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dom

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Apr 25th, 2018
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  1.  
  2. Dom Casmurro
  3.  
  4.  
  5.  
  6. Texto de referenda:
  7. Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
  8. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
  9.  
  10. Publicado originalmente pela Editora Gamier, Rio de Janeiro, 1899.
  11.  
  12.  
  13.  
  14. CAPITULO PRIMEI RO
  15. DO TI TULO
  16.  
  17. Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da
  18. Central um rapaz aqui do bairro, que eu conhego de vista e de chapeu.
  19. Cumprimentou-me, sentou-se ao pe de mim, falou da Lua e dos ministros, e
  20. acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que nao
  21. fossem inteiramente maus. Sucedeu, porem, que, como eu estava cansado, fechei
  22. os olhos tres ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e
  23. metesse os versos no bolso.
  24.  
  25. — Continue, disse eu acordando.
  26.  
  27. — Ja acabei, murmurou ele.
  28.  
  29. — Sao muito bonitos.
  30.  
  31. Vi-lhe fazer um gesto para tira-los outra vez do bolso, mas nao passou do gesto;
  32. estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou
  33. alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que nao gostam dos meus habitos
  34. reclusos e calados, deram curso a alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me
  35. zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graga, chamam-me
  36. assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com voce”.—
  37. "Vou para Petropolis, Dom Casmurro; a casa e a mesma da Renania; ve se deixas
  38. essa caverna do Engenho Novo, e vai la passar uns quinze dias comigo".— "Meu
  39. caro Dom Casmurro, nao cuide que o dispenso do teatro amanha; venha e dormira
  40. aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe cha, dou-lhe cama; so nao Ihe dou
  41. moga”.
  42.  
  43. Nao consultes dicionarios. Casmurro nao esta aqui no sentido que eles Ihe dao,
  44. mas no que Ihe pos o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por
  45. ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Tambem nao
  46. achei melhor tftulo para a minha narragao; se nao tiver outro daqui ate ao fim do
  47. livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficara sabendo que nao Ihe guardo
  48. rancor. E com pequeno esforgo, sendo o tftulo seu, podera cuidar que a obra e
  49. sua. Ha livros que apenas terao isso dos seus autores; alguns nem tanto.
  50.  
  51.  
  52.  
  53. CAPITULO II
  54. DO LI VRO
  55.  
  56.  
  57.  
  58.  
  59. Agora que expliquei o tftulo, passo a escrever o livro. Antes disso, porem, digamos
  60. os motivos que me poem a pena na mao.
  61.  
  62. Vivo so, com um criado. A casa em que moro e propria; fi-la construir de
  63. proposito, levado de um desejo tao particular que me vexa imprimi-lo, mas va la.
  64. Um dia, ha bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em
  65. que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e
  66. economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem
  67. as indicates que Ihes fiz: e o mesmo predio assobradado, tres janelas de frente,
  68. varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do
  69. teto e das paredes e mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miudas e
  70. grandes passaros que as tomam nos bicos, de espago a espago. Nos quatro cantos
  71. do teto as figuras das estagoes, e ao centra das paredes os medalhoes de Cesar,
  72. Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Nao alcango a razao de
  73. tais personagens. Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, ja ela estava assim
  74. decorada; vinha do decenio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter
  75. sabor classico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais e tambem
  76. analogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um pogo e
  77. lavadouro. Uso louga velha e mobflia velha. Enfim, agora, como outrora, ha aqui o
  78. mesmo contraste da vida interior, que e pacata, com a exterior, que e ruidosa.
  79.  
  80. O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a
  81. adolescencia. Pois, senhor, nao consegui recompor o que foi nem o que fui. Em
  82. tudo, se o rosto e igual, a fisionomia e diferente. Se so me faltassem os outros,
  83. va; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu
  84. mesmo, e esta lacuna e tudo. O que aqui esta e, mal comparando, semelhante a
  85. pintura que se poe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o habito
  86. externo, como se diz nas autopsias; o interno nao aguenta tinta. Uma certidao que
  87. me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os
  88. documentos falsos, mas nao a mim. Os amigos que me restam sao de data
  89. recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto as
  90. amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na
  91. mocidade. Duas ou tres fariam crer nela aos outros, mas a lingua que falam obriga
  92. muita vez a consultar os dicionarios, e tal frequencia e cansativa.
  93.  
  94. Entretanto, vida diferente nao quer dizer vida pior; e outra coisa. A certos
  95. respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que Ihe
  96. achei; mas e tambem exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de
  97. memoria, conservo alguma recordagao doce e feiticeira. Em verdade, pouco
  98. aparego e menos falo. Distragoes raras. O mais do tempo e gasto em hortar,
  99. jardinar e ler; como bem e nao durmo mal.
  100.  
  101. Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me tambem. Quis
  102. variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudence, filosofia e polftica
  103. acudiram-me, mas nao me acudiram as forgas necessarias. Depois, pensei em
  104. fazer uma Historia dos Suburbios, menos seca que as memorias do padre Luis
  105. Gongalves dos Santos, relativas a cidade; era obra modesta, mas exigia
  106. documentos e datas, como preliminares, tudo arido e longo. Foi entao que os
  107. bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que
  108. eles nao alcangavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse
  109. alguns. Talvez a narragao me desse a ilusao, e as sombras viessem perpassar
  110. ligeiras, como ao poeta, nao o do trem, mas o do Fausto: Af vindes outra vez,
  111. inquietas sombras?...
  112.  
  113. Fiquei tao alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mao. Sim,
  114. Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande Cesar, que me incitas a fazer os meus
  115. comentarios, agradego-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscencias
  116. que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mao para
  117. alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocagao por uma celebre tarde de
  118. novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas
  119.  
  120.  
  121.  
  122.  
  123. aquela nunca se me apagou do espfrito. E o que vais entender, lendo.
  124.  
  125.  
  126.  
  127. CAPITULO III
  128. A DENUNCIA
  129.  
  130. la a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me
  131. atras da porta. A casa era a da rua de Mata-cavalos, o mes novembro, o ano e que
  132. e um tanto remoto, mas eu nao hei de trocar as datas a minha vida so para
  133. agradar as pessoas que nao amam historias velhas; o ano era de 1857.
  134.  
  135. — D. Gloria, a senhora persiste na ideia de meter o nosso Bentinho no seminario?
  136. E mais que tempo, e ja agora pode haver uma dificuldade.
  137.  
  138. — Que dificuldade?
  139.  
  140. — Uma grande dificuldade.
  141.  
  142. Minha mae quis saber o que era. Jose Dias, depois de alguns instantes de
  143. concentragao, veio ver se havia alguem no corredor; nao deu por mim, voltou e,
  144. abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pe, a gente do Padua.
  145.  
  146. — A gente do Padua?
  147.  
  148. — Ha algum tempo estou para Ihe dizer isto, mas nao me atrevia. Nao me parece
  149. bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e
  150. esta e a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora tera muito que
  151. lutar para separa-los.
  152.  
  153. — Nao acho. Metidos nos cantos?
  154.  
  155. — E um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase nao sai de
  156. la. A pequena e uma desmiolada; o pai faz que nao ve; tomara ele que as coisas
  157. corressem de maneira que... Compreendo o seu gesto; a senhora nao ere em tais
  158. calculos, parece-lhe que todos tern a alma Candida...
  159.  
  160. — Mas, Sr. Jose Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que
  161. faga desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tern quinze anos. Capitu fez quatorze
  162. a semana passada; sao dois criangolas. Nao se esquega que foram criados juntos,
  163. desde aquela grande enchente, ha dez anos, em que a famflia Padua perdeu tanta
  164. coisa; daf vieram as nossas relagoes. Pois eu hei de crer? ... Mano Cosme, voce
  165. que acha?
  166.  
  167. Tio Cosme respondeu com um "Ora!" que, traduzido em vulgar, queria dizer: "Sao
  168. imaginagoes do Jose Dias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde esta o
  169. gamao?"
  170.  
  171. — Sim, creio que o senhor esta enganado.
  172.  
  173. — Pode ser, minha senhora. Oxala tenham razao; mas creia que nao falei senao
  174. depois de muito examinar...
  175.  
  176. — Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mae; vou tratar de mete-lo
  177. no seminario quanto antes.
  178.  
  179. — Bern, uma vez que nao perdeu a ideia de o fazer padre, tem-se ganho o
  180. principal. Bentinho ha de satisfazer os desejos de sua mae. E depois a igreja
  181. brasileira tern altos destinos. Nao esquegamos que um bispo presidiu a
  182. Constituinte, e que o padre Feijo governou o Imperio...
  183.  
  184.  
  185.  
  186.  
  187. — Governo como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores
  188. politicos.
  189.  
  190.  
  191.  
  192. — Perdao, doutor, nao estou defendendo ninguem, estou citando. O que eu quero
  193. e dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.
  194.  
  195. — Voce o que quer e um capote; ande, va buscar o gamao. Quanto ao pequeno,
  196. se tem de ser padre, realmente e melhor que nao comece a dizer missa atras das
  197. portas. Mas, olhe ca, mana Gloria, ha mesmo necessidade de faze-lo padre?
  198.  
  199. — E promessa, ha de cumprir-se.
  200.  
  201. — Sei que voce fez promessa... mas uma promessa assim... nao sei... Creio que,
  202. bem pensado... Voce que acha, prima Justina?
  203.  
  204. — Eu?
  205.  
  206. — Verdade e que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus e que
  207. sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas, que e isso, mana
  208. Gloria? Esta chorando? Ora esta! Pois isto e coisa de lagrimas?
  209.  
  210. Minha mae assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter
  211. com ela. Seguiu-se um alto silencio, durante o qual estive a pique de entrar na
  212. sala, mas outra forga maior, outra emogao... Nao pude ouvir as palavras que tio
  213. Cosme entrou a dizer. Prima Justina exortava: "Prima Gloria! Prima Gloria!" Jose
  214. Dias desculpava-se: "Se soubesse, nao teria falado, mas falei pela veneragao, pela
  215. estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amanssimo..."
  216.  
  217.  
  218.  
  219. CAPITULO IV
  220. UM DEVER AMARI SSI MO!
  221.  
  222. Jose Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feigao monumental as
  223. ideias; nao as havendo, servia a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o
  224. gamao, que estava no interior da casa. Cosi-me muito a parede, e vi-o passar com
  225. as suas calgas brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos
  226. ultimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as
  227. calgas curtas para que Ihe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com
  228. um arco de ago por dentro, imobilizava-lhe o pescogo; era entao moda. O rodaque
  229. de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimonia. Era magro,
  230. chupado, com um princfpio de calva; teria os seus cinquenta e cinco anos.
  231. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, nao aquele vagar arrastado dos
  232. preguigosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a
  233. premissa antes da consequencia, a consequencia antes da conclusao. Um dever
  234. amanssimo!
  235.  
  236.  
  237.  
  238. CAPITULO V
  239. O AGREGADO
  240.  
  241. Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rfgido. Tambem se descompunha em
  242. acionados, era muita vez rapido e lepido nos movimentos, tao natural nesta como
  243. naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem
  244. vontade, mas comunicativo, a tal ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a
  245. cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves,
  246. gravfssimo.
  247.  
  248.  
  249.  
  250.  
  251. Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda
  252. de Itaguaf, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se por medico
  253. homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia entao um andago de febres;
  254. Jose Dias curou o feitor e uma escrava, e nao quis receber nenhuma remuneragao.
  255. Entao meu pai propos-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado. Jose Dias
  256. recusou, dizendo que era justo levar a saude a casa de sape do pobre.
  257.  
  258. — Quern Ihe impede que va a outras partes? Va aonde quiser, mas fique morando
  259. conosco.
  260.  
  261. — Voltarei daqui a tres meses.
  262.  
  263. Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipendio, salvo o
  264. que quisessem dar por festas. Quando meu pai foi eleito deputado e veio para o
  265. Rio de Janeiro com a famflia, ele veio tambem, e teve o seu quarto ao fundo da
  266. chacara. Um dia, reinando outra vez febres em Itaguaf, disse-lhe meu pai que
  267. fosse ver a nossa escravatura. Jose Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou
  268. confessando que nao era medico. Tomara este tftulo para ajudar a propaganda da
  269. nova escola, e nao o fez sem estudar muito e muito; mas a consciencia nao Ihe
  270. permitia aceitar mais doentes.
  271.  
  272. — Mas, voce curou das outras vezes.
  273.  
  274. — Creio que sim; o mais acertado, porem, e dizer que foram os remedios
  275. indicados nos livros. Eles, sim; eles, abaixo de Deus. Eu era um charlatao... Nao
  276. negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia
  277. e a verdade, e, para servir a verdade, menti; mas e tempo de restabelecer tudo.
  278.  
  279. Nao foi despedido, como pedia entao; meu pai ja nao podia dispensa-lo. Tinha o
  280. dom de se fazer aceito e necessario; dava-se por falta dele, como de pessoa da
  281. famflia. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme, disseram-me,
  282. nao me lembra. Minha mae ficou-lhe muito grata, e nao consentiu que ele
  283. deixasse o quarto da chacara; ao setimo dia, depois da missa, ele foi despedir-se
  284. dela.
  285.  
  286. — Fique, J ose Dias.
  287.  
  288. — Obedego, minha senhora.
  289.  
  290. Teve um pequeno legado no testamento, uma apolice e quatro palavras de louvor.
  291. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama.
  292. "Esta e a melhor apolice", dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa
  293. autoridade na famflia, certa audiencia, ao menos; nao abusava, e sabia opinar
  294. obedecendo. Ao cabo, era amigo, nao direi otimo, mas nem tudo e otimo neste
  295. mundo. E nao Ihe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham
  296. antes do calculo que da indole. A roupa durava-lhe muito; ao contrario das
  297. pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e
  298. liso, cerzido, abotoado, de uma elegancia pobre e modesta. Era lido, posto que de
  299. atropelo, o bastante para divertir ao serao e a sobremesa, ou explicar algum
  300. fenomeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos polos e de Robespierre. Contava
  301. muita vez uma viagem que fizera a Europa, e confessava que a nao sermos nos, ja
  302. teria voltado para la; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa famflia, dizia ele,
  303. abaixo de Deus, era tudo.
  304.  
  305. — Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia.
  306.  
  307. — Abaixo, repetiu Jose Dias cheio de veneragao.
  308.  
  309. E minha mae, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido
  310. lugar, e sorriu aprovando. Jose Dias agradeceu de cabega. Minha mae dava-lhe de
  311.  
  312.  
  313.  
  314.  
  315. quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a
  316. copia de papeis de autos.
  317.  
  318.  
  319.  
  320. CAPI TULO VI
  321. TIO COSME
  322.  
  323. Tio Cosme vivia com minha mae, desde que ela enviuvou. Ja entao era viuvo,
  324. como prima Justina; era a casa dos tres viuvos.
  325.  
  326. A fortuna troca muita vez as maos a natureza. Formado para as serenas fungoes
  327. do capitalismo, tio Cosme nao enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escritorio
  328. na antiga rua das Violas, perto do juri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no
  329. crime. Jose Dias nao perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quern Ihe vestia e
  330. despia a toga, com muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio
  331. Cosme, por mais modesto que quisesse ser, sorria de persuasao.
  332.  
  333. Era gordo e pesado, tinha a respiragao curta e os olhos dorminhocos. Uma das
  334. minhas recordagoes mais antigas era ve-lo montar todas as manhas a besta que
  335. minha mae Ihe deu e que o levava ao escritorio. O preto que a tinha ido buscar a
  336. cocheira, segurava o freio, enquanto ele erguia o pee pousava no estribo; a isto
  337. seguia-se um minuto de descanso ou reflexao. Depois, dava um impulso, o
  338. primeiro, o corpo ameagava subir, mas nao subia; segundo impulso, igual efeito.
  339. Enfim, apos alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forgas ffsicas e
  340. morais, dava o ultimo surto da terra, e desta vez cafa em cima do selim.
  341. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o
  342. mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote.
  343.  
  344. Tambem nao me esqueceu o que ele me fez uma tarde. Posto que nascido na roga
  345. (donde vim com dois anos) e apesar dos costumes do tempo, eu nao sabia
  346. montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em
  347. cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove anos), sozinho e desamparado, o
  348. chao la embaixo, entrei a gritar desesperadamente: "Mamae! mamae!" Ela acudiu,
  349. palida e tremula, cuidou que me estivessem matando, apeou-me, afagou-me,
  350. enquanto o irmao perguntava:
  351.  
  352. — Mana Gloria, pois um tamanhao destes tern medo de besta mansa?
  353.  
  354. — Nao esta acostumado.
  355.  
  356. — Deve acostumar-se. Padre que seja, se for vigario na roga, e preciso que monte
  357. a cavalo; e, aqui mesmo, ainda nao sendo padre, se quiser florear como os outros
  358. rapazes, e nao souber, ha de queixar-se de voce, mana Gloria.
  359.  
  360. — Pois que se queixe; tenho medo.
  361.  
  362. — Medo! Ora, medo!
  363.  
  364. A verdade e que eu so vim a aprender equitagao mais tarde, menos por gosto que
  365. por vergonha de dizer que nao sabia montar. "Agora e que ele vai namorar
  366. deveras", disseram quando eu comecei as ligoes. Nao se diria o mesmo de tio
  367. Cosme. Nele era velho costume e necessidade. Ja nao dava para namoros.
  368. Contam que, em rapaz, foi aceito de muitas damas, alem de partidario exaltado;
  369. mas os anos levaram-lhe o mais do ardor politico e sexual, e a gordura acabou
  370. com o resto de ideias publicas e especfficas. Agora so cumpria as obrigagoes do
  371. offcio e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez
  372. dizia pilherias.
  373.  
  374.  
  375.  
  376.  
  377. CAPITULO VII
  378. D. GLORIA
  379.  
  380.  
  381.  
  382. Minha mae era boa criatura. Quando Ihe morreu o marido, Pedro de Albuquerque
  383. Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaf. Nao
  384. quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a
  385. fazendola e os escravos, comprou alguns que pos ao ganho ou alugou, uma duzia
  386. de predios, certo numero de apolices, e deixou-se estar na casa de Mata-cavalos,
  387. onde vivera os dois ultimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira,
  388. descendente de outra paulista, a famflia Fernandes.
  389.  
  390. Ora, pois, naquele ano da graga de 1857, D. Maria da Gloria Fernandes Santiago
  391. contava quarenta e dois anos de idade. Era ainda bonita e moga, mas teimava em
  392. esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preserva-la da
  393. agao do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um
  394. xale preto, dobrado em triangulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os
  395. cabelos, em bandos, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de
  396. tartaruga; alguma vez trazia a touca branca de folhos. Lidava assim, com os seus
  397. sapatos de cordovao rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os
  398. servigos todos da casa inteira, desde manha ate a noite.
  399.  
  400. Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A
  401. pintura escureceu muito, mas ainda da ideia de ambos. Nao me lembra nada dele,
  402. a nao ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns
  403. olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que
  404. me assombrava em pequeno. O pescogo sai de uma gravata preta de muitas
  405. voltas, a cara e toda rapada, salvo um trechozinho pegado as orelhas. O de minha
  406. mae mostra que era linda. Contava entao vinte anos, e tinha uma flor entre os
  407. dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se le na cara de ambos e
  408. que, se a felicidade conjugal pode ser comparada a sorte grande, eles a tiraram no
  409. bilhete comprado de sociedade.
  410.  
  411. Concluo que nao se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda
  412. de imorais, como ninguem tachou de ma a boceta de Pandora, por Ihe ter ficado a
  413. esperanga no fundo; em alguma parte ha de ela ficar. Aqui os tenho aos dois bem
  414. casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta
  415. para a outra vida, continuar um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora
  416. me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esquego os bilhetes brancos e a boceta
  417. fatfdica. Sao retratos que valem por originais. O de minha mae, estendendo a flor
  418. ao marido, parece dizer: "Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!" O de meu pai,
  419. olhando para a gente, faz este comentario: "Vejam como esta moga me quer..."
  420. Se padeceram molestias, nao sei, como nao sei se tiveram desgostos: era crianga
  421. e comecei por nao ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou
  422. muito; mas aqui estao os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo Ihes
  423. tirasse a primeira expressao. Sao como fotografias instantaneas da felicidade.
  424.  
  425.  
  426.  
  427. CAPITULO VIII
  428. E TEMPO
  429.  
  430. Mas e tempo de tornar aquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca,
  431. sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que moravamos.
  432. Verdadeiramente foi o princfpio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi
  433. como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das
  434. luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora e que eu ia comegar a minha
  435. opera. "A vida e uma opera", dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e
  436. morreu... E explicou-me um dia a definigao, em tal maneira que me fez crer nela.
  437. Talvez valha a pena da-la; e so um capftulo.
  438.  
  439.  
  440.  
  441.  
  442. CAPI TULO IX
  443. A OPERA
  444.  
  445.  
  446.  
  447. Ja nao tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. "O desuso e que me faz mal",
  448. acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao
  449. empresario e expunha-lhe todas as injustigas da Terra e do Ceu; o empresario
  450. cometia mais uma, e ele safa a bradar contra a iniquidade. Trazia ainda os bigodes
  451. dos seus papeis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa
  452. de Babilonia. As vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais
  453. idoso que ele ou tanto; vozes assim abafadas sao sempre possfveis. Vinha aqui
  454. jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a
  455. definigao do costume, e como eu Ihe dissesse que a vida tanto podia ser uma
  456. opera como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabega e replicou:
  457.  
  458. — A vida e uma opera e uma grande opera. O tenor e o barftono lutam pelo
  459. soprano, em presenga do baixo e dos comprimarios, quando nao sao o soprano e o
  460. contralto que lutam pelo tenor, em presenga do mesmo baixo e dos mesmos
  461. comprimarios. Ha coros numerosos, muitos bailados, e a orquestragao e
  462. excelente...
  463.  
  464. — Mas, meu caro Marcolini...
  465.  
  466. — Que?...
  467.  
  468. E, depois, de beber um gole de licor, pousou o calice, e expos-me a historia da
  469. criagao, com palavras que vou resumir.
  470.  
  471. Deus e o poeta. A musica e de Satanas, jovem maestro de muito futuro, que
  472. aprendeu no conservatorio do ceu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, nao tolerava
  473. a precedence que eles tinham na distribuigao dos premios. Pode ser tambem que
  474. a musica em demasia doce e rmstica daqueles outros condiscfpulos fosse
  475. aborrecfvel ao seu genio essencialmente tragico. Tramou uma rebeliao que foi
  476. descoberta a tempo, e ele expulso do conservatorio. Tudo se teria passado sem
  477. mais nada, se Deus nao houvesse escrito um libreto de opera, do qual abrira mao,
  478. por entender que tal genero de recreio era improprio da sua eternidade. Satanas
  479. levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais
  480. que os outros, — e acaso para reconciliar-se com o ceu, — compos a partitura, e
  481. logo que a acabou foi leva-la ao Padre Eterno.
  482.  
  483. — Senhor, nao desaprendi as ligoes recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura,
  484. escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-
  485. me com ela a vossos pes...
  486.  
  487. — Nao, retorquiu o Senhor, nao quero ouvir nada.
  488.  
  489. — Mas, Senhor...
  490.  
  491. — Nada! nada!
  492.  
  493. Satanas suplicou ainda, sem melhor fortuna, ate que Deus, cansado e cheio de
  494. misericordia, consentiu em que a opera fosse executada, mas fora do ceu. Criou
  495. um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as
  496. partes, primarias e comprimarias, coros e bailarinos.
  497.  
  498. — Ouvi agora alguns ensaios!
  499.  
  500. — Nao, nao quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou
  501.  
  502.  
  503.  
  504.  
  505. pronto a dividir contigo os direitos de autor.
  506.  
  507.  
  508.  
  509. Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a
  510. audiencia previa e a colaboragao amiga teriam evitado. Com efeito, ha lugares em
  511. que o verso vai para a direita e a musica, para a esquerda. Nao falta quem diga
  512. que nisso mesmo esta a beleza da composigao, fugindo a monotonia, e assim
  513. explicam o terceto do Eden, a aria de Abel, os coros da guilhotina e da escravidao.
  514. Nao e raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razao suficiente. Certos
  515. motivos cansam a forga de repetigao. Tambem ha obscuridades; o maestro abusa
  516. das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As
  517. partes orquestrais sao alias tratadas com grande pencia. Tal e a opiniao dos
  518. imparciais.
  519.  
  520. Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa acha obra tao bem
  521. acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o
  522. andar da opera e provavel que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas
  523. desaparegam inteiramente, nao se negando o maestro a emendar a obra onde
  524. achar que nao responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Ja nao dizem o
  525. mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura
  526. corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada
  527. com arte em outros, e absolutamente diversa e ate contraria ao drama. O
  528. grotesco, por exemplo, nao esta no texto do poeta; e uma excrescencia para
  529. imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto e contestado pelos satanistas
  530. com alguma aparencia de razao. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem
  531. Satanas compos a grande opera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos.
  532. Chegam a afirmar que o poeta ingles nao teve outro genio senao transcrever a
  533. letra da opera, com tal arte e fidelidade, que parece ele proprio o autor da
  534. composigao; mas, evidentemente, e um plagiario.
  535.  
  536. — Esta pega, concluiu o velho tenor, durara enquanto durar o teatro, nao se
  537. podendo calcular em que tempo sera ele demolido por utilidade astronomica. O
  538. exito e crescente. Poeta e musico recebem pontualmente os seus direitos autorais,
  539. que nao sao os mesmos, porque a regra da divisao e aquilo da Escritura: "Muitos
  540. sao os chamados, poucos os escolhidos". Deus recebe em ouro, Satanas em papel.
  541.  
  542. — Tern graga...
  543.  
  544. — Graga? bradou ele com furia; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago,
  545. eu nao tenho graga, eu tenho horror a graga. Isto que digo e a verdade pura e
  546. ultima. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inuteis, ha de haver
  547. alguem, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos
  548. homens. Tudo e musica, meu amigo. No princfpio era o do, e do do fez-se re, etc.
  549. Este calice (e enchia-o novamente), este calice e um breve estribilho. Nao se
  550. ouve? Tambem nao se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma
  551. opera...
  552.  
  553.  
  554.  
  555. CAPI TULO X
  556. ACEITO A TEORIA
  557.  
  558. Que e demasiada metaffsica para um so tenor, nao ha duvida; mas a perda da voz
  559. explica tudo, e ha filosofos que sao, em resumo, tenores desempregados.
  560.  
  561. Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, nao so pela
  562. verossimilhanga, que e muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se
  563. casa bem a definigao. Cantei um duo termssimo, depois um trio, depois um
  564. quatuor... Mas nao adiantemos; vamos a primeira parte, em que eu vim a saber
  565. que ja cantava, porque a denuncia de Jose Dias, meu caro leitor, foi dada
  566. principalmente a mim. A mim e que ele me denunciou.
  567.  
  568.  
  569.  
  570.  
  571. CAPITULO XI
  572. A PROMESSA
  573.  
  574.  
  575.  
  576. Tao depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri
  577. a varanda do fundo. Nao quis saber de lagrimas nem da causa que as fazia verter
  578. a minha mae. A causa eram provavelmente os seus projetos eclesiasticos, e a
  579. ocasiao destes e a que vou dizer, por ser ja entao historia velha; datava de
  580. dezesseis anos.
  581.  
  582. Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o
  583. primeiro filho, minha mae pegou-se com Deus para que o segundo vingasse,
  584. prometendo, se fosse varao, mete-lo na igreja. Talvez esperasse uma menina.
  585. Nao disse nada a meu pai, nem antes, nem depois de me dar a luz; contava faze-
  586. lo quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viuva, sentiu o
  587. terror de separar-se de mim; mas era tao devota, tao temente a Deus, que
  588. buscou testemunhas da obrigagao, confiando a promessa a parentes e familiares.
  589. Unicamente, para que nos separassemos o mais tarde possfvel, fez-me aprender
  590. em casa primeiras letras, latim e doutrina, por aquele padre Cabral, velho amigo
  591. do tio Cosme, que ia la jogar as noites.
  592.  
  593. Prazos largos sao faceis de subscrever; a imaginagao os faz infinitos. Minha mae
  594. esperou que os anos viessem vindo. Entretanto, ia-me afeigoando a ideia da
  595. igreja; brincos de crianga, livros devotos, imagens de santos, conversagoes de
  596. casa, tudo convergia para o altar. Quando famos a missa, dizia-me sempre que
  597. era para aprender a ser padre, e que reparasse no padre, nao tirasse os olhos do
  598. padre. Em casa, brincava de missa, — um tanto as escondidas, porque minha mae
  599. dizia que missa nao era coisa de brincadeira. Arranjavamos um altar, Capitu e eu.
  600. Ela servia de sacristao, e alteravamos o ritual, no sentido de dividirmos a hostia
  601. entre nos; a hostia era sempre um doce. No tempo em que brincavamos assim,
  602. era muito comum ouvir a minha vizinha: "Hoje ha missa?" Eu ja sabia o que isto
  603. queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir hostia por outro nome. Voltava
  604. com ela, arranjavamos o altar, engrolavamos o latim e precipitavamos as
  605. cerimonias. Dominus, non sum dignus... Isto, que eu devia dizer tres vezes, penso
  606. que so dizia uma, tal era a gulodice do padre e do sacristao. Nao bebfamos vinho
  607. nem agua; nao tinhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do
  608. sacriffcio.
  609.  
  610. Ultimamente nao me falavam ja do seminario, a tal ponto que eu supunha ser
  611. negocio findo. Quinze anos, nao havendo vocagao, pediam antes o seminario do
  612. mundo que o de Sao Jose. Minha mae ficava muita vez a olhar para mim, como
  613. alma perdida, ou pegava-me na mao, a pretexto de nada, para aperta-la muito.
  614.  
  615.  
  616.  
  617. CAPI TULO XII
  618. NA VARANDA
  619.  
  620. Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coragao parecendo
  621. querer sair-me pela boca fora. Nao me atrevia a descer a chacara, e passar ao
  622. quintal vizinho. Comecei a andar de um lado para outro, estacando para amparar-
  623. me, e andava outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso do Jose
  624. Dias:
  625.  
  626. "Sempre juntos..."
  627.  
  628. "Em segredinhos..."
  629.  
  630.  
  631.  
  632.  
  633. "Se eles pegam de namoro..."
  634.  
  635. Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes a
  636. direita ou a esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vos me ficou a melhor parte da
  637. crise, a sensagao de um gozo novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me
  638. dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava nao sei que balsamo interior. As
  639. vezes dava por mim, sorrindo, um ar de riso de satisfagao, que desmentia a
  640. abominagao do meu pecado. E as vozes repetiam-se confusas:
  641.  
  642. "Em segredinhos..."
  643.  
  644. "Sempre juntos..."
  645.  
  646. "Se eles pegam de namoro..."
  647.  
  648. Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si
  649. que nao era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as
  650. meninas de quatorze; ao contrario, os adolescentes daquela idade nao tinham
  651. outro offcio, nem os cantos outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos
  652. coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros. Passaros, borboletas, uma
  653. cigarra que ensaiava o estio, toda a gente viva do ar era da mesma opiniao.
  654.  
  655. Com que entao eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido as
  656. saias dela, mas nao me ocorria nada entre nos que fosse deveras secreto. Antes
  657. dela ir para o colegio, eram tudo travessuras de crianga; depois que saiu do
  658. colegio, e certo que nao restabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou
  659. pouco a pouco, e no ultimo ano era completa. Entretanto, a materia das nossas
  660. conversagoes era a de sempre. Capitu chamava-me as vezes bonito, mocetao,
  661. uma flor; outras pegava-me nas maos para contar-me os dedos. E comecei a
  662. recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ela me
  663. passava a mao pelos cabelos, dizendo que os achava lindfssimos. Eu, sem fazer o
  664. mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos que os meus. Entao
  665. Capitu abanava a cabega com uma grande expressao de desengano e melancolia,
  666. tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiraveis; mas eu
  667. retorquia chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na
  668. vespera, e eu dizia que nao, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram
  669. aventuras extraordinarias, que subfamos ao Corcovado pelo ar, que dangavamos
  670. na Lua, ou entao que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar
  671. a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andavamos
  672. unidinhos. Os que eu tinha com ela nao eram assim, apenas reproduziam a nossa
  673. familiaridade, e muita vez nao passavam da simples repetigao do dia, alguma
  674. frase, algum gesto. Tambem eu os contava. Capitu um dia notou a diferenga,
  675. dizendo que os dela eram mais bonitos que os meus; eu, depois de certa
  676. hesitagao, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de
  677. pitanga.
  678.  
  679. Pois, francamente, so agora entendia a comogao que me davam essas e outras
  680. confidences. A emogao era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu
  681. a buscasse nem suspeitasse. Os silencios dos ultimos dias, que me nao
  682. descobriam nada, agora os sentia como sinais de alguma coisa, e assim as meias
  683. palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de
  684. recordar a infancia. Tambem adverti que era fenomeno recente acordar com o
  685. pensamento em Capitu, e escuta-la de memoria, e estremecer quando Ihe ouvia
  686. os passos. Se se falava nela, em minha casa, prestava mais atengao que dantes,
  687. e, segundo era louvor ou crftica, assim me trazia gosto ou desgosto mais intensos
  688. que outrora, quando eramos somente companheiros de travessuras. Cheguei a
  689. pensar nela durante as missas daquele mes, com intervalos, e verdade, mas com
  690. exclusivismo tambem.
  691.  
  692. Tudo isto me era agora apresentado pela boca dejose Dias, que me denunciara a
  693.  
  694.  
  695.  
  696.  
  697. mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o
  698. que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade nao Valeria
  699. mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava
  700. Capitu! Capitu amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam,
  701. estacavam, tremulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da
  702. seiva, essa revelagao da conscience a si propria, nunca mais me esqueceu, nem
  703. achei que Ihe fosse comparavel qualquer outra sensagao da mesma especie.
  704. Naturalmente por ser minha. Naturalmente tambem por ser a primeira.
  705.  
  706.  
  707.  
  708. CAPITULO XIII
  709. CAPITU
  710.  
  711. De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pe:
  712.  
  713. — Capitu!
  714.  
  715. E no quintal:
  716.  
  717. — Mamae!
  718.  
  719. E outra vez na casa:
  720.  
  721. — Vem ca!
  722.  
  723. Nao me pude ter. As pernas desceram-me os tres degraus que davam para a
  724. chacara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, as tardes, e as
  725. manhas tambem. Que as pernas tambem sao pessoas, apenas inferiores aos
  726. bragos, e valem de si mesmas, quando a cabega nao as rege por meio de ideias.
  727. As minhas chegaram ao pe do muro. Havia ali uma porta de comunicagao
  728. mandada rasgar por minha mae, quando Capitu e eu eramos pequenos. A porta
  729. nao tinha chave nem taramela; abria-se empurrando de um lado ou puxando de
  730. outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente de uma corda. Era quase que
  731. exclusivamente nossa. Em criangas, fazfamos visita batendo de um lado, e sendo
  732. recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitu adoeciam,
  733. o medico era eu. Entrava no quintal dela com um pau debaixo do brago, para
  734. imitar o bengalao do doutor J oao da Costa; tomava o pulso a doente, e pedia-lhe
  735. que mostrasse a lingua. "E surda, coitada!", exclamava Capitu. Entao eu cogava o
  736. queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas sanguessugas ou
  737. dar-lhe um vomitorio: era a terapeutica habitual do medico.
  738.  
  739. — Capitu!
  740.  
  741. — Mamae!
  742.  
  743. — Deixa de estar esburacando o muro; vem ca.
  744.  
  745. A voz da mae era agora mais perto, como se viesse ja da porta dos fundos. Quis
  746. passar ao quintal, mas as pernas, ha pouco tao andarilhas, pareciam agora presas
  747. ao chao. Afinal fiz um esforgo, empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pe do
  748. muro fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fe-la
  749. olhar para tras; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder
  750. alguma coisa. Caminhei para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque
  751. ela veio a mim, e perguntou-me inquieta:
  752.  
  753. — Que e que voce tern?
  754.  
  755.  
  756.  
  757. — Eu? Nada.
  758.  
  759.  
  760.  
  761.  
  762. — Nada, nao; voce tem alguma coisa.
