eu e que nao repetiria mais nada.
- Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pe ante pe, e meti-me no gabinete;
- iam dar seis horas. Tirei o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi
- ainda uma carta, a ultima, dirigida a Capitu. Nenhuma das outras era para ela;
- senti necessidade de Ihe dizer uma palavra em que Ihe ficasse o remorso da minha
- morte. Escrevi dois textos. O primeiro queimei-o por ser longo e difuso. O segundo
- continha so o necessario, claro e breve. Nao Ihe lembrava o nosso passado, nem
- as lutas havidas, nem alegria alguma; falava-lhe so de Escobar e da necessidade
- de morrer.
- CAPITULO CXXXVI
- A XI CARA DE CAFE
- O meu piano foi esperar o cafe, dissolver nele a droga e ingeri-la. Ate la, nao
- tendo esquecido de todo a minha historia romana, lembrou-me que Catao, antes
- de se matar, leu e releu um livro de Platao. Nao tinha Platao comigo; mas um
- tomo truncado de Plutarco, em que era narrada a vida do celebre romano, bastou-
- me a ocupar aquele pouco tempo, e, para em tudo imita-lo, estirei-me no canape.
- Nem era so imita-lo nisso; tinha necessidade de incutir em mim a coragem dele,
- assim como ele precisara dos sentimentos do filosofo, para intrepidamente morrer.
- Um dos males da ignorancia e nao ter este remedio a ultima hora. Ha muita gente
- que se mata sem ele, e nobremente expira; mas estou que muita mais gente poria
- termo aos seus dias, se pudesse achar essa especie de cocafna moral dos bons
- livros. Entretanto, querendo fugir a qualquer suspeita de imitagao, lembra-me
- bem que, para nao ser encontrado ao pe de mim o livro de Plutarco, nem ser dada
- a notfcia nas gazetas com a da cor das calgas que eu entao vestia, assentei de po-
- lo novamente no seu lugar, antes de beber o veneno.
- O copeiro trouxe o cafe. Ergui-me, guardei o livro, e fui para a mesa onde ficara a
- xfcara. Ja a casa estava em rumores; era tempo de acabar comigo. A mao
- tremeu-me ao abrir o papel em que trazia a droga embrulhada. Ainda assim tive
- animo de despejar a substancia na xfcara, e comecei a mexer o cafe, os olhos
- vagos, a memoria em Desdemona inocente; o espetaculo da vespera vinha
- intrometer-se na realidade da manha. Mas a fotografia de Escobar deu-me o
- animo que me ia faltando; la estava ele, com a mao nas costas da cadeira, a olhar
- ao longe...
- "Acabemos com isto", pensei.
- Quando ia a beber, cogitei se nao seria melhor esperar que Capitu e o filho
- safssem para a missa; beberia depois; era melhor. Assim disposto, entrei a
- passear no gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o entrar e correr a
- mim bradando:
- — Papai! papai!
- Leitor, houve aqui um gesto que eu nao descrevo por have-lo inteiramente
- esquecido, mas ere que foi belo e tragico. Efetivamente, a figura do pequeno fez-
- me recuar ate dar de costas na estante. Ezequiel abragou-me os joelhos, esticou-
- se na ponta dos pes, como querendo subir e dar-me o beijo do costume; e repetia,
- puxando-me:
- — Papai! papai!
- CAPITULO CXXXVI I
- SEGUNDO IMPULSO
- Se eu nao olhasse para Ezequiel, e provavel que nao estivesse aqui escrevendo
- este livro, porque o meu primeiro fmpeto foi correr ao cafe e bebe-lo. Cheguei a
- pegar na xfcara, mas o pequeno beijava-me a mao, como de costume, e a vista
- dele, como o gesto, deu-me outro impulso que me custa dizer aqui; mas va la,
- diga-se tudo. Chamem-me embora assassino; nao serei eu que os desdiga ou
- contradiga; o meu segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a
- Ezequiel se ja tomara cafe.
- — Ja, papai; vou a missa com mamae.
- — Toma outra xfcara, meia xfcara so.
- — E papai?
- — Eu mando vir mais; anda, bebe!
- Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xfcara, tao tremulo que quase a entornei,
- mas disposto a faze- la cair pela goela abaixo, caso o sabor Ihe repugnasse, ou a
- temperatura, porque o cafe estava frio... Mas nao sei que senti que me fez recuar.
- Pus a xfcara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doidamente a cabega do
- menino.
- — Papai! papai! exclamava Ezequiel.
- — Nao, nao, eu nao sou teu pai!
- CAPITULO CXXXVI II
- CAPITU QUE ENTRA
- Quando levantei a cabega, dei com a figura de Capitu diante de mim. Eis af outro
- lance, que parecera de teatro, e e tao natural como o primeiro, uma vez que a
- mae e o filho iam a missa, e Capitu nao safa sem falar-me. Era ja um falar seco e
- breve; a maior parte das vezes, eu nem olhava para ela. Ela olhava sempre,
- esperando.
- Desta vez, ao dar com ela, nao sei se era dos meus olhos, mas Capitu pareceu-me
- Ifvida. Seguiu-se um daqueles silencios, a que, sem mentir, se pode chamar de um
- seculo, tal e a extensao do tempo nas grandes crises. Capitu recompos-se; disse
- ao filho que se fosse embora, e pediu-me que Ihe explicasse...
- — Nao ha que explicar, disse eu.
- — Ha tudo; nao entendo as tuas lagrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre
- voces?
- — Nao ouviu o que Ihe disse?
- Capitu respondeu que ouvira choro e rumor de palavras. Eu creio que ouvira tudo
- claramente, mas confessa-lo seria perder a esperanga do silencio e da
- reconciliagao; por isso negou a audiencia e confirmou unicamente a vista. Sem Ihe
- contar o episodio do cafe, repeti-lhe as palavras do final do capftulo.
- — O que? perguntou ela como se ouvira mal.
- — Que nao e meu filho.
- Grande foi a estupefagao de Capitu, e nao menor a indignagao que Ihe sucedeu,
- tao naturais ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do
- nosso foro. Ja ouvi que as ha para varios casos, questao de prego; eu nao creio,
- tanto mais que a pessoa que me contou isto acabava de perder uma demanda.
- Mas, haja ou nao testemunhas alugadas, a minha era verdadeira; a propria
- natureza jurava por si, e eu nao queria duvidar dela. Assim que, sem atender a
- linguagem de Capitu, aos seus gestos, a dor que a retorcia, a coisa nenhuma,
- repeti as palavras ditas duas vezes com tal resolugao que a fizeram afrouxar. Apos
- alguns instantes, disse-me ela:
- — So se pode explicar tal injuria pela convicgao sincera; entretanto, voce que era
- tao cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfianga.
- Que e que Ihe deu tal ideia? Diga, — continuou vendo que eu nao respondia nada,
- — diga tudo; depois do que ouvi, posso ouvir o resto, nao pode ser muito. Que e
- que Ihe deu agora tal convicgao? Ande, Bentinho, fale! fale! Despega-me daqui,
- mas diga tudo primeiro.
- — Ha coisas que se nao dizem.
- — Que se nao dizem so metade; mas ja que disse metade, diga tudo.
- Tinha-se sentado numa cadeira ao pe da mesa. Podia estar um tanto confusa, o
- porte nao era de acusada. Pedi-lhe ainda uma vez que nao teimasse.
- — Nao, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se voce acha que
- tenho defesa, ou pego-lhe desde ja a nossa separagao: nao posso mais!
- — A separagao e coisa decidida, redargui, pegando-lhe na proposta. Era melhor
- que a fizessemos por meias palavras ou em silencio; cada um iria com a sua
- ferida. Uma vez, porem, que a senhora insiste, aqui vai o que Ihe posso dizer, e e
- tudo.
- Nao disse tudo; mas pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome.
- Capitu nao pode deixar de rir, de um riso que eu sinto nao poder transcrever aqui;
- depois, em um tom juntamente ironico e melancolico:
- — Pois ate os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciumes!
- Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que
- nao pedia outra coisa mais que a plena justificagao dela, disse-lhe nao sei que
- palavras adequadas a este fim. Capitu olhou para mim com desdem, e murmurou:
- — Sei a razao disto; e a casualidade da semelhanga... A vontade de Deus
- explicara tudo... Ri-se? E natural; apesar do seminario, nao acredita em Deus; eu
- creio... Mas nao falemos nisto; nao nos fica bem dizer mais nada.
- CAPITULO CXXXIX
- A FOTOGRAFI A
- Palavra que estive a pique de crer que era vftima de uma grande ilusao, uma
- fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: —
- "Mamae! mamae! e hora da missa!" restituiu-me a consciencia da realidade.
- Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um
- para o outro. Desta vez a confusao dela fez-se confissao pura. Este era aquele;
- havia por forga alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno
- Ezequiel. De boca, porem, nao confessou nada; repetiu as ultimas palavras, puxou
- do filho e safram para a missa.
- CAPITULO CXL
- VOLTA DA IGREjA
- Ficando so, era natural pegar do cafe e bebe-lo. Pois, nao, senhor; tinha perdido o
- gosto a morte. A morte era uma solugao; eu acabava de achar outra, tanto melhor
- quanto que nao era definitiva, e deixava a porta aberta a reparagao, se devesse
- have-la. Nao disse perdao, mas reparagao, isto e, justiga. Qualquer que fosse a
- razao do ato, rejeitei a morte, e esperei o regresso de Capitu. Este foi mais
- demorado que de costume; cheguei a temer que ela houvesse ido a casa de minha
- mae, mas nao foi.
- — Confiei a Deus todas as minhas amarguras, disse-me Capitu ao voltar da igreja;
- ouvi dentro de mim que a nossa separagao e indispensavel, e estou as suas
- ordens.
- Os olhos com que me disse isto eram embugados, como espreitando um gesto de
- recusa ou de espera. Contava com a minha debilidade ou com a propria incerteza
- em que eu podia estar da paternidade do outro, mas falhou tudo. Acaso haveria
- em mim um homem novo, um que aparecia agora, desde que impressoes novas e
- fortes o descobriam? Nesse caso era um homem apenas encoberto. Respondi-lhe
- que ia pensar, e fanamos o que eu pensasse. Em verdade vos digo que tudo
- estava pensado e feito.
- No intervalo, evocara as palavras do finado Gurgel, quando me mostrou em casa
- dele o retrato da mulher, parecido com Capitu. Has de lembrar-te delas; se nao,
- rele o capftulo, cujo numero nao ponho aqui, por nao me lembrar ja qual seja,
- mas nao fica longe. Reduzem-se a dizer que ha tais semelhangas inexplicaveis...
- Pelo dia adiante, e nos outros dias, Ezequiel ia ter comigo ao gabinete, e as
- feigoes do pequeno davam ideia clara das do outro, ou eu ia atentando mais nelas.
- De envolta, lembravam-me episodios vagos e remotos, palavras, encontros e
- incidentes, tudo em que a minha cegueira nao pos malfcia, e a que faltou o meu
- velho ciume. Uma vez em que os fui achar sozinhos e calados, um segredo que me
- fez rir, uma palavra dela sonhando, todas essas reminiscencias vieram vindo
- agora, em tal atropelo que me atordoaram... E por que os nao esganei um dia,
- quando desviei os olhos da rua onde estavam duas andorinhas trepadas no fio
- telegrafico? Dentro, as minhas outras andorinhas estavam trepadas no ar, os
- olhos enfiados nos olhos, mas tao cautelosos que se desenfiaram logo, dizendo-me
- uma palavra amiga e alegre. Contei-lhes o namoro das andorinhas de fora, e
- acharam-lhe graga; Escobar declarou que, para ele, seria melhor se as andorinhas,
- em vez de trepadas no fio de arame, estivessem a mesa do jantar cozidas. "Nunca
- comi os ninhos delas, continuou, mas devem ser bons, se os chins os
- inventaram”.E ficamos a tratar dos chins e dos classicos que falaram deles,
- enquanto Capitu, confessando que a aborredamos, foi a outros cuidados. Agora
- lembrava-me tudo o que entao me pareceu nada.