  763.  
  764.  
  765.  
  766. Quis insistir que nada, mas nao achei lingua. Todo eu era olhos e coragao, um
  767. coragao que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Nao podia tirar os
  768. olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um
  769. vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas trangas, com
  770. as pontas atadas uma a outra, a moda do tempo, desciam-lhe pelas costas.
  771. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo
  772. largo. As maos, a despeito de alguns offcios rudes, eram curadas com amor; nao
  773. cheiravam a saboes finos nem aguas de toucador, mas com agua do pogo e sabao
  774. comum trazia-as sem macula. Calgava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que
  775. ela mesma dera alguns pontos.
  776.  
  777. — Que e que voce tem? repetiu.
  778.  
  779. — Nao e nada, balbuciei finalmente.
  780.  
  781. E emendei logo:
  782.  
  783. — E uma notfcia.
  784.  
  785. — Notfcia de que?
  786.  
  787. Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminario e espreitar a impressao que Ihe
  788. faria. Se a consternasse e que realmente gostava de mim; se nao, e que nao
  789. gostava. Mas todo esse calculo foi obscuro e rapido; senti que nao poderia falar
  790. claramente, tinha agora a vista nao sei como...
  791.  
  792. — Entao?
  793.  
  794. — Voce sabe...
  795.  
  796. Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo ou
  797. esburacando, como dissera a mae. Vi uns riscos abertos, e lembrou-me o gesto
  798. que ela fizera para cobri-los. Entao quis ve-los de perto, e dei um passo. Capitu
  799. agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra
  800. maneira, correu adiante e apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em mim o
  801. desejo de ler o que era.
  802.  
  803.  
  804.  
  805. CAPI TU LO XIV
  806. A I NSCRI CAO
  807.  
  808. Tudo o que contei no fim do outro capftulo foi obra de um instante. O que se Ihe
  809. seguiu foi ainda mais rapido. Dei um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li
  810. estes dois nomes, abertos ao prego, e assim dispostos:
  811.  
  812. BENTO
  813.  
  814. CAPITOLINA
  815.  
  816. Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chao. Ergueu-os logo, devagar, e
  817. ficamos a olhar um para o outro... Confissao de criangas, tu valias bem duas ou
  818. tres paginas, mas quero ser poupado. Em verdade, nao falamos nada; o muro
  819. falou por nos. Nao nos movemos, as maos e que se estenderam pouco a pouco,
  820. todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Nao marquei a hora exata
  821. daquele gesto. Devia te-la marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela
  822. mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas
  823. nao traria nenhum, tal era a diferenga entre o estudante e o adolescente.
  824.  
  825.  
  826.  
  827.  
  828. Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e
  829. era virgem de mulheres.
  830.  
  831.  
  832.  
  833. Nao soltamos as maos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas.
  834. Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a
  835. meter-se uns pelos outros... Padre futuro, estava assim diante dela como de um
  836. altar, sendo uma das faces a Epfstola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o
  837. calice, os labios a patena. Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguem
  838. aprende, e e a lingua catolica dos homens. Nao me tenhas por sacrflego, leitora
  839. minha devota; a limpeza da intengao lava o que puder haver menos curial no
  840. estilo. Estavamos ali com o ceu em nos. As maos, unindo os nervos, faziam das
  841. duas criaturas uma so, mas uma so criatura serafica. Os olhos continuaram a dizer
  842. coisas infinitas, as palavras de boca e que nem tentavam sair, tornavam ao
  843. coragao caladas como vinham...
  844.  
  845.  
  846.  
  847. CAPITULO XV
  848. OUTRA VOZ REPENTI NA
  849.  
  850. Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem:
  851.  
  852. — Voces estao jogando o siso?
  853.  
  854. Era o pai de Capitu, que estava a porta dos fundos, ao pe da mulher. Soltamos as
  855. maos depressa, e ficamos atrapalhados. Capitu foi ao muro, e, com o prego,
  856. disfargadamente, apagou os nossos nomes escritos.
  857.  
  858. — Capitu!
  859.  
  860. — Papai!
  861.  
  862. — Nao me estragues o reboco do muro.
  863.  
  864. Capitu riscava sobre o riscado, para apagar bem o escrito. Padua saiu ao quintal, a
  865. ver o que era, mas ja a filha tinha comegado outra coisa, um perfil, que disse ser o
  866. retrato dele, e tanto podia ser dele como da mae; fe-lo rir, era o essencial. De
  867. resto, ele chegou sem colera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso ou menos que
  868. duvidoso em que nos apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e bragos
  869. curtos, costas abauladas, donde Ihe veio a alcunha de Tartaruga, que J ose Dias Ihe
  870. pos. Ninguem Ihe chamava assim la em casa; era so o agregado.
  871.  
  872. — Voces estavam jogando o siso? perguntou.
  873.  
  874. Olhei para um pe de sabugueiro que ficava perto; Capitu respondeu por ambos.
  875.  
  876. — Estavamos, sim, senhor; mas Bentinho ri logo, nao aguenta.
  877.  
  878. — Quando eu cheguei a porta, nao ria.
  879.  
  880. — J a tinha rido das outras vezes; nao pode. Papai quer ver?
  881.  
  882. E seria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto e naturalmente
  883. serio; eu estava ainda sob a agao do que trouxe a entrada de Padua, e nao fui
  884. capaz de rir, por mais que devesse faze-lo, para legitimar a resposta de Capitu.
  885. Esta, cansada de esperar, desviou o rosto, dizendo que eu nao ria daquela vez por
  886. estar ao pe do pai. E nem assim ri. Ha coisas que so se aprendem tarde; e mister
  887. nascer com elas para faze-las cedo. E melhor e naturalmente cedo que
  888. artificialmente tarde. Capitu, apos duas voltas, foi ter com a mae, que continuava
  889.  
  890.  
  891.  
  892.  
  893. a porta da casa, deixando-nos a mim e ao pai encantados dela; o pai, olhando
  894. para ela e para mim, dizia-me, cheio de ternura:
  895.  
  896.  
  897.  
  898. — Quern dira que esta pequena tern quatorze anos? Parece dezessete. Mamae
  899. esta boa? continuou voltando-se inteiramente para mim.
  900.  
  901. — Esta.
  902.  
  903. — Ha muitos dias que nao a vejo. Estou com vontade de dar um capote ao doutor,
  904. mas nao tenho podido, ando com trabalhos da repartigao em casa; escrevo todas
  905. as noites que e um desespero; negocio de relatorio. Voce ja viu o meu gaturamo?
  906. Esta ali no fundo. la agora mesmo buscar a gaiola; ande ver.
  907.  
  908. Que o meu desejo era nenhum, cre-se facilmente, sem ser preciso jurar pelo Ceu
  909. nem pela Terra. Meu desejo era ir atras de Capitu e falar-lhe agora do mal que nos
  910. esperava; mas o pai era o pai, e demais amava particularmente os passarinhos.
  911. Tinha-os de varia especie, cor e tamanho. A area que havia no centra da casa era
  912. cercada de gaiolas de canarios, que faziam cantando um barulho de todos os
  913. diabos. Trocava passaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns,
  914. no proprio quintal, armando algapoes. Tambem, se adoeciam, tratava deles como
  915. se fossem gente.
  916.  
  917.  
  918.  
  919. CAPI TULO XVI
  920.  
  921. O ADMI Nl STRADOR I NTERI NO
  922.  
  923. Padua era empregado em repartigao dependente do ministerio da guerra. Nao
  924. ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa
  925. em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade
  926. dele. Comprou-a com a sorte grande que Ihe saiu num meio bilhete de loteria, dez
  927. contos de reis. A primeira ideia do Padua, quando Ihe saiu o premio, foi comprar
  928. um cavalo do Cabo, um aderego de brilhantes para a mulher, uma sepultura
  929. perpetua de famflia, mandar vir da Europa alguns passaros, etc.; mas a mulher,
  930. esta D. Fortunata que ali esta a porta dos fundos da casa, em pe, falando a filha,
  931. alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabega, os mesmos olhos claros, a
  932. mulher e que Ihe disse que o melhor era comprar a casa, e guardar o que
  933. sobrasse para acudir as molestias grandes. Padua hesitou muito; afinal, teve de
  934. ceder aos conselhos de minha mae, a quern D. Fortunata pediu auxilio. Nem foi so
  935. nessa ocasiao que minha mae Ihes valeu; um dia chegou a salvar a vida do Padua.
  936. Escutai; a anedota e curta.
  937.  
  938. O administrador da repartigao em que Padua trabalhava teve de ir ao Norte, em
  939. comissao. Padua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designagao, ficou
  940. substituindo o administrador com os respectivos honorarios. Esta mudanga de
  941. fortuna trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. Nao se contentou de
  942. reformar a roupa e a copa, atirou-se as despesas superfluas, deu joias a mulher,
  943. nos dias de festa matava um leitao, era visto em teatros, chegou aos sapatos de
  944. verniz. Viveu assim vinte e dois meses na suposigao de uma eterna interinidade.
  945. Uma tarde entrou em nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque
  946. chegara o efetivo naquela manha. Pediu a minha mae que velasse pelas infelizes
  947. que deixava; nao podia sofrer a desgraga, matava-se. Minha mae falou-lhe com
  948. bondade, mas ele nao atendia a coisa nenhuma.
  949.  
  950. — Nao, minha senhora, nao consentirei em tal vergonha! Fazer descer a famflia,
  951. tornar atras... Ja disse, mato-me! Nao hei de confessar a minha gente esta
  952. miseria. E os outros? Que dirao os vizinhos? E os amigos? E o publico?
  953.  
  954. — Que publico, Sr. Padua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre-se que sua
  955. mulher nao tern outra pessoa... e que ha de fazer? Pois um homem... Seja
  956.  
  957.  
  958.  
  959.  
  960. homem, ande.
  961.  
  962.  
  963.  
  964. Padua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo,
  965. fechado na alcova, — ou entao no quintal, ao pe do pogo, como se a ideia da
  966. morte teimasse nele. D. Fortunata ralhava:
  967.  
  968. — J oaozinho, voce e crianga?
  969.  
  970. Mas, tanto Ihe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir a
  971. minha mae que Ihe fizesse o favor de ver se Ihe salvava o marido que se queria
  972. matar. Minha mae foi acha-lo a beira do pogo, e intimou-lhe que vivesse. Que
  973. maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgragado, por causa de uma
  974. gratificagao menos, e perder um emprego interino? Nao, senhor, devia ser
  975. homem, pai de famflia, imitar a mulher e a filha... Padua obedeceu; confessou que
  976. acharia forgas para cumprir a vontade de minha mae.
  977.  
  978. — Vontade minha, nao; obrigagao sua.
  979.  
  980. — Pois seja obrigagao; nao desconhego que e assim mesmo.
  981.  
  982. Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido a parede, cara no
  983. chao. Nao era o mesmo homem que estragava o chapeu em cortejar a vizinhanga,
  984. risonho, olhos no ar, antes mesmo da administragao interina. Vieram as semanas,
  985. a ferida foi sarando. Padua comegou a interessar-se pelos negocios domesticos, a
  986. cuidar dos passarinhos, a dormir tranquilo as noites e as tardes, a conversar e dar
  987. notfcias da rua. A serenidade regressou; atras dela veio a alegria, um domingo, na
  988. figura de dois amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Ja ele ria, ja brincava, tinha
  989. o ar do costume; a ferida sarou de todo.
  990.  
  991. Com o tempo veio um fenomeno interessante. Padua comegou a falar da
  992. administragao interina, nao somente sem as saudades dos honorarios, nem o
  993. vexame da perda, mas ate com desvanecimento e orgulho. A administragao ficou
  994. sendo a hegira, donde ele contava para diante e para tras.
  995.  
  996. — No tempo em que eu era administrador...
  997.  
  998. Ou entao:
  999.  
  1000. — Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administragao, um ou dois meses
  1001. antes... Ora espere; a minha administragao comegou... E isto, mes e meio antes;
  1002. foi mes e meio antes, nao foi mais.
  1003.  
  1004. Ou ainda:
  1005.  
  1006. — J ustamente; havia ja seis meses que eu administrava...
  1007.  
  1008. Tal e o sabor postumo das glorias interinas. Jose Dias bradava que era a vaidade
  1009. sobrevivente; mas o padre Cabral, que levava tudo para a Escritura, dizia que com
  1010. o vizinho Padua se dava a ligao de Elifas a Jo: "Nao desprezes a corregao do
  1011. Senhor; Ele fere e cura".
  1012.  
  1013.  
  1014.  
  1015. CAPITULO XVII
  1016. OS VERMES
  1017.  
  1018. "Ele fere e cura!". Quando, mais tarde, vim a saber que a langa de Aquiles
  1019. tambem curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma
  1020. dissertagao a este proposito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos,
  1021. livros enterrados, a abri-los, a compara-los, catando o texto e o sentido, para
  1022.  
  1023.  
  1024.  
  1025.  
  1026. achar a origem comum do oraculo pagao e do pensamento israelita. Catei os
  1027. proprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos rofdos
  1028. por eles.
  1029.  
  1030. — Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nos nao sabemos
  1031. absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem
  1032. amamos ou detestamos o que roemos; nos roemos.
  1033.  
  1034. Nao Ihe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado
  1035. palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silencio sobre os textos
  1036. rofdos fosse ainda um modo de roer o rofdo.
  1037.  
  1038.  
  1039.  
  1040. CAPITU LO XVIII
  1041. UM PLANO
  1042.  
  1043. Pai nem mae foram ter conosco, quando Capitu e eu, na sala de visitas, falavamos
  1044. do seminario. Com os olhos em mim, Capitu queria saber que notfcia era a que me
  1045. afligia tanto. Quando Ihe disse o que era, fez-se cor de cera.
  1046.  
  1047. — Mas eu nao quero, acudi logo, nao quero entrar em seminarios; nao entro, e
  1048. escusado teimarem comigo; nao entro.
  1049.  
  1050. Capitu, a princfpio, nao disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixou-se
  1051. estar com as pupilas vagas e surdas, a boca entreaberta, toda parada. Entao eu,
  1052. para dar forga as afirmagoes, comecei a jurar que nao seria padre. Naquele tempo
  1053. jurava muito e rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me
  1054. faltasse na hora da morte se fosse para o seminario. Capitu nao parecia crer nem
  1055. descrer, nao parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis chama-la, sacudi-
  1056. la, mas faltou-me animo. Essa criatura que brincara comigo, que pulara, dangara,
  1057. creio ate que dormira comigo, deixava-me agora com os bragos atados e
  1058. medrosos. Enfim, tornou a si, mas tinha a cara Ifvida, e rompeu nestas palavras
  1059. furiosas:
  1060.  
  1061. — Beata! carola! papa-missas!
  1062.  
  1063. Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha mae, e minha mae dela, que eu
  1064. nao podia entender tamanha explosao. E verdade que tambem gostava de mim, e
  1065. naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, coisa bastante a explicar o
  1066. despeito que Ihe trazia a ameaga da separagao; mas os improperios, como
  1067. entender que Ihe chamasse nomes tao feios, e principalmente para deprimir
  1068. costumes religiosos, que eram os seus? Que ela tambem ia a missa, e tres ou
  1069. quatro vezes minha mae e que a levou, na nossa velha sege. Tambem Ihe dera
  1070. um rosario, uma cruz de ouro e um livro de Horas... Quis defende-la, mas Capitu
  1071. nao me deixou, continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz tao alta que tive
  1072. medo fosse ouvida dos pais. Nunca a vi tao irritada como entao; parecia disposta
  1073. a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a cabega... Eu, assustado, nao
  1074. sabia que fizesse; repetia os juramentos, prometia ir naquela mesma noite
  1075. declarar em casa que, por nada neste mundo, entraria no seminario.
  1076.  
  1077. — Voce? Voce entra.
  1078.  
  1079. — Nao entro.
  1080.  
  1081. — Voce vera se entra ou nao.
  1082.  
  1083. Calou-se outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; nao era ainda a Capitu
  1084. do costume, mas quase. Estava seria, sem afligao, falava baixo. Quis saber a
  1085. conversagao da minha casa; eu contei-lha toda, menos a parte que Ihe dizia
  1086.  
  1087.  
  1088.  
  1089.  
  1090. respeito.
  1091.  
  1092. — E que interesse tem J ose Dias em lembrar isto? perguntou-me no fim.
  1093.  
  1094. — Acho que nenhum; foi so para fazer mal. E um sujeito muito ruim; mas, deixe
  1095. estar que me ha de pagar. Quando eu for dono da casa, quern vai para a rua e
  1096. ele, voce vera; nao me fica um instante. Mamae e boa demais; da-lhe atengao
  1097. demais. Parece ate que chorou.
  1098.  
  1099. — J ose Dias?
  1100.  
  1101. — Nao, mamae.
  1102.  
  1103. — Chorou por que?
  1104.  
  1105. — Nao sei; ouvi so dizer que ela nao chorasse, que nao era coisa de choro... Ele
  1106. chegou a mostrar-se arrependido, e saiu; eu entao, para nao ser apanhado, deixei
  1107. o canto e corri para a varanda. Mas, deixe estar, que ele me paga!
  1108.  
  1109. Disse isto fechando o punho, e proferi outras ameagas. Ao relembra-las, nao me
  1110. acho ridfculo; a adolescencia e a infancia nao sao, neste ponto, ridfculas; e um dos
  1111. seus privi legios. Este mal ou este perigo comega na mocidade, cresce na
  1112. madureza e atinge o maior grau na velhice. Aos quinze anos, ha ate certa graga
  1113. em ameagar muito e nao executar nada.
  1114.  
  1115. Capitu refletia. A reflexao nao era coisa rara nela, e conheciam-se as ocasioes pelo
  1116. apertado dos olhos. Pediu-me algumas circunstancias mais, as proprias palavras
  1117. de uns e de outros, e o tom delas. Como eu nao queria dizer o ponto inicial da
  1118. conversa, que era ela mesma, nao Ihe pude dar toda a significagao. A atengao de
  1119. Capitu estava agora particularmente nas lagrimas de minha mae; nao acabava de
  1120. entende-las. Em meio disto, confessou que certamente nao era por mal que minha
  1121. mae me queria fazer padre; era a promessa antiga, que ela, temente a Deus, nao
  1122. podia deixar de cumprir. Fiquei tao satisfeito de ver que assim espontaneamente
  1123. reparava as injurias que Ihe safram do peito, pouco antes, que peguei da mao dela
  1124. e apertei-a muito. Capitu deixou-se ir, rindo; depois a conversa entrou a cochilar e
  1125. dormir. Tfnhamos chegado a janela; um preto, que, desde algum tempo, vinha
  1126. apregoando cocadas, parou em frente e perguntou:
  1127.  
  1128. — Sinhazinha, que cocada hoje?
  1129.  
  1130. — Nao, respondeu Capitu.
  1131.  
  1132. — Cocadinha ta boa.
  1133.  
  1134. — Va-se embora, replicou ela sem rispidez.
  1135.  
  1136. — De ca! disse eu descendo o brago para receber duas.
  1137.  
  1138. Comprei-as, mas tive de as comer sozinho; Capitu recusou. Vi que, em meio da
  1139. crise, eu conservava um canto para as cocadas, o que tanto pode ser perfeigao
  1140. como imperfeigao, mas o momento nao e para definigoes tais; fiquemos em que a
  1141. minha amiga, apesar de equilibrada e lucida, nao quis saber de doce, e gostava
  1142. muito de doce. Ao contrario, o pregao que o preto foi cantando, o pregao das
  1143. velhas tardes, tao sabido do bairro e da nossa infancia:
  1144.  
  1145. Chora, menina, chora,
  1146.  
  1147. Chora, porque nao tem
  1148. Vintem,
  1149.  
  1150. a modo que Ihe deixara uma impressao aborrecida. Da toada nao era; ela a sabia
  1151.  
  1152.  
  1153.  
  1154.  
  1155. de cor e de longe, usava repeti-la nos nossos jogos da puerfcia, rindo, saltando,
  1156. trocando os papeis comigo, ora vendendo, ora comprando um doce ausente. Creio
  1157. que a letra, destinada a picar a vaidade das criangas, foi que a enojou agora,
  1158. porque logo depois me disse:
  1159.  
  1160. — Se eu fosse rica, voce fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa.
  1161.  
  1162. Dito isto, espreitou-me os olhos, mas creio que eles nao Ihe disseram nada, ou so
  1163. agradeceram a boa intengao. Com efeito, o sentimento era tao amigo que eu
  1164. podia escusar o extraordinario da aventura.
  1165.  
  1166. Como ves, Capitu, aos quatorze anos, tinha ja ideias atrevidas, muito menos que
  1167. outras que Ihe vieram depois; mas eram so atrevidas em si, na pratica faziam-se
  1168. habeis, sinuosas, surdas, e alcangavam o fim proposto, nao de salto, mas aos
  1169. saltinhos. Nao sei se me explico bem. Suponde uma concepgao grande executada
  1170. por meios pequenos. Assim, para nao sair do desejo vago e hipotetico de me
  1171. mandar para a Europa, Capitu, se pudesse cumpri-lo, nao me faria embarcar no
  1172. paquete e fugir; estenderia uma fila de canoas daqui ate la, por onde eu,
  1173. parecendo ir a fortaleza da Laje em ponte movediga, iria realmente ate Bordeus,
  1174. deixando minha mae na praia, a espera. Tal era a feigao particular do carater da
  1175. minha amiga; pelo que, nao admira que, combatendo os meus projetos de
  1176. resistencia franca, fosse antes pelos meios brandos, pela agao do empenho, da
  1177. palavra, da persuasao lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com quern
  1178. podfamos contar. Rejeitou tio Cosme; era um "boa-vida"; se nao aprovava a
  1179. minha ordenagao, nao era capaz de dar um passo para suspende-la. Prima Justina
  1180. era melhor que ele, e melhor que os dois seria o Padre Cabral, pela autoridade,
  1181. mas o padre nao havia de trabalhar contra a igreja; so se eu Ihe confessasse que
  1182. nao tinha vocagao...
  1183.  
  1184. — Posso confessar?
  1185.  
  1186. — Pois, sim, mas seria aparecer francamente, e o melhor e outra coisa. Jose
  1187. Dias...
  1188.  
  1189. — Que tern J ose Dias?
  1190.  
  1191. — Pode ser um bom empenho.
  1192.  
  1193. — Mas se foi ele mesmo que falou...
  1194.  
  1195. — Nao importa, continuou Capitu; dira agora outra coisa. Ele gosta muito de voce.
  1196. Nao Ihe fale acanhado. Tudo e que voce nao tenha medo, mostre que ha de vir a
  1197. ser dono da casa, mostre que quer e que pode. De-lhe bem a entender que nao e
  1198. favor. Faga-lhe tambem elogios; ele gosta muito de ser elogiado. D. Gloria presta-
  1199. Ihe atengao; mas o principal nao e isso; e que ele, tendo de servir a voce, falara
  1200. com muito mais calor que outra pessoa.
  1201.  
  1202. — Nao acho, nao, Capitu.
  1203.  
  1204. — Entao va para o seminario.
  1205.  
  1206. — Isso nao.
  1207.  
  1208. — Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; faga o que Ihe digo.
  1209. Dona Gloria pode ser que mude de resolugao; se nao mudar, faz-se outra coisa,
  1210. mete-se entao o Padre Cabral. Voce nao se lembra como e que foi ao teatro pela
  1211. primeira vez, ha dois meses? D. Gloria nao queria, e bastava isso para que Jose
  1212. Dias nao teimasse; mas ele queria ir, e fez um discurso, lembra-se?
  1213.  
  1214.  
  1215.  
  1216. — Lembra-me; disse que o teatro era uma escola de costumes.
  1217.  
  1218.  
  1219.  
  1220.  
  1221. — Justo; tanto falou que sua mae acabou consentindo, e pagou a entrada aos
  1222. dois... Ande, pega, mande. Olhe; diga-lhe que esta pronto a ir estudar leis em Sao
  1223. Paulo.
  1224.  
  1225. Estremeci de prazer. Sao Paulo era um fragil biombo, destinado a ser arredado um
  1226. dia, em vez da grossa parede espiritual e eterna. Prometi falar a Jose Dias nos
  1227. termos propostos. Capitu repetiu-os, acentuando alguns, como principals; e
  1228. inquiria-me depois sobre eles, a ver se entendera bem, se nao trocara uns por
  1229. outros. E insistia em que pedisse com boa cara, mas assim como quern pede um
  1230. copo de agua a pessoa que tern obrigagao de o trazer. Conto estas minucias para
  1231. que melhor se entenda aquela manha da minha amiga; logo vira a tarde, e da
  1232. manha e da tarde se fara o primeiro dia, como no Genesis, onde se fizeram
  1233. sucessivamente sete.
  1234.  
  1235.  
  1236.  
  1237. CAPI TU LO XIX
  1238. SEM FALTA
  1239.  
  1240. Quando voltei a casa era noite. Vim depressa, nao tanto, porem, que nao
  1241. pensasse nos termos em que falaria ao agregado. Formulei o pedido de cabega,
  1242. escolhendo as palavras que diria e o tom delas, entre seco e benevolo. Na
  1243. chacara, antes de entrar em casa, repeti-as comigo, depois em voz alta, para ver
  1244. se eram adequadas e se obedeciam as recomendagoes de Capitu: "Preciso falar-
  1245. Ihe, sem falta, amanha; escolha o lugar e diga-me". Proferi-as lentamente, e mais
  1246. lentamente ainda as palavras sem falta, como para sublinha-las. Repeti-as ainda,
  1247. e entao achei-as secas demais, quase rfspidas, e, francamente, improprias de um
  1248. criangola para um homem maduro. Cuidei de escolher outras, e parei.
  1249.  
  1250. Afinal disse comigo que as palavras podiam servir, tudo era dize-las em tom que
  1251. nao ofendesse. E a prova e que, repetindo-as novamente, safram-me quase
  1252. suplices. Bastava nao carregar tanto, nem adogar muito, um meio-termo. "E
  1253. Capitu tern razao, pensei, a casa e minha, ele e um simples agregado... Jeitoso e,
  1254. pode muito bem trabalhar por mim, e desfazer o piano de mamae."
  1255.  
  1256.  
  1257.  
  1258. CAPITULO XX
  1259.  
  1260. Ml L PADRE-NOSSOS E Ml L AVE-MARI AS
  1261.  
  1262. Levantei os olhos ao ceu, que comegava a embruscar-se, mas nao foi para ve-lo
  1263. coberto ou descoberto. Era ao outro Ceu que eu erguia a minha alma; era ao meu
  1264. refugio, ao meu amigo. E entao disse de mim para mim: "Prometo rezar mil
  1265. padre-nossos e mil ave-marias, se Jose Dias arranjar que eu nao va para o
  1266. seminario".
  1267.  
  1268. A soma era enorme. A razao e que eu andava carregado de promessas nao
  1269. cumpridas. A ultima foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias, se nao
  1270. chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. Nao choveu, mas eu nao rezei
  1271. as oragoes. Desde pequenino acostumara-me a pedir ao Ceu os seus favores,
  1272. mediante oragoes que diria, se eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram
  1273. adiadas, e a medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei
  1274. aos numeros vinte, trinta, cinquenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era
  1275. um modo de peitar a vontade divina pela quantia das oragoes; alem disso, cada
  1276. promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a dfvida antiga. Mas vao la
  1277. matar a preguiga de uma alma que a trazia do bergo e nao a sentia atenuada pela
  1278. vida! O Ceu fazia-me o favor, eu adiava a paga. Afinal perdi-me nas contas.
  1279.  
  1280.  
  1281.  
  1282. — Mil, mil, repeti comigo.
  1283.  
  1284.  
  1285.  
  1286.  
  1287. Realmente, a materia do beneffcio era agora imensa, nao menos que a salvagao
  1288. ou o naufragio da minha existencia inteira. Mil, mil, mil. Era preciso uma soma que
  1289. pagasse os atrasados todos. Deus podia muito bem, irritado com os
  1290. esquecimentos, negar-se a ouvir-me sem muito dinheiro... Homem grave, e
  1291. possfvel que estas agitagoes de menino te enfadem, se e que nao as achas
  1292. ridfcu las. Sublimes nao eram. Cogitei muito no modo de resgatar a dfvida
  1293. espiritual. Nao achava outra especie em que, mediante a intengao, tudo se
  1294. cumprisse, fechando a escrituragao da minha consciencia moral sem deficit.
  1295. Mandar dizer cem missas, ou subir de joelhos a ladeira da Gloria para ouvir uma,
  1296. ir a Terra Santa, tudo o que as velhas escravas me contavam de promessas
  1297. celebres, tudo me acudia sem se fixar de vez no espfrito. Era muito duro subir
  1298. uma ladeira de joelhos; devia feri-los por forga. A Terra Santa ficava muito longe.
  1299. As missas eram numerosas, podiam empenhar-me outra vez a alma...
  1300.  
  1301.  
  1302.  
  1303. CAPI TULO XXI
  1304. PRI MA J USTI NA
  1305.  
  1306. Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro. Veio ao
  1307. patamar e perguntou-me onde estivera.
  1308.  
  1309. — Estive aqui ao pe, conversando com D. Fortunata, e distraf-me. E tarde, nao e?
  1310. Mamae perguntou por mim?
  1311.  
  1312. — Perguntou, mas eu disse que voce ja tinha vindo.
  1313.  
  1314. A mentira espantou-me, nao menos que a franqueza da notfcia. Nao e que prima
  1315. Justina fosse de biocos, dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e
  1316. a Paulo o que pensava de Pedro; mas, confessar que mentira e que me pareceu
  1317. novidade. Era quadragenaria, magra e palida, boca fina e olhos curiosos. Vivia
  1318. conosco por favor de minha mae, e tambem por interesse; minha mae queria ter
  1319. uma senhora fntima ao pe de si, e antes parenta que estranha.
  1320.  
  1321. Passeamos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampiao. Quis saber se
  1322. eu nao esquecera os projetos eclesiasticos de minha mae, e dizendo-lhe eu que
  1323. nao, inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha a vida de padre. Respondi esquivo:
  1324.  
  1325. — Vida de padre e muito bonita.
  1326.  
  1327. — Sim, e bonita; mas o que pergunto e se voce gostaria de ser padre, explicou
  1328. rindo.
  1329.  
  1330. — Eu gosto do que mamae quiser.
  1331.  
  1332. — Prima Gloria deseja muito que voce se ordene, mas ainda que nao desejasse,
  1333. ha ca em casa quern Ihe meta isso na cabega.
  1334.  
  1335. — Quern e?
  1336.  
  1337. — Ora, quern! Quern e que ha de ser? Primo Cosme nao e, que nao se importa
  1338. com isso; eu tambem nao.
  1339.  
  1340. — J ose Dias? concluf.
  1341.  
  1342. — Naturalmente.
  1343.  
  1344. Enruguei a testa interrogativamente, como se nao soubesse nada. Prima Justina
  1345. completou a notfcia dizendo que ainda naquela tarde Jose Dias lembrara a minha
  1346.  
  1347.  
  1348.  
  1349.  
  1350. mae a promessa antiga.
  1351.  
  1352. — Prima Gloria pode ser que, em passando os dias, va esquecendo a promessa;
  1353. mas como ha de esquecer se uma pessoa estiver sempre, nos ouvidos, zas que
  1354. daras, falando do seminario? E os discursos que ele faz, os elogios da igreja, e que
  1355. a vida de padre e isto e aquilo, tudo com aquelas palavras que so ele conhece, e
  1356. aquela afetagao... Note que e so para fazer mal, porque ele e tao religioso como
  1357. este lampiao. Pois e verdade, ainda hoje. Voce nao se de por achado... Hoje de
  1358. tarde falou como voce nao imagina...
  1359.  
  1360. — Mas falou a toa? perguntei, a ver se ela contava a denuncia do meu namoro
  1361. com a vizinha.
  1362.  
  1363. Nao contou; fez apenas um gesto como indicando que havia outra coisa que nao
  1364. podia dizer. Novamente me recomendou que nao me desse por achado, e
  1365. recapitulou todo o mal que pensava de J ose Dias, e nao era pouco, um intrigante,
  1366. um bajulador, um especulador, e, apesar da casca de polidez, um grosseirao. Eu,
  1367. passados alguns instantes, disse:
  1368.  
  1369. — Prima J ustina, a senhora era capaz de uma coisa?
  1370.  
  1371. — De que?
  1372.  
  1373. — Era capaz de... Suponha que eu nao gostasse de ser padre... a senhora podia
  1374. pedir a mamae...
  1375.  
  1376. — Isso nao, atalhou prontamente; prima Gloria tern este negocio firme na cabega,
  1377. e nao ha nada no mundo que a faga mudar de resolugao; so o tempo. Voce ainda
  1378. era pequenino, ja ela contava isto a todas as pessoas da nossa amizade, ou so
  1379. conhecidas. La avivar-lhe a memoria, nao, que eu nao trabalho para a desgraga
  1380. dos outros; mas tambem, pedir outra coisa, nao pego. Se ela me consultasse,
  1381. bem; se ela me dissesse: "Prima J ustina, voce que acha?", a minha resposta era:
  1382. "Prima Gloria, eu penso que, se ele gosta de ser padre, pode ir; mas, se nao
  1383. gosta, o melhor e ficar". E o que eu diria e direi se ela me consultar algum dia.
  1384. Agora, ir falar-lhe sem ser chamada, nao fago.
  1385.  
  1386.  
  1387.  
  1388. CAPITU LO XXII
  1389. SENSACOES ALHEIAS
  1390.  
  1391. Nao alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o
  1392. conselho de Capitu. Entao, como eu quisesse ir para dentro, prima J ustina reteve-
  1393. me alguns minutos, falando do calor e da proxima festa da Conceigao, dos meus
  1394. velhos oratorios, e finalmente de Capitu. Nao disse mal dela; ao contrario,
  1395. insinuou-me que podia vir a ser uma moga bonita. Eu, que ja a achava lindfssima,
  1396. bradaria que era a mais bela criatura do mundo, se o receio me nao fizesse
  1397. discreto. Entretanto, como prima J ustina se metesse a elogiar-lhe os modos, a
  1398. gravidade, os costumes, o trabalhar para os seus, o amor que tinha a minha mae,
  1399. tudo isto me acendeu a ponto de elogia-la tambem. Quando nao era com palavras,
  1400. era com o gesto de aprovagao que dava a cada uma das assergoes da outra, e
  1401. certamente com a felicidade que devia iluminar-me a cara. Nao adverti que assim
  1402. confirmava a denuncia de Jose Dias, ouvida por ela, a tarde, na sala de visitas, se
  1403. e que tambem ela nao desconfiava ja. So pensei nisso na cama. So entao senti
  1404. que os olhos de prima J ustina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me,
  1405. cheirar-me, gostar-me, fazer o offcio de todos os sentidos. Ciumes nao podiam
  1406. ser; entre um pirralho da minha idade e uma viuva quarentona nao havia lugar
  1407. para ciumes. E certo que, apos algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e ate
  1408. Ihe fez algumas crfticas, disse-me que era um pouco trefega e olhava por baixo;
  1409. mas ainda assim, nao creio que fossem ciumes. Creio antes... sim... sim, creio
  1410.  
  1411.  
  1412.  
  1413.  
  1414. isto. Creio que prima Justina achou no espetaculo das sensagoes alheias uma
  1415. ressurreigao vaga das proprias. Tambem se goza por influ igao dos labios que
  1416. narram.
  1417.  
  1418.  
  1419.  
  1420. CAPITULO XXIII
  1421. PRAZO DADO
  1422.  
  1423. — Preciso falar-lhe amanha, sem falta; escolha o lugar e diga-me.
  1424.  
  1425. Creio que Jose Dias achou desusado este meu falar. O tom nao me safra tao
  1426. imperativo como eu receava, mas as palavras o eram, e o nao interrogar, nao
  1427. pedir, nao hesitar, como era proprio da crianga e do meu estilo habitual,
  1428. certamente Ihe deu ideia de uma pessoa nova e de uma nova situagao. Foi no
  1429. corredor, quando famos para o cha; Jose Dias vinha andando cheio da leitura de
  1430. Walter Scott que fizera a minha mae e a prima Justina. Lia cantado e compassado.
  1431. Os castelos e os parques safam maiores da boca dele, os lagos tinham mais agua
  1432. e a "abobada celeste" contava alguns milhares mais de estrelas cintilantes. Nos
  1433. dialogos, alternava o som das vozes, que eram levemente grossas ou finas,
  1434. conforme o sexo dos interlocutores, e reproduziam com moderagao a ternura e a
  1435. colera.