- CAPITULO CXLI
- A SOLUQAO
- Aqui esta o que fizemos. Pegamos em nos e fomos para a Europa, nao passear,
- nem ver nada, novo nem velho; paramos na Sufga. Uma professora do Rio
- Grande, que foi conosco, ficou de companhia a Capitu, ensinando a lingua materna
- a Ezequiel, que aprenderia o resto nas escolas do pais. Assim regulada a vida,
- tornei ao Brasil.
- Ao cabo de alguns meses, Capitu comegara a escrever-me cartas, a que respondi
- com brevidade e sequidao. As dela eram submissas, sem odio, acaso afetuosas, e
- para o fim saudosas; pedia-me que a fosse ver. Embarquei um ano depois, mas
- nao a procurei, e repeti a viagem com o mesmo resultado. Na volta, os que se
- lembravam dela, queriam notfcias, e eu dava-lhes, como se acabasse de viver com
- ela; naturalmente as viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e
- enganar a opiniao. Um dia, finalmente...
- CAPI TULO CXLI I
- UMA SANTA
- Entenda-se que, se nas viagens que fiz a Europa, Jose Dias nao foi comigo, nao e
- que Ihe faltasse vontade; ficava de companhia a tio Cosme, quase invalido, e a
- minha mae, que envelheceu depressa. Tambem ele estava velho, posto que rijo.
- la a bordo despedir-se de mim, e as palavras que me dizia, os gestos de lengo, os
- proprios olhos que enxugava eram tais que me comoviam tambem. A ultima vez
- nao foi a bordo.
- — Venha...
- — Nao posso.
- — Esta com medo?
- — Nao; nao posso. Agora, adeus, Bentinho, nao sei se me vera mais; creio que
- vou para a outra Europa, a eterna...
- Nao foi logo; minha mae embarcou primeiro. Procura no cemiterio de Sao Joao
- Batista uma sepultura sem nome, com esta unica indicagao: Uma santa. E af. Fiz
- fazer essa inscrigao com alguma dificuldade. O escultor achou-a esquisita; o
- administrador do cemiterio consultou o vigario da paroquia; este ponderou-me
- que as santas estao no altar e no Ceu.
- — Mas, perdao, atalhei, eu nao quero dizer que naquela sepultura esta uma
- canonizada. A minha ideia e dar com tal palavra uma definigao terrena de todas as
- virtudes que a finada possuiu na vida. Tanto e assim que, sendo a modestia uma
- delas, desejo conserva-la postuma, nao Ihe escrevendo o nome.
- — Todavia, o nome, a filiagao, as datas...
- — Quern se importara com datas, filiagao, nem nomes, depois que eu acabar?
- — Quer dizer que era uma santa senhora, nao?
- — Justamente. O protonotario Cabral, se fosse vivo, confirmaria aqui o que Ihe
- digo.
- — Nem eu contesto a verdade, hesito so na formula. Conheceu entao o
- protonotario?
- — Conheci-o. Era um padre-modelo.
- — Bom canonista, bom latinista, pio e caridoso, continuou o vigario.
- — E possufa algumas prendas de sociedade, disse eu; la em casa sempre ouvi que
- era insigne parceiro ao gamao...
- — Tinha muito bom dado! suspirou lentamente o vigario. Um dado de mestre!
- — Entao, parece-lhe...?
- — Uma vez que nao ha outro sentido, nem poderia have-lo, sim, senhor, admite-
- se...
- Jose Dias assistiu a estas diligencias, com grande melancolia. No fim, quando
- safmos, disse mal do padre, chamou-lhe meticuloso. So Ihe achava desculpa por
- nao ter conhecido minha mae, nem ele nem os outros homens do cemiterio.
- — Nao a conheceram; se a conhecessem mandariam esculpir santfssima.