  1436.  
  1437. Ao despedir-se de mim, na varanda, disse-me ele:
  1438.  
  1439. — Amanha, na rua. Tenho umas compras que fazer, voce pode ir comigo, pedirei a
  1440. mamae. E dia de ligao?
  1441.  
  1442. — A ligao foi hoje.
  1443.  
  1444. — Perfeitamente. Nao Ihe pergunto o que e; afirmo desde ja que e materia grave
  1445. e pura.
  1446.  
  1447. — Sim, senhor.
  1448.  
  1449. — Ate amanha.
  1450.  
  1451. Fez-se tudo o melhor possfvel. Houve so uma alteragao; minha mae achou o dia
  1452. quente e nao consentiu que eu fosse a pe; entramos no onibus, a porta de casa.
  1453.  
  1454. — Nao importa, disse-me Jose Dias; podemos apear-nos a porta do Passeio
  1455. Publico.
  1456.  
  1457.  
  1458.  
  1459. CAPI TULO XXIV
  1460. DE MAE E DE SERVO
  1461.  
  1462. Jose Dias tratava-me com extremos de mae e atengoes de servo. A primeira coisa
  1463. que conseguiu logo que comecei a andar fora, foi dispensar-me o pajem; fez-se
  1464. pajem, ia comigo a rua. Cuidava dos meus arranjos em casa, dos meus livros, dos
  1465. meus sapatos, da minha higiene e da minha prosodia. Aos oito anos os meus
  1466. plurais careciam, alguma vez, da desinencia exata, ele a corrigia, meio serio para
  1467. dar autoridade a ligao, meio risonho para obter o perdao da emenda. Ajudava
  1468. assim o mestre de primeiras letras. Mais tarde, quando o Padre Cabral me
  1469. ensinava latim, doutrina e historia sagrada, ele assistia as ligoes, fazia reflexoes
  1470. eclesiasticas, e, no fim, perguntava ao padre: "Nao e verdade que o nosso jovem
  1471. amigo caminha depressa?" Chamava-me "urn prodfgio"; dizia a minha mae ter
  1472. conhecido outrora meninos muito inteligentes, mas que eu excedia a todos esses,
  1473. sem contar que, para a minha idade, possufa ja certo numero de qualidades
  1474.  
  1475.  
  1476.  
  1477.  
  1478. morais solidas. Eu, posto nao avaliasse todo o valor deste outro elogio, gostava do
  1479. elogio; era um elogio.
  1480.  
  1481.  
  1482.  
  1483. CAPI TULO XXV
  1484. NO PASSEIO PUBLICO
  1485.  
  1486. Entramos no Passeio Publico. Algumas caras velhas, outras doentes ou so vadias
  1487. espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terrago.
  1488. Seguimos para o terrago. Andando, para me dar animo, falei do jardim:
  1489.  
  1490. — Ha muito tempo que nao venho aqui, talvez um ano.
  1491.  
  1492. — Perdoe-me, atalhou ele, nao ha tres meses que esteve aqui com o nosso vizinho
  1493. Padua; nao se lembra?
  1494.  
  1495. — E verdade, mas foi tao de passagem. . .
  1496.  
  1497. — Ele pediu a sua mae que o deixasse trazer consigo, e ela, que e boa como a
  1498. mae de Deus, consentiu; mas ouga-me, ja que falamos nisto, nao e bonito que
  1499. voce ande com o Padua na rua.
  1500.  
  1501. — Mas eu andei algumas vezes...
  1502.  
  1503. — Quando era mais jovem; era crianga, era natural, ele podia passar por criado.
  1504. Mas voce esta ficando mogo e ele vai tomando confianga. D. Gloria, afinal, nao
  1505. pode gostar disso. A gente Padua nao e de todo ma. Capitu, apesar daqueles olhos
  1506. que o Diabo Ihe deu... Voce ja reparou nos olhos dela? Sao assim de cigana
  1507. oblfqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se nao fosse a vaidade e
  1508. a adulagao. Oh! a adulagao! D. Fortunata merece estima, e ele nao nego que seja
  1509. honesto, tern um bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade e
  1510. estima nao bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com as mas
  1511. companhias em que ele anda. Padua tern uma tendencia para gente reles. Em Ihe
  1512. cheirando a homem chulo e com ele. Nao digo isto por odio, nem porque ele fale
  1513. mal de mim e se ria, como se riu, ha dias, dos meus sapatos acalcanhados...
  1514.  
  1515. — Perdao, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal do
  1516. senhor; pelo contrario, um dia, nao ha muito tempo, disse ele a um sujeito, em
  1517. minha presenga, que o senhor era "um homem de capacidade e sabia falar como
  1518. um deputado nas camaras."
  1519.  
  1520. Jose Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforgo grande e fechou outra vez o
  1521. rosto; depois replicou:
  1522.  
  1523. — Nao Ihe agradego nada. Outros, de melhor sangue, me tern feito o favor de
  1524. jufzos altos. E nada disso impede que ele seja o que Ihe digo.
  1525.  
  1526. Tfnhamos outra vez andado, subimos ao terrago, e olhamos para o mar.
  1527.  
  1528. — Vejo que o senhor nao quer senao o meu beneffcio, disse eu depois de alguns
  1529. instantes.
  1530.  
  1531. — Pois que outra coisa, Bentinho?
  1532.  
  1533. — Neste caso, pego-lhe um favor.
  1534.  
  1535. — Um favor? Mande, ordene, que e?
  1536.  
  1537.  
  1538.  
  1539. — Mamae...
  1540.  
  1541.  
  1542.  
  1543.  
  1544. Durante algum tempo nao pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cor. Jose
  1545. Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o
  1546. queixo e espetava os olhos em mim, ansioso tambem, como a prima Justina na
  1547. vespera.
  1548.  
  1549. — Mamae que? Que e que tern mamae?
  1550.  
  1551. — Mamae quer que eu seja padre, mas eu nao posso ser padre, disse finalmente.
  1552. Jose Dias endireitou-se pasmado.
  1553.  
  1554. — Nao posso, continuei eu, nao menos pasmado que ele, nao tenho jeito, nao
  1555. gosto da vida de padre. Estou por tudo o que ela quiser; mamae sabe que eu fago
  1556. tudo o que ela manda; estou pronto a ser o que for do seu agrado, ate cocheiro de
  1557. onibus. Padre, nao; nao posso ser padre. A carreira e bonita, mas nao e para mim.
  1558.  
  1559. Todo esse discurso nao me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente, peremptorio,
  1560. como pode parecer do texto, mas aos pedagos, mastigado, em voz um pouco
  1561. surda e tfmida. Nao obstante, Jose Dias ouvira-o espantado. Nao contava
  1562. certamente com a resistencia, por mais acanhada que fosse; mas o que ainda
  1563. mais o assombrou foi esta conclusao:
  1564.  
  1565. — Conto com o senhor para salvar-me.
  1566.  
  1567. Os olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer
  1568. que eu contava dar-lhe com a escolha da protegao nao se mostrou em nenhum
  1569. dos musculos. Toda a cara dele era pouca para a estupefagao. Realmente, a
  1570. materia do discurso revelara em mim uma alma nova; eu proprio nao me
  1571. conhecia. Mas a palavra final e que trouxe um vigor unico. Jose Dias ficou
  1572. aturdido. Quando os olhos tornaram as dimensoes ordinarias:
  1573.  
  1574. — Mas que posso eu fazer? perguntou.
  1575.  
  1576. — Pode muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam. Mamae pede
  1577. muita vez os seus conselhos, nao e? Tio Cosme diz que o senhor e pessoa de
  1578. talento. . .
  1579.  
  1580. — Sao bondades, retorquiu lisonjeado. Sao favores de pessoas dignas, que
  1581. merecem tudo... Af esta! nunca ninguem me ha de ouvir dizer nada de pessoas
  1582. tais; por que? porque sao ilustres e virtuosas. Sua mae e uma santa, seu tio e um
  1583. cavalheiro perfeitfssimo. Tenho conhecido famflias distintas; nenhuma podera
  1584. veneer a sua em nobreza de sentimentos. O talento que seu tio acha em mim
  1585. confesso que o tenho, mas e so um, — e o talento de saber o que e bom e digno
  1586. de admiragao e de aprego.
  1587.  
  1588. — Ha de ter tambem o de proteger os amigos, como eu.
  1589.  
  1590. — Em que Ihe posso valer, anjo do ceu? Nao hei de dissuadir sua mae de um
  1591. projeto que e, alem de promessa, a ambigao e o sonho de longos anos. Quando
  1592. pudesse, e tarde. Ainda ontem fez-me o favor de dizer: "Jose Dias, preciso meter
  1593. Bentinho no seminario".
  1594.  
  1595. Timidez nao e tao ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, e provavel
  1596. que, com a indignagao que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas
  1597. entao seria preciso confessar-lhe que estivera a escuta, atras da porta, e uma
  1598. agao valia outra. Contentei-me de responder que nao era tarde.
  1599.  
  1600.  
  1601.  
  1602. — Nao e tarde, ainda e tempo, se o senhor quiser.
  1603.  
  1604.  
  1605.  
  1606.  
  1607. — Se eu quiser? Mas que outra coisa quero eu, senao servi-lo. Que desejo, senao
  1608. que seja feliz, como merece?
  1609.  
  1610. — Pois ainda e tempo. Olhe, nao e por vadiagao. Estou pronto para tudo; se ela
  1611. quiser que eu estude leis, vou para Sao Paulo...
  1612.  
  1613.  
  1614.  
  1615. CAPI TULO XXVI
  1616. AS LEIS SAO BELAS
  1617.  
  1618. Pela cara de Jose Dias passou algo parecido com o reflexo de uma ideia, — uma
  1619. ideia que o alegrou extraordinariamente. Calou-se alguns instantes; eu tinha os
  1620. olhos nele, ele voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse:
  1621.  
  1622. — E tarde, disse ele; mas, para Ihe provar que nao ha falta de vontade, irei falar a
  1623. sua mae. Nao prometo veneer, mas lutar; trabalharei com alma. Deveras, nao
  1624. quer ser padre? As leis sao belas, meu querido... Pode ir a Sao Paulo, a
  1625. Pernambuco, ou ainda mais longe. Ha boas universidades por esse mundo fora. Va
  1626. para as leis, se tal e a sua vocagao. Vou falar a Dona Gloria, mas nao conte so
  1627. comigo; fale tambem a seu tio.
  1628.  
  1629. — Hei de falar.
  1630.  
  1631. — Pegue-se tambem com Deus, — com Deus e a Virgem Santfssima, concluiu
  1632. apontando para o ceu.
  1633.  
  1634. O ceu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes passaros negros
  1635. faziam giros, avangando ou pairando, e desciam a rogar os pes na agua, e
  1636. tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem as sombras do ceu, nem
  1637. as dangas fantasticas dos passaros me desviavam o espfrito do meu interlocutor.
  1638. Depois de Ihe responder que sim, emendei-me:
  1639.  
  1640. — Deus fara o que o senhor quiser.
  1641.  
  1642. — Nao blasfeme. Deus e dono de tudo; ele e, so por si, a Terra e o Ceu, o
  1643. passado, o presente e o futuro. Pega-lhe a sua felicidade, que eu nao fago outra
  1644. coisa... Uma vez que voce nao pode ser padre, e prefere as leis... As leis sao
  1645. belas, sem desfazer na teologia, que e melhor que tudo, como a vida eclesiastica e
  1646. a mais santa. Por que nao ha de ir estudar leis fora daqui? Melhor e ir logo para
  1647. alguma universidade, e ao mesmo tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos;
  1648. veremos as terras estrangeiras, ouviremos ingles, frances, italiano, espanhol,
  1649. russo e ate sueco. Dona Gloria provavelmente nao podera acompanha-lo; ainda
  1650. que possa e va, nao querera guiar os negocios, papeis, matnculas, e cuidar de
  1651. hospedarias, e andar com voce de um lado para outro... Oh! as leis sao
  1652. belfssimas!
  1653.  
  1654. — Esta dito, pede a mamae que me nao meta no seminario?
  1655.  
  1656. — Pedir, pego, mas pedir nao e alcangar. Anjo do meu coragao, se vontade de
  1657. servir e poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo. Ah! voce nao imagina o
  1658. que e a Europa; oh! a Europa...
  1659.  
  1660. Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambigoes era tornar a Europa,
  1661. falava dela muitas vezes, sem acabar de tentar minha mae nem tio Cosme, por
  1662. mais que louvasse os ares e as belezas... Nao contava com esta possibilidade de ir
  1663. comigo, e la ficar durante a eternidade dos meus estudos.
  1664.  
  1665.  
  1666.  
  1667. — Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo!
  1668.  
  1669.  
  1670.  
  1671.  
  1672. CAPITULO XXVII
  1673. AO PORTAO
  1674.  
  1675.  
  1676.  
  1677. No portao do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mao. Jose Dias passou adiante,
  1678. mas eu pensei em Capitu e no seminario, tirei dois vintens do bolso e dei-os ao
  1679. mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim de
  1680. que eu pudesse satisfazer todos os meus desejos.
  1681.  
  1682. — Sim, meu devoto!
  1683.  
  1684. — Chamo-me Bento, acrescentei para esclarece-lo.
  1685.  
  1686.  
  1687.  
  1688. CAPITULO XXVI 1 1
  1689. NA RUA
  1690.  
  1691. Jose Dias ia tao contente que trocou o homem dos momentos graves, como era na
  1692. rua, pelo homem dobradigo e inquieto. Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me
  1693. parar a cada passo diante de um mostrador ou de um cartaz de teatro. Contava-
  1694. me o enredo de algumas pegas, recitava monologos em verso. Fez os recados
  1695. todos, pagou contas, recebeu alugueis de casa; para si comprou um vigesimo de
  1696. loteria. Afinal, o homem teso rendeu o flexfvel, e passou a falar pausado, com
  1697. superlativos. Nao vi que a mudanga era natural; temi que houvesse mudado a
  1698. resolugao assentada, e entrei a trata-lo com palavras e gestos carinhosos, ate
  1699. entrarmos no onibus.
  1700.  
  1701.  
  1702.  
  1703. CAPI TULO XXIX
  1704. O IMPERADOR
  1705.  
  1706. Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O
  1707. onibus em que famos parou, como todos os veiculos; os passageiros desceram a
  1708. rua e tiraram o chapeu, ate que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu
  1709. lugar, trazia uma ideia fantastica, a ideia de ir ter com o Imperador, contar-lhe
  1710. tudo e pedir-lhe a intervengao. Nao confiaria esta ideia a Capitu. "Sua Majestade
  1711. pedindo, mamae cede", pensei comigo.
  1712.  
  1713. Vi entao o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que
  1714. iria falar a minha mae; eu beijava-lhe a mao, com lagrimas. E logo me achei em
  1715. casa, a esperar, ate que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; e o
  1716. Imperador! e o Imperador! toda a gente chegava as janelas para ve-lo passar,
  1717. mas nao passava, o coche parava a nossa porta, o Imperador apeava-se e
  1718. entrava. Grande alvorogo na vizinhanga: "O Imperador entrou em casa de D.
  1719. Gloria! Que sera? Que nao sera?" A nossa familia safa a recebe-lo; minha mae era
  1720. a primeira que Ihe beijava a mao. Entao o Imperador, todo risonho, sem entrar na
  1721. sala ou entrando, — nao me lembra bem, os sonhos sao muita vez confusos, —
  1722. pedia a minha mae que me nao fizesse padre, — e ela, lisonjeada e obediente,
  1723. prometia que nao.
  1724.  
  1725. — A Medicina, — por que Ihe nao manda ensinar Medicina?
  1726.  
  1727. — Uma vez que e do agrado de Vossa Majestade...
  1728.  
  1729. — Mande ensinar-lhe Medicina; e uma bonita carreira, e nos temos aqui bons
  1730. professores. Nunca foi a nossa Escola? E uma bela Escola. Ja temos medicos de
  1731. primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A
  1732.  
  1733.  
  1734.  
  1735.  
  1736. Medicina e uma grande ciencia; basta so isto de dar a saude aos outros, conhecer
  1737. as molestias, combate-las, vence-las... A senhora mesma ha de ter visto
  1738. milagres. Seu marido morreu, mas a doenga era fatal, e ele nao tinha cuidado em
  1739. si... E uma bonita carreira; mande-o para a nossa Escola. Faga isso por mim, sim?
  1740. Voce quer, Bentinho?
  1741.  
  1742. — Mamae querendo...
  1743.  
  1744. — Quero, meu filho. Sua Majestade manda.
  1745.  
  1746. Entao o Imperador dava outra vez a mao a beijar, e safa, acompanhado de todos
  1747. nos, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silencio de assombro; o
  1748. Imperador entrava no coche, inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo
  1749. ainda: "A Medicina, a nossa Escola." E o coche partia entre invejas e
  1750.  
  1751. agradecimentos.
  1752.  
  1753. Tudo isso vi e ouvi. Nao, a imaginagao de Ariosto nao e mais fertil que a das
  1754. criangas e dos namorados, nem a visao do impossfvel precisa mais que de um
  1755. recanto de onibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, ate destruir-se o
  1756. piano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros.
  1757.  
  1758.  
  1759.  
  1760. CAPI TULO XXX
  1761. O SANTI SSI MO
  1762.  
  1763. Teras entendido que aquela lembranga do Imperador acerca da Medicina nao era
  1764. mais que a sugestao da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos
  1765. do acordado sao como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas
  1766. inclinagoes e das nossas recordagoes. Va que fosse para Sao Paulo, mas a
  1767. Europa... Era muito longe, muito mar e muito tempo. Viva a Medicina! Iria contar
  1768. estas esperangas a Capitu.
  1769.  
  1770. — Parece que vai sair o Santfssimo, disse alguem no onibus. Ougo um sino; e,
  1771. creio que e em Santo Antonio dos Pobres. Pare, Sr. recebedor!
  1772.  
  1773. O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao brago do cocheiro, o
  1774. onibus parou, e o homem desceu. Jose Dias deu duas voltas rapidas a cabega,
  1775. pegou-me no brago e fez-me descer consigo. Irfamos tambem acompanhar o
  1776. Santfssimo. Efetivamente, o sino chamava os fieis aquele servigo da ultima hora.
  1777. Ja havia algumas pessoas na sacristia. Era a primeira vez que me achava em
  1778. momento tao grave; obedeci, a princfpio constrangido, mas logo depois satisfeito,
  1779. menos pela caridade do servigo que por me dar um offcio de homem. Quando o
  1780. sacristao comegou a distribuir as opas, entrou um sujeito esbaforido; era o meu
  1781. vizinho Padua, que tambem ia acompanhar o Santfssimo. Deu conosco, veio
  1782. cumprimentar-nos. Jose Dias fez um gesto de aborrecido, e apenas Ihe respondeu
  1783. com uma palavra seca, olhando para o padre, que lavava as maos. Depois, como
  1784. Padua falasse ao sacristao, baixinho, aproximou-se deles; eu fiz a mesma coisa.
  1785. Padua solicitava ao sacristao uma das varas do palio. Jose Dias pediu uma para si.
  1786.  
  1787. — Ha so uma disponfvel, disse o sacristao.
  1788.  
  1789. — Pois essa, disse Jose Dias.
  1790.  
  1791. — Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Padua.
  1792.  
  1793. — Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu Jose Dias; eu ja ca estava. Leve
  1794. uma tocha.
  1795.  
  1796.  
  1797.  
  1798. Padua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a vara, tudo isto
  1799.  
  1800.  
  1801.  
  1802.  
  1803. em voz baixa e surda. O sacristao achou meio de conciliar a rivalidade, tomando a
  1804. si obter de um dos outros seguradores do palio que cedesse a vara ao Padua,
  1805. conhecido na paroquia, como Jose Dias. Assim fez; mas Jose Dias transtornou
  1806. ainda esta combinagao. Nao, uma vez que tfnhamos outra vara disponfvel, pedia-a
  1807. para mim, "jovem seminarista", a quern esta distingao cabia mais diretamente.
  1808. Padua ficou palido, como as tochas. Era por a prova o coragao de um pai. O
  1809. sacristao, que me conhecia de me ver ali com minha mae, aos domingos,
  1810. perguntou de curioso se eu era deveras seminarista.
  1811.  
  1812. — Ainda nao, mais vai se-lo, respondeu Jose Dias, piscando o olho esquerdo para
  1813. mim, que, apesar do aviso, fiquei zangado.
  1814.  
  1815. — Bern, cedo ao nosso Bentinho, suspirou o pai de Capitu.
  1816.  
  1817. Pela minha parte, quis ceder-lhe a vara; lembrou-me que ele costumava
  1818. acompanhar o Santfssimo Sacramento aos moribundos, levando uma tocha, mas
  1819. que a ultima vez conseguira uma vara do palio. A distingao especial do palio vinha
  1820. de cobrir o vigario e o Sacramento; para tocha qualquer pessoa servia. Foi ele
  1821. mesmo que me contou e explicou isto, cheio de uma gloria pia e risonha. Assim
  1822. fica entendido o alvorogo com que entrara na igreja; era a segunda vez do palio,
  1823. tanto que cuidou logo de ir pedi-lo. E nada! E tornava a tocha comum, outra vez a
  1824. interinidade interrompida; o administrador regressava ao antigo cargo... Quis
  1825. ceder-lhe a vara; o agregado tolheu-me esse ato de generosidade, e pediu ao
  1826. sacristao que nos pusesse, a ele e a mim, com as duas varas da frente, rompendo
  1827. a marcha do palio.
  1828.  
  1829. Opas enfiadas, tochas distribufdas e acesas, padre e ciborio prontos, o sacristao de
  1830. hissope e campainha nas maos, saiu o prestito a rua. Quando me vi com uma das
  1831. varas, passando pelos fieis, que se ajoelhavam, fiquei comovido. Padua rofa a
  1832. tocha amargamente. E uma metafora, nao acho outra forma mais viva de dizer a
  1833. dor e a humilhagao do meu vizinho. De resto, nao pude mira-lo por muito tempo,
  1834. nem ao agregado, que, paralelamente a mim, erguia a cabega com o ar de ser ele
  1835. proprio o Deus dos exercitos. Com pouco, senti-me me cansado; os bragos cafam-
  1836. me, felizmente a casa era perto, na Rua do Senado.
  1837.  
  1838. A enferma era uma senhora viuva, tfsica, tinha uma filha de quinze ou dezesseis
  1839. anos, que estava chorando a porta do quarto. A moga nao era formosa, talvez
  1840. nem tivesse graga; os cabelos cafam despenteados, e as lagrimas faziam-lhe
  1841. encarquilhar os olhos. Nao obstante, o total falava e cativava o coragao. O vigario
  1842. confessou a doente, deu-lhe a comunhao e os santos oleos. O pranto da moga
  1843. redobrou tanto que senti os meus olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma
  1844. janela. Pobre criatura! A dor era comunicativa em si mesma; complicada da
  1845. lembranga de minha mae, doeu-me mais, e, quando enfim pensei em Capitu, senti
  1846. um frnpeto de solugar tambem, enfiei pelo corredor, e ouvi alguem dizer-me:
  1847.  
  1848. — Nao chore assim!
  1849.  
  1850. A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginagao, assim como Ihe atribufra
  1851. lagrimas, ha pouco, assim Ihe encheu a boca de riso agora; vi-a escrever no muro,
  1852. falar-me, andar a volta, com os bragos no ar; ouvi distintamente o meu nome, de
  1853. uma dogura que me embriagou, e a voz era dela. As tochas acesas, tao lugubres
  1854. na ocasiao, tinham-me ares de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial? Nao
  1855. sei; era alguma coisa contraria a morte, e nao vejo outra mais que bodas. Esta
  1856. nova sensagao me dominou tanto que Jose Dias veio a mim, e me disse ao ouvido,
  1857. em voz baixa:
  1858.  
  1859. — Nao ria assim!
  1860.  
  1861.  
  1862.  
  1863. Fiquei serio depressa. Era o momento da safda. Peguei da minha vara; e, como ja
  1864. conhecia a distancia, e agora voltavamos para a igreja, o que fazia a distancia
  1865.  
  1866.  
  1867.  
  1868.  
  1869. menor, — o peso da vara era muito pequeno. Demais, o sol ca fora, a animagao
  1870. da rua, os rapazes da minha idade que me fitavam cheios de inveja, as devotas
  1871. que chegavam as janelas ou entravam nos corredores e se ajoelhavam a nossa
  1872. passagem, tudo me enchia a alma de lepidez nova.
  1873.  
  1874. Padua, ao contrario, ia mais humilhado. Apesar de substitufdo por mim, nao
  1875. acabava de se consolar da tocha, da miseravel tocha. E contudo havia outros que
  1876. tambem traziam tocha, e apenas mostravam a compostura do ato; nao iam
  1877. garridos, mas tambem nao iam tristes. Via-se que caminhavam com honra.
  1878.  
  1879.  
  1880.  
  1881. CAPITULO XXXI
  1882. AS CURI OSI DADES DE CAPITU
  1883.  
  1884. Capitu preferia tudo ao seminario. Em vez de ficar abatida com a ameaga da larga
  1885. separagao, se vingasse a ideia da Europa, mostrou-se satisfeita. E quando eu Ihe
  1886. contei o meu sonho imperial:
  1887.  
  1888. — Nao, Bentinho, deixemos o Imperador sossegado, replicou; fiquemos por ora
  1889. com a promessa de J ose Dias. Quando e que ele disse que falaria a sua mae?
  1890.  
  1891. — Nao marcou dia; prometeu que ia ver, que falaria logo que pudesse, e que me
  1892. pegasse com Deus.
  1893.  
  1894. Capitu quis que Ihe repetisse as respostas todas do agregado, as alteragoes do
  1895. gesto e ate a pirueta, que apenas Ihe contara. Pedia o som das palavras. Era
  1896. minuciosa e atenta; a narragao e o dialogo, tudo parecia remoer consigo. Tambem
  1897. se pode dizer que conferia, rotulava e pregava na memoria a minha exposigao.
  1898. Esta imagem e porventura melhor que a outra, mas a otima delas e nenhuma.
  1899. Capitu era Capitu, isto e, uma criatura muito particular, mais mulher do que eu
  1900. era homem. Se ainda o nao disse, af fica. Se disse, fica tambem. Ha conceitos que
  1901. se devem incutir na alma do leitor, a forga de repetigao.
  1902.  
  1903. Era tambem mais curiosa. As curiosidades de Capitu dao para um capftulo. Eram
  1904. de varia especie, explicaveis e inexplicaveis, assim uteis como inuteis, umas
  1905. graves, outras frfvolas; gostava de saber tudo. No colegio onde, desde os sete
  1906. anos, aprendera a ler, escrever e contar, frances, doutrina e obras de agulha, nao
  1907. aprendeu, por exemplo, a fazer renda; por isso mesmo, quis que prima Justina Ihe
  1908. ensinasse. Se nao estudou latim com o Padre Cabral foi porque o padre, depois de
  1909. Ihe propor gracejando, acabou dizendo que latim nao era lingua de meninas.
  1910. Capitu confessou-me um dia que esta razao acendeu nela o desejo de o saber. Em
  1911. compensagao, quis aprender ingles com um velho professor amigo do pai e
  1912. parceiro deste ao solo, mas nao foi adiante. Tio Cosme ensinou-lhe gamao.
  1913.  
  1914. — Anda apanhar um capotinho, Capitu, dizia-lhe ele.
  1915.  
  1916. Capitu obedecia e jogava com facilidade, com atengao, nao sei se diga com amor.
  1917. Um dia fui acha-la desenhando a lapis um retrato; dava os ultimos rasgos, e
  1918. pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. Era o de meu pai, copiado
  1919. da tela que minha mae tinha na sala e que ainda agora esta comigo. Perfeigao nao
  1920. era; ao contrario, os olhos safram esbugalhados, e os cabelos eram pequenos
  1921. cfrculos uns sobre outros. Mas, nao tendo ela rudimento algum de arte, e havendo
  1922. feito aquilo de memoria em poucos minutos, achei que era obra de muito
  1923. merecimento; descontai-me a idade e a simpatia. Ainda assim, estou que
  1924. aprenderia facilmente pintura, como aprendeu musica mais tarde. Ja entao
  1925. namorava o piano da nossa casa, velho traste inutil, apenas de estimagao. Lia os
  1926. nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das
  1927. rufnas, das pessoas, das campanhas, o nome, a historia, o lugar. Jose Dias dava-
  1928. Ihe essas notfcias com certo orgulho de erudito. A erudigao deste nao avultava
  1929.  
  1930.  
  1931.  
  1932.  
  1933. muito mais que a sua homeopatia de Cantagalo.
  1934.  
  1935.  
  1936.  
  1937. Um dia, Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas. O agregado
  1938. disse-lho sumariamente, demorando-se um pouco mais em Cesar, com
  1939. exclamagoes e latins:
  1940.  
  1941. — Cesar! Julio Cesar! Grande homem! Tu quoque, Brute?
  1942.  
  1943. Capitu nao achava bonito o perfil de Cesar, mas as agoes citadas por Jose Dias
  1944. davam-lhe gestos de admiragao. Ficou muito tempo com a cara virada para ele.
  1945. Um homem que podia tudo! que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora
  1946. uma perola do valor de seis milhoes de sestercios!
  1947.  
  1948. — E quanto valia cada sestercio?
  1949.  
  1950. Jose Dias, nao tendo presente o valor do sestercio, respondeu entusiasmado:
  1951.  
  1952. — E o maior homem da historia!
  1953.  
  1954. A perola de Cesar acendia os olhos de Capitu. Foi nessa ocasiao que ela perguntou
  1955. a minha mae por que e que ja nao usava as joias do retrato; referia-se ao que
  1956. estava na sala, com o de meu pai; tinha um grande colar, um diadema e brincos.
  1957.  
  1958. — Sao joias viuvas, como eu, Capitu.
  1959.  
  1960. — Quando e que botou estas?
  1961.  
  1962. — Foi pelas festas da Coroagao.
  1963.  
  1964. — Oh! conte- me as festas da Coroagao!
  1965.  
  1966. Sabia ja o que os pais Ihe haviam dito, mas naturalmente tinha para si que eles
  1967. pouco mais conheceriam do que o que se passou nas ruas. Queria a notfcia das
  1968. tribunas da Capela Imperial e dos saloes dos bailes. Nascera muito depois
  1969. daquelas festas celebres. Ouvindo falar varias vezes da Maioridade, teimou um dia
  1970. em saber o que fora este acontecimento; disseram-lho, e achou que o Imperador
  1971. fizera muito bem em querer subir ao trono aos quinze anos. Tudo era materia as
  1972. curiosidades de Capitu, mobflias antigas, alfaias velhas, costumes, notfcias de
  1973. Itaguaf, a infancia e a mocidade de minha mae, um dito daqui, uma lembranga
  1974. dali, um adagio dacola...
  1975.  
  1976.  
  1977.  
  1978. CAPI TU LO XXXII
  1979. OLHOS DE RESSACA
  1980.  
  1981. Tudo era materia as curiosidades de Capitu. Caso houve, porem, no qual nao sei
  1982. se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as coisas, como eu. E o que contarei no
  1983. outro capftulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o
  1984. agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manha. D. Fortunata, que
  1985. estava no quintal, nem esperou que eu Ihe perguntasse pela filha.
  1986.  
  1987. — Esta na sala, penteando o cabelo, disse-me; va devagarzinho para Ihe pregar
  1988. um susto.
  1989.  
  1990. Fui devagar, mas ou o pe ou o espelho traiu-me. Este pode ser que nao fosse; era
  1991. um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano,
  1992. moldura tosca, argolinha de latao, pendente da parede, entre as duas janelas. Se
  1993. nao foi ele, foi o pe. Um ou outro, a verdade e que, apenas entrei na sala, pente,
  1994. cabelos, toda ela voou pelos ares, e so Ihe ouvi esta pergunta:
  1995.  
  1996.  
  1997.  
  1998.  
  1999. — Ha alguma coisa?
  2000.  
  2001.  
  2002.  
  2003. — Nao ha nada, respondi; vim ver voce antes que o Padre Cabral chegue para a
  2004. ligao. Como passou a noite?
  2005.  
  2006. — Eu bem. Jose Dias ainda nao falou?
  2007.  
  2008. — Parece que nao.
  2009.  
  2010. — Mas entao quando fala?
  2011.  
  2012. — Disse-me que hoje ou amanha pretende tocar no assunto; nao vai logo de
  2013. pancada, falara assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrara em materia.
  2014. Quer primeiro ver se mamae tern a resolugao feita...
  2015.  
  2016. — Que tern, tern, interrompeu Capitu. E se nao fosse preciso alguem para veneer
  2017. ja, e de todo, nao se Ihe falaria. Eu ja nem sei se Jose Dias podera influir tanto;
  2018. acho que fara tudo, se sentir que voce realmente nao quer ser padre, mas podera
  2019. alcangar?... Ele e atendido; se, porem... E um inferno isto! Voce teime com ele,
  2020. Bentinho.
  2021.  
  2022. — Teimo; hoje mesmo ele ha de falar.
  2023.  
  2024. — Voce jura?
  2025.  
  2026. — J uro! Deixe ver os olhos, Capitu.
  2027.  
  2028. Tinha-me lembrado a definigao que Jose Dias dera deles, "olhos de cigana oblfqua
  2029. e dissimulada." Eu nao sabia o que era oblfqua, mas dissimulada sabia, e queria
  2030. ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. So me
  2031. perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinario; a cor e a
  2032. dogura eram minhas conhecidas. A demora da contemplagao creio que Ihe deu
  2033. outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mira-los mais de
  2034. perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que
  2035. entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressao que...
  2036.  
  2037. Retorica dos namorados, da-me uma comparagao exata e poetica para dizer o que
  2038. foram aqueles olhos de Capitu. Nao me acode imagem capaz de dizer, sem quebra
  2039. da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Va, de
  2040. ressaca. E o que me da ideia daquela feigao nova. Traziam nao sei que fluido
  2041. misterioso e energico, uma forga que arrastava para dentro, como a vaga que se
  2042. retira da praia, nos dias de ressaca. Para nao ser arrastado, agarrei-me as outras
  2043. partes vizinhas, as orelhas, aos bragos, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas
  2044. tao depressa buscava as pupilas, a onda que safa delas vinha crescendo, cava e
  2045. escura, ameagando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos
  2046. gastamos naquele jogo? So os relogios do Ceu terao marcado esse tempo infinito
  2047. e breve. A eternidade tern as suas pendulas; nem por nao acabar nunca deixa de
  2048. querer saber a duragao das felicidades e dos suplfcios. Ha de dobrar o gozo aos
  2049. bem-aventurados do Ceu conhecer a soma dos tormentos que ja terao padecido
  2050. no inferno os seus inimigos; assim tambem a quantidade das delfcias que terao
  2051. gozado no Ceu os seus desafetos aumentara as dores aos condenados do inferno.
  2052. Este outro suplfcio escapou ao divino Dante; mas eu nao estou aqui para emendar
  2053. poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo nao marcado, agarrei-me
  2054. definitivamente aos cabelos de Capitu, mas entao com as maos, e disse-lhe, —
  2055. para dizer alguma coisa, — que era capaz de os pentear, se quisesse.
  2056.  
  2057.  
  2058.  
  2059. — Voce?
  2060.  
  2061.  
  2062.  
  2063. — Eu mesmo.
  2064.  
  2065.  
  2066.  
  2067.  
  2068. — Vai embaragar-me o cabelo todo, isso sim.
  2069.  
  2070. — Se embaragar, voce desembaraga depois.
  2071.  
  2072. — Vamos ver.
  2073.  
  2074.  
  2075.  
  2076. CAPITULO XXXIII
  2077. O PENTEADO
  2078.  
  2079. Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos cabelos,
  2080. colhi-os todos e entrei a alisa-los com o pente, desde a testa ate as ultimas
  2081. pontas, que Ihe desciam a cintura. Em pe nao dava jeito: nao esquecestes que ela
  2082. era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe
  2083. que se sentasse.
  2084.  
  2085. — Senta aqui, e melhor.