- CAPITULO CXLIII
- O ULTI MO SUPERLATI VO
- Nao foi o ultimo superlativo de Jose Dias. Outros teve que nao vale a pena
- escrever aqui, ate que veio o ultimo, o melhor deles, o mais doce, o que Ihe fez da
- morte um pedago de vida. Ja entao morava comigo; posto que minha mae Ihe
- deixasse uma pequena lembranga, veio dizer-me que, com legado ou sem ele, nao
- se separaria de mim. Talvez a esperanga dele fosse enterrar-me. Correspondia-se
- com Capitu, a que pedia que Ihe mandasse o retrato de Ezequiel; mas Capitu ia
- adiando a remessa de correio a correio, ate que ele nao pediu mais nada, a nao
- ser o coragao do jovem estudante; pedia-lhe tambem que nao deixasse de falar a
- Ezequiel no velho amigo do pai e do avo, "destinado pelo Ceu a amar o mesmo
- sangue".Era assim que ele preparava os cuidados da terceira geragao; mas a
- morte veio antes de Ezequiel. A doenga foi rapida. Mandei chamar um medico
- homeopata.
- — Nao, Bentinho, disse ele; basta um alopata; em todas as escolas se morre.
- Demais, foram ideias da mocidade, que o tempo levou; converto-me a fe de meus
- pais. A alopatia e o catolicismo da Medicina...
- Morreu sereno, apos uma agonia curta. Pouco antes ouviu que o ceu estava lindo,
- e pediu que abrissemos a janela.
- — Nao, o ar pode fazer-lhe mal.
- — Que mal? Ar e vida.
- Abrimos a janela. Realmente, estava um ceu azul e claro. Jose Dias soergueu-se e
- olhou para fora; apos alguns instantes, deixou cair a cabega, murmurando:
- Lindfssimo! Foi a ultima palavra que proferiu neste mundo. Pobre J ose Dias! Por
- que hei de negar que chorei por ele?
- CAPITULO CXLIV
- UMA PERGUNTA TARDI A
- Assim chorem por mim todos os olhos de amigos e amigas que deixo neste
- mundo, mas nao e provavel. Tenho-me feito esquecer. Moro longe e saio pouco.
- Nao e que haja efetivamente ligado as duas pontas da vida. Esta casa do Engenho
- Novo, conquanto reproduza a de Mata-cavalos, apenas me lembra aquela, e mais
- por efeito de comparagao e de reflexao que de sentimento. J a disse isto mesmo.
- Hao de perguntar-me por que razao, tendo a propria casa velha, na mesma rua
- antiga, nao impedi que a demolissem e vim reproduzi-la nesta. A pergunta devia
- ser feita a princfpio, mas aqui vai a resposta. A razao e que, logo que minha mae
- morreu, querendo ir para la, fiz primeiro uma longa visita de inspegao por alguns
- dias, e toda a casa me desconheceu. No quintal a aroeira e a pitangueira, o pogo,
- a cagamba velha e o lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina era a mesma que
- eu deixara ao fundo, mas o tronco, em vez de reto, como outrora, tinha agora um
- ar de ponto de interrogagao; naturalmente pasmava do intruso. Corri os olhos pelo
- ar, buscando algum pensamento que ali deixasse, e nao achei nenhum. Ao
- contrario, a ramagem comegou a sussurrar alguma coisa que nao entendi logo, e
- parece que era a cantiga das manhas novas. Ao pe dessa musica sonora e jovial,
- ouvi tambem o grunhir dos porcos, especie de troga concentrada e filosofica.
- Tudo me era estranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, mais tarde,
- quando vim para o Engenho Novo, lembrou-me fazer esta reprodugao por
- explicagoes que dei ao arquiteto, segundo contei em tempo.
- CAPITULO CXLV
- O REGRESSO
- Ora, foi ja nesta casa que um dia, estando a vestir-me para almogar, recebi um
- cartao com este nome:
- Ezequiel A. de Santiago
- — A pessoa esta af? perguntei ao criado.
- — Sim, senhor; ficou esperando.
- Nao fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou quinze minutos na sala. So depois e
- que me lembrou que cumpria ter certo alvorogo e correr, abraga-lo, falar-lhe na
- mae. A mae, — creio que ainda nao disse que estava morta e enterrada. Estava;
- la repousa na velha Sufga. Acabei de vestir-me as pressas. Quando saf do quarto,
- tomei ares de pai, um pai entre manso e crespo, metade Dom Casmurro. Ao
- entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa,
- pintado na parede. Vim cauteloso, e nao fiz rumor. Nao obstante, ouviu-me os
- passos, e voltou-se depressa. Conhece-me pelos retratos e correu para mim. Nao
- me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e jovem companheiro do
- seminario de Sao Jose, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo e, salvo as
- cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. Trajava a moderna,
- naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o aspecto geral reproduzia a
- pessoa morta. Era o proprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborgo;
- era o filho de seu pai. Vestia de luto pela mae; eu tambem estava de preto.
- Sentamo-nos.
- — Papai nao faz diferenga dos ultimos retratos, disse-me ele.
- A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancesado. Expliquei-lhe que
- realmente pouco diferia do que era, e comecei um interrogator^ para ter menos
- que falar e dominar assim a minha emogao. Mas isto mesmo dava animagao a
- cara dele, e o meu colega do seminario ia ressurgindo cada vez mais do cemiterio.
- Ei-lo aqui, diante de mim, com igual riso e maior respeito; total, o mesmo
- obsequio e a mesma graga. Ansiava por ver-me. A mae falava muito em mim,
- louvando-me extraordinariamente, como o homem mais puro do mundo, o mais
- digno de ser querido.
- — Morreu bonita, concluiu.
- — Vamos almogar.
- Se pensas que o almogo foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos de
- aborrecimento, e verdade; a princfpio doeu-me que Ezequiel nao fosse realmente
- meu filho, que me nao completasse e continuasse. Se o rapaz tern safdo a mae, eu
- acabava crendo tudo, tanto mais facilmente quando que ele parecia haver-me
- deixado na vespera, evocava a meninice, cenas e palavras, a ida para o colegio...
- — Papai ainda se lembra quando me levou para o colegio? perguntou rindo.
- — Pois nao hei de lembrar-me?
- — Era na Lapa; eu ia desesperado, e papai nao parava, dava-me cada puxao, e eu
- com as perninhas... Sim, senhor, aceito.
- Estendeu o copo ao vinho que eu Ihe oferecia, bebeu um gole, e continuou a
- comer. Escobar comia assim tambem, com a cara metida no prato. Contou-me a
- vida na Europa, os estudos, particularmente os de arqueologia, que era a sua
- paixao. Falava da antiguidade com amor, contava o Egito e os seus milhares de
- seculos, sem se perder nos algarismos; tinha a cabega aritmetica do pai. Eu, posto
- que a ideia da paternidade do outro me estivesse ja familiar, nao gostava da
- ressurreigao. As vezes, fechava os olhos para nao ver gestos nem nada, mas o
- diabrete falava e ria, e o defunto falava e ria por ele.
- Nao havendo remedio senao ficar com ele, fiz-me pai deveras. A ideia de que
- pudesse ter visto alguma fotografia de Escobar, que Capitu por descuido levasse
- consigo, nao me acudiu, nem, se acudisse, persistiria. Ezequiel cria em mim, como
- na mae. Se fosse vivo Jose Dias, acharia nele a minha propria pessoa. Prima
- Justina quis ve-lo; mas, estando enferma, pediu-me que o levasse la. Conhecia
- aquela parenta. Creio que o desejo de ver Ezequiel era para o fim de verificar no
- mogo o debuxo que porventura houvesse achado no menino. Seria um regalo
- ultimo; atalhei-o a tempo.
- — Esta muito mal, disse eu a Ezequiel que queria ir ve-la, qualquer emogao pode
- trazer-lhe a morte. I remos ve-la, quando ficar melhor.
- Nao fomos; a morte levou-a dentro de poucos dias. Ela descansa no Senhor ou
- como quer que seja. Ezequiel viu-lhe a cara no caixao e nao a conheceu, nem
- podia, tao outra a fizeram os anos e a morte. No caminho para o cemiterio, iam-
- Ihe lembrando uma porgao de coisas, alguma rua, alguma torre, um trecho de
- praia, e era todo alegria. Assim acontecia sempre que voltava para casa, ao fim do
- dia; contava-me as recordagoes que ia recebendo das ruas e das casas. Admirava-
- se que muitas destas fossem as mesmas que ele deixara, como se as casas
- morressem meninas.