  2086.  
  2087. Sentou-se. "Vamos ver o grande cabeleireiro", disse-me rindo. Continuei a alisar
  2088. os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porgoes iguais, para compor
  2089. as duas trangas. Nao as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os
  2090. cabeleireiros de offcio, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles
  2091. fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, as vezes por
  2092. desazo, outras de proposito para desfazer o feito e refaze-lo. Os dedos rogavam
  2093. na nuca da pequena ou nas espaduas vestidas de chita, e a sensagao era um
  2094. deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse
  2095. interminaveis. Nao pedi ao Ceu que eles fossem tao longos como os da Aurora,
  2096. porque nao conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram
  2097. depois; mas, desejei pentea-los por todos os seculos dos seculos, tecer duas
  2098. trangas que pudessem envolver o infinito por um numero inominavel de vezes. Se
  2099. isto vos parecer enfatico, desgragado leitor, e que nunca penteastes uma
  2100. pequena, nunca pusestes as maos adolescentes na jovem cabega de uma ninfa...
  2101. Uma ninfa! Todo eu estou mitologico. Ainda ha pouco, falando dos seus olhos de
  2102. ressaca, cheguei a escrever Tetis; risquei Tetis, risquemos ninfa; digamos
  2103. somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potencias cristas e
  2104. pagas. Enfim, acabei as duas trangas. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas?
  2105. Em cima da mesa, um triste pedago de fita enxovalhada. Juntei as pontas das
  2106. trangas, uni-as por um lago, retoquei a obra alargando aqui, achatando ali, ate
  2107. que exclamei:
  2108.  
  2109. — Pronto!
  2110.  
  2111. — Estara bom?
  2112.  
  2113. — Veja no espelho.
  2114.  
  2115. Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Nao vos esquegais que
  2116. estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabega, a tal ponto que me
  2117. foi preciso acudir com as maos e ampara-la; o espaldar da cadeira era baixo.
  2118. Inclinei-me depois sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na
  2119. linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabega, podia ficar tonta,
  2120. machucar o pescogo. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razao a
  2121. moveu.
  2122.  
  2123. — Levanta, Capitu!
  2124.  
  2125. Nao quis, nao levantou a cabega, e ficamos assim a olhar um para o outro, ate
  2126. que ela abrochou os labios, eu desci os meus, e...
  2127.  
  2128.  
  2129.  
  2130.  
  2131. Grande foi a sensagao do beijo; Capitu ergueu-se, rapida, eu recuei ate a parede
  2132. com uma especie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me
  2133. clarearam, vi que Capitu tinha os seus no chao. Nao me atrevi a dizer nada; ainda
  2134. que quisesse, faltava-me lingua. Preso, atordoado, nao achava gesto nem frnpeto
  2135. que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras calidas e
  2136. mimosas... Nao mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des
  2137. Grieux (e mais era Des Grieux) nao pensava ainda na diferenga dos sexos.
  2138.  
  2139.  
  2140.  
  2141. CAPI TULO XXXIV
  2142. SOU HOMEM!
  2143.  
  2144. Ouvimos passos no corredor; era D. Fortunata. Capitu compos-se depressa, tao
  2145. depressa que, quando a mae apontou a porta, ela abanava a cabega e ria.
  2146. Nenhum laivo amarelo, nenhuma contragao de acanhamento, um riso espontaneo
  2147. e claro, que ela explicou por estas palavras alegres:
  2148.  
  2149. — Mamae, olhe como este senhor cabeleireiro me penteou; pediu-me para acabar
  2150. o penteado, e fez isto. Veja que trangas!
  2151.  
  2152. — Que tern? acudiu a mae, transbordando de benevolencia . Esta muito bem,
  2153. ninguem dira que e de pessoa que nao sabe pentear.
  2154.  
  2155. — O que, mamae? Isto? redarguiu Capitu, desfazendo as trangas. Ora, mamae!
  2156.  
  2157. E com um enfadamento gracioso e voluntario que as vezes tinha, pegou do pente
  2158. e alisou os cabelos para renovar o penteado. D. Fortunata chamou-lhe tonta, e
  2159. disse-me que nao fizesse caso, nao era nada, maluquices da filha. Olhava com
  2160. ternura para mim e para ela. Depois, parece-me que desconfiou. Vendo-me
  2161. calado, enfiado, cosido a parede, achou talvez que houvera entre nos algo mais
  2162. que penteado, e sorriu por dissimulagao. . .
  2163.  
  2164. Como eu quisesse falar tambem para disfargar o meu estado, chamei algumas
  2165. palavras ca de dentro, e elas acudiram de pronto, mas de atropelo, e encheram-
  2166. me a boca sem poder sair nenhuma. O beijo de Capitu fechava-me os labios. Uma
  2167. exclamagao, um simples artigo, por mais que investissem com forga, nao
  2168. logravam romper de dentro. E todas as palavras recolheram-se ao coragao,
  2169. murmurando: "Eis aqui um que nao fara grande carreira no mundo, por menos
  2170. que as emogoes o dominem..."
  2171.  
  2172. Assim, apanhados pela mae, eramos dois e contrarios, ela encobrindo com a
  2173. palavra o que eu publicava pelo silencio. D. Fortunata tirou-me daquela hesitagao,
  2174. dizendo que minha mae me mandara chamar para a ligao de latim; o Padre Cabral
  2175. estava a minha espera. Era uma safda; despedi-me e enfiei pelo corredor.
  2176. Andando, ouvi que a mae censurava as maneira da filha, mas a filha nao dizia
  2177. nada.
  2178.  
  2179. Corri ao meu quarto, peguei dos livros, mas nao passei a sala da ligao; sentei-me
  2180. na cama, recordando o penteado e o resto. Tinha estremegoes, tinha uns
  2181. esquecimentos em que perdia a consciencia de mim e das coisas que me
  2182. rodeavam, para viver nao sei onde nem como. E tornava a mim, e via a cama, as
  2183. paredes, os livros, o chao, ouvia algum som de fora, vago, proximo ou remoto, e
  2184. logo perdia tudo para sentir somente os beigos de Capitu... Sentia-os estirados,
  2185. embaixo dos meus, igualmente esticados para os dela, e unindo-se uns aos
  2186. outros. De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de
  2187. orgulho:
  2188.  
  2189.  
  2190.  
  2191. — Sou homem!
  2192.  
  2193.  
  2194.  
  2195.  
  2196. Supus que me tivessem ouvido, porque a palavra saiu em voz alta, e corri a porta
  2197. da alcova. Nao havia ninguem fora. Voltei para dentro e, baixinho, repeti que era
  2198. homem. Ainda agora tenho o eco aos meus ouvidos. O gosto que isto me deu foi
  2199. enorme. Colombo nao o teve maior, descobrindo a America, e perdoai a
  2200. banalidade em favor do cabimento; com efeito, ha em cada adolescente um
  2201. mundo encoberto, um almirante e um Sol de outubro. Fiz outros achados mais
  2202. tarde; nenhum me deslumbrou tanto. A denuncia de Jose Dias alvorogara-me, a
  2203. ligao do velho coqueiro tambem, a vista dos nossos nomes abertos por ela no
  2204. muro do quintal deu-me grande abalo, como vistes; nada disso valeu a sensagao
  2205. do beijo. Podiam ser mentira ou ilusao. Sendo verdade, eram os ossos da verdade,
  2206. nao eram a carne e o sangue dela. As proprias maos, tocadas, apertadas, como
  2207. que fundidas, nao podiam dizer tudo.
  2208.  
  2209. — Sou homem!
  2210.  
  2211. Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminario, mas como se pensa em
  2212. perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos os meus nervos
  2213. me disseram que homens nao sao padres. O sangue era da mesma opiniao. Outra
  2214. vez senti os beigos de Capitu. Talvez abuso um pouco das reminiscencias
  2215. osculares; mas a saudade e isto mesmo; e o passar e repassar das memorias
  2216. antigas. Ora, de todas as daquele tempo creio que a mais doce e esta, a mais
  2217. nova, a mais compreensiva, a que inteiramente me revelou a mim mesmo. Outras
  2218. tenho, vastas e numerosas, doces tambem, de varia especie, muitas intelectuais,
  2219. igualmente intensas. Grande homem que fosse, a recordagao era menor que esta.
  2220.  
  2221.  
  2222.  
  2223. CAP ITU LO XXXV
  2224. O PROTONOTARI O APOSTOLI CO
  2225.  
  2226. Enfim, peguei dos livros e corri a ligao. Nao corri precisamente; a meio caminho
  2227. parei, advertindo que devia ser muito tarde, e podiam ler-me no semblante
  2228. alguma coisa. Tive ideia de mentir, alegar uma vertigem que me houvesse deitado
  2229. ao chao; mas o susto que causaria a minha mae fez-me rejeita-la. Pensei em
  2230. prometer algumas dezenas de padre-nossos; tinha, porem, outra promessa em
  2231. aberto e outro favor pendente... Nao, vamos ver; fui andando, ouvi vozes alegres,
  2232. conversavam ruidosamente. Quando entrei na sala, ninguem ralhou comigo.
  2233.  
  2234. O Padre Cabral recebera na vespera um recado do internuncio; foi ter com ele, e
  2235. soube que, por decreto pontiffcio, acabava de ser nomeado protonotario
  2236. apostolico. Esta distingao do papa dera-lhe grande contentamento e a todos os
  2237. nossos. Tio Cosme e prima Justina repetiam o tftulo com admiragao; era a
  2238. primeira vez que ele soava aos nossos ouvidos, acostumados a conegos,
  2239. monsenhores, bispos, nuncios, e internuncios; mas que era protonotario
  2240. apostolico? O Padre Cabral explicou que nao era propriamente o cargo da curia,
  2241. mas as honras dele. Tio Cosme viu exalgar-se no parceiro de voltarete, e repetia:
  2242.  
  2243. — Protonotario apostolico!
  2244.  
  2245. E voltando-se para mim:
  2246.  
  2247. — Prepara-te, Bentinho; tu podes vir a ser protonotario apostolico.
  2248.  
  2249. Cabral ouvia com gosto a repetigao do tftulo. Estava em pe, dava alguns passos,
  2250. sorria ou tamborilava na tampa da boceta. O tamanho do tftulo como que Ihe
  2251. dobrava a magnificencia, posto que, para liga-lo ao nome, era demasiado
  2252. comprido; esta segunda reflexao foi tio Cosme que a fez. Padre Cabral acudiu que
  2253. nao era preciso dize-lo todo, bastava que Ihe chamassem o protonotario Cabral.
  2254. Subentendia-se apostolico.
  2255.  
  2256.  
  2257.  
  2258.  
  2259. — Protonotario Cabral.
  2260.  
  2261.  
  2262.  
  2263. — Sim, tem razao; protonotario Cabral.
  2264.  
  2265. — Mas, Sr. protonotario, — acudiu prima Justina para se ir acostumando ao uso do
  2266. tftulo, — isto o obriga a ir a Roma?
  2267.  
  2268. — Nao, D. J ustina.
  2269.  
  2270. — Nao, sao so as honras, observou minha mae.
  2271.  
  2272. — Agora, nao impede — disse Cabral, que continuava a refletir, — nao impede que
  2273.  
  2274. nos casos de maior formalidade, atos publicos, cartas de cerimonia, etc; se
  2275. empregue o tftulo inteiro: protonotario apostolico. No uso comum, basta
  2276.  
  2277. protonotario.
  2278.  
  2279. — Justamente, assentiram todos.
  2280.  
  2281. Jose Dias, que entrou pouco depois de mim, aplaudia a distingao, e recordou, a
  2282. proposito, os primeiros atos politicos de Pio IX, grandes esperangas da Italia; mas
  2283. ninguem pegou do assunto; o principal da hora e do lugar era o meu velho mestre
  2284. de latim. Eu, voltando a mim do receio, entendi que devia cumprimenta-lo
  2285. tambem, e este aplauso nao Ihe foi menos ao coragao que os outros. Bateu-me na
  2286. bochecha paternalmente, e acabou dando-me ferias. Era muita felicidade para
  2287. uma so hora. Um beijo e ferias! Creio que o meu rosto disse isto mesmo, porque
  2288. tio Cosme, sacudindo a barriga, chamou-me peralta; mas Jose Dias corrigiu a
  2289. alegria:
  2290.  
  2291. — Nao tem que festejar a vadiagao; o latim sempre Ihe ha de ser preciso, ainda
  2292. que nao venha a ser padre.
  2293.  
  2294. Conheci aqui o meu homem. Era a primeira palavra, a semente langada a terra,
  2295. assim de passagem, como para acostumar os ouvidos da famflia. Minha mae sorriu
  2296. para mim, cheia de amor e de tristeza, mas respondeu logo:
  2297.  
  2298. — Ha de ser padre, e padre bonito.
  2299.  
  2300. — Nao se esquega, mana Gloria, e protonotario tambem. Protonotario apostolico.
  2301.  
  2302. — O protonotario Santiago, acentuou Cabral.
  2303.  
  2304. Se a intengao do meu mestre de latim era ir acostumando ao uso do tftulo com o
  2305. nome, nao sei bem; o que sei e que quando ouvi o meu nome ligado a tal tftulo,
  2306. deu-me vontade de dizer um desaforo. Mas a vontade aqui foi antes uma ideia,
  2307. uma ideia sem lingua, que se deixou ficar quieta e muda, tal como daf a pouco
  2308. outras ideias... Mas essas pedem um capftulo especial. Rematemos este dizendo
  2309. que o mestre de latim falou algum tempo da minha ordenagao eclesiastica, ainda
  2310. que sem grande interesse. Ele buscava um assunto alheio para se mostrar
  2311. esquecido da propria gloria, mas era esta que o deslumbrava na ocasiao. Era um
  2312. velho magro, sereno, dotado de qualidades boas. Alguns defeitos tinha; o mais
  2313. excelso deles era ser guloso, nao propriamente glutao; comia pouco, mas
  2314. estimava o fino e o raro, e a nossa cozinha, se era simples, era menos pobre que
  2315. a dele. Assim, quando minha mae Ihe disse que viesse jantar, a fim de se Ihe fazer
  2316. uma saude, os olhos com que aceitou seriam de protonotario, mas nao eram
  2317. apostolicos. E para agradar a minha mae, novamente pegou em mim,
  2318. descrevendo o meu futuro eclesiastico, e queria saber se ia para o seminario
  2319. agora, no ano proximo, e oferecia-se a falar ao "senhor bispo", tudo marchetado
  2320. do "protonotario Santiago."
  2321.  
  2322.  
  2323.  
  2324.  
  2325. CAPITULO XXXVI
  2326.  
  2327. I DEI A SEM PERNAS E I DEI A SEM BRACOS
  2328.  
  2329.  
  2330.  
  2331. Deixei-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na aventura da
  2332. manha. Era o que melhor podia fazer, sem latim, e ate com latim. Ao cabo de
  2333. cinco minutos, lembrou-me ir correndo a casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe
  2334. as trangas, refaze-las e concluf-las daquela maneira particular, boca sobre boca. E
  2335. isto, vamos, e isto... Ideia so! ideia sem pernas! As outras pernas nao queriam
  2336. correr nem andar. Muito depois e que safram vagarosamente e levaram-me a casa
  2337. de Capitu. Quando ali cheguei, dei com ela na sala, na mesma sala, sentada na
  2338. marquesa, almofada no regago, cosendo em paz. Nao me olhou de rosto, mas a
  2339. furto e a medo, ou, se preferes a fraseologia do agregado, oblfqua e dissimulada.
  2340. As maos pararam, depois de encravada a agulha no pano. Eu, do lado oposto da
  2341. mesa, nao sabia que fizesse; e outra vez me fugiram as palavras que trazia. Assim
  2342. gastamos alguns minutos compridos, ate que ela deixou inteiramente a costura,
  2343. ergueu-se e esperou-me. Fui ter com ela, e perguntei se a mae havia dito alguma
  2344. coisa; respondeu-me que nao. A boca com que respondeu era tal que cuido haver-
  2345. me provocado um gesto de aproximagao. Certo e que Capitu recuou um pouco.
  2346.  
  2347. Era ocasiao de pega-la, puxa-la, beija-la... Ideia so! ideia sem bragos! Os meus
  2348. ficaram cafdos e mortos. Nao conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, e
  2349. provavel que o espfrito de Satanas me fizesse dar a lingua mfstica do Cantico um
  2350. sentido direto e natural. Entao obedeceria ao primeiro versfculo: "Aplique ele os
  2351. labios, dando-me o osculo da sua boca". E pelo que respeita aos bragos, que tinha
  2352. inertes, bastaria cumprir o vers. 6.° do cap. II: "A sua mao esquerda se pos ja
  2353. debaixo da minha cabega, e a sua mao direita me abragara depois". Vedes af a
  2354. cronologia dos gestos. Era so executa-la; mas ainda que eu conhecesse o texto, as
  2355. atitudes de Capitu eram agora tao retrafdas, que nao sei se nao continuaria
  2356. parado. Foi ela, entretanto, que me tirou daquela situagao.
  2357.  
  2358.  
  2359.  
  2360. CAPITULO XXXVII
  2361. A ALMA E CHEIA DE Ml STERI OS
  2362.  
  2363. — Padre Cabral estava esperando ha muito tempo?
  2364.  
  2365. — Floje nao dei ligao; tive ferias.
  2366.  
  2367. Expliquei-lhe o motivo das ferias. Contei-lhe tambem que o Padre Cabral falara da
  2368. minha entrada no seminario, apoiando a resolugao de minha mae, e disse dele
  2369. coisas feias e duras. Capitu refletiu algum tempo, e acabou perguntando-me se
  2370. podia ir cumprimentar o padre, a tarde, em minha casa.
  2371.  
  2372. — Pode, mas para que?
  2373.  
  2374. — Papai naturalmente ha de querer ir tambem, mas e melhor que ele va a casa do
  2375. padre, e mais bonito. Eu nao, que ja sou meia moga, concluiu rindo.
  2376.  
  2377. O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troga consigo mesma, uma vez
  2378. que, desde manha, era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graga e, para dizer
  2379. tudo, quis provar-lhe que era moga inteira. Peguei-lhe levemente na mao direita,
  2380. depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e tremulo. Era a ideia com maos.
  2381. Quis puxar as de Capitu, para obriga-la a vir atras delas, mas ainda agora a agao
  2382. nao respondeu a intengao. Contudo, achei-me forte e atrevido. Nao imitava
  2383. ninguem; nao vivia com rapazes, que me ensinassem anedotas de amor. Nao
  2384. conhecia a violagao de Lucrecia. Dos romanos apenas sabia que falavam pela
  2385. artinha do Padre Pereira e eram patrfcios de Poncio Pilatos. Nao nego que o final
  2386.  
  2387.  
  2388.  
  2389.  
  2390. do penteado da manha era um grande passo no caminho da movimentagao
  2391. amorosa, mas o gesto de entao foi justamente o contrario deste. De manha, ela
  2392. derreou a cabega, agora fugia-me; nem e so nisso que os lances diferiam; em
  2393. outro ponto, parecendo haver repetigao, houve contraste.
  2394.  
  2395. Penso que ameacei puxa-la a mim. Nao juro, comegava a estar tao alvorogado,
  2396. que nao pude ter toda a consciencia dos meus atos; mas concluo que sim, porque
  2397. ela recuou e quis tirar as maos das minhas; depois, talvez por nao poder recuar
  2398. mais, colocou um dos pes adiante e o outro atras, e fugiu com o busto. Foi este
  2399. gesto que me obrigou a reter-lhe as maos com forga. O busto afinal cansou e
  2400. cedeu, mas a cabega nao quis ceder tambem, e cafda para tras, inutilizava todos
  2401. os meus esforgos, porque eu ja fazia esforgos, leitor amigo. Nao conhecendo a
  2402. ligao do Cantico, nao me acudiu estender a mao esquerda por baixo da cabega
  2403. dela; demais, este gesto supoe um acordo de vontades, e Capitu, que me resistia
  2404. agora, aproveitaria o gesto para arrancar-se a outra mao e fugir-me inteiramente.
  2405. Ficamos naquela luta, sem estrepito, porque apesar do ataque e da defesa, nao
  2406. perdfamos a cautela necessaria para nao sermos ouvidos la de dentro; a alma e
  2407. cheia de misterios. Agora sei que a puxava; a cabega continuou a recuar; ate que
  2408. cansou; mas entao foi a vez da boca. A boca de Capitu iniciou um movimento
  2409. inverso, relativamente a minha, indo para um lado, quando eu a buscava do outro
  2410. oposto. Naquele desencontro estivemos, sem que ousasse um pouco mais, e
  2411. bastaria um pouco mais...
  2412.  
  2413. Nisto ouvimos bater a porta e falar no corredor. Era o pai de Capitu, que voltava
  2414. da repartigao um pouco mais cedo, como usava as vezes. "Abre, Nanata! Capitu,
  2415. abre!" Aparentemente era o mesmo lance da manha, quando a mae deu conosco,
  2416. mas so aparentemente; verdade, era outro. Considerai que de manha tudo estava
  2417. acabado, e o passo de D. Fortunata foi um aviso para que nos compusessemos.
  2418. Agora lutavamos com as maos presas, e nada estava sequer comegado.
  2419.  
  2420. Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno; era a mae que
  2421. abria. Eu, uma vez que confesso tudo, digo aqui que nao tive tempo de soltar as
  2422. maos da minha amiga; pensei nisso, cheguei a tenta-lo, mas Capitu, antes que o
  2423. pai acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e
  2424. deu de vontade o que estava a recusar a forga. Repito, a alma e cheia de
  2425. misterios.
  2426.  
  2427.  
  2428.  
  2429. CAPI TU LO XXXVIII
  2430. QUE SUSTO, MEU DEUS!
  2431.  
  2432. Quando Padua, vindo pelo interior, entrou na sala de visitas, Capitu, em pe, de
  2433. costas para mim, inclinada sobre a costura, como a recolhe-la, perguntava em voz
  2434. alta:
  2435.  
  2436. — Mas, Bentinho, que e protonotario apostolico?
  2437.  
  2438. — Ora, vivam! exclamou o pai.
  2439.  
  2440. — Que susto, meu Deus!
  2441.  
  2442. Agora e que o lance e o mesmo; mas se conto aqui, tais quais, ou dois lances de
  2443. ha quarenta anos, e para mostrar que Capitu nao se dominava so em presenga da
  2444. mae; o pai nao Ihe meteu mais medo. No meio de uma situagao que me atava a
  2445. lingua, usava da palavra com a maior ingenuidade deste mundo. A minha
  2446. persuasao e que o coragao nao Ihe batia mais nem menos. Alegou susto, e deu a
  2447. cara um ar meio enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e fiquei com
  2448. inveja. Foi logo falar ao pai, que apertou a minha mao, e quis saber por que a filha
  2449. falava em protonotario apostolico. Capitu repetiu-lhe o que ouvira de mim, e
  2450.  
  2451.  
  2452.  
  2453.  
  2454. opinou logo que o pai devia ir cumprimentar o padre em casa dele; ela iria a
  2455. minha. E coligindo os petrechos da costura, enfiou pelo corredor, bradando
  2456. infantilmente:
  2457.  
  2458. — Mamae, jantar, papai chegou!
  2459.  
  2460.  
  2461.  
  2462. CAPI TULO XXXIX
  2463. A VOCAGAO
  2464.  
  2465. Padre Cabral estava naquela primeira hora das honras em que as mfnimas
  2466. congratulagoes valem por odes. Tempo chega em que os dignificados recebem os
  2467. louvores como um tributo usual, cara morta, sem agradecimentos. O alvorogo da
  2468. primeira hora e melhor; esse estado de alma que ve na inclinagao do arbusto,
  2469. tocado do vento, um parabem da flora universal, traz sensagoes mais intimas e
  2470. finas que qualquer outro. Cabral ouviu as palavras de Capitu com infinito prazer.
  2471.  
  2472. — Obrigado, Capitu, muito obrigado; estimo que voce goste tambem. Papai esta
  2473. bom? E mamae? A voce nao se pergunta; essa cara e mesmo de quern vende
  2474. saude. E como vamos de rezas?
  2475.  
  2476. A todas as perguntas, Capitu ia respondendo prontamente e bem. Trazia um
  2477. vestidinho melhor e os sapatos de sair. Nao entrou com a familiaridade do
  2478. costume, deteve-se um instante a porta da sala, antes de ir beijar a mao a minha
  2479. mae e ao padre. Como desse a este, duas vezes em cinco minutos, o tftulo de
  2480. protonotario, Jose Dias, para se desforrar da concorrencia, fez um pequeno
  2481. discurso em honra "ao coragao paternal e augustfssimo de Pio IX."
  2482.  
  2483. — Voce e um grande prosa, disse tio Cosme, quando ele acabou.
  2484.  
  2485. Jose Dias sorriu sem vexame. Padre Cabral confirmou os louvores do agregado,
  2486. sem os seus superlativos; ao que este acrescentou que o Cardeal Mastai
  2487. evidentemente fora talhado para a tiara desde o princfpio dos tempos. E,
  2488. piscando-me o olho, concluiu:
  2489.  
  2490. — A vocagao e tudo. O estado eclesiastico e perfeitfssimo, contanto que o
  2491. sacerdote venha ja destinado do bergo. Nao havendo vocagao, falo de vocagao
  2492. sincera e real, um jovem pode muito bem estudar as letras humanas, que tambem
  2493. sao uteis e honradas.
  2494.  
  2495. Padre Cabral retorquia:
  2496.  
  2497. — A vocagao e muito, mas o poder de Deus e soberano. Um homem pode nao ter
  2498. gosto a igreja e ate persegui-la, e um dia a voz de Deus Ihe fala, e ele sai
  2499. apostolo; veja Sao Paulo.
  2500.  
  2501. — Nao contesto, mas o que eu digo e outra coisa. O que eu digo e que se pode
  2502. muito bem servir a Deus sem ser padre, ca fora; pode-se ou nao se pode?
  2503.  
  2504. — Pode-se.
  2505.  
  2506. — Pois entao! exclamou Jose Dias triunfalmente, olhando em volta de si. Sem
  2507. vocagao e que nao ha bom padre, e em qualquer profissao liberal se serve a Deus,
  2508. como todos devemos.
  2509.  
  2510. — Perfeitamente, mas vocagao nao e so do bergo que se traz.
  2511.  
  2512.  
  2513.  
  2514. — Homem, e a melhor.
  2515.  
  2516.  
  2517.  
  2518.  
  2519. — Um mogo sem gosto nenhum a vida eclesiastica pode acabar por ser muito bom
  2520. padre; tudo e que Deus o determine. Nao me quero dar por modelo, mas aqui
  2521. estou eu que nasci com a vocagao da Medicina; meu padrinho, que era coadjutor
  2522. de Santa Rita, teimou com meu pai para que me metesse no seminario; meu pai
  2523. cedeu. Pois, senhor, tomei tal gosto aos estudos e a companhia dos padres, que
  2524. acabei ordenando-me. Mas, suponha que nao acontecia assim, e que eu nao
  2525. mudava de vocagao, o que e que acontecia? Tinha estudado no seminario algumas
  2526. materias que e bom saber, e sao sempre melhor ensinadas naquelas casas.
  2527.  
  2528. Primajustina interveio:
  2529.  
  2530. — Como? Entao pode-se entrar para o seminario e nao sair padre?
  2531.  
  2532. Padre Cabral respondeu que sim, que se podia, e, voltando-se para mim, falou da
  2533. minha vocagao, que era manifesta; os meus brinquedos foram sempre de igreja, e
  2534. eu adorava os offcios divinos. A prova nao provava; todas as criangas do meu
  2535. tempo eram devotas. Cabral acrescentou que o reitor de Sao Jose, a quern contara
  2536. ultimamente a promessa de minha mae, tinha o meu nascimento por milagre; ele
  2537. era da mesma opiniao. Capitu, cosida as saias de minha mae, nao atendia aos
  2538. olhos ansiosos que eu Ihe mandava; tambem nao parecia escutar a conversagao
  2539. sobre o seminario e suas consequencias, e, alias, decorou o principal, como vim a
  2540. saber depois. Duas vezes fui a janela, esperando que ela fosse tambem, e
  2541. ficassemos a vontade, sozinhos, ate acabar o mundo, se acabasse, mas Capitu
  2542. nao me apareceu. Nao deixou minha mae, senao para ir embora. Eram ave-
  2543. marias, despediu-se.
  2544.  
  2545. — Vai com ela, Bentinho, disse minha mae.
  2546.  
  2547. — Nao precisa, nao, D. Gloria, acudiu ela rindo, eu sei o caminho. Adeus, Sr.
  2548. protonotario...
  2549.  
  2550. — Adeus, Capitu.
  2551.  
  2552. Tendo dado um passo no sentido de atravessar a sala, e claro que o meu dever, o
  2553. meu gosto, todos os impulsos da idade e da ocasiao eram atravessa-la de todo,
  2554. seguir a vizinha corredor fora, descer a chacara, entrar no quintal, dar-lhe terceiro
  2555. beijo, e despedir-me. Nao me importou a recusa, que cuidei simulada, e enfiei
  2556. pelo corredor; mas, Capitu que ia depressa, estacou e fez-me sinal que voltasse.
  2557. Nao obedeci; cheguei-me a ela.
  2558.  
  2559. — Nao venha, nao; amanha falaremos.
  2560.  
  2561. — Mas eu queria dizer a voce...
  2562.  
  2563. — Amanha.
  2564.  
  2565. — Escuta!
  2566.  
  2567. — Fica!
  2568.  
  2569. Falava baixinho; pegou-me na mao, e pos o dedo na boca. Uma preta, que veio de
  2570. dentro acender o lampiao do corredor, vendo-nos naquela atitude quase as
  2571. escuras, riu de simpatia e murmurou, em tom que ouvfssemos, alguma coisa que
  2572. nao entendi bem nem mal. Capitu segredou-me que a escrava desconfiara, e ia
  2573. talvez contar as outras. Novamente me intimou que ficasse, e retirou-se; eu
  2574. deixei-me estar parado, pregado, agarrado ao chao.
  2575.  
  2576.  
  2577.  
  2578. CAPI TU LO XL
  2579.  
  2580.  
  2581.  
  2582.  
  2583. UMA EGUA
  2584.  
  2585.  
  2586.  
  2587. Ficando so, refleti algum tempo, e tive uma fantasia. Ja conheceis as minhas
  2588. fantasias. Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a desta casa do Engenho
  2589. Novo, reproduzindo a de Mata-cavalos... A imaginagao foi a companheira de toda
  2590. a minha existencia, viva, rapida, inquieta, alguma vez tfmida e amiga de empacar,
  2591. as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. Creio haver
  2592. lido em Tacito que as eguas iberas concebiam pelo vento; se nao foi nele, foi
  2593. noutro autor antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste
  2594. particular, a minha imaginagao era uma grande egua ibera; a menor brisa Ihe
  2595. dava um potro, que safa logo cavalo de Alexandre; mas deixemos de metaforas
  2596. atrevidas e improprias dos meus quinze anos. Digamos o caso simplesmente. A
  2597. fantasia daquela hora foi confessar a minha mae os meus amores para Ihe dizer
  2598. que nao tinha vocagao eclesiastica. A conversa sobre vocagao tornava-me agora
  2599. toda inteira, e, ao passo que me assustava, abria-me uma porta de safda. "Sim, e
  2600. isto, pensei; vou dizer a mamae que nao tenho vocagao, e confesso o nosso
  2601. namoro; se ela duvidar, conto-lhe o que se passou outro dia, o penteado e o
  2602. resto..."
  2603.  
  2604.  
  2605.  
  2606. CAPI TULO XLI
  2607. A AUDI ENCI A SECRETA
  2608.  
  2609. O resto fez- me ficar mais algum tempo, no corredor, pensando. Vi entrar o Doutor
  2610. Joao da Costa, e preparou-se logo o voltarete do costume. Minha mae saiu da
  2611. sala, e, dando comigo, perguntou se acompanhara Capitu.
  2612.  
  2613. — Nao, senhora, ela foi so.
  2614.  
  2615. E quase investindo para ela:
  2616.  
  2617. — Mamae, eu queria dizer-lhe uma coisa.
  2618.  
  2619.  
  2620.  
  2621. — Que e?
  2622.  
  2623.  
  2624.  
  2625. Toda assustada, quis saber o que e que me dofa, se a cabega, se o peito, se o
  2626. estomago, e apalpava-me a testa para ver se tinha febre.
  2627.  
  2628. — Nao tenho nada, nao, senhora.
  2629.  
  2630. — Mas entao que e?
  2631.  
  2632. — E uma coisa, mamae... Mas, escute, olhe, e melhor depois do cha; logo... Nao e
  2633. nada mau; mamae assusta-se por tudo; nao e coisa de cuidado.
  2634.  
  2635. — Nao e molestia?
  2636.  
  2637. — Nao, senhora.
  2638.  
  2639. — E, isso e volta de constipagao. Disfargas para nao tomar suadouro, mas tu estas
  2640. constipado; conhece-se pela voz.
  2641.  
  2642. Tentei rir, para mostrar que nao tinha nada. Nem por isso permitiu adiar a
  2643. confidence, pegou em mim, levou-me ao quarto dela, acendeu vela, e ordenou-
  2644. me que Ihe dissesse tudo. Entao eu perguntei-lhe, para principiar, quando e que ia
  2645. para o seminario.
  2646.  
  2647.  
  2648.  
  2649. — Agora so para o ano, depois das ferias.
  2650.  
  2651.  
  2652.  
  2653.  
  2654. — Vou... para ficar?
  2655.  
  2656. — Como ficar?
  2657.  
  2658. — Nao volto para casa?
  2659.  
  2660. — Voltas aos sabados e pelas ferias; e melhor. Quando te ordenares padre, vens
  2661. morar comigo.
  2662.  
  2663. Enxuguei os olhos e o nariz. Ela afagou-me, depois quis repreender-me, mas creio
  2664. que a voz Ihe tremia, e pareceu-me que tinha os olhos umidos. Disse-lhe que
  2665. tambem sentia a nossa separagao. Negou que fosse separagao; era so alguma
  2666. ausencia, por causa dos estudos; so os primeiros dias. Em pouco tempo eu me
  2667. acostumaria aos companheiros e aos mestres, e acabaria gostando de viver com
  2668. eles.
  2669.  
  2670. — Eu so gosto de mamae.
  2671.  
  2672. Nao houve calculo nesta palavra, mas estimei dize-la, por fazer crer que ela era a
  2673. minha unica afeigao; desviava as suspeitas de cima de Capitu. Quantas intengoes
  2674. viciosas ha assim que embarcam, a meio caminho, numa frase inocente e pura!
  2675. Chega a fazer suspeitar que a mentira e, muita vez, tao involuntaria como a
  2676. transpiragao. Por outro lado, leitor amigo, nota que eu queria desviar as suspeitas
  2677. de cima de Capitu, quando havia chamado minha mae justamente para confirma-
  2678. las; mas as contradigoes sao deste mundo. A verdade e que minha mae era
  2679. Candida como a primeira aurora, anterior ao primeiro pecado; nem por simples
  2680. intuigao era capaz de deduzir uma coisa de outra, isto e, nao concluiria da minha
  2681. repentina oposigao que eu andasse em segredinhos com Capitu, como Ihe dissera
  2682. Jose Dias. Calou-se durante alguns instantes; depois replicou-me sem imposigao
  2683. nem autoridade, o que me veio animando a resistencia. Daf o falar-lhe na vocagao
  2684. que se discutira naquela tarde, e que eu confessei nao sentir em mim.
  2685.  
  2686. — Mas tu gostavas tanto de ser padre, disse ela; nao te lembras que ate pedias
  2687. para ir ver sair os seminaristas de Sao Jose, com as suas batinas? Em casa,
  2688. quando Jose Dias te chamava Reverendfssimo, tu rias com tanto gosto! Como e
  2689. que agora?... Nao creio, nao, Bentinho. E depois... Vocagao? Mas a vocagao vem
  2690. com o costume, continuou repetindo as reflexoes que ouvira ao meu professor de
  2691. latim.
  2692.  
  2693. Como eu buscasse contesta-la, repreendeu-me sem aspereza, mas com alguma
  2694. forga, e eu tornei ao filho submisso que era. Depois, ainda falou gravemente e
  2695. longamente sobre a promessa que fizera; nao me disse as circunstancias, nem a
  2696. ocasiao, nem os motivos dela, coisas que so vim a saber mais tarde. Afirmou o
  2697. principal, isto e, que a havia de cumprir, em pagamento a Deus.
  2698.  
  2699. — Nosso Senhor me acudiu, salvando a tua existencia, nao Ihe hei de mentir nem
  2700. faltar, Bentinho; sao coisas que nao se fazem sem pecado, e Deus que e grande e
  2701. poderoso, nao me deixaria assim, nao, Bentinho; eu sei que seria castigada e bem
  2702. castigada. Ser padre e bom e santo; voce conhece muitos, como o Padre Cabral,
  2703. que vive tao feliz com a irma; um tio meu tambem foi padre, e escapou de ser
  2704. bispo, dizem... Deixa de manha, Bentinho.
  2705.  
  2706. Creio que os olhos que Ihe deitei foram tao queixosos, que ela emendou logo a
  2707. palavra; manha, nao, nao podia ser manha, sabia muito bem que eu era amigo
  2708. dela, e nao seria capaz de fingir um sentimento que nao tivesse. Moleza e o que
  2709. queria dizer, que me deixasse de moleza, que me fizesse homem e obedecesse ao
  2710. que cumpria, em beneffcio dela e para bem da minha alma. Todas essas coisas e
  2711. outras foram ditas um pouco atropeladamente, e a voz nao Ihe safa clara, mas
  2712. velada e esganada. Vi que a emogao dela era outra vez grande, mas nao recuava
  2713. dos seus propositos, e aventurei-me a perguntar-lhe:
  2714.  
  2715.  
  2716.  
  2717.  
  2718. — E se mamae pedisse a Deus que a dispensasse da promessa?
  2719.  
  2720. — Nao, nao pego. Estas tonto, Bentinho? E como havia de saber que Deus me
  2721. dispensava?
  2722.  
  2723. — Talvez em sonho; eu sonho as vezes com anjos e santos.
  2724.  
  2725. — Tambem eu, meu filho; mas e inutil... Vamos, e tarde; vamos para a sala. Esta
  2726. entendido: no primeiro ou no segundo mes do ano que vem, iras para o seminario.
  2727. O que eu quero e que saibas bem os livros que estas estudando; e bonito, nao so
  2728. para ti, como para o Padre Cabral. No seminario ha interesse em conhecer-te,
  2729. porque o Padre Cabral fala de ti com entusiasmo.
  2730.  
  2731. Caminhou para a porta, safmos ambos. Antes de sair, voltou-se para mim, e quase
  2732. a vi saltar-me ao colo e dizer-me que nao seria padre. Este era ja o seu desejo
  2733. fntimo, a proporgao que se aproximava o tempo. Quisera um modo de pagar a
  2734. dfvida contrafda, outra moeda, que valesse tanto ou mais, e nao achava nenhuma.
  2735.  
  2736.  
  2737.  
  2738. CAPI TULO XLI I
  2739. CAPITU REFLETINDO
  2740.  
  2741. No dia seguinte fui a casa vizinha, logo que pude. Capitu despedia-se de duas
  2742. amigas que tinham ido visita-la, Paula e Sancha, companheiras de colegio, aquela
  2743. de quinze, esta de dezessete anos, a primeira filha de um medico, a segunda de
  2744. um comerciante de objetos americanos. Estava abatida, trazia um lengo atado na
  2745. cabega; a mae contou-me que fora excesso de leitura na vespera, antes e depois
  2746. do cha, na sala e na cama, ate muito depois da meia-noite, e com lamparina...
  2747.  
  2748. — Se eu acendesse vela, mamae zangava-se. Ja estou boa.
  2749.  
  2750. E como desatasse o lengo, a mae disse-lhe timidamente que era melhor ata-lo,
  2751. mas Capitu respondeu que nao era preciso, estava boa.
  2752.  
  2753. Ficamos sos na sala; Capitu confirmou a narragao da mae, acrescentando que
  2754. passara mal por causa do que ouvira em minha casa. Tambem eu Ihe contei o que
  2755. se dera comigo, a entrevista com minha mae, as minhas suplicas, as lagrimas
  2756. dela, e por fim as ultimas respostas decisivas; dentro de dois ou tres meses iria
  2757. para o seminario. Que farfamos agora? Capitu ouvia-me com atengao sofrega,
  2758. depois sombria; quando acabei, respirava a custo, como prestes a estalar de
  2759. colera, mas conteve-se.
  2760.  
  2761. Ha tanto tempo que isto sucedeu que nao posso dizer com seguranga se chorou
  2762. deveras, ou se somente enxugou os olhos; cuido que os enxugou somente. Vendo-
  2763. Ihe o gesto, peguei-lhe na mao para anima-la, mas tambem eu precisava ser
  2764. animado. Cafmos no canape, e ficamos a olhar para o ar. Minto; ela olhava para o
  2765. chao. Fiz o mesmo, logo que a vi assim... Mas eu creio que Capitu olhava para
  2766. dentro de si mesma, enquanto que eu fitava deveras o chao, o rofdo das fendas,
  2767. duas moscas andando e um pe de cadeira lascada. Era pouco, mas distrafa-me da
  2768. afligao. Quando tornei a olhar para Capitu, vi que nao se mexia, e fiquei com tal
  2769. medo que a sacudi brandamente. Capitu tornou ca fora e pediu-me que outra vez
  2770. Ihe contasse o que se passara com minha mae. Satisfi-la, atenuando o texto desta
  2771. vez, para nao amofina-la. Nao me chames dissimulado, chama-me compassivo; e
  2772. certo que receava perder Capitu, se Ihe morressem as esperangas todas, mas
  2773. dofa-me ve-la padecer. Agora, a verdade ultima, a verdade das verdades, e que ja
  2774. me arrependia de haver falado a minha mae, antes de qualquer trabalho efetivo
  2775. por parte de Jose Dias; examinando bem, nao quisera ter ouvido um desengano
  2776. que eu reputava certo, ainda que demorado. Capitu refletia, refletia, refletia...
  2777.  
  2778.  
  2779.  
  2780.  
  2781. CAPI TULO XLIII
  2782. VOCE TEM MEDO?
  2783.  
  2784. De repente, cessando a reflexao, fitou em mim os olhos de ressaca, e perguntou-
  2785. me se tinha medo.
  2786.  
  2787. — Medo?
  2788.  
  2789. — Sim, pergunto se voce tem medo.
  2790.  
  2791. — Medo de que?
  2792.  
  2793. — Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de trabalhar...
  2794.  
  2795. Nao entendi. Se ela tem dito simplesmente: "Vamos embora!" pode ser que eu
  2796. obedecesse ou nao; em todo caso, entenderia. Mas aquela pergunta assim, vaga e
  2797. solta, nao pude atinar o que era.
  2798.  
  2799. — Mas... nao entendo. De apanhar?
  2800.  
  2801. — Sim.
  2802.  
  2803. — Apanhar de quern? Quern e que me da pancada?
  2804.  
  2805. Capitu fez um gesto de impaciencia. Os olhos de ressaca nao se mexiam e
  2806. pareciam crescer. Sem saber de mim, e, nao querendo interroga-la novamente,
  2807. entrei a cogitar donde me viriam pancadas, e por que, e tambem por que e que
  2808. seria preso, e quern e que me havia de prender. Valha-me Deus! vi de imaginagao
  2809. o aljube, uma casa escura e infecta. Tambem vi a presiganga, o quartel dos
  2810. Barbonos e a Casa de Corregao. Todas essas belas instituigoes sociais me
  2811. envolviam no seu misterio, sem que os olhos de ressaca de Capitu deixassem de
  2812. crescer para mim, a tal ponto que as fizeram esquecer de todo. O erro de Capitu
  2813. foi nao deixa-los crescer infinitamente, antes diminuir ate as dimensoes normais, e
  2814. dar-lhes o movimento do costume. Capitu tornou ao que era, disse-me que estava
  2815. brincando, nao precisava afligir-me, e, com um gesto cheio de graga, bateu-me na
  2816. cara, sorrindo, e disse:
  2817.  
  2818. — Medroso!
  2819.  
  2820. — Eu? Mas...
  2821.  
  2822. — Nao e nada, Bentinho. Pois quern e que ha de dar pancada ao prender voce?
  2823. Desculpe, que eu hoje estou meia maluca; quero brincar, e...
  2824.  
  2825. — Nao, Capitu; voce nao esta brincando; nesta ocasiao, nenhum de nos tem
  2826. vontade de brincar.
  2827.  
  2828. — Tem razao, foi so maluquice; ate logo.
  2829.  
  2830. — Como ate logo?
  2831.  
  2832. — Esta-me voltando a dor de cabega; vou botar uma rodela de limao nas fontes.
  2833.  
  2834. Fez o que disse, e atou o lengo outra vez na testa. Em seguida, acompanhou-me
  2835. ao quintal para se despedir de mim; mas, ainda af nos detivemos por alguns
  2836. minutos, sentados sobre a borda do pogo. Ventava, o ceu estava coberto. Capitu
  2837. falou novamente da nossa separagao, como de um fato certo e definitivo, por mais
  2838.  
  2839.  
  2840.  
  2841.  
  2842. que eu, receoso disso mesmo, buscasse agora razoes para anima-la. Capitu,
  2843. quando nao falava, riscava no chao, com urn pedago de taquara, narizes e perfis.
  2844. Desde que se metera a desenhar, era uma das suas diversoes; tudo Ihe servia de
  2845. papel e lapis. Como me lembrassem os nossos nomes abertos por ela no muro,
  2846. quis fazer o mesmo no chao, e pedi-lhe a taquara. Nao me ouviu ou nao me
  2847. atendeu.
  2848.  
  2849.  
  2850.  
  2851. CAPITU LO XLIV
  2852. O PRIMEIRO FILHO
  2853.  
  2854. — De ca, deixe escrever uma coisa.
  2855.  
  2856. Capitu olhou para mim, mas de um modo que me fez lembrar a definigao dejose
  2857. Dias, oblfquo e dissimulado; levantou o olhar, sem levantar os olhos. A voz, um
  2858. tanto sumida, perguntou-me:
  2859.  
  2860. — Diga-me uma coisa, mas fale verdade, nao quero disfarce; ha de responder com
  2861. o coragao na mao.
  2862.  
  2863. — Que e? Diga.
  2864.  
  2865. — Se voce tivesse de escolher entre mim e sua mae, a quern e que escolhia?
  2866.  
  2867. — Eu?
  2868.  
  2869. Fez-me sinal que sim.
  2870.  
  2871. — Eu escolhia... mas para que escolher? Mamae nao e capaz de me perguntar
  2872. isso.
  2873.  
  2874. — Pois sim, mas eu pergunto. Suponha voce que esta no seminario e recebe a
  2875. notfcia de que eu vou morrer...
  2876.  
  2877. — Nao diga isso!
  2878.  
  2879. — ... Ou que me mato de saudades, se voce nao vier logo, e sua mae nao quiser
  2880. que voce venha, diga-me, voce vem?
  2881.  
  2882. — Venho.
  2883.  
  2884. — Contra a ordem de sua mae?
  2885.  
  2886. — Contra a ordem de mamae.
  2887.  
  2888. — Voce deixa seminario, deixa sua mae, deixa tudo, para me ver morrer?
  2889.  
  2890. — Nao fale em morrer, Capitu!
  2891.  
  2892. Capitu teve um risinho descorado e incredulo, e com a taquara escreveu uma
  2893. palavra no chao, inclinei-me e li: mentiroso.
  2894.  
  2895. Era tao estranho tudo aquilo, que nao achei resposta. Nao atinava com a razao do
  2896. escrito, como nao atinava com a do falado. Se me acudisse ali uma injuria grande
  2897. ou pequena, e possfvel que a escrevesse tambem, com a mesma taquara, mas
  2898. nao me lembrava nada. Tinha a cabega vazia. Ao mesmo tempo tomei-me de
  2899. receio de que alguem nos pudesse ouvir ou ler. Quern, se eramos sos? D.
  2900. Fortunata chegara uma vez a porta da casa, mas entrou logo depois. A solidao era
  2901. completa. Lembra-me que umas andorinhas passaram por cima do quintal e foram
  2902.  
  2903.  
  2904.  
  2905.  
  2906. para os lados do morro de Santa Teresa; ninguem mais. Ao longe, vozes vagas e
  2907. confusas, na rua um tropel de bestas, do lado da casa o chilrear dos passarinhos
  2908. do Padua. Nada mais, ou somente este fenomeno curioso, que o nome escrito por
  2909. ela nao so me espiava do chao com gesto escarninho, mas ate me pareceu que
  2910. repercutia no ar. Tive entao uma ideia ruim; disse-lhe que, afinal de contas, a vida
  2911. de padre nao era ma, e eu podia aceita-la sem grande pena. Como desforgo, era
  2912. pueril; mas eu sentia a secreta esperanga de ve-la atirar-se a mim lavada em
  2913. lagrimas. Capitu limitou-se a arregalar muito os olhos, e acabou por dizer:
  2914.  
  2915. — Padre e bom, nao ha duvida; melhor que padre so conego, por causa das meias
  2916. roxas. O roxo e cor muito bonita. Pensando bem, e melhor conego.
  2917.  
  2918. — Mas nao se pode ser conego sem ser primeiramente padre, disse-lhe eu
  2919. mordendo os beigos.
  2920.  
  2921. — Bem; comece pelas meias pretas, depois virao as roxas. O que eu nao quero
  2922. perder e a sua missa nova; avise-me a tempo para fazer um vestido a moda, saia
  2923. balao e babados grandes. . . Mas talvez nesse tempo a moda seja outra. A igreja
  2924. ha de ser grande, Carmo ou Sao Francisco.
  2925.  
  2926. — Ou Candelaria.
  2927.  
  2928. — Candelaria tambem. Qualquer serve, contanto que eu ouga a missa nova. Hei
  2929. de fazer um figurao. Muita gente ha de perguntar: "Quern e aquela moga faceira
  2930. que ali esta com um vestido tao bonito?" — "Aquela e D. Capitolina, uma moga
  2931. que morou na Rua de Mata-cavalos..."
  2932.  
  2933. — Que morou? Voce vai mudar-se?
  2934.  
  2935. — Quern sabe onde e que ha de morar amanha? disse ela com um tom leve de
  2936. melancolia; mas, tornando logo ao sarcasmo: E voce no altar, metido na alva, com
  2937. a capa de ouro por cima, cantando... Pater noster...
  2938.  
  2939. Ah! como eu sinto nao ser um poeta romantico para dizer que isto era um duelo
  2940. de ironias! Contaria os meus botes e os dela, a graga de um e a prontidao de
  2941. outro, e o sangue correndo, e o furor na alma, ate ao meu golpe final que foi este:
  2942.  
  2943. — Pois sim, Capitu, voce ouvira a minha missa nova, mas com uma condigao.
  2944.  
  2945. Ao que ela respondeu:
  2946.  
  2947. — Vossa Reverendfssima pode falar.
  2948.  
  2949. — Promete uma coisa?
  2950.  
  2951.  
  2952.  
  2953. — Que e?
  2954.  
  2955.  
  2956.  
  2957. — Diga se promete.
  2958.  
  2959. — Nao sabendo o que e, nao prometo.
  2960.  
  2961. — A falar verdade sao duas coisas, continuei eu, por haver-me acudido outra
  2962. ideia.
  2963.  
  2964. — Duas? Diga quais sao.
  2965.  
  2966. — A primeira e que so se ha de confessar comigo, para eu Ihe dar a penitencia e a
  2967. absolvigao. A segunda e que...
  2968.  
  2969.  
  2970.  
  2971. — A primeira esta prometida, disse ela vendo-me hesitar, e acrescentou que
  2972.  
  2973.  
  2974.  
  2975.  
  2976. esperava a segunda.
  2977.  
  2978.  
  2979.  
  2980. Palavra que me custou, e antes nao me chegasse a sair da boca; nao ouviria o que
  2981. ouvi, e nao escreveria aqui uma coisa que vai talvez achar incredulos.
  2982.  
  2983. — A segunda... sim... e que... Promete-me que seja eu o padre que case voce?
  2984.  
  2985. — Que me case? disse ela um tanto comovida.
  2986.  
  2987. Logo depois fez descair os labios, e abanou a cabega,
  2988.  
  2989. — Nao, Bentinho, disse, seria esperar muito tempo; voce nao vai ser padre ja
  2990. amanha, leva muitos anos... Olhe, prometo outra coisa; prometo que ha de
  2991. batizar o meu primeiro filho.
  2992.  
  2993.  
  2994.  
  2995. CAPITULO XLV
  2996. ABANE A CABECA, LEI TOR
  2997.  
  2998. Abane a cabega leitor; faga todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora
  2999. este livro, se o tedio ja o nao obrigou a isso antes; tudo e possfvel. Mas, se o nao
  3000. fez antes e so agora, fio que tome a pegar do livro e que o abra na mesma
  3001. pagina, sem crer por isso na veracidade do autor. Todavia, nao ha nada mais
  3002. exato. Foi assim mesmo que Capitu falou, com tais palavras e maneiras. Falou do
  3003. primeiro filho, como se fosse a primeira boneca.
  3004.  
  3005. Quanto ao meu espanto, se tambem foi grande, veio de mistura com uma
  3006. sensagao esquisita. Percorreu-me um fluido. Aquela ameaga de um primeiro filho,
  3007. o primeiro filho de Capitu, o casamento dela com outro, portanto, a separagao
  3008. absoluta, a perda, a aniquilagao, tudo isso produzia um tal efeito, que nao achei
  3009. palavra nem gesto; fiquei estupido. Capitu sorria; eu via o primeiro filho brincando
  3010. no chao...
  3011.  
  3012.  
  3013.  
  3014. CAPITULO XLVI
  3015. AS PAZES
  3016.  
  3017. As pazes fizeram-se como a guerra, depressa. Buscasse eu neste livro a minha
  3018. gloria, e diria que as negociagoes partiram de mim; mas nao, foi ela que as
  3019. iniciou. Alguns instantes depois, como eu estivesse cabisbaixo, ela abaixou
  3020. tambem a cabega, mas voltando os olhos para cima a fim de ver os meus. Fiz-me
  3021. de rogado; depois quis levantar-me para ir embora, mas nem me levantei, nem
  3022. sei se iria. Capitu fitou-me uns olhos tao ternos, e a posigao os fazia tao suplices,
  3023. que me deixei ficar, passei-lhe o brago pela cintura, ela pegou-me na ponta dos
  3024. dedos, e...
  3025.  
  3026. Outra vez D. Fortunata apareceu a porta da casa; nao sei para que, se nem me
  3027. deixou tempo de puxar o brago; desapareceu logo. Podia ser um simples descargo
  3028. de conscience, uma cerimonia, como as rezas de obrigagao, sem devogao, que se
  3029. dizem de tropel; a nao ser que fosse para certificar aos proprios olhos a realidade
  3030. que o coragao Ihe dizia...
  3031.  
  3032. Fosse o que fosse, o meu brago continuou a apertar a cintura da filha, e foi assim
  3033. que nos pacificamos. O bonito e que cada um de nos queria agora as culpas para
  3034. si, e pedfamos reciprocamente perdao. Capitu alegava a insonia, a dor de cabega,
  3035. o abatimento do espfrito, e finalmente "os seus calundus”.Eu, que era muito
  3036. chorao por esse tempo, sentia os olhos molhados... Era amor puro, era efeito dos
  3037. padecimentos da amiguinha, era a ternura da reconciliagao.
  3038.  
  3039.  
  3040.  
  3041.  
  3042. CAPITULO XLVII
  3043. "A SENHORA SAIU”
  3044.  
  3045.  
  3046.  
  3047. — Esta bom, acabou, disse eu finalmente; mas, explique-me so uma coisa, por
  3048. que e que voce me perguntou se eu tinha medo de apanhar?
  3049.  
  3050. — Nao foi por nada, respondeu Capitu, depois de alguma hesitagao... Para que
  3051. bulir nisso?
  3052.  
  3053. — Diga sempre. Foi por causa do seminario?
  3054.  
  3055. — Foi; ouvi dizer que la dao pancada... Nao? Eu tambem nao creio.
  3056.  
  3057. A explicagao agradou-me; nao tinha outra. Se, como penso, Capitu nao disse a
  3058. verdade, forga e reconhecer que nao podia dize-la, e a mentira e dessas criadas
  3059. que se dao pressa em responder as visitas que "a senhora saiu", quando a
  3060. senhora nao quer falar a ninguem. Fla nessa cumplicidade um gosto particular; o
  3061. pecado em comum iguala por instantes a condigao das pessoas, nao contando o
  3062. prazer que da a cara das visitas enganadas, e as costas com que elas descem... A
  3063. verdade nao saiu, ficou em casa, no coragao de Capitu, cochilando o seu
  3064. arrependimento. E eu nao desci triste nem zangado; achei a criada galante,
  3065. apetecfvel, melhor que a ama.
  3066.  
  3067. As andorinhas vinham agora em sentido contrario, ou nao seriam as mesmas. Nos
  3068. e que eramos os mesmos; ali ficamos, somando as nossas ilusoes, os nossos
  3069. temores, comegando ja a somar as nossas saudades.
  3070.  
  3071.  
  3072.  
  3073. CAPITULO XLVII I
  3074. J URAMENTO DO POQO
  3075.  
  3076.  
  3077.  
  3078. — Nao! exclamei de repente.
  3079.  
  3080.  
  3081.  
  3082. — Nao que?
  3083.  
  3084.  
  3085.  
  3086. Tinha havido alguns minutos de silencio, durante os quais refleti muito e acabei
  3087. por uma ideia; o tom da exclamagao, porem, foi tao alto que espantou a minha
  3088. vizinha.
  3089.  
  3090. — Nao ha de ser assim, continuei. Dizem que nao estamos em idade de casar, que
  3091. somos criangas, criangolas, — ja ouvi dizer criangolas. Bern; mas dois ou tres anos
  3092. passam depressa. Voce jura uma coisa? J ura que so ha de casar comigo?
  3093.  
  3094. Capitu nao hesitou em jurar, e ate Ihe vi as faces vermelhas de prazer. Jurou duas
  3095. vezes e uma terceira:
  3096.  
  3097. — Ainda que voce case com outra, cumprirei o meu juramento, nao casando
  3098. nunca.
  3099.  
  3100. — Que eu case com outra?
  3101.  
  3102. — Tudo pode ser, Bentinho. Voce pode achar outra moga que Ihe queira,
  3103. apaixonar-se por ela e casar. Quern sou eu para voce lembrar-se de mim nessa
  3104. ocasiao?
  3105.  
  3106. — Mas eu tambem juro! Juro, Capitu, juro por Deus Nosso Senhor que so me
  3107.  
  3108.  
  3109.  
  3110.  
  3111. casarei com voce. Basta isto?
  3112.  
  3113.  
  3114.  
  3115. — Devia bastar, disse ela; eu nao me atrevo a pedir mais. Sim, voce jura... Mas
  3116. juremos por outro modo; juremos que nos havemos de casar um com outro, haja
  3117. o que houver.
  3118.  
  3119. Compreendeis a diferenga; era mais que a eleigao do conjuge, era a afirmagao do
  3120. matrimonio. A cabega da minha amiga sabia pensar claro e depressa. Realmente,
  3121. a formula anterior era limitada, apenas exclusiva. Podfamos acabar solteiroes,
  3122. como o sol e a lua, sem mentir ao juramento do pogo. Esta formula era melhor, e
  3123. tinha a vantagem de me fortalecer o coragao contra a investidura eclesiastica.
  3124. Juramos pela segunda formula, e ficamos tao felizes que todo receio de perigo
  3125. desapareceu. Eramos religiosos, tfnhamos o ceu por testemunha. Eu nem ja temia
  3126. o seminario.
  3127.  
  3128. — Se teimarem muito, irei; mas fago de conta que e um colegio qualquer; nao
  3129. tomo ordens.
  3130.  
  3131. Capitu temia a nossa separagao, mas acabou aceitando este alvitre, que era o
  3132. melhor. Nao afligfamos minha mae, e o tempo correria ate o ponto em que o
  3133. casamento pudesse fazer-se. Ao contrario, qualquer resistencia ao seminario
  3134. confirmaria a denuncia dejose Dias. Esta reflexao nao foi minha, mas dela.
  3135.  
  3136.  
  3137.  
  3138. CAPITU LO XLI X
  3139. UMA VELA AOS SABADOS
  3140.  
  3141. Eis aqui como, apos tantas canseiras, tocavamos o porto a que nos devfamos ter
  3142. abrigado logo. Nao nos censures, piloto de ma morte, nao se navegam coragoes
  3143. como os outros mares deste mundo. Estavamos contentes, entramos a falar do
  3144. futuro. Eu prometia a minha esposa uma vida sossegada e bela, na roga ou fora
  3145. da cidade. Vinamos aqui uma vez por ano. Se fosse em arrabalde, seria longe,
  3146. onde ninguem nos fosse aborrecer. A casa, na minha opiniao, nao devia ser
  3147. grande nem pequena, um meio-termo; plantei-lhe flores, escolhi moveis, uma
  3148. sege e um oratorio. Sim, havfamos de ter um oratorio bonito, alto, de jacaranda,
  3149. com a imagem de Nossa Senhora da Conceigao. Demorei-me mais nisto que no
  3150. resto, em parte porque eramos religiosos, em parte para compensar a batina que
  3151. eu ia deitar as urtigas; mas ainda restava uma parte que atribuo ao intuito secreto
  3152. e inconsciente de captar a protegao do ceu. Havfamos de acender uma vela aos
  3153. sabados...
  3154.  
  3155.  
  3156.  
  3157. CAPI TU LO L
  3158. UM MEIO-TERMO
  3159.  
  3160. Meses depois fui para o seminario de Sao Jose. Se eu pudesse contar as lagrimas
  3161. que chorei na vespera e na manha, somaria mais que todas as vertidas desde
  3162. Adao e Eva. Ha nisto alguma exageragao; mas e bom ser enfatico, uma ou outra
  3163. vez, para compensar este escrupulo de exatidao que me aflige. Entretanto, se eu
  3164. me ativer so a lembranga da sensagao, nao fico longe da verdade; aos quinze
  3165. anos, tudo e infinito. Realmente, por mais preparado que estivesse, padecia
  3166. muito. Minha mae tambem padeceu, mas sofria com alma e coragao; demais, o
  3167. Padre Cabral achara um meio-termo: experimentar-me a vocagao; se no fim de
  3168. dois anos, eu nao revelasse vocagao eclesiastica, seguiria outra carreira.
  3169.  
  3170. — As promessas devem ser cumpridas conforme Deus quer. Suponha que Nosso
  3171. Senhor nega disposigao a seu filho, e que o costume do seminario nao Ihe da o
  3172. gosto que me concedeu a mim, e que a vontade divina e outra. A senhora nao
  3173.  
  3174.  
  3175.  
  3176.  
  3177. podia por em seu filho, antes de nascido, uma vocagao que Nosso Senhor Ihe
  3178. recusou...
  3179.  
  3180. Era uma concessao do padre. Dava a minha mae um perdao antecipado, fazendo
  3181. vir do credor a relevagao da dfvida. Os olhos dela brilharam, mas a boca disse que
  3182. nao. Jose Dias, nao tendo alcangado ir comigo para a Europa, agarrou-se ao mais
  3183. proximo, e apoiou o "alvitre do Sr. protonotario"; so Ihe parecia que um ano era
  3184. bastante.
  3185.  
  3186. — Estou certo, disse ele, piscando-me o olho, que dentro de um ano a vocagao
  3187. eclesiastica do nosso Bentinho se manifesta clara e decisiva. Ha de dar um padre
  3188. de mao-cheia. Tambem, se nao vier em um ano...
  3189.  
  3190. E a mim, mais tarde, em particular:
  3191.  
  3192. — Va por um ano; um ano passa depressa. Se nao sentir gosto nenhum, e que
  3193. Deus nao quer, como diz o padre, e nesse caso, meu amiguinho, o melhor remedio
  3194. e a Europa.
  3195.  
  3196. Capitu deu-me igual conselho, quando minha mae Ihe anunciou a minha ida
  3197. definitiva para o seminario:
  3198.  
  3199. — Minha filha, voce vai perder o seu companheiro de crianga...
  3200.  
  3201. Fez-lhe tao bem este tratamento de filha (era a primeira vez que minha mae Iho
  3202. dava), que nem teve tempo de ficar triste; beijou-lhe a mao, e disse-lhe que ja
  3203. sabia disso por mim mesmo. Em particular animou-me a suportar tudo com
  3204. paciencia; no fim de um ano as coisas estariam mudadas, e um ano andava
  3205. depressa. Nao foi ainda a nossa despedida; esta fez-se na vespera, por um modo
  3206. que pede capftulo especial. O que unicamente digo aqui e que, ao passo que nos
  3207. prendfamos um ao outro, ela ia prendendo minha mae, fez-se mais assfdua e
  3208. terna, vivia ao pe dela, com os olhos nela. Minha mae era de natural simpatico, e
  3209. igualmente sensfvel; tanto se dofa como se aprazia de qualquer coisa. Entrou a
  3210. achar em Capitu uma porgao de gragas novas, de dotes finos e raros; deu-lhe um
  3211. anel dos seus e algumas galanterias. Nao consentiu em fotografar-se, como a
  3212. pequena Ihe pedia, para Ihe dar um retrato; mas tinha uma miniatura, feita aos
  3213. vinte e cinco anos, e, depois de algumas hesitagoes, resolveu dar-lha. Os olhos de
  3214. Capitu, quando recebeu o mimo, nao se descrevem; nao eram oblfquos, nem de
  3215. ressaca, eram direitos, claros, lucidos. Beijou o retrato com paixao, minha mae
  3216. fez-lhe a mesma coisa a ela. Tudo isto me lembra a nossa despedida.
  3217.  
  3218.  
  3219.  
  3220. CAPITULO LI
  3221. ENTRE LUZ E FUSCO
  3222.  
  3223. Entre luz e fusco, tudo ha de ser breve como esse instante. Nem durou muito a
  3224. nossa despedida, foi o mais que pode, em casa dela, na sala de visitas, antes do
  3225. acender das velas; af e que nos despedimos de uma vez. Juramos novamente que
  3226. havfamos de casar um com o outro, e nao foi so o aperto de mao que selou o
  3227. contrato, como no quintal, foi a conjungao das nossas bocas amorosas... Talvez
  3228. risque isto na impressao, se ate la nao pensar de outra maneira; se pensar, fica. E
  3229. desde ja fica, porque, em verdade, e a nossa defesa. O que o mandamento divino
  3230. quer e que nao juremos em vao pelo santo nome de Deus. Eu nao ia mentir ao
  3231. seminario, uma vez que levava um contrato feito no proprio cartorio do ceu.
  3232. Quanto ao selo, Deus, como fez as maos limpas, assim fez os labios limpos, e a
  3233. malfcia esta antes na tua cabega perversa que na daquele casal de adolescentes...
  3234. Oh! minha doce companheira da meninice, eu era puro, e puro fiquei, e puro
  3235. entrei na aula de Saojose, a buscar de aparencia a investidura sacerdotal, e antes
  3236. dela a vocagao. Mas a vocagao eras tu, a investidura eras tu.
  3237.  
  3238.  
  3239.  
  3240.  
  3241. CAPITULO LI I
  3242. O VELHO PADUA
  3243.  
  3244.  
  3245.  
  3246. Ja agora conto tambem os adeuses do velho Padua. Logo cedo veio a nossa casa.
  3247. Minha mae disse-lhe que fosse falar-me ao quarto.
  3248.  
  3249. — Da licenga? perguntou metendo a cabega pela porta.
  3250.  
  3251. Fui apertar-lhe a mao; ele abragou-me com ternura.
  3252.  
  3253. — Seja feliz! disse-me. A mim e a toda a minha gente creia que ficam muitas
  3254. saudades. Todos nos estimamos muito ao senhor, como merece. Se Ihe disserem
  3255. outra coisa, nao acredite. Sao intrigas. Tambem eu, quando me casei, fui vftima
  3256. de intrigas; desfizeram-se. Deus e grande e descobre a verdade. Se algum dia
  3257. perder sua mae e seu tio, — coisa que eu, por esta luz que me alumia, nao desejo,
  3258. porque sao boas pessoas, excelentes pessoas, e eu sou grato as finezas
  3259. recebidas... Nao, eu nao sou como outros, certos parasitas, vindos de fora para
  3260. desuniao das famflias, aduladores baixos, nao; eu sou de outra especie; nao vivo
  3261. papando os jantares nem morando em casa alheia... Enfim, sao os mais felizes!
  3262.  
  3263. — Por que falara assim? pensei. Naturalmente sabe que J ose Dias diz mal dele."
  3264.  
  3265. — Mas, como ia dizendo, se algum dia perder os seus parentes, pode contar com a
  3266. nossa companhia. Nao e suficiente em importancia, mas a afeigao e imensa, creia.
  3267. Padre que seja, a nossa casa esta as suas ordens. Quero so que me nao esquega;
  3268. nao esquega o velho Padua...
  3269.  
  3270. Suspirou e continuou:
  3271.  
  3272. — Nao esquega o seu velho Padua, e, se tern algum trapinho que me deixe em
  3273. lembranga, um caderno latino, qualquer coisa, um botao de colete, coisa que ja
  3274. Ihe nao preste para nada. O valor e a lembranga.
  3275.  
  3276. Tive um sobressalto. Havia embrulhado em um papel um cacho dos meus cabelos,
  3277. tao grandes e tao bonitos, cortados na vespera. A intengao era leva-los a Capitu,
  3278. ao sair; mas tive ideia de da-lo ao pai, a filha saberia toma-lo e guarda-lo. Peguei
  3279. do embrulho e dei-lho.
  3280.  
  3281. — Aqui esta, guarde.
  3282.  
  3283. — Um cachinho dos seus cabelos! exclamou Padua abrindo e fechando o
  3284. embrulho. Oh! obrigado! obrigado por mim e pela minha gente! Vou da-lo a velha,
  3285. para guarda-lo, ou a pequena, que e mais cuidadosa que a mae. Que lindos que
  3286. sao! Como e que se corta uma beleza destas? De ca um abrago! outro! mais outro!
  3287. adeus!
  3288.  
  3289. Tinha os olhos umidos deveras; levava a cara dos desenganados, como quern
  3290. empregou em um so bilhete todas as suas economias de esperangas, e ve sair
  3291. branco o maldito numero, — um numero tao bonito!
  3292.  
  3293.  
  3294.  
  3295. CAPITULO LIN
  3296. A CAMINHO!
  3297.  
  3298.  
  3299.  
  3300. Fui para o seminario. Poupa-me as outras despedidas. Minha mae apertava-me ao
  3301. peito. Prima Justina suspirava. Talvez chorasse mal ou nada. Ha pessoas a quern
  3302.  
  3303.  
  3304.  
  3305.  
  3306. as lagrimas nao acodem logo nem nunca; diz-se que padecem mais que as outras.
  3307. Prima Justina disfargava naturalmente os seus padecimentos fntimos, emendando
  3308. os descuidos de minha mae, fazendo-me recomendagoes, dando ordens. Tio
  3309. Cosme, quando eu Ihe beijei a mao em despedida, disse-me rindo:
  3310.  
  3311. — Anda la, rapaz, volta-me papa!
  3312.  
  3313. Jose Dias, composto e grave, nao dizia nada a princfpio; tfnhamos falado na
  3314. vespera, no quarto dele, onde fui ver se era ainda possfvel evitar o seminario. Ja
  3315. nao era, mas deu-me esperangas e principalmente animou-me muito. Antes de um
  3316. ano estarfamos a bordo. Como eu achasse muito breve, explicou-se.
  3317.  
  3318. — Dizem que nao e bom tempo de atravessar o Atlantico, vou indagar; se nao for,
  3319. iremos em margo ou abril.
  3320.  
  3321. — Posso estudar Medicina aqui mesmo.
  3322.  
  3323. Jose Dias correu os dedos pelos suspensorios com um gesto de impaciencia,
  3324. apertou os beigos, ate que formalmente rejeitou o alvitre.
  3325.  
  3326. — Nao duvidaria aprovar a ideia, disse ele, se na Escola de Medicina nao
  3327. ensinassem, exclusivamente, a podridao alopata. A alopatia e o erro dos seculos, e
  3328. vai morrer; e o assassinato, e a mentira, e a ilusao. Se Ihe disserem que pode
  3329. aprender na Escola de Medicina aquela parte da ciencia comum a todos os
  3330. sistemas, e verdade; a alopatia e erro na terapeutica. Fisiologia, anatomia,
  3331. patologia, nao sao alopaticas nem homeopaticas, mas e melhor aprender logo
  3332. tudo de uma vez, por livros e por lingua de homens cultores da verdade...
  3333.  
  3334. Assim falara na vespera e no quarto. Agora nao dizia nada, ou proferia algum
  3335. aforismo sobre a religiao e a famflia; lembro-me deste: "Dividi-lo com Deus e
  3336. ainda possuf-lo". Quando minha mae me deu o ultimo beijo: "Quadra
  3337.  
  3338. amantfssimo!" suspirou ele. Era manha de um lindo dia. Os moleques
  3339. cochichavam; as escravas tomavam a bengao: "Bengao, nho Bentinho! nao se
  3340. esquega de sua Joana! Sua Miquelina fica rezando por voce!" Na rua, Jose Dias
  3341. insistiu nas esperangas:
  3342.  
  3343. — Aguente um ano; ate la tudo estara arranjado.
  3344.  
  3345.  
  3346.  
  3347. CAPI TULO LIV
  3348.  
  3349. PANEGIRICO DE SANTA MONICA
  3350.  
  3351. No seminario... Ah! nao vou contar o seminario, nem me bastaria a isso um
  3352. capftulo. Nao, senhor meu amigo; algum dia, sim, e possfvel que componha um
  3353. abreviado do que ali vi e vivi, das pessoas que tratei, dos costumes, de todo o
  3354. resto. Esta sarna de escrever, quando pega aos cinquenta anos, nao despega
  3355. mais. Na mocidade e possfvel curar-se um homem dela; e, sem ir mais longe, aqui
  3356. mesmo no seminario tive um companheiro que compos versos, a maneira dos de
  3357. Junqueira Freire, cujo livro de frade-poeta era recente. Ordenou-se; anos depois
  3358. encontrei-o no coro de Sao Pedro e pedi-lhe que me mostrasse os versos novos.
  3359.  
  3360. — Que versos? perguntou meio espantado.
  3361.  
  3362. — Os seus. Pois nao se lembra que no seminario...
  3363.  
  3364. — Ah! sorriu ele.
  3365.  
  3366.  
  3367.  
  3368. Sorriu, e continuando a procurar num livro aberto a hora em que tinha de cantar
  3369. no dia seguinte, confessou-me que nao fizera mais versos depois de ordenado.
  3370.  
  3371.  
  3372.  
  3373.  
  3374. Foram cocegas da mocidade; cogou-se, passou, estava bom. E falou-me em prosa
  3375. de uma infinidade de coisas do dia, a vida cara, um sermao do Padre X..., uma
  3376. vigairaria mineira...
  3377.  
  3378. Contrario a isso foi um seminarista que nao seguiu a carreira. Chamava-se... Nao
  3379. e preciso dizer o nome; baste o caso. Tinha composto um Panegfrico de Santa
  3380. Monica, elogiado por algumas pessoas e entao lido entre os seminaristas. Alcangou
  3381. licenga de imprimi-lo, e dedicou-o a Santo Agostinho. Tudo isso e historia velha; o
  3382. que e mais mogo e que um dia, em 1882 , indo ver certo negocio em repartigao de
  3383. marinha, ali dei com este meu colega, feito chefe de uma segao administrativa.
  3384. Deixara seminario, deixara letras, casara e esquecera tudo, menos o Panegfrico de
  3385. Santa Monica, umas vinte e nove paginas, que veio distribuindo pela vida fora.
  3386. Como eu precisasse de algumas informagoes, fui pedir-lhas, e seria impossfvel
  3387. achar melhor nem mais pronta vontade; deu-me tudo, claro, certo, copioso.
  3388. Naturalmente conversamos do passado, memorias pessoais, casos de estudo,
  3389. incidentes de nada, um livro, um verbo, um mote, toda a velha palhada saiu ca
  3390. fora, e rimos juntos, e suspiramos de companhia. Vivemos algum tempo do nosso
  3391. velho seminario. Ou porque eram dele, ou porque eramos entao mogos, as
  3392. recordagoes traziam tal poder de felicidade que, se alguma sombra contraria
  3393. houve entao, nao apareceu agora. Ele confessou-me que perdera de vista todos os
  3394. companheiros do seminario.
  3395.  
  3396. — Tambem eu, quase todos; uma vez ordenados, voltaram naturalmente as suas
  3397. provfncias, e os daqui tomaram vigairarias fora.
  3398.  
  3399. — Bom tempo! suspirou ele.
  3400.  
  3401. E, apos alguma reflexao, fitando em mim uns olhos murchos e teimosos,
  3402. perguntou-me:
  3403.  
  3404. — Conservou o meu Panegfrico?
  3405.  
  3406. Nao achei nada que dizer; tentei mover os beigos, mas nao tinha palavra; afinal,
  3407. perguntei:
  3408.  
  3409. — Panegfrico? Que panegfrico?
  3410.  
  3411. — O meu Panegfrico de Santa Monica.
  3412.  
  3413. Nao me lembrou logo, mas a explicagao devia bastar; e depois de alguns instantes
  3414. de pesquisa mental, respondi que por muito tempo o conservara, mas as
  3415. mudangas, as viagens...
  3416.  
  3417. — Hei de levar-lhe um exemplar.
  3418.  
  3419. Antes de vinte e quatro horas estava em minha casa, com o folheto, um velho
  3420. folheto de vinte e seis anos, encardido, manchado do tempo, mas sem lacuna,
  3421. com uma dedicatoria manuscrita e respeitosa.
  3422.  
  3423. — E o penultimo exemplar, disse-me; agora so me resta um, que nao posso dar a
  3424. ninguem.
  3425.  
  3426. E como me visse folhear o opusculo:
  3427.  
  3428. — Veja se Ihe lembra algum pedago, disse-me.
  3429.  
  3430. Vinte e seis anos de intervalo fazem morrer amizades mais estreitas e assfduas,
  3431. mas era cortesia, era quase caridade recordar alguma lauda; li uma delas,
  3432. acentuando certas frases para Ihe dar a impressao de que achavam eco em minha
  3433. memoria. Concordou que fossem belas, mas preferia outras, e apontou-as.
  3434.  
  3435.  
  3436.  
  3437.  
  3438. — Recorda-se bem?
  3439.  
  3440.  
  3441.  
  3442. — Perfeitamente. Panegfrico de Santa Monica! Como isto me faz remontar os anos
  3443. da minha mocidade! Nunca me esqueceu o seminario, creia. Os anos passam, os
  3444. acontecimentos vem uns sobre outros, e as sensagoes tambem, e vieram
  3445. amizades novas, que tambem se foram depois, como e lei da vida... Pois, meu
  3446. caro colega, nada fez apagar aquele tempo da nossa convivencia, os padres, as
  3447. ligoes, os recreios... os nossos recreios, lembra-se? o Padre Lopes, oh! o Padre
  3448. Lopes...
  3449.  
  3450. Ele, com os olhos no ar, devia estar ouvindo, e naturalmente ouvia, mas so me
  3451. disse uma palavra, e ainda assim depois de algum tempo de silencio, recolhendo
  3452. os olhos e um suspiro!
  3453.  
  3454. — Tern agradado muito este meu Panegfrico!
  3455.  
  3456.  
  3457.  
  3458. CAPI TULO LV
  3459. UM SONETO
  3460.  
  3461. Dita a palavra, apertou-me as maos com as forgas todas de um vasto
  3462. agradecimento, despediu-se e saiu. Fiquei so com o Panegfrico, e o que as folhas
  3463. dele me lembraram foi tal que merece um capftulo ou mais. Antes, porem, e
  3464. porque tambem eu tive o meu Panegfrico, contarei a historia de um soneto que
  3465. nunca fiz. Era no tempo do seminario, e o primeiro verso e o que ides ler:
  3466.  
  3467. Oh! flor do ceu! oh! flor Candida e pura!
  3468.  
  3469. Como e por que me saiu este verso da cabega, nao sei; saiu assim, estando eu na
  3470. cama, como uma exclamagao solta, e, ao notar que tinha a medida de verso,
  3471. pensei em compor com ele alguma coisa, um soneto. A insonia, musa de olhos
  3472. arregalados, nao me deixou dormir uma longa hora ou duas; as cocegas pediam-
  3473. me unhas, e eu cogava-me com alma. Nao escolhi logo, logo, o soneto; a princfpio
  3474. cuidei de outra forma, e tanto de rima como de verso solto, mas afinal ative-me
  3475. ao soneto. Era um poema breve e prestadio. Quanto a ideia, o primeiro verso nao
  3476. era ainda uma ideia, era uma exclamagao; a ideia viria depois. Assim na cama,
  3477. envolvido no lengol, tratei de poetar. Tinha o alvorogo da mae que sente o filho, e
  3478. o primeiro filho. la ser poeta, ia competir com aquele monge da Bahia, pouco
  3479. antes revelado, e entao na moda; eu, seminarista, diria em verso as minhas
  3480. tristezas, como ele dissera as suas no claustro. Decorei bem o verso, e repetia-o
  3481. em voz baixa, aos lengois; francamente, achava-o bonito, e ainda agora nao me
  3482. parece mau:
  3483.  
  3484. Oh! flor do ceu! oh! flor Candida e pura!
  3485.  
  3486. Quern era a flor? Capitu, naturalmente; mas podia ser a virtude, a poesia, a
  3487. religiao, qualquer outro conceito a que coubesse a metafora da flor, e flor do ceu.
  3488. Aguardei o resto, recitando sempre o verso, e deitado ora sobre o lado direito, ora
  3489. sobre o esquerdo; afinal deixei-me estar de costas, com os olhos no teto, mas
  3490. nem assim vinha mais nada. Entao adverti que os sonetos mais gabados eram os
  3491. que conclufam com chave de ouro, isto e, um desses versos capitais no sentido e
  3492. na forma. Pensei em forjar uma de tais chaves, considerando que o verso final,
  3493. saindo cronologicamente dos treze anteriores, com dificuldade traria a perfeigao
  3494. louvada; imaginei que tais chaves eram fundidas antes da fechadura. Assim foi
  3495. que me determinei a compor o ultimo verso do soneto e, depois de muito suar,
  3496. saiu este:
  3497.  
  3498.  
  3499.  
  3500. Perde-se a vida, ganha-se a batalha!
  3501.  
  3502.  
  3503.  
  3504.  
  3505. Sem vaidade, e falando como se fosse de outro, era um verso magmfico. Sonoro,
  3506. nao ha duvida. E tinha um pensamento, a vitoria ganha a custa da propria vida,
  3507. pensamento alevantado e nobre. Que nao fosse novidade, e possfvel, mas tambem
  3508. nao era vulgar; e ainda agora nao explico por que via misteriosa entrou numa
  3509. cabega de tao poucos anos. Naquela ocasiao achei-o sublime. Recitei uma e
  3510. muitas vezes a chave de ouro; depois repeti os dois versos seguidamente, e
  3511. dispus-me a liga-los pelos doze centrais. A ideia agora, a vista do ultimo verso,
  3512. pareceu-me melhor nao ser Capitu; seria a justiga. Era mais proprio dizer que, na
  3513. pugna pela justiga, perder-se-ia acaso a vida, mas a batalha ficava ganha.
  3514. Tambem me ocorreu aceitar a batalha, no sentido natural, e fazer dela a luta pela
  3515. patria, por exemplo; nesse caso a flor do ceu seria a liberdade. Esta acepgao,
  3516. porem, sendo o poeta um seminarista, podia nao caber tanto como a primeira, e
  3517. gastei alguns minutos em escolher uma ou outra. Achei melhor a justiga, mas
  3518. afinal aceitei definitivamente uma ideia nova, a caridade, e recitei os dois versos,
  3519. cada um a seu modo, um languidamente:
  3520.  
  3521. Oh! flor do ceu! oh! flor Candida e pura!
  3522. e o outro com grande brio:
  3523.  
  3524. Perde-se a vida, ganha-se a batalha!
  3525.  
  3526. A sensagao que tive e que ia sair um soneto perfeito. Comegar bem e acabar bem
  3527. nao era pouco. Para me dar um banho de inspiragao, evoquei alguns sonetos
  3528. celebres, e notei que os mais deles eram facflimos; os versos safam uns dos
  3529. outros, com a ideia em si, tao naturalmente, que se nao acabava de crer se ela e
  3530. que os fizera, se eles e que a suscitavam. Entao tornava ao meu soneto, e
  3531. novamente repetia o primeiro verso e esperava o segundo; o segundo nao vinha,
  3532. nem terceiro, nem quarto; nao vinha nenhum. Tive alguns fmpetos de raiva, e
  3533. mais de uma vez pensei em sair da cama e ir ver tinta e papel; pode ser que,
  3534. escrevendo, os versos acudissem, mas...
  3535.  
  3536. Cansado de esperar, lembrou-me alterar o sentido do ultimo verso, com a simples
  3537. transposigao de duas palavras, assim:
  3538.  
  3539. Ganha-se a vida, perde-se a batalha!
  3540.  
  3541. O sentido vinha a ser justamente o contrario, mas talvez isso mesmo trouxesse a
  3542. inspiragao. Neste caso, era uma ironia: nao exercendo a caridade, pode-se ganhar
  3543. a vida, mas perde-se a batalha do Ceu. Criei forgas novas e esperei. Nao tinha
  3544. janela; se tivesse, e possfvel que fosse pedir uma ideia a noite. E quern sabe se os
  3545. vaga-lumes, luzindo ca embaixo, nao seriam para mim como rimas das estrelas, e
  3546. esta viva metafora nao me daria os versos esquivos, com os seus consoantes e
  3547. sentidos proprios?
  3548.  
  3549. Trabalhei em vao, busquei, catei, esperei, nao vieram os versos. Pelo tempo
  3550. adiante escrevi algumas paginas em prosa, e agora estou compondo esta
  3551. narragao, nao achando maior dificuldade que escrever, bem ou mal. Pois,
  3552. senhores, nada me consola daquele soneto que nao fiz. Mas, como eu creio que os
  3553. sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, e as demais obras de arte, por
  3554. uma razao de ordem metaffsica, dou esses dois versos ao primeiro desocupado
  3555. que os quiser. Ao domingo, ou se estiver chovendo, ou na roga, em qualquer
  3556. ocasiao de lazer, pode tentar ver se o soneto sai. Tudo e dar-lhe uma ideia e
  3557. encher o centro que falta.
  3558.  
  3559.  
  3560.  
  3561. CAPI TU LO LVI
  3562. UM SEMINARISTA
  3563.  
  3564.  
  3565.  
  3566.  
  3567. Tudo me ia repetindo o diabo do opusculo, com as suas letras velhas e citagoes
  3568. latinas. Vi sair daquelas folhas muitos perfis de seminaristas, os irmaos
  3569. Albuquerques, por exemplo, um dos quais e conego na Bahia, enquanto o outro
  3570. seguiu Medicina e dizem haver descoberto um especffico contra a febre amarela.
  3571. Vi o Bastos, um magricela, que esta de vigario em Meia-Ponte, se nao morreu ja;
  3572. Luis Borges, apesar de padre, fez-se politico, e acabou senador do imperio...
  3573. Quantas outras caras me fitavam das paginas frias do Panegfrico! Nao, nao eram
  3574. frias; traziam o calor da juventude nascente, o calor do passado, o meu proprio
  3575. calor. Queria le-las outra vez, e lograva entender algum texto, tao recente como
  3576. no primeiro dia, ainda que mais breve. Era um encanto ir por ele; as vezes,
  3577. inconscientemente, dobrava a folha como se estivesse lendo de verdade; creio que
  3578. era quando os olhos me cafam na palavra do fim da pagina, e a mao, acostumada
  3579. a ajuda-los, fazia o seu offcio...
  3580.  
  3581. Eis aqui outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Sousa Escobar. Era um rapaz
  3582. esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as maos, como os pes, como a
  3583. fala, como tudo. Quern nao estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se
  3584. mal, nao sabendo por onde Ihe pegasse. Nao fitava de rosto, nao falava claro nem
  3585. seguido; as maos nao apertavam as outras, nem se deixavam apertar delas,
  3586. porque os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava te-los entre os
  3587. seus, ja nao tinha nada. O mesmo digo dos pes, que tao depressa estavam aqui
  3588. como la. Esta dificuldade em pousar foi a maior obstaculo que achou para tomar
  3589. os costumes do seminario. O sorriso era instantaneo, mas tambem ria folgado e
  3590. largo. Uma coisa nao seria tao fugitiva como o resto, a reflexao; famos dar com
  3591. ele, muita vez, olhos enfiados em si, cogitando. Respondia-nos sempre que
  3592. meditava algum ponto espiritual, ou entao que recordava a ligao da vespera.
  3593. Quando ele entrou na minha intimidade pedia-me frequentemente explicagoes e
  3594. repetigoes miudas, e tinha memoria para guarda-las todas, ate as palavras. Talvez
  3595. esta faculdade prejudicasse alguma outra.
  3596.  
  3597. Era mais velho que eu tres anos, filho de um advogado de Curitiba, aparentado
  3598. com um comerciante do Rio de Janeiro, que servia de correspondente ao pai. Este
  3599. era homem de fortes sentimentos catolicos. Escobar tinha uma irma, que era um
  3600. anjo, dizia ele.
  3601.  
  3602. — Nao e so na beleza que e um anjo, mas tambem na bondade. Nao imagina que
  3603. boa criatura que ela e. Escreve-me muita vez, hei de mostrar-lhe as cartas dela.
  3604.  
  3605. De fato, eram simples e afetuosas, cheias de carfcias e conselhos. Escobar
  3606. contava-me historias dela, interessantes, todas as quais vinham a dar na bondade
  3607. e no espfrito daquela criatura; tais eram que me fariam capaz de acabar casando
  3608. com ela, se nao fosse Capitu. Morreu pouco depois. Eu, seduzido pelas palavras
  3609. dele, estive quase a contar-lhe logo, logo, a minha historia. A princfpio fui tfmido,
  3610. mas ele fez-se entrado na minha confianga. Aqueles modos fugitivos cessavam
  3611. quando ele queria, e o meio e o tempo os fizeram mais pousados. Escobar veio
  3612. abrindo a alma toda, desde a porta da rua ate ao fundo do quintal. A alma da
  3613. gente, como sabes, e uma casa assim disposta, nao raro com janelas para todos
  3614. os lados, muita luz e ar puro. Tambem as ha fechadas e escuras, sem janelas, ou
  3615. com poucas e gradeadas, a semelhanga de conventos e prisoes. Outrossim,
  3616. capelas e bazares, simples alpendres ou pagos suntuosos.
  3617.  
  3618. Nao sei o que era a minha. Eu nao era ainda casmurro, nem dom casmurro; o
  3619. receio e que me tolhia a franqueza, mas como as portas nao tinham chaves nem
  3620. fechaduras, bastava empurra-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Ca o achei
  3621. dentro, ca ficou, ate que...
  3622.  
  3623.  
  3624.  
  3625. CAPITULO LVII
  3626.  
  3627.  
  3628.  
  3629.  
  3630. DE PREPARAQAO
  3631.  
  3632.  
  3633.  
  3634. Ah! mas nao eram so os seminaristas que me iam saindo daquelas folhas velhas
  3635. do Panegfrico. Elas me trouxeram tambem sensagoes passadas, tais e tantas que
  3636. eu nao poderia dize-las todas, sem tirar espago ao resto. Uma dessas, e das
  3637. primeiras, quisera conta-la aqui em latim. Nao e que a materia nao ache termos
  3638. honestos em nossa lingua, que e casta para os castos, como pode ser torpe para
  3639. os torpes. Sim, leitora castfssima, como diria o meu finado Jose Dias, podeis ler o
  3640. capftulo ate ao fim, sem susto nem vexame.
  3641.  
  3642. Ja agora meto a historia em outro capftulo. Por mais composto que este me saia,
  3643. ha sempre no assunto alguma coisa menos austera, que pede umas linhas de
  3644. repouso e preparagao. Sirva este de preparagao. E isto e muito, leitor meu amigo;
  3645. o coragao, quando examina a possibilidade do que ha de vir, as proporgoes dos
  3646. acontecimentos e a copia deles, fica robusto e disposto, e o mal e menor mal.
  3647. Tambem, se nao fica entao, nao fica nunca. E aqui veras tal ou qual esperteza
  3648. minha; porquanto, ao ler o que vais ler, e provavel que o aches menos cru do que
  3649. esperavas.
  3650.  
  3651.  
  3652.  
  3653. CAPITULO LVIII
  3654. O TRATADO
  3655.  
  3656. Foi o caso que, uma segunda-feira, voltando eu para o seminario, vi cair na rua
  3657. uma senhora. O meu primeiro gesto, em tal caso, devia ser de pena ou de riso;
  3658. nao foi uma nem outra coisa, porquanto (e e isto que eu quisera dizer em latim),
  3659. porquanto a senhora tinha as meias muito lavadas, e nao as sujou, levava ligas de
  3660. seda, e nao as perdeu. Varias pessoas acudiram, mas nao tiveram tempo de a
  3661. levantar; ela ergueu-se muito vexada, sacudiu-se, agradeceu, e enfiou pela rua
  3662. proxima.
  3663.  
  3664. — Este gosto de imitar as francesas da Rua do Ouvidor, dizia-me Jose Dias
  3665. andando e comentando a queda, e evidentemente um erro. As nossas mogas
  3666. devem andar como sempre andaram, com seu vagar e paciencia, e nao este tique-
  3667. tique afrancesado...
  3668.  
  3669. Eu mal podia ouvi-lo. As meias e as ligas da senhora branqueavam e enroscavam-
  3670. se diante de mim, e andavam, cafam, erguiam-se e iam-se embora. Quando
  3671. chegamos a esquina, olhei para a outra rua, e vi, a distancia, a nossa desastrada,
  3672. que ia no mesmo passo, tique-tique, tique-tique...
  3673.  
  3674. — Parece que nao se machucou, disse eu.
  3675.  
  3676. — Tanto melhor para ela, mas e impossfvel que nao tenha arranhado os joelhos;
  3677. aquela presteza e manha...
  3678.  
  3679. Creio que foi "manha" que ele disse; eu fiquei "nos joelhos arranhados". Dali em
  3680. diante, ate o seminario, nao vi mulher na rua, a quern nao desejasse uma queda;
  3681. a algumas adivinhei que traziam as meias esticadas e as ligas justas... Tal haveria
  3682. que nem levasse meias... Mas eu as via com elas... Ou entao... Tambem e
  3683. possfvel...
  3684.  
  3685. Vou esgargando isto com reticencias, para dar uma ideia das minhas ideias, que
  3686. eram assim difusas e confusas; com certeza nao dou nada. A cabega ia-me
  3687. quente, e o andar nao era seguro. No seminario, a primeira hora foi insuportavel.
  3688. As batinas traziam ar de saias, e lembravam-me a queda da senhora. Ja nao era
  3689. uma so que eu via cair; todas as que eu encontrara na rua, mostravam-me agora
  3690. de relance as ligas azuis; eram azuis. De noite, sonhei com elas. Uma multidao de
  3691. abominaveis criaturas veio andar a roda de mim, tique-tique... Eram belas, umas
  3692.  
  3693.  
  3694.  
  3695.  
  3696. finas, outras grossas, todas ageis como o diabo. Acordei, busquei afugenta-las
  3697. com esconjuros e outros metodos, mas tao depressa dormi como tornaram, e,
  3698. com as maos presas em volta de mim, faziam um vasto cfrculo de saias, ou,
  3699. trepadas no ar, choviam pes e pernas sobre a minha cabega. Assim fui ate
  3700. madrugada. Nao dormi mais; rezei padre-nossos, ave-marias, e credos, e sendo
  3701. este livro a verdade pura, e forga confessar que tive de interromper mais de uma
  3702. vez as minhas oragoes para acompanhar no escuro uma figura ao longe, tique-
  3703. tique, tique-tique... Pegava depressa na oragao, sempre no meio para concerta-la
  3704. bem, como se nao tivesse havido interrupgao, mas certamente nao unia a frase
  3705. nova a antiga.
  3706.  
  3707. Vindo o mal pela manha adiante, tentei vence-lo, mas por um modo que o nao
  3708. perdesse de todo. Sabios da Escritura, adivinhai o que podia ser. Foi isto. Nao
  3709. podendo rejeitar de mim aqueles quadras, recorri a um tratado entre a minha
  3710. consciencia e a minha imaginagao. As visoes feminis seriam de ora avante
  3711. consideradas como simples encarnagoes dos vfcios, e por isso mesmo
  3712. contemplaveis, como o melhor modo de temperar o carater e aguerri-lo para os
  3713. combates asperos da vida. Nao formulei isto por palavras, nem foi preciso; o
  3714. contrato fez-se tacitamente, com alguma repugnancia, mas fez-se. E por alguns
  3715. dias, era eu mesmo que evocava as visoes para fortalecer-me, e nao as rejeitava,
  3716. senao quando elas mesmas, de cansadas, se iam embora.
  3717.  
  3718.  
  3719.  
  3720. CAPI TULO LIX
  3721.  
  3722. CONVIVAS DE BOA MEMORIA
  3723.  
  3724. Ha dessas reminiscencias que nao descansam antes que a pena ou a lingua as
  3725. publique. Um antigo dizia arrenegar de conviva que tern boa memoria. A vida e
  3726. cheia de tais convivas, e eu sou acaso um deles, conquanto a prova de ter a
  3727. memoria fraca seja exatamente nao me acudir agora o nome de tal antigo; mas
  3728. era um antigo, e basta.
  3729.  
  3730. Nao, nao, a minha memoria nao e boa. Ao contrario, e comparavel a alguem que
  3731. tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e
  3732. somente raras circunstancias. A quern passe a vida na mesma casa de famflia,
  3733. com os seus eternos moveis e costumes, pessoas e afeigoes, e que se Ihe grava
  3734. tudo pela continuidade e repetigao. Como eu invejo os que nao esqueceram a cor
  3735. das primeiras calgas que vestiram! Eu nao atino com a das que enfiei ontem. Jura
  3736. so que nao eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser
  3737. olvido e confusao.
  3738.  
  3739. E antes seja olvido que confusao; explico-me. Nada se emenda bem nos livros
  3740. confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum
  3741. desta outra casta, nao me aflijo nunca. O que fago, em chegando ao fim, e cerrar
  3742. os olhos e evocar todas as coisas que nao achei nele. Quantas ideias finas me
  3743. acodem entao! Que de reflexoes profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que
  3744. nao vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas aguas, as suas
  3745. arvores, os seus altares; e os generais sacam das espadas que tinham ficado na
  3746. bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com
  3747. uma alma imprevista.
  3748.  
  3749. E que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas
  3750. alheias; assim podes tambem preencher as minhas.
  3751.  
  3752.  
  3753.  
  3754. CAPITULO LX
  3755. QUERI DO OPUSCULO
  3756.  
  3757.  
  3758.  
  3759.  
  3760. Assim fiz eu ao Panegfrico de Santa Monica, e fiz mais: pus-lhe nao so o que
  3761. faltava da santa, mas ainda coisas que nao eram dela. Viste o soneto, as meias,
  3762. as ligas, o seminarista Escobar e varios outros. Vais agora ver o mais que naquele
  3763. dia me foi saindo das paginas amarelas do opusculo.
  3764.  
  3765. Querido opusculo, tu nao prestavas para nada, mas que mais presta um velho par
  3766. de chinelas? Entretanto, ha muita vez no casal de chinelas um como aroma e calor
  3767. de dois pes. Gastas e rotas, nao deixam de lembrar que uma pessoa as calgava de
  3768. manha, ao erguer da cama, ou as descalgava a noite, ao entrar nela. E se a
  3769. comparagao nao vale, porque as chinelas sao ainda uma parte da pessoa e
  3770. tiveram o contato dos pes, aqui estao outras lembrangas, como a pedra da rua, a
  3771. porta da casa, um assobio particular, um pregao de quitanda, como aquele das
  3772. cocadas que contei no cap. XVIII. Justamente, quando contei o pregao das
  3773. cocadas, fiquei tao curtido de saudades que me lembrou faze-lo escrever por um
  3774. amigo, mestre de musica, e gruda-lo as pernas do capftulo. Se depois jarretei o
  3775. capftulo, foi porque outro musico, a quern o mostrei, me confessou ingenuamente
  3776. nao achar no trecho escrito nada que Ihe acordasse saudades. Para que nao
  3777. acontega o mesmo aos outros profissionais que porventura me lerem, melhor e
  3778. poupar ao editor do livro o trabalho e a despesa da gravura. Ves que nao pus
  3779. nada, nem ponho. Ja agora creio que nao basta que os pregoes de rua, como os
  3780. opusculos de seminario, encerrem casos, pessoas e sensagoes; e preciso que a
  3781. gente os tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo e calado e incolor.
  3782.  
  3783. Mas, vamos ao mais que me foi saindo das paginas amarelas.
  3784.  
  3785.  
  3786.  
  3787. CAPI TULO LXI
  3788. A VACA DE HOMERO
  3789.  
  3790. O mais foi muito. Vi safrem os primeiros dias da separagao, duros e opacos, sem
  3791. embargo das palavras de conforto que me deram os padres e os seminaristas, e
  3792. as de minha mae e tio Cosme, trazidas por Jose Dias ao seminario.
  3793.  
  3794. — Todos estao saudosos, disse-me este, mas a maior saudade esta naturalmente
  3795. no maior dos coragoes; e qual e ele? perguntou escrevendo a resposta nos olhos.
  3796.  
  3797. — Mamae, acudi eu.
  3798.  
  3799. Jose Dias apertou-me as maos com alvorogo, e logo pintou a tristeza de minha
  3800. mae, que falava de mim todos os dias, quase a todas as horas. Como a aprovasse
  3801. sempre, e acrescentasse alguma palavra relativamente aos dotes que Deus Ihe
  3802. dera, o desvanecimento de minha mae nessas ocasioes era indescritfvel; e
  3803. contava-me tudo isso cheio de uma admiragao lacrimosa. Tio Cosme tambem se
  3804. enternecia muito.
  3805.  
  3806. — Ontem ate se deu um caso interessante. Tendo eu dito a Excelentfssima que
  3807. Deus Ihe dera, nao um filho, mas um anjo do ceu, o doutor ficou tao comovido que
  3808. nao achou outro modo de veneer o choro senao fazendo-me um daqueles elogios
  3809. de galhofa que so ele sabe. Nao e preciso dizer que D. Gloria enxugou
  3810. furtivamente uma lagrima. Ou ela nao fosse mae! Que coragao amantfssimo!
  3811.  
  3812. — Mas, Sr. Jose Dias, e a minha safda daqui?
  3813.  
  3814. — Isso e negocio meu. A viagem a Europa e o que e preciso, mas pode fazer-se
  3815. daqui a um ou dois anos, em 1859 ou 1860...
  3816.  
  3817. — Tao tarde!
  3818.  
  3819.  
  3820.  
  3821. — Era melhor que fosse este mesmo ano, mas demos tempo ao tempo. Tenha
  3822.  
  3823.  
  3824.  
  3825.  
  3826. paciencia, va estudando, nao se perde nada em ir sabendo ja daqui alguma coisa;
  3827. e, demais, ainda nao acabando padre, a vida do seminario e util, e vale sempre
  3828. entrar no mundo ungido com os santos oleos da teologia...
  3829.  
  3830. Neste ponto, — lembra-me como se fosse hoje, — os olhos de Jose Dias
  3831. fulguraram tao intensamente que me encheram de espanto. As palpebras cafram
  3832. depois, e assim ficaram por alguns instantes, ate que novamente se ergueram, e
  3833. os olhos fixaram-se na parede do patio, como que embebidos em alguma coisa, se
  3834. nao era em si mesmos; depois despegaram-se da parede e entraram a vagar pelo
  3835. patio todo. Podia compara-lo aqui a vaca de Homero; andava e gemia em volta da
  3836. cria que acabava de parir. Nao Ihe perguntei o que e que tinha, ja por
  3837. acanhamento, ja porque dois lentes, um deles de teologia, vinham caminhando na
  3838. nossa diregao. Ao passarem por nos, o agregado, que os conhecia, cortejou-os
  3839. com as deferencias devidas, e pediu-lhes notfcias minhas.
  3840.  
  3841. — Por ora nada se pode afiangar, disse um deles, mas parece que dara conta da
  3842. mao.
  3843.  
  3844. — E o que eu Ihe dizia agora mesmo, acudiu Jose Dias. Conto ouvir-lhe a missa
  3845. nova; mas ainda que nao chegue a ordenar-se, nao pode ter melhores estudos
  3846. que os que fizer aqui. Para a viagem da existencia, concluiu demorando mais as
  3847. palavras, ira ungido com os santos oleos da teologia...
  3848.  
  3849. Desta vez a fulguragao dos olhos foi menor, as palpebras nao Ihe cafram nem as
  3850. pupilas fizeram os movimentos anteriores. Ao contrario, todo ele era atengao e
  3851. interrogagao; quando muito, um sorriso claro e amigo Ihe errava nos labios. O
  3852. lente de teologia gostou da metafora, e disse-lho; ele agradeceu, explicando que
  3853. eram ideias que Ihe escapavam no correr da conversagao; nao escrevia nem
  3854. orava. Eu e que nao gostei nada; e logo que os lentes se foram, sacudi a cabega:
  3855.  
  3856. — Nao quero saber dos santos oleos da teologia; desejo sair daqui o mais cedo
  3857. que puder, ou ja...
  3858.  
  3859. — Ja, meu anjo, nao pode ser; mas pode suceder que muito antes do que
  3860. imaginamos. Quern sabe se este mesmo ano de 58? Tenho um piano feito, e
  3861. penso ja nas palavras com que hei de expo-lo a D. Gloria; estou certo que ela
  3862. cedera e ira conosco.
  3863.  
  3864. — Duvido que mamae embarque.
  3865.  
  3866. — Veremos. Mae e capaz de tudo; mas, com ela ou sem ela, tenho por certa a
  3867. nossa ida, e nao havera esforgo que eu nao empregue, deixe estar. Paciencia e
  3868. que e preciso. E nao faga aqui nada que de lugar a censuras ou queixas; muita
  3869. docilidade e toda a aparente satisfagao. Nao ouviu o elogio do lente? E que voce
  3870. tem-se portado bem. Pois continue.
  3871.  
  3872. — Mas, 1859 ou 1860 e muito tarde.
  3873.  
  3874. — Sera este ano, replicou Jose Dias.
  3875.  
  3876. — Daqui a tres meses?
  3877.  
  3878. — Ou seis.
  3879.  
  3880. — Nao; tres meses.
  3881.  
  3882. — Pois sim. Tenho agora um piano, que me parece melhor que outro qualquer. E
  3883. combinar a ausencia de vocagao eclesiastica e a necessidade de mudar de ares.
  3884. Voce por que nao tosse?
  3885.  
  3886.  
  3887.  
  3888.  
  3889. — Por que nao tusso?
  3890.  
  3891. — Ja, ja, nao, mas eu hei de avisar voce para tossir, quando for preciso, aos
  3892. poucos, uma tossezinha seca, e algum fastio; eu irei preparando a
  3893. Excelentfssima... Oh! tudo isto e em beneffcio dela. Uma vez que o filho nao pode
  3894. servir a Igreja, como deve ser servida, o melhor modo de cumprir a vontade de
  3895. Deus e dedica-lo a outra coisa. O mundo tambem e igreja para os bons...
  3896.  
  3897. Pareceu-me outra vez a vaca de Homero, como se este "mundo tambem e igreja
  3898. para os bons", fosse outro bezerro, irmao dos "santos oleos da teologia”.Mas nao
  3899. dei tempo a ternura materna, e repliquei:
  3900.  
  3901. — Ah! entendo! mostrar que estou doente para embarcar, nao e?
  3902.  
  3903. Jose Dias hesitou um pouco, depois explicou-se:
  3904.  
  3905. — Mostrar a verdade, porque, francamente, Bentinho, eu ha meses que desconfio
  3906. do seu peito. Voce nao anda bom do peito. Em pequeno, teve umas febres e uma
  3907. ronqueira... Passou tudo, mas ha dias em que esta mais descorado. Nao digo que
  3908. ja seja o mal, mas o mal pode vir depressa. Numa hora cai a casa. Por isso, se
  3909. aquela santa senhora nao quiser ir conosco, — ou para que va mais depressa,
  3910. acho que uma boa tosse... Se a tosse ha de vir de verdade, melhor e apressa-la...
  3911. Deixe estar, eu aviso...
  3912.  
  3913. — Bern, mas em saindo daqui nao ha de ser para embarcar logo; saio primeiro,
  3914. depois cuidaremos do embarque; o embarque e que pode ficar para o ano. Nao
  3915. dizem que o melhor tempo e abril ou maio? Pois seja maio. Primeiro deixo o
  3916. seminario, daqui a dois meses...
  3917.  
  3918. E porque a palavra me estivesse a pigarrear na garganta, dei uma volta rapida, e
  3919. perguntei-lhe a queima-roupa:
  3920.  
  3921. — Capitu como vai?
  3922.  
  3923.  
  3924.  
  3925. CAPITULO LXI I
  3926. UMA PONTA DE I AGO
  3927.  
  3928. A pergunta era imprudente, na ocasiao em que eu cuidava de transferir o
  3929. embarque. Equivalia a confessar que o motivo principal ou unico da minha repulsa
  3930. ao seminario era Capitu, e fazer crer improvavel a viagem. Compreendi isto depois
  3931. que falei; quis emendar-me, mas nem soube como, nem ele me deu tempo.
  3932.  
  3933. — Tern andado alegre, como sempre; e uma tontinha. Aquilo, enquanto nao pegar
  3934. algum peralta da vizinhanga, que case com ela...
  3935.  
  3936. Estou que empalideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo todo. A notfcia
  3937. de que ela vivia alegre, quando eu chorava todas as noites, produziu-me aquele
  3938. efeito, acompanhado de um bater de coragao, tao violento, que ainda agora cuido
  3939. ouvi-lo. Ha alguma exageragao nisto; mas o discurso humano e assim mesmo, um
  3940. composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustando-
  3941. se. Por outro lado, se entendermos que a audiencia aqui nao e das orelhas, senao
  3942. da memoria, chegaremos a exata verdade. A minha memoria ouve ainda agora as
  3943. pancadas do coragao naquele instante. Nao esquegas que era a emogao do
  3944. primeiro amor. Estive quase a perguntar a Jose Dias que me explicasse a alegria
  3945. de Capitu, o que e que ela fazia, se vivia rindo, cantando ou pulando, mas retive-
  3946. me a tempo, e depois outra ideia...
  3947.  
  3948.  
  3949.  
  3950. Outra ideia, nao, — um sentimento cruel e desconhecido, o puro ciume, leitor das
  3951.  
  3952.  
  3953.  
  3954.  
  3955. minhas entranhas. Tal foi o que me mordeu, ao repetir comigo as palavras dejose
  3956. Dias: "Algum peralta da vizinhanga”. Em verdade, nunca pensara em tal desastre.
  3957. Vivia tao nela, dela e para ela, que a intervengao de um peralta era como uma
  3958. nogao sem realidade; nunca me acudiu que havia peraltas na vizinhanga, varia
  3959. idade e feitio, grandes passeadores das tardes. Agora lembrava-me que alguns
  3960. olhavam para Capitu, — e tao senhor me sentia dela que era como se olhassem
  3961. para mim, um simples dever de admiragao e de inveja. Separados um do outro
  3962. pelo espago e pelo destino, o mal aparecia-me agora, nao so possfvel, mas certo.
  3963. E a alegria de Capitu confirmava a suspeita; se ela vivia alegre e que ja namorava
  3964. a outro, acompanha-lo-ia com os olhos na rua, falar-lhe-ia a janela, as ave-
  3965. marias, trocariam flores e...
  3966.  
  3967. E... que? Sabes o que e que trocariam mais; se o nao achas por ti mesmo,
  3968. escusado e ler o resto do capftulo e do livro, nao acharas mais nada, ainda que eu
  3969. o diga com todas as letras da etimologia. Mas se o achaste, compreenderas que
  3970. eu, depois de estremecer, tivesse um fmpeto de atirar-me pelo portao fora, descer
  3971. o resto da ladeira, correr, chegar a casa do Padua, agarrar Capitu e intimar-lhe
  3972. que me confessasse quantos, quantos, quantos ja Ihe dera o peralta da
  3973. vizinhanga. Nao fiz nada. Os mesmos sonhos que ora conto nao tiveram, naqueles
  3974. tres ou quatro minutos, esta logica de movimentos e pensamentos. Eram soltos,
  3975. emendados e mal emendados, com o desenho truncado e torto, uma confusao, um
  3976. turbilhao, que me cegava e ensurdecia. Quando tornei a mim, Jose Dias conclufa
  3977. uma frase, cujo princfpio nao ouvi, e o mesmo fim era vago: "A conta que dara de
  3978. si”. Que conta e quern? Cuidei naturalmente que falava ainda de Capitu, e quis
  3979. perguntar-lho, mas a vontade morreu ao nascer, como tantas outras geragoes
  3980. delas. Limitei-me a inquirir do agregado quando e que iria a casa ver minha mae.
  3981.  
  3982. — Estou com saudades de mamae. Posso ir ja esta semana?
  3983.  
  3984. — Vai sabado.
  3985.  
  3986. — Sabado? Ah! sim! sim! Pega a mamae que me mande buscar sabado! Sabado!
  3987. Este sabado, nao? Que me mande buscar, sem falta.
  3988.  
  3989.  
  3990.  
  3991. CAPI TU LO LXIII
  3992. METADES DE UM SONHO
  3993.  
  3994. Fiquei ansioso pelo sabado. Ate la os sonhos perseguiam-me, ainda acordado, e
  3995. nao os digo aqui para nao alongar esta parte do livro. Um so ponho, e no menor
  3996. numero de palavras, ou antes porei dois, porque um nasceu de outro, a nao ser
  3997. que ambos formem duas metades de um so. Tudo isto e obscuro, dona leitora,
  3998. mas a culpa e do vosso sexo, que perturbava assim a adolescencia de um pobre
  3999. seminarista. Nao fosse ele, e este livro seria talvez uma simples pratica paroquial,
  4000. se eu fosse padre, ou uma pastoral, se bispo, ou uma encfclica, se papa, como me
  4001. recomendara tio Cosme: "Anda la, meu rapaz, volta-me papa!" Ah! por que nao
  4002. cumpri esse desejo? Depois de Napoleao, tenente e imperador, todos os destinos
  4003. estao neste seculo.
  4004.  
  4005. Quanto ao sonho foi isto. Como estivesse a espiar os peraltas da vizinhanga, vi um
  4006. destes que conversava com a minha amiga ao pe da janela. Corri ao lugar, ele
  4007. fugiu; avancei para Capitu, mas nao estava so, tinha o pai ao pe de si, enxugando
  4008. os olhos e mirando um triste bilhete de loteria. Nao me parecendo isto claro, ia
  4009. pedir a explicagao, quando ele de si mesmo a deu; o peralta fora levar-lhe a lista
  4010. dos premios da loteria, e o bilhete safra branco. Tinha o numero 4004. Disse-me
  4011. que esta simetria de algarismos era misteriosa e bela, e provavelmente a roda
  4012. andara mal; era impossfvel que nao devesse ter a sorte grande. Enquanto ele
  4013. falava, Capitu dava-me com os olhos todas as sortes grandes e pequenas. A maior
  4014. destas devia ser dada com a boca. E aqui entra a segunda parte do sonho. Padua
  4015.  
  4016.  
  4017.  
  4018.  
  4019. desapareceu, como as suas esperangas do bilhete, Capitu inclinou-se para fora, eu
  4020. relancei os olhos pela rua, estava deserta. Peguei-lhe nas maos, resmunguei nao
  4021. sei que palavras, e acordei sozinho no dormitorio.
  4022.  
  4023. O interesse do que acabas de ler nao esta na materia do sonho, mas nos esforgos
  4024. que fiz para ver se dormia novamente e pegava nele outra vez. Nunca dos nuncas
  4025. poderas saber a energia e obstinagao que empreguei em fechar os olhos, aperta-
  4026. los bem, esquecer tudo para dormir, mas nao dormia. Esse mesmo trabalho fez-
  4027. me perder o sono ate a madrugada. Sobre a madrugada, consegui concilia-lo, mas
  4028. entao nem peraltas, nem bilhetes de loteria, nem sortes grandes ou pequenas, —
  4029. nada dos nadas veio ter comigo. Nao sonhei mais aquela noite, e dei mal as ligoes
  4030. daquele dia.
  4031.  
  4032.  
  4033.  
  4034. CAPI TU LO LXIV
  4035. UMA I DEI A E UM ESCRUPULO
  4036.  
  4037. Relendo o capftulo passado, acode-me uma ideia e um escrupulo. O escrupulo e
  4038. justamente de escrever a ideia, nao a havendo mais banal na terra, posto que
  4039. daquela banalidade do sol e da lua, que o Ceu nos da todos os dias e todos os
  4040. meses. Deixei o manuscrito, e olhei para as paredes. Sabes que esta casa do
  4041. Engenho Novo, nas dimensoes, disposigoes e pinturas, e reprodugao da minha
  4042. antiga casa de Mata-cavalos. Outrossim, como te disse no capftulo II, o meu fim
  4043. em imitar a outra foi ligar as duas pontas da vida, o que alias nao alcancei. Pois o
  4044. mesmo sucedeu aquele sonho do seminario, por mais que tentasse dormir e
  4045. dormisse. Donde concluo que um dos offcios do homem e fechar e apertar muito
  4046. os olhos, e ver se continua pela noite velha o sonho truncado na noite moga. Tal e
  4047. a ideia banal e nova que eu nao quisera por aqui, e so provisoriamente a escrevo.
  4048.  
  4049. Antes de concluir este capftulo, fui a janela indagar da noite por que razao os
  4050. sonhos hao de ser assim tao tenues que se esgargam ao menor abrir de olhos ou
  4051. voltar de corpo, e nao continuam mais. A noite nao me respondeu logo. Estava
  4052. deliciosamente bela, os morros palejavam de luar e o espago morria de silencio.
  4053. Como eu insistisse, declarou-me que os sonhos ja nao pertencem a sua jurisdigao.
  4054. Quando eles moravam na ilha que Luciano Ihes deu, onde ela tinha o seu palacio,
  4055. e donde os fazia sair com as suas caras de varia feigao, dar-me-ia explicagoes
  4056. possfveis. Mas os tempos mudaram tudo. Os sonhos antigos foram aposentados, e
  4057. os modernos moram no cerebro da pessoa. Estes, ainda que quisessem imitar os
  4058. outros, nao poderiam faze-lo; a ilha dos sonhos, como a dos amores, como todas
  4059. as ilhas de todos os mares, sao agora objeto da ambigao e da rivalidade da Europa
  4060. e dos Estados Unidos.
  4061.  
  4062. Era uma alusao as Filipinas. Pois que nao amo a polftica, e ainda menos a polftica
  4063. internacional, fechei a janela e vim acabar este capftulo para ir dormir. Nao pego
  4064. agora os sonhos de Luciano, nem outros, filhos da memoria ou da digestao; basta-
  4065. me um sono quieto e apagado. De manha, com a fresca, irei dizendo o mais da
  4066. minha historia e suas pessoas.
  4067.  
  4068.  
  4069.  
  4070. CAPI TU LO LXV
  4071. A DISSIMULACAO
  4072.  
  4073. Chegou o sabado, chegaram outros sabados, e eu acabei afeigoando-me a vida
  4074. nova, la alternando a casa e o seminario. Os padres gostavam de mim, os rapazes
  4075. tambem, e Escobar mais que os rapazes e os padres. No fim de cinco semanas
  4076. estive quase a contar a este as minhas penas e esperangas; Capitu refreou-me.
  4077.  
  4078.  
  4079.  
  4080. — Escobar e muito meu amigo, Capitu!
  4081.  
  4082.  
  4083.  
  4084.  
  4085. — Mas nao e meu amigo.
  4086.  
  4087. — Pode vir a ser; ele ja me disse que ha de vir ca para conhecer mamae.
  4088.  
  4089. — Nao importa; voce nao tern direito de contar um segredo que nao e so seu, mas
  4090. tambem meu, e eu nao Ihe dou licenga de dizer nada a pessoa nenhuma.
  4091.  
  4092. Era justo, calei-me e obedeci. Outra coisa em que obedeci as suas reflexoes foi
  4093. logo no primeiro sabado, quando eu fui a casa dela, e, apos alguns minutos de
  4094. conversa, me aconselhou a ir embora.
  4095.  
  4096. — Hoje nao fique aqui mais tempo; va para casa, que eu la vou logo. E natural
  4097. que D. Gloria queira estar com voce muito tempo, ou todo, se puder.
  4098.  
  4099. Em tudo isso mostrava a minha amiga tanta lucidez que eu bem podia deixar de
  4100. citar um terceiro exemplo, mas os exemplos nao se fizeram senao para ser
  4101. citados, e este e tao bom que a omissao seria um crime. Foi a minha terceira ou
  4102. quarta vinda a casa. Minha mae, depois que Ihe respondi as mil perguntas que me
  4103. fez sobre o tratamento que me davam, os estudos, as relagoes, a disciplina, e se
  4104. me dofa alguma coisa, e se dormia bem, tudo o que a ternura das maes inventa
  4105. para cansar a paciencia de um filho, concluiu voltando-se para Jose Dias:
  4106.  
  4107. — Sr. Jose Dias, ainda duvida que saia daqui um bom padre?
  4108.  
  4109. — Excelentfssima...
  4110.  
  4111. — E voce, Capitu, interrompeu minha mae voltando-se para a filha do Padua que
  4112. estava na sala, com ela, — voce nao acha que o nosso Bentinho dara um bom
  4113. padre?
  4114.  
  4115. — Acho que sim, senhora, respondeu Capitu cheia de convicgao.
  4116.  
  4117. Nao gostei da convicgao. Assim Ihe disse, na manha seguinte, no quintal dela,
  4118. recordando as palavras da vespera, e langando-lhe em rosto, pela primeira vez, a
  4119. alegria que ela mostrara desde a minha entrada no seminario, quando eu vivia
  4120. curtido de saudades. Capitu fez-se muito seria, e perguntou-me como e que
  4121. queria que se portasse, uma vez que suspeitavam de nos; tambem tivera noites
  4122. desconsoladas, e os dias, em casa dela, foram tao tristes como os meus; podia
  4123. indaga-lo do pai e da mae. A mae chegou a dizer-lhe, por palavras encobertas,
  4124. que nao pensasse mais em mim.
  4125.  
  4126. — Com D. Gloria e D. Justina mostro-me naturalmente alegre, para que nao
  4127. parega que a denuncia dejose Dias e verdadeira. Se parecesse, elas tratariam de
  4128. separar-nos mais, e talvez acabassem nao me recebendo... Para mim, basta o
  4129. nosso juramento de que nos havemos de casar um com outro.
  4130.  
  4131. Era isto mesmo; devfamos dissimular para matar qualquer suspeita, e ao mesmo
  4132. tempo gozar toda a liberdade anterior, e construir tranquilos o nosso futuro. Mas o
  4133. exemplo completa-se com o que ouvi no dia seguinte, ao almogo; minha mae,
  4134. dizendo tio Cosme que ainda queria ver com que mao havia eu de abengoar o
  4135. povo a missa, contou que, dias antes, estando a falar de mogas que se casam
  4136. cedo, Capitu Ihe dissera: "Pois a mim quern me ha de casar ha de ser o Padre
  4137. Bentinho; eu espero que ele se ordene!" Tio Cosme riu da graga, Jose Dias nao
  4138. dessorriu, so prima Justina e que franziu a testa, e olhou para mim
  4139. interrogativamente. Eu, que havia olhado para todos, nao pude resistir ao gesto
  4140. da prima, e tratei de comer. Mas comi mal; estava tao contente com aquela
  4141. grande dissimulagao de Capitu que nao vi mais nada, e, logo que almocei, corri a
  4142. referir-lhe a conversa e a louvar-lhe a astucia. Capitu sorriu de agradecida.
  4143.  
  4144.  
  4145.  
  4146.  
  4147. — Voce tem razao, Capitu, concluf eu; vamos enganar toda esta gente.
  4148.  
  4149. — Nao e? disse ela com ingenuidade.
  4150.  
  4151.  
  4152.  
  4153. CAPITULO LX VI
  4154. I NTI Ml DADE
  4155.  
  4156. Capitu ia agora entrando na alma de minha mae. Viviam o mais do tempo juntas,
  4157. falando de mim, a proposito do sol e da chuva, ou de nada; Capitu ia la coser, as
  4158. manhas; alguma vez ficava para jantar.
  4159.  
  4160. Prima Justina nao acompanhava a parenta naquelas finezas, mas nao tratava de
  4161. todo mal a minha amiga. Era assaz sincera para dizer o mal que sentia de alguem,
  4162. e nao sentia bem de pessoa alguma. Talvez do marido, mas o marido era morto;
  4163. em todo caso, nao existira homem capaz de competir com ele na afeigao, no
  4164. trabalho e na honestidade, nas maneiras e na agudeza de espfrito. Esta opiniao,
  4165. segundo tio Cosme, era postuma, pois em vida andavam as brigas, e os ultimos
  4166. seis meses acabaram separados. Tanto melhor para a justiga dela; o louvor dos
  4167. mortos e um modo de orar por eles. Tambem gostaria de minha mae, ou se algum
  4168. mal pensou dela foi entre si e o travesseiro. Compreende-se que, de aparencia,
  4169. Ihe desse a estima devida. Nao penso que ela aspirasse a algum legado; as
  4170. pessoas assim dispostas excedem os servigos naturais, fazem-se mais risonhas,
  4171. mais assfduas, multiplicam os cuidados, precedem os famulos. Tudo isso era
  4172. contrario a natureza de prima Justina, feita de azedume e de implicancia. Como
  4173. vivesse de favor na casa, explica-se que nao desestimasse a dona e calasse os
  4174. seus ressentimentos, ou so dissesse mal dela a Deus e ao Diabo.
  4175.  
  4176. Caso tivesse ressentimentos de minha mae, nao era uma razao mais para detestar
  4177. Capitu, nem ela precisava de razoes suplementares. Contudo, a intimidade de
  4178. Capitu fe-la mais aborrecfvel a minha parenta. Se a princfpio nao a tratava mal,
  4179. com o tempo trocou de maneiras e acabou fugindo-lhe. Capitu, atenta, desde que
  4180. a nao via, indagava dela e ia procura-la. Prima Justina tolerava esses cuidados. A
  4181. vida e cheia de obrigagoes que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as
  4182. infringir deslavadamente. Demais, Capitu usava certa magia que cativa; prima
  4183. Justina acabava sorrindo, ainda que azedo, mas a sos com minha mae achava
  4184. alguma palavra ruim que dizer da menina.
  4185.  
  4186. Como minha mae adoecesse de uma febre, que a pos as portas da morte, quis que
  4187. Capitu Ihe servisse de enfermeira. Prima Justina, posto que isto a aliviasse de
  4188. cuidados penosos, nao perdoou a minha amiga a intervengao. Um dia, perguntou-
  4189. Ihe se nao tinha que fazer em casa; outro dia, rindo, soltou-lhe este epigrama:
  4190. "Nao precisa correr tanto; o que tiver de ser seu as maos Ihe ha de ir".
  4191.  
  4192.  
  4193.  
  4194. CAPI TULO LXVII
  4195. UM PECADO
  4196.  
  4197. Ja agora nao tiro a doente da cama sem contar o que se deu comigo. Ao cabo de
  4198. cinco dias, minha mae amanheceu tao transtornada que ordenou me mandassem
  4199. buscar ao seminario. Em vao tio Cosme:
  4200.  
  4201. — Mana Gloria, voce assusta-se sem motivo, a febre passa...
  4202.  
  4203. — Nao! nao! mandem busca-lo! Posso morrer, e a minha alma nao se salva, se
  4204. Bentinho nao estiver ao pe de mim.
  4205.  
  4206.  
  4207.  
  4208. — Vamos assusta-lo.
  4209.  
  4210.  
  4211.  
  4212.  
  4213. — Pois nao Ihe digam nada, mas vao busca-lo, ja, ja, nao se demorem.
  4214.  
  4215. Cuidaram fosse delfrio; mas, nao custando nada trazer-me, Jose Dias foi
  4216. incumbido do recado. Entrou tao atordoado que me assustou. Contou
  4217. particularmente ao reitor o que havia, e recebi licenga para ir a casa. Na rua,
  4218. famos calados, ele nao alterando o passo do costume, — a premissa antes da
  4219. consequencia, a consequencia antes da conclusao, — mas cabisbaixo e
  4220. suspirando, eu temendo ler no rosto dele alguma notfcia dura e definitiva. So me
  4221. falara na doenga, como negocio simples; mas o chamado, o silencio, os suspiros
  4222. podiam dizer alguma coisa mais. O coragao batia-me com forga, as pernas
  4223. bambeavam-me, mais de uma vez cuidei cair...
  4224.  
  4225. O anseio de escutar a verdade complicava-se em mim com o temor de a saber.
  4226. Era a primeira vez que a morte me aparecia assim perto, me envolvia, me
  4227. encarava com os olhos furados e escuros. Quanto mais andava aquela Rua dos
  4228. Barbonos, mais me aterrava a ideia de chegar a casa, de entrar, de ouvir os
  4229. prantos, de ver um corpo defunto... Oh! eu nao poderia nunca expor aqui tudo o
  4230. que senti naqueles terrfveis minutos. A rua, por mais que Jose Dias andasse
  4231. superlativamente devagar, parecia fugir-me debaixo dos pes, as casas voavam de
  4232. um e outro lado, e uma corneta que nessa ocasiao tocava no quartel dos
  4233. Municipals Permanentes ressoava aos meus ouvidos como a trombeta do jufzo
  4234. final.
  4235.  
  4236. Fui, cheguei aos Arcos, entrei na Rua de Mata-cavalos. A casa nao era logo ali,
  4237. mas muito alem da dos Invalidos, perto da do Senado. Tres ou quatro vezes,
  4238. quisera interrogar o meu companheiro, sem ousar abrir a boca; mas agora, ja
  4239. nem tinha tal desejo. la so andando, aceitando o pior, como um gesto do destino,
  4240. como uma necessidade da obra humana, e foi entao que a Esperanga, para
  4241. combater o Terror, me segredou ao coragao, nao estas palavras, pois nada
  4242. articulou parecido com palavras, mas uma ideia que poderia ser traduzida por
  4243. elas: "Mamae defunta, acaba o seminario".
  4244.  
  4245. Leitor, foi um relampago. Tao depressa alumiou a noite, como se esvaiu, e a
  4246. escuridao fez-se mais cerrada, pelo efeito do remorso que me ficou. Foi uma
  4247. sugestao da luxuria e do egofsmo. A piedade filial desmaiou um instante, com a
  4248. perspectiva da liberdade certa, pelo desaparecimento da dfvida e do devedor; foi
  4249. um instante, menos que um instante, o centesimo de um instante, ainda assim o
  4250. suficiente para complicar a minha afligao com um remorso.
  4251.  
  4252. Jose Dias suspirava. Uma vez olhou para mim tao cheio de pena que me pareceu
  4253. haver-me adivinhado, e eu quis pedir-lhe que nao dissesse nada a ninguem, que
  4254. eu ia castigar-me, etc. Mas a pena trazia tanto amor, que nao podia ser pesar do
  4255. meu pecado; mas entao era sempre a morte de minha mae... Senti uma angustia
  4256. grande, um no na garganta, e nao pude mais, chorei de uma vez.
  4257.  
  4258. — Que e, Bentinho?
  4259.  
  4260. — Mamae...?
  4261.  
  4262. — Nao! nao! Que ideia e essa? O estado dela e gravfssimo, mas nao e mal de
  4263. morte, e Deus pode tudo. Enxugue os olhos, que e feio um mocinho da sua idade
  4264. andar chorando na rua. Nao ha de ser nada, uma febre... As febres, assim como
  4265. dao com forga, assim tambem se vao embora... Com os dedos, nao; onde esta o
  4266. lengo?
  4267.  
  4268. Enxuguei os olhos, posto que de todas as palavras de J ose Dias uma so me ficasse
  4269. no coragao; foi aquele gravfssimo. Vi depois que ele so queria dizer grave, mas o
  4270. uso do superlativo faz a boca longa, e, por amor do perfodo, Jose Dias fez crescer
  4271. a minha tristeza. Se achares neste livro algum caso da mesma famflia, avisa-me,
  4272.  
  4273.  
  4274.  
  4275.  
  4276. leitor, para que o emende na segunda edigao; nada ha mais feio que dar pernas
  4277. longufssimas a ideias brevfssimas. Enxuguei os olhos, repito, e fui andando,
  4278. ansioso agora por chegar a casa, e pedir perdao a minha mae do ruim
  4279. pensamento que tive. Enfim, chegamos, entramos, subi tremulo os seis degraus
  4280. da escada, e daf a pouco, debrugado sobre a cama, ouvia as palavras ternas de
  4281. minha mae que me apertava muito as maos, chamando-me seu filho. Estava
  4282. queimando, os olhos ardiam nos meus, toda ela parecia consumida por um vulcao
  4283. interno. Ajoelhei-me ao pe do leito, mas como este era alto, fiquei longe das suas
  4284. carfcias:
  4285.  
  4286. — Nao, meu filho, levanta, levanta!
  4287.  
  4288. Capitu, que estava na alcova, gostou de ver a minha entrada, os meus gestos,
  4289. palavras e lagrimas, segundo me disse depois; mas nao suspeitou naturalmente
  4290. todas as causas da minha afligao. Entrando no meu quarto, pensei em dizer tudo a
  4291. minha mae, logo que ela ficasse boa, mas esta ideia nao me mordia, era uma
  4292. veleidade pura, uma agao que eu nao faria nunca, por mais que o pecado me
  4293. doesse. Entao, levado do remorso, usei ainda uma vez do meu velho meio das
  4294. promessas espirituais, e pedi a Deus que me perdoasse e salvasse a vida de
  4295. minha mae, e eu Ihe rezaria dois mil padre-nossos. Padre que me les, perdoa este
  4296. recurso; foi a ultima vez que o empreguei. A crise em que me achava, nao menos
  4297. que o costume e a fe, explica tudo. Eram mais dois mil; onde iam os antigos? Nao
  4298. paguei uns nem outros, mas saindo de almas Candidas e verdadeiras tais
  4299. promessas sao como a moeda fiduciaria, — ainda que o devedor as nao pague,
  4300. valem a soma que dizem.
  4301.  
  4302.  
  4303.  
  4304. CAPITULO LXVIII
  4305. ADIEMOS A VIRTUDE
  4306.  
  4307. Poucos teriam animo de confessar aquele meu pensamento da Rua de Mata-
  4308. cavalos. Eu confessarei tudo o que importar a minha historia. Montaigne escreveu
  4309. de si: ce ne sont pas mes gestes que j'escris; c'est moi, c'est mon essence. Ora,
  4310. ha so um modo de escrever a propria essencia, e conta-la toda, o bem e o mal.
  4311. Tal fago eu, a medida que me vai lembrando e convidando a construgao ou
  4312. reconstrugao de mim mesmo. Por exemplo, agora que contei um pecado, diria
  4313. com muito gosto alguma bela agao contemporanea, se me lembrasse, mas nao me
  4314. lembra; fica transferida a melhor oportunidade.
  4315.  
  4316. Nem perderas em esperar, meu amigo; ao contrario, acode-me agora que... Nao
  4317. so as belas agoes sao belas em qualquer ocasiao, como sao tambem possfveis e
  4318. provaveis, pela teoria que tenho dos pecados e das virtudes, nao menos simples
  4319. que clara. Reduz-se a isto que cada pessoa nasce com certo numero deles e delas,
  4320. aliados por matrimonio para se compensarem na vida. Quando um de tais
  4321. conjuges e mais forte que o outro, ele so guia o indivfduo, sem que este, por nao
  4322. haver praticado tal virtude ou cometido tal pecado, se possa dizer isento de um ou
  4323. de outro; mas a regra e dar-se a pratica simultanea dos dois, com vantagem do
  4324. portador de ambos, e alguma vez com resplendor maior da Terra e do Ceu. E pena
  4325. que eu nao possa fundamentar isto com um ou mais casos estranhos; falta-me
  4326. tempo.
  4327.  
  4328. Pelo que me toca, e certo que nasci com alguns daqueles casais, e naturalmente
  4329. ainda os possuo. Ja me sucedeu, aqui no Engenho Novo, por estar uma noite com
  4330. muita dor de cabega, desejar que o trem da Central estourasse longe dos meus
  4331. ouvidos e interrompesse a linha por muitas horas, ainda que morresse alguem; e
  4332. no dia seguinte perdi o trem da mesma estrada, por ter ido dar a minha bengala a
  4333. um cego que nao trazia bordao. Voila mes gestes, voila mon essence.
  4334.  
  4335.  
  4336.  
  4337.  
  4338. CAPITULO LXI X
  4339. A MISSA
  4340.  
  4341. Um dos gestos que melhor exprimem a minha essencia foi a devogao com que
  4342. corri no domingo proximo a ouvir missa em Sao Antonio dos Pobres. O agregado
  4343. quis ir comigo, e principiou a vestir-se, mas era tao lento nos suspensorios e nas
  4344. presilhas, que nao pude esperar por ele. Demais, eu queria estar so. Sentia
  4345. necessidade de evitar qualquer conversagao que me desviasse o pensamento do
  4346. fim a que ia, e era reconciliar-me com Deus, depois do que se passou no capftulo
  4347. LXVII. Nem era so pedir-lhe perdao do pecado, era tambem agradecer o
  4348. restabelecimento de minha mae, e, visto que digo tudo, faze-lo renunciar ao
  4349. pagamento da minha promessa. Jeova, posto que divino, ou por isso mesmo, e
  4350. um Rothschild muito mais humano, e nao faz moratorias, perdoa as dfvidas
  4351. integralmente, uma vez que o devedor queira deveras emendar a vida e cortar nas
  4352. despesas. Ora, eu nao queria outra coisa; dali em diante nao faria mais promessas
  4353. que nao pudesse pagar, e pagaria logo as que fizesse.
  4354.  
  4355. Ouvi missa; ao levantar a Deus, agradeci a vida e saude de minha mae; depois
  4356. pedi perdao do pecado e revelagao da dfvida, e recebi a bengao final do oficiante
  4357. como um ato solene de reconciliagao. No fim, lembrou-me que a Igreja
  4358. estabeleceu no confessionario um cartorio seguro, e na confissao o mais autentico
  4359. dos instrumentos para o ajuste de contas morais entre o homem e Deus. Mas a
  4360. minha incorrigfvel timidez me fechou essa porta certa; receei nao achar palavras
  4361. com que dizer ao confessor o meu segredo. Como o homem muda! Hoje chego a
  4362. publica-lo.
  4363.  
  4364.  
  4365.  
  4366. CAPITULO LXX
  4367. DEPOIS DA MISSA
  4368.  
  4369. Rezei ainda, persignei-me, fechei o livro de missa e caminhei para a porta. A
  4370. gente nao era muita, mas a igreja tambem nao e grande, e nao pude sair logo,
  4371. logo, mas devagar. Havia homens e mulheres, velhos e mogos, sedas e chitas, e
  4372. provavelmente olhos feios e belos, mas eu nao vi uns nem outros. la na diregao
  4373. da porta, com a onda, ouvindo as saudagoes e os cochichos. No adro, onde se fez
  4374. claro, parei e olhei para todos. Vi entao uma moga e um homem, que safam da
  4375. igreja e pararam; e a moga olhava para mim falando ao homem, e o homem
  4376. olhava para mim, ouvindo a moga. E chegaram-me estas palavras:
  4377.  
  4378. — Mas que queres?
  4379.  
  4380. — Queria saber dela; papai pergunte.
  4381.  
  4382. Era sinhazinha Sancha, a companheira de colegio de Capitu, que queria notfcias de
  4383. minha mae. O pai veio a mim; disse-lhe que estava restabelecida. Depois safmos,
  4384. mostrou-me a casa dele, e, como eu vinha na mesma diregao, viemos juntos.
  4385. Gurgel era homem de quarenta anos ou pouco mais, com propensao a engrossar o
  4386. ventre; era muito obsequioso; chegando a porta da casa, quis por forga que eu
  4387. fosse almogar com ele.
  4388.  
  4389. — Obrigado; mamae espera-me.
  4390.  
  4391. — Manda-se la um preto dizer que o senhor fica almogando, e ira mais tarde.
  4392.  
  4393. — Venho outro dia.
  4394.  
  4395.  
  4396.  
  4397. Sinhazinha Sancha, voltada para o pai, ouvia e esperava. Nao era feia; so se Ihe
  4398. podia notar a semelhanga do nariz, que tambem acabava grosso, mas ha feigoes
  4399.  
  4400.  
  4401.  
  4402.  
  4403. que tiram a graga de uns para da-la a outros. Vestia simples. Gurgel era viuvo e
  4404. morria pela filha. Como eu recusasse o almogo, quis que descansasse alguns
  4405. minutos. Nao pude recusar e subi. Quis saber a minha idade, os meus estudos, a
  4406. minha fe, e dava-me conselhos para o caso de vir a ser padre; disse-me o numero
  4407. do armazem, Rua da Quitanda. Enfim, despedi-me, veio ao patamar da escada; a
  4408. filha deu-me recomendagoes para Capitu e para minha mae. Da rua olhei para
  4409. cima; o pai estava a janela e fez-me um gesto largo de despedida.
  4410.  
  4411.  
  4412.  
  4413. CAPITU LO LXXI
  4414. VISITA DE ESCOBAR
  4415.  
  4416. Em casa, tinham ja mentido dizendo a minha mae que eu voltara e estava
  4417. mudando de roupa.
  4418.  
  4419. "A missa das oito ja ha de ter acabado... Bentinho devia estar de volta... Teria
  4420. acontecido alguma coisa, mano Cosme?... Mandem ver..." Assim falava ela, de
  4421. minuto a minuto, mas eu entrei e comigo a tranquilidade.
  4422.  
  4423. Era o dia das boas sensagoes. Escobar foi visitar-me e saber da saude de minha
  4424. mae. Nunca me visitara ate ali, nem as nossas relagoes estavam ja tao estreitas,
  4425. como vieram a ser depois; mas, sabendo a razao da minha safda, tres dias antes,
  4426. aproveitou o domingo para ir ter comigo e perguntar se continuava o perigo ou
  4427. nao. Quando Ihe disse que nao, respirou.
  4428.  
  4429. — Tive receio, disse ele.
  4430.  
  4431. — Os outros souberam?
  4432.  
  4433. — Parece que sim: alguns souberam.
  4434.  
  4435. Tio Cosme e J ose Dias gostaram do mogo; o agregado disse-lhe que vira uma vez
  4436. o pai no Rio de Janeiro. Escobar era muito polido; e, conquanto falasse mais do
  4437. que veio a falar depois, ainda assim nao era tanto como os rapazes da nossa
  4438. idade; naquele dia achei-o um pouco mais expansivo que de costume. Tio Cosme
  4439. quis que jantasse conosco. Escobar refletiu um instante e acabou dizendo que o
  4440. correspondente do pai esperava por ele. Eu, lembrando-me das palavras do
  4441. Gurgel, repeti-as:
  4442.  
  4443. — Manda-se la um preto dizer que o senhor janta aqui, e ira depois.
  4444.  
  4445. — Tanto incomodo!
  4446.  
  4447. — Incomodo nenhum, interveio tio Cosme.
  4448.  
  4449. Escobar aceitou, e jantou. Notei que os movimentos rapidos que tinha e dominava
  4450. na aula, tambem os dominava agora, na sala como na mesa. A hora que passou
  4451. comigo foi de franca amizade. Mostrei-lhe os poucos livros que possufa. Gostou
  4452. muito do retrato de meu pai; depois de alguns instantes de contemplagao, virou-
  4453. se e disse-me:
  4454.  
  4455. — Ve-se que era um coragao puro!
  4456.  
  4457. Os olhos de Escobar, claros como ja disse, eram dulcissimos; assim os definiu Jose
  4458. Dias, depois que ele saiu, e mantenho esta palavra, apesar dos quarenta anos que
  4459. traz em cima de si. Nisto nao houve exageragao do agregado. A cara rapada
  4460. mostrava uma pele alva e lisa. A testa e que era um pouco baixa, vindo a risca do
  4461. cabelo quase em cima da sobrancelha esquerda; mas tinha sempre a altura
  4462. necessaria para nao afrontar as outras feigoes, nem diminuir a graga delas.
  4463.  
  4464.  
  4465.  
  4466.  
  4467. Realmente, era interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz curvo e
  4468. delgado. Tinha o sestro de sacudir o ombro direito, de quando em quando, e veio
  4469. a perde-lo, desde que um de nos Iho notou, um dia, no seminario; primeiro
  4470. exemplo que vi de que um homem pode corrigir-se muito bem dos defeitos
  4471. miudos.
  4472.  
  4473. Nunca deixei de sentir tal ou qual desvanecimento em que os meus amigos
  4474. agradassem a todos. Em casa, ficaram querendo bem a Escobar; a mesma prima
  4475. Justina achou que era um mogo muito apreciavel, apesar... — Apesar de que?
  4476. perguntou-lhe Jose Dias, vendo que ela nao acabava a frase. Nao teve resposta,
  4477. nem podia te-la; prima Justina provavelmente nao viu defeito claro ou importante
  4478. no nosso hospede; o apesar era uma especie de ressalva para algum que Ihe
  4479. viesse a descobrir um dia; ou entao foi obra de uso velho, que a levou a restringir,
  4480. onde nao achara restrigao.
  4481.  
  4482. Escobar despediu-se logo depois de jantar; fui leva-lo a porta, onde esperamos a
  4483. passagem de um onibus. Disse-me que o armazem do correspondente era na Rua
  4484. dos Pescadores, e ficava aberto ate as nove horas: ele e que se nao queria
  4485. demorar fora. Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do onibus, ainda me
  4486. disse adeus, com a mao. Conservei-me a porta, a ver se, ao longe, ainda olharia
  4487. para tras, mas nao olhou.
  4488.  
  4489. — Que amigo e esse tamanho? perguntou alguem de uma janela ao pe.
  4490.  
  4491. Nao e preciso dizer que era Capitu. Sao coisas que se adivinham na vida, como
  4492. nos livros, sejam romances, sejam historias verdadeiras. Era Capitu, que nos
  4493. espreitara desde algum tempo, por dentro da veneziana, e agora abrira
  4494. inteiramente a janela, e aparecera. Viu as nossas despedidas tao rasgadas e
  4495. afetuosas, e quis saber quern era que me merecia tanto.
  4496.  
  4497. — E o Escobar, disse eu indo por-me embaixo da janela, a olhar para cima.
  4498.  
  4499.  
  4500.  
  4501. CAPITULO LXXII
  4502. UMA REFORMA DRAMATI CA
  4503.  
  4504. Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta historia poderia
  4505. responder mais, tao certo e que o destino, como todos os dramaturgos, nao
  4506. anuncia as peripecias nem o desfecho. Eles chegam a seu tempo, ate que o pano
  4507. cai, apagam-se as luzes, e os espectadores vao dormir. Nesse genero ha
  4508. porventura alguma coisa que reformar, e eu proporia, como ensaio, que as pegas
  4509. comegassem pelo fim. Otelo mataria a si e a Desdemona no primeiro ato, os tres
  4510. seguintes seriam dados a agao lenta e decrescente do ciume, e o ultimo ficaria so
  4511. com as cenas iniciais da ameaga dos turcos, as explicagoes de Otelo e Desdemona,
  4512. e o bom conselho do fino I ago: "Mete dinheiro na bolsa”. Desta maneira, o
  4513. espectador, por um lado, acharia no teatro a charada habitual que os periodicos
  4514. Ihe dao, por que os ultimos atos explicam o desfecho do primeiro, especie de
  4515. conceito, e, por outro lado, ia para a cama com uma boa impressao de ternura e
  4516. de amor:
  4517.  
  4518.  
  4519.  
  4520. Ela amou o que me afligira,
  4521. Eu amei a piedade dela.
  4522.  
  4523.  
  4524.  
  4525. CAPITULO LXXII I
  4526. O CONTRA- REGRA
  4527.  
  4528.  
  4529.  
  4530. O destino nao e so dramaturgo, e tambem o seu proprio contra-regra, isto e,
  4531.  
  4532.  
  4533.  
  4534.  
  4535. designa a entrada dos personagens em cena, da-lhes as cartas e outros objetos, e
  4536. executa dentro os sinais correspondentes ao dialogo, uma trovoada, um carro, um
  4537. tiro. Quando eu era mogo, representou-se af, em nao sei que teatro, um drama
  4538. que acabava pelo jufzo final. O principal personagem era Asaverus, que no ultimo
  4539. quadra conclufa um monologo por esta exclamagao: "Ougo a trombeta do
  4540. arcanjo!" Nao se ouviu trombeta nenhuma. Asaverus, envergonhado, repetiu a
  4541. palavra, agora mais alto, para advertir o contra-regra, mas ainda nada. Entao
  4542. caminhou para o fundo, disfargadamente tragico, mas efetivamente com o fim de
  4543. falar ao bastidor, e dizer em voz surda: "O pistao! o pistao! o pistao!" O publico
  4544. ouviu esta palavra e desatou a rir, ate que, quando a trombeta soou deveras, e
  4545. Asaverus bradou pela terceira vez que era a do arcanjo, um gaiato da plateia
  4546. corrigiu ca de baixo: "Nao, senhor, e o pistao do arcanjo!"
  4547.  
  4548. Assim se explicam a minha estada debaixo da janela de Capitu e a passagem de
  4549. um cavaleiro, um dandi, como entao dizfamos. Montava um belo cavalo alazao,
  4550. firme na sela, redea na mao esquerda, a direita a cinta, botas de verniz, figura e
  4551. postura esbeltas: a cara nao me era desconhecida. Tinham passado outros, e
  4552. ainda outros viriam atras; todos iam as suas namoradas. Era uso do tempo
  4553. namorar a cavalo. Rele Alencar: "Porque um estudante (dizia um dos seus
  4554. personagens de teatro de 1858) nao pode estar sem estas duas coisas, um cavalo
  4555. e uma namorada”.Rele Alvares de Azevedo. Uma das suas poesias e destinada a
  4556. contar (1851) que residia em Catumbi, e, para ver a namorada no Catete, alugara
  4557. um cavalo por tres mil-reis... Tres mil-reis! tudo se perde na noite dos tempos!
  4558.  
  4559. Ora, o dandi do cavalo baio nao passou como os outros; era a trombeta do jufzo
  4560. final e soou a tempo; assim faz o Destino, que e o seu proprio contra-regra. O
  4561. cavaleiro nao se contentou de ir andando, mas voltou a cabega para o nosso lado,
  4562. o lado de Capitu, e olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava, a
  4563. cabega do homem deixava-se ir voltando para tras. Tal foi o segundo dente de
  4564. ciume que me mordeu. A rigor, era natural admirar as belas figuras; mas aquele
  4565. sujeito costumava passar ali, as tardes; morava no antigo Campo da Aclamagao, e
  4566. depois... e depois... Vao la raciocinar com um coragao de brasa, como era o meu!
  4567. Nem disse nada a Capitu; saf da rua a pressa, enfiei pelo meu corredor, e, quando
  4568. dei por mim, estava na sala de visitas.
  4569.  
  4570.  
  4571.  
  4572. CAPI TU LO LXXIV
  4573. A PRESILHA
  4574.  
  4575. Na sala de visitas, tio Cosme e Jose Dias conversavam, um sentado, outro
  4576. andando e parando. A vista de Jose Dias lembrou-me o que ele me dissera no
  4577. seminario: "Aquilo, enquanto nao pegar algum peralta da vizinhanga que case com
  4578. ela..." Era certamente alusao ao cavaleiro. Tal recordagao agravou a impressao
  4579. que eu trazia da rua; mas nao seria essa palavra, inconscientemente guardada,
  4580. que me dispos a crer na malfcia dos seus olhares? A vontade que tive foi pegar em
  4581. Jose Dias pela gola, leva-lo ao corredor e perguntar-lhe se falara de verdade ou
  4582. por hipotese; mas Jose Dias, que parara ao ver-me entrar, continuou a andar e a
  4583. falar. Eu, impaciente, queria ir a casa ao pe, imaginava que Capitu safsse da
  4584. janela assustada e nao tardasse a aparecer, para indagar e explicar... E os dois
  4585. falavam, ate que tio Cosme ergueu-se para ir ver a doente, e Jose Dias veio ter
  4586. comigo, ao vao da outra janela.
  4587.  
  4588. Ha um instante tinha eu desejo de Ihe perguntar o que havia entre Capitu e os
  4589. peraltas do bairro; agora, imaginando que vinha justamente dizer-mo, fiquei com
  4590. medo de ouvi-lo. Quis tapar-lhe a boca. Jose Dias viu no meu rosto algum sinal
  4591. diferente da expressao habitual, e perguntou-me com interesse:
  4592.  
  4593.  
  4594.  
  4595. — Que e, Bentinho?
  4596.  
  4597.  
  4598.  
  4599.  
  4600. Para nao fita-lo, deixei cair os olhos. Os olhos, caindo, viram que uma das
  4601. presilhas das calgas do agregado estava desabotoada, e, como ele insistisse em
  4602. saber o que e que eu tinha, respondi apontando com o dedo:
  4603.  
  4604. — Olhe a presilha, abotoe a presilha.
  4605.  
  4606. Jose Dias inclinou-se, eu saf correndo.
  4607.  
  4608.  
  4609.  
  4610. CAPITULO LXXV
  4611. O DESESPERO
  4612.  
  4613. Escapei ao agregado, escapei a minha mae nao indo ao quarto dela, mas nao
  4614. escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atras de mim. Eu falava-me,
  4615. eu perseguia-me, eu atirava-me a cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os
  4616. solugos com a ponta do lengol. Jurei nao ir ver Capitu aquela tarde, nem nunca
  4617. mais, e fazer-me padre de uma vez. Via-me ja ordenado, diante dela, que choraria
  4618. de arrependimento e me pediria perdao, mas eu, frio e sereno, nao teria mais que
  4619. desprezo, muito desprezo; voltava-lhe as costas. Chamava-lhe perversa. Duas
  4620. vezes dei por mim mordendo os dentes, como se a tivesse entre eles.
  4621.  
  4622. Da cama ouvi a voz dela, que viera passar o resto da tarde com minha mae, e
  4623. naturalmente comigo, como das outras vezes; mas, por maior que fosse o abalo
  4624. que me deu, nao me fez sair do quarto. Capitu ria alto, falava alto, como se me
  4625. avisasse; eu continuava surdo, a sos comigo e o meu desprezo. A vontade que me
  4626. dava era cravar-lhe as unhas no pescogo, enterra-las bem, ate ver-lhe sair a vida
  4627. com o sangue...
  4628.  
  4629.  
  4630.  
  4631. CAPITULO LXXVI
  4632. EXPLI CACAO
  4633.  
  4634. Ao fim de algum tempo, estava sossegado, mas abatido. Como me achasse
  4635. estirado na cama, com os olhos no teto, lembrou-me a recomendagao que minha
  4636. mae fazia de me nao deitar depois do jantar para evitar alguma congestao. Ergui-
  4637. me de golpe, mas nao saf do quarto. Capitu ria agora menos e falava mais baixo;
  4638. estaria aflita com a minha reclusao, mas nem por isso me abalou.
  4639.  
  4640. Nao ceei e dormi mal. Na manha seguinte nao estava melhor, estava diferente. A
  4641. minha dor agora complicava-se do receio de haver ido alem do que convinha,
  4642. deixando de examinar o negocio. Posto que a cabega me doesse um pouco,
  4643. simulei maior incomodo, com o fim de nao ir ao seminario e falar a Capitu. Podia
  4644. estar zangada comigo, podia nao querer-me agora e preferir o cavaleiro. Quis
  4645. resolver tudo, ouvi-la e julga-la; podia ser que tivesse defesa e explicagao.
  4646.  
  4647. Tinha ambas as coisas. Quando soube a causa da minha reclusao da vespera,
  4648. disse-me que era grande injuria que Ihe fazia; nao podia crer que depois da nossa
  4649. troca de juramentos, tao leviana a julgasse que pudesse crer... E aqui romperam-
  4650. Ihe lagrimas, e fez um gesto de separagao; mas eu acudi de pronto, peguei-lhe
  4651. das maos e beijei-as com tanta alma e calor que as senti estremecer. Enxugou os
  4652. olhos com os dedos, eu os beijei de novo, por eles e pelas lagrimas; depois
  4653. suspirou, depois abanou a cabega. Confessou-me que nao conhecia o rapaz, senao
  4654. como os outros que ali passavam as tardes, a cavalo ou a pe. Se olhara para ele,
  4655. era prova exatamente de nao haver nada entre ambos; se houvesse, era natural
  4656. dissimular.
  4657.  
  4658.  
  4659.  
  4660. — E que poderia haver, se ele vai casar? concluiu.
  4661.  
  4662.  
  4663.  
  4664.  
  4665. — Vai casar?
  4666.  
  4667.  
  4668.  
  4669. la casar, disse-me com quem, com uma moga da Rua dos Barbonos. Esta razao
  4670. quadrou-me mais que tudo, e ela o sentiu no meu gesto; nem por isso deixou de
  4671. dizer que, para evitar nova equivocagao, deixaria de ir mais a janela.
  4672.  
  4673. — Nao! nao! nao! nao Ihe pego isto!
  4674.  
  4675. Consentiu em retirar a promessa, mas fez outra, e foi que, a primeira suspeita da
  4676. minha parte, tudo estaria dissolvido entre nos. Aceitei a ameaga, e jurei que nunca
  4677. a haveria de cumprir; era a primeira suspeita e a ultima.
  4678.  
  4679.  
  4680.  
  4681. CAPITULO LXXVII
  4682. PRAZER DAS DORES VELHAS
  4683.  
  4684. Contando aquela crise do meu amor adolescente, sinto uma coisa que nao sei se
  4685. explico bem, e e que as dores daquela quadra, a tal ponto se espiritualizaram com
  4686. o tempo, que chegam a diluir-se no prazer. Nao e claro isto, mas nem tudo e claro
  4687. na vida ou nos livros. A verdade e que sinto um gosto particular em referir tal
  4688. aborrecimento, quando e certo que ele me lembra outros que nao quisera lembrar
  4689. por nada.
  4690.  
  4691.  
  4692.  
  4693. CAPITULO LXXVII I
  4694. SEGREDO POR SEGREDO
  4695.  
  4696. De resto, naquele mesmo tempo senti tal ou qual necessidade de contar a alguem
  4697. o que se passava entre mim e Capitu. Nao referi tudo, mas so uma parte, e foi
  4698. Escobar que a recebeu. Quando voltei ao seminario, na quarta-feira, achei-o
  4699. inquieto; disse-me que era sua intengao ir ver-me, se eu me demorasse mais um
  4700. dia em casa. Perguntava-me com interesse o que e que tivera, e se estava bom de
  4701. todo.
  4702.  
  4703. — Estou.
  4704.  
  4705. Ouvia, espetando-me os olhos. Tres dias depois disse que me estavam achando
  4706. muito distrafdo; era bom disfargar o mais que pudesse. Ele, a sua parte, tinha
  4707. razoes para andar distrafdo tambem, mas buscava ficar atento.
  4708.  
  4709. — Entao parece-lhe?...
  4710.  
  4711. — Sim, voce as vezes esta que nao ouve nada, olhando para ontem; disfarce,
  4712. Santiago.
  4713.  
  4714. — Tenho motivos...
  4715.  
  4716. — Creio; ninguem se distrai a toa.
  4717.  
  4718. — Escobar...
  4719.  
  4720. Hesitei; ele esperou.
  4721.  
  4722.  
  4723.  
  4724. — Que e?
  4725.  
  4726.  
  4727.  
  4728. — Escobar, voce e meu amigo, eu sou seu amigo tambem; aqui ao seminario voce
  4729. e a pessoa que mais me tern entrado no coragao, e la fora, a nao ser a gente da
  4730. famflia, nao tenho propriamente um amigo.
  4731.  
  4732.  
  4733.  
  4734.  
  4735. — Se eu disser a mesma coisa, retorquiu ele sorrindo, perde a graga; parece que
  4736. estou repetindo. Mas a verdade e que nao tenho aqui relagoes com ninguem, voce
  4737. e o primeiro e creio que ja notaram; mas eu nao me importo com isso.
  4738.  
  4739. Comovido, senti que a voz se me precipitava da garganta.
  4740.  
  4741. — Escobar, voce e capaz de guardar um segredo?
  4742.  
  4743. — Voce que pergunta e porque duvida, e nesse caso...
  4744.  
  4745. — Desculpe, e um modo de falar. Eu sei que e mogo serio, e fago de conta que me
  4746. confesso a um padre.
  4747.  
  4748. — Se precisa de absolvigao, esta absolvido.
  4749.  
  4750. — Escobar, eu nao posso ser padre. Estou aqui, os meus acreditam, e esperam;
  4751. mas eu nao posso ser padre.
  4752.  
  4753. — Nem eu, Santiago.
  4754.  
  4755. — Nem voce?
  4756.  
  4757. — Segredo por segredo; tambem eu tenho o proposito de nao acabar o curso;
  4758. meu desejo e o comercio, mas nao diga nada, absolutamente nada; fica so entre
  4759. nos. E nao e que eu nao seja religioso; sou religioso, mas o comercio e a minha
  4760. paixao.
  4761.  
  4762.  
  4763.  
  4764. — So isso?
  4765.  
  4766.  
  4767.  
  4768. — Que mais ha de ser?
  4769.  
  4770. Dei duas voltas e sussurrei a primeira palavra da minha confidence, tao escassa e
  4771. surda, que nao a ouvi eu mesmo; sei porem que disse "uma pessoa..." com
  4772. reticencia. Uma pessoa?... Nao foi preciso mais para que ele entendesse. Uma
  4773. pessoa devia ser uma moga. Nem cuides que pasmou de me ver namorado; achou
  4774. ate natural e espetou-me outra vez os olhos. Entao contei-lhe por alto o que
  4775. podia, mas demoradamente para ter o gosto de repisar o assunto. Escobar
  4776. escutava com interesse; no fim da nossa conversagao, declarou-me que era
  4777. segredo enterrado em cemiterio. Deu-me de conselho que nao me fizesse padre.
  4778. Nao podia levar para a igreja um coragao que nao era do Ceu, mas da Terra; seria
  4779. um mau padre, nem seria padre. Ao contrario, Deus protegia os sinceros; uma vez
  4780. que eu so podia servi-lo no mundo, af me cumpria ficar.
  4781.  
  4782. Nao calculas o prazer que me deu a confidence que Ihe fiz. Era como que uma
  4783. felicidade mais. Aquele coragao mogo que me ouvia e me dava razao, trazia a este
  4784. mundo um aspecto extraordinario. Era um grande e belo mundo, a vida uma
  4785. carreira excelente, e eu nem mais nem menos um mimoso do ceu; eis a minha
  4786. sensagao. Nota que eu nao Ihe disse tudo, nem o melhor; nao Ihe referi o capftulo
  4787. do penteado, por exemplo, nem outros assim; mas o contado era muito.
  4788.  
  4789. Que voltamos ao assunto, nao e preciso dize-lo. Voltamos uma e muitas vezes; eu
  4790. louvava as qualidades morais de Capitu, materia adequada a admiragao de um
  4791. seminarista, a simpleza, a modestia, o amor do trabalho e os costumes religiosos.
  4792. Nao Ihe tocava nas gragas ffsicas, nem ele me perguntava por elas; apenas
  4793. insinuei a convenience de a conhecer de vista.
  4794.  
  4795. — Agora nao e possfvel, disse-lhe na primeira semana, ao voltar de casa; Capitu
  4796. vai passar uns dias com uma amiga da Rua dos Invalidos. Quando ela vier, voce
  4797. ira la; mas pode ir antes, pode ir sempre; por que nao foi ontem jantar comigo?
  4798.  
  4799.  
  4800.  
  4801.  
  4802. — Voce nao me convidou.
  4803.  
  4804.  
  4805.  
  4806. — Pois precisa convidar? La em casa todos ficaram gostando muito de voce.
  4807.  
  4808. — Tambem eu fiquei gostando de todos, mas se e possfvel fazer distingao,
  4809. confesso-lhe que sua mae e uma senhora adoravel.
  4810.  
  4811. — Nao e verdade? retorqui cheio de alvorogo.
  4812.  
  4813.  
  4814.  
  4815. CAPI TULO LXXIX
  4816. VAMOS AO CAPITULO
  4817.  
  4818. Com efeito, gostei de ouvi-lo falar assim. Sabes a opiniao que eu tinha de minha
  4819. mae. Ainda agora, depois de interromper esta linha para mirar-lhe o retrato que
  4820. pende da parede, acho que trazia no rosto impressa aquela qualidade. Nem de
  4821. outro modo se explica a opiniao de Escobar, que apenas trocara com ela quatro
  4822. palavras. Uma so bastava a penetrar-lhe a essencia fntima; sim, sim, minha mae
  4823. era adoravel. Por mais que me estivesse entao obrigando a uma carreira que eu
  4824. nao queria, nao podia deixar de sentir que era adoravel, como uma santa.
  4825.  
  4826. E porventura era certo que me obrigava a carreira eclesiastica? Aqui chego a um
  4827. ponto, que esperei viesse depois, tanto que ja pesquisava em que altura Ihe daria
  4828. um capftulo. Realmente, nao cabia dizer agora o que so mais tarde presumi
  4829. descobrir; mas, uma vez que toquei no ponto, melhor e acabar com ele. E grave e
  4830. complexo, delicado e sutil, um destes em que o autor tern de atender ao filho, e o
  4831. filho ha de ouvir o autor, para que um e outro digam a verdade, so a verdade,
  4832. mas toda a verdade. Cabe ainda notar que esse ponto e que torna justamente a
  4833. santa mais adoravel, sem prejufzo (ao contrario!) da parte humana e terrestre que
  4834. havia nela. Basta de prefacio ao capftulo; vamos ao capftulo.
  4835.  
  4836.  
  4837.  
  4838. CAPITULO LXXX
  4839. VENHAMOS AO CAPITULO
  4840.  
  4841. Venhamos ao capftulo. Minha mae era temente a Deus; sabes disto, e das suas
  4842. praticas religiosas, e da fe pura que as animava. Nem ignoras que a minha
  4843. carreira eclesiastica era objeto de promessa feita quando fui concebido. Tudo esta
  4844. contado oportunamente. Outrossim, sabes que, para o fim de apertar o vinculo
  4845. moral da obrigagao, confiou os seus projetos e motivos a parentes e familiares. A
  4846. promessa, feita com fervor, aceita com misericordia, foi guardada por ela, com
  4847. alegria, no mais fntimo do coragao. Penso que Ihe senti o sabor da felicidade no
  4848. leite que me deu a mamar. Meu pai, se vivesse, e possfvel que alterasse os
  4849. pianos, e, como tinha a vocagao da polftica, e provavel que me encaminhasse
  4850. somente a polftica, embora os dois offcios nao fossem nem sejam inconciliaveis, e
  4851. mais de um padre entre na luta dos partidos e no governo dos homens. Mas meu
  4852. pai morrera sem saber nada, e ela ficou diante do contrato, como unica devedora.
  4853.  
  4854. Um dos aforismos de Franklin e que, para quern tern de pagar na pascoa, a
  4855. quaresma e curta. A nossa quaresma nao foi mais longa que as outras, e minha
  4856. mae, posto me mandasse ensinar latim e doutrina, comegou a adiar a minha
  4857. entrada no seminario. E o que se chama, comercialmente falando, reformar uma
  4858. letra. O credor era arquimilionario, nao dependia daquela quantia para comer, e
  4859. consentiu nas transferences de pagamento, sem sequer agravar a taxa do juro.
  4860. Um dia, porem, um dos familiares que serviam de endossantes da letra, falou da
  4861. necessidade de entregar o prego ajustado; esta num dos capftulos primeiros.
  4862. Minha mae concordou e recolhi-me a Sao Jose.
  4863.  
  4864.  
  4865.  
  4866.  
  4867. Ora, nesse mesmo capftulo, verteu ela umas lagrimas, que enxugou sem explicar,
  4868. e que nenhum dos presentes, nem tio Cosme, nem prima Justina, nem o agregado
  4869. Jose Dias entendeu absolutamente; eu, que estava atras da porta, nao as entendi
  4870. mais que eles. Bem examinadas, apesar da distancia, ve-se que eram saudades
  4871. previas, a magoa da separagao, — e pode ser tambem (e o princfpio do ponto),
  4872. pode ser que arrependimento da promessa. Catolica e devota, sentia muito bem
  4873. que as promessas se cumprem; a questao e se e oportuno e adequado faze-las
  4874. todas, e naturalmente inclinava-se a negativa. Por que e que Deus a puniria,
  4875. negando-lhe um segundo filho? A vontade divina podia ser a minha vida, sem
  4876. necessidade de Ihe dedicar ab ovo. Era um raciodnio tardio; devia ter sido feito no
  4877. dia em que fui gerado. Em todo caso, era uma conclusao primeira; mas, nao
  4878. bastando concluir para destruir, tudo se manteve, e eu fui para o seminario.
  4879.  
  4880. Um cochilo da fe teria resolvido a questao a meu favor, mas a fe velava com os
  4881. seus grandes olhos ingenuos. Minha mae faria, se pudesse, uma troca de
  4882. promessa, dando parte dos seus anos para conservar-me consigo, fora do clero,
  4883. casado e pai; e o que presumo, assim como suponho que rejeitou tal ideia, por Ihe
  4884. parecer uma deslealdade. Assim a senti sempre na corrente da vida ordinaria.
  4885.  
  4886. Sucedeu que a minha ausencia foi logo temperada pela assiduidade de Capitu.
  4887. Esta comegou a fazer-se-lhe necessaria. Pouco a pouco veio-lhe a persuasao de
  4888. que a pequena me faria feliz. Entao (e o final do ponto anuncia-lo), a esperanga de
  4889. que o nosso amor, tornando-me absolutamente incompatfvel com o seminario, me
  4890. levasse a nao ficar la nem por Deus nem pelo Diabo, esta esperanga fntima e
  4891. secreta entrou a invadir o coragao de minha mae. Neste caso, eu romperia o
  4892. contrato sem que ela tivesse culpa. Ela ficava comigo sem ato propriamente seu.
  4893. Era como se, tendo confiado a alguem a importancia de uma dfvida para leva-la ao
  4894. credor, o portador guardasse o dinheiro consigo e nao levasse nada. Na vida
  4895. comum, o ato de terceiro nao desobriga o contratante; mas a vantagem de
  4896. contratar com o Ceu e que intengao vale dinheiro.
  4897.  
  4898. Has de ter tido conflitos parecidos com esse, e, se es religioso, haveras buscado
  4899. alguma vez conciliar o Ceu e a Terra, por modo identico ou analogo. O Ceu e a
  4900. Terra acabam conciliando-se; eles sao quase irmaos gemeos, tendo o Ceu sido
  4901. feito no segundo dia e a Terra no terceiro. Como Abraao, minha mae levou o filho
  4902. ao monte da Visao, e mais a lenha para o holocausto, o fogo e o cutelo. E atou
  4903. Isaac em cima do feixe de lenha, pegou do cutelo e levantou-o ao alto. No
  4904. momento de faze-lo cair, ouve a voz do anjo que Ihe ordena da parte do Senhor:
  4905. "Nao fagas mal algum a teu filho; conheci que femes a Deus". Tal seria a
  4906. esperanga secreta de minha mae.
  4907.  
  4908. Capitu era naturalmente o anjo da Escritura. A verdade e que minha mae nao
  4909. podia te-la agora longe de si. A afeigao crescente era manifesta por atos
  4910. extraordinarios. Capitu passou a ser a flor da casa, o sol das manhas, o frescor
  4911. das tardes, a lua das noites; la vivia horas e horas, ouvindo, falando e cantando.
  4912. Minha mae apalpava-lhe o coragao, revolvia-lhe os olhos, e o meu nome era entre
  4913. ambas como a senha da vida futura.
  4914.  
  4915.  
  4916.  
  4917. CAPI TU LO LXXXI
  4918. UMA PA LAVRA
  4919.  
  4920. Assim contado o que descobri mais tarde, posso trasladar para aqui uma palavra
  4921. de minha mae. Agora se entendera que ela me dissesse, no primeiro sabado,
  4922. quando eu cheguei a casa, e soube que Capitu estava na Rua dos Invalidos, com
  4923. sinhazinha Gurgel:
  4924.  
  4925.  
  4926.  
  4927. — Por que nao vais ve-la? Nao me disseste que o pai de Sancha te ofereceu a
  4928.  
  4929.  
  4930.  
  4931.  
  4932. casa?
  4933.  
  4934.  
  4935.  
  4936. — Ofereceu.
  4937.  
  4938. — Pois entao? Mas e se queres. Capitu devia ter voltado hoje para acabar um
  4939. trabalho comigo; certamente a amiga pediu-lhe que dormisse la.
  4940.  
  4941. — Talvez ficassem namorando, insinuou prima J ustina.
  4942.  
  4943. Nao a matei por nao ter a mao ferro nem corda, pistola nem punhal; mas os olhos
  4944. que Ihe deitei, se pudessem matar, teriam suprido tudo. Um dos erros da
  4945. Providencia foi deixar ao homem unicamente os bragos e os dentes, como armas
  4946. de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos bastavam ao
  4947. primeiro efeito. Um mover deles faria parar ou cair um inimigo ou um rival,
  4948. exerceriam vinganga pronta, com este acrescimo que, para desnortear a justiga,
  4949. os mesmos olhos matadores seriam olhos piedosos, e correriam a chorar a vftima.
  4950. Prima J ustina escapou aos meus; eu e que nao escapei ao efeito da insinuagao, e
  4951. no domingo, as onze horas, corri a Rua dos Invalidos.
  4952.  
  4953. O pai de Sancha recebeu-me em desalinho e triste. A filha estava enferma; cafra
  4954. na vespera com uma febre, que se ia agravando. Como ele queria muito a filha,
  4955. pensava ja ve-la morta, e anunciou-me que se mataria tambem. Eis aqui um
  4956. capftulo funebre como um cemiterio, mortes, suicfdios e assassinatos. Eu ansiava
  4957. por um raio de luz clara e ceu azul. Foi Capitu que os trouxe a porta da sala, vindo
  4958. dizer ao pai de Sancha que a filha o mandara chamar.
  4959.  
  4960. — Esta pior? perguntou Gurgel assustado.
  4961.  
  4962. — Nao, senhor, mas quer falar-lhe.
  4963.  
  4964. — Fique aqui um bocadinho, disse-lhe ele; e voltando-se para mim: E a
  4965. enfermeira de Sancha, que nao quer outra; eu ja volto.
  4966.  
  4967. Capitu trazia sinais de fadiga e comogao, mas tao depressa me viu, ficou toda
  4968. outra, a mocinha de sempre, fresca e lepida, nao menos que espantada. Custou-
  4969. Ihe a crer que fosse eu. Falou-me, quis que Ihe falasse, e efetivamente
  4970. conversamos por alguns minutos, mas tao baixo e abafado que nem as paredes
  4971. ouviram, elas que tern ouvidos. De resto, se elas ouviram algo, nada entenderam,
  4972. nem elas nem os moveis, que estavam tao tristes como o dono.
  4973.  
  4974.  
  4975.  
  4976. CAPITULO LXXXII
  4977. O CANAPE
  4978.  
  4979. Deles, so o canape pareceu haver compreendido a nossa situagao moral, visto que
  4980. nos ofereceu os servigos da sua palhinha, com tal insistencia que os aceitamos e
  4981. nos sentamos. Data daf a opiniao particular que tenho do canape. Ele faz aliar a
  4982. intimidade e o decoro, e mostra a casa toda sem sair da sala. Dois homens
  4983. sentados nele podem debater o destino de um imperio, e duas mulheres a graga
  4984. de um vestido; mas, um homem e uma mulher so por aberragao das leis naturais
  4985. dirao outra coisa que nao seja de si mesmos. Foi o que fizemos, Capitu e eu.
  4986. Vagamente lembra-me que Ihe perguntei se a demora ali seria grande...
  4987.  
  4988. — Nao sei; a febre parece que cede... mas...
  4989.  
  4990. Tambem me lembra, vagamente, que Ihe expliquei a minha visita a Rua dos
  4991. Invalidos, com a pura verdade, isto e, a conselho de minha mae.
  4992.  
  4993.  
  4994.  
  4995. — Conselho dela? murmurou Capitu.
  4996.  
  4997.  
  4998.  
  4999.  
  5000. E acrescentou com os olhos, que brilhavam extraordinariamente:
  5001.  
  5002. — Seremos felizes!
  5003.  
  5004. Repeti estas palavras, com os simples dedos, apertando os dela. O canape, quer
  5005. visse ou nao, continuou a prestar os seus servigo as nossas maos presas e as
  5006. nossas cabegas juntas ou quase juntas.
  5007.  
  5008.  
  5009.  
  5010. CAPITULO LXXXIII
  5011. O RETRATO
  5012.  
  5013. Gurgel tornou a sala e disse a Capitu que a filha chamava por ela. Eu levantei-me
  5014. depressa e nao achei compostura; metia os olhos pelas cadeiras. Ao contrario,
  5015. Capitu ergueu-se naturalmente e perguntou-lhe se a febre aumentara.
  5016.  
  5017. — Nao, disse ele.
  5018.  
  5019. Nem sobressalto nem nada, nenhum ar de misterio da parte de Capitu; voltou-se
  5020. para mim, e disse-me que levasse lembrangas a minha mae e a prima Justina, e
  5021. que ate breve; estendeu-me a mao e enfiou pelo corredor. Todas as minhas
  5022. invejas foram com ela. Como era possfvel que Capitu se governasse tao facilmente
  5023. e eu nao?
  5024.  
  5025. — Esta uma moga, observou Gurgel olhando tambem para ela.
  5026.  
  5027. Murmurei que sim. Na verdade, Capitu ia crescendo as carreiras, as formas
  5028. arredondavam-se e avigoravam-se com grande intensidade; moralmente, a
  5029. mesma coisa. Era mulher por dentro e por fora, mulher a direita e a esquerda,
  5030. mulher por todos os lados, e desde os pes ate a cabega. Esse arvorecer era mais
  5031. apressado, agora que eu a via de dias a dias; de cada vez que vinha a casa
  5032. achava-a mais alta e mais cheia; os olhos pareciam ter outra reflexao, e a boca
  5033. outro imperio. Gurgel, voltando-se para a parede da sala, onde pendia um retrato
  5034. de moga, perguntou-me se Capitu era parecida com o retrato.
  5035.  
  5036. Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opiniao provavel do
  5037. meu interlocutor, desde que a materia nao me agrava, aborrece ou impoe. Antes
  5038. de examinar se efetivamente Capitu era parecida com o retrato, fui respondendo
  5039. que sim. Entao ele disse que era o retrato da mulher dele, e que as pessoas que a
  5040. conheceram diziam a mesma coisa. Tambem achava que as feigoes eram
  5041. semelhantes, a testa principalmente e os olhos. Quanto ao genio, era um;
  5042. pareciam irmas.
  5043.  
  5044. — Finalmente, ate a amizade que ela tern a Sanchinha; a mae nao era mais amiga
  5045. dela... Na vida ha dessas semelhangas assim esquisitas.
  5046.  
  5047.  
  5048.  
  5049. CAPI TULO LXXXI V
  5050. CHAMADO
  5051.  
  5052. No saguao e na rua, examinei ainda comigo se efetivamente ele teria desconfiado
  5053. alguma coisa, mas achei que nao e pus-me a andar. la satisfeito com a visita, com
  5054. a alegria de Capitu, com os louvores de Gurgel, a tal ponto que nao acudi logo a
  5055. uma voz que me chamava:
  5056.  
  5057.  
  5058.  
  5059. — Sr. Bentinho! Sr. Bentinho!
  5060.  
  5061.  
  5062.  
  5063.  
  5064. So depois que a voz cresceu e o dono dela chegou a porta e que eu parei e vi o
  5065. que era e onde estava. Estava ja na Rua de Mata-cavalos. A casa