- Ao cabo de seis meses, Ezequiel falou-me em uma viagem a Grecia, ao Egito, e a
- Palestina, viagem cientffica, promessa feita a alguns amigos.
- — De que sexo? perguntei rindo.
- Sorriu, vexado, e respondeu-me que as mulheres eram criaturas tao da moda e do
- dia que nunca haviam de entender uma rufna de trinta seculos. Eram dois colegas
- da universidade. Prometi-lhe recursos, e dei-lhe logo os primeiros dinheiros
- precisos. Como disse que uma das consequencias dos amores furtivos do pai era
- pagar eu as arqueologias do filho; antes Ihe pegasse a lepra... Quando esta ideia
- me atravessou o cerebro, senti-me tao cruel e perverso que peguei no rapaz, e
- quis aperta-lo ao coragao, mas recuei; encarei-o depois, como se faz a um filho de
- verdade; os olhos que ele me deitou foram ternos e agradecidos.
- CAPI TULO CXLVI
- NAO HOUVE LEPRA
- Nao houve lepra, mas ha febres por todas essas terras humanas, sejam velhas ou
- novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de uma febre tifoide, e foi enterrado
- nas imediagoes de Jerusalem, onde os dois amigos da universidade Ihe levantaram
- um tumulo com esta inscrigao, tirada do profeta Ezequiel, em grego: "Tu eras
- perfeito nos teus caminhos".Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o
- desenho da sepultura, a conta das despesas e o resto do dinheiro que ele levava;
- pagaria o triplo para nao tornar a ve-lo.
- Como quisesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, e achei que era exato,
- mas tinha ainda um complemento: "Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o
- dia da tua criagao".Parei e perguntei calado: "Quando seria o dia da criagao de
- Ezequiel?" Ninguem me respondeu. Eis af mais um misterio para ajuntar aos
- tantos deste mundo. Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro.
- CAPI TULO CXLVI I
- A EXPOSI QAO RETROSPECTIVA
- Ja sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, nao ficou af para
- um canto como uma flor Ifvida e solitaria. Nao Ihe dei essa cor ou descor. Vivi o
- melhor que pude sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira.
- Caprichos de pouca dura, e verdade. Elas e que me deixavam como pessoas que
- assistem a uma exposigao retrospectiva, e, ou se fartam de ve-la, ou a luz da sala
- esmorece. Uma so dessas visitas tinha carro a porta e cocheiro de libre. As outras
- iam modestamente, calcante pede, e, se chovia, eu e que ia buscar um carro de
- praga, e as metia dentro, com grandes despedidas, e maiores recomendagoes.
- — Levas o catalogo?
- — Levo; ate amanha.
- — Ate amanha.
- Nao voltavam mais. Eu ficava a porta, esperando, ia ate a esquina, espiava,
- consultava o relogio, e nao via nada nem ninguem. Entao, se aparecia outra visita,
- dava-lhe o brago, entravamos, mostrava-lhe as paisagens, os quadros historicos
- ou de genero, uma aquarela, um pastel, uma gouache, e tambem esta cansava, e
- ia embora com o catalogo na mao...
- CAPI TULO CXLVI 1 1
- E BEM, E O RESTO?
- Agora, por que e que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira
- amada do meu coragao? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem
- os de cigana oblfqua e dissimulada. Mas nao e este propriamente o resto do livro.
- O resto e saber se a Capitu da Praia da Gloria ja estava dentro da de Mata-
- cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus,
- filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciumes, dir-me-ia, como no seu
- cap. IX, vers. I: "Nao tenhas ciumes de tua mulher para que ela nao se meta a
- enganar-te com a malfcia que aprender de ti". Mas eu creio que nao, e tu
- concordats comigo; se te lembras bem da Capitu menina, has de reconhecer que
- uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.
- E bem, qualquer que seja a solugao, uma coisa fica, e e a suma das sumas, ou o
- resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tao
- extremosos ambos e tao queridos tambem, quis o destino que acabassem
- juntando-se e enganando-me... A terra Ihes seja level Vamos a Historia dos
- Suburbios.
- FIM
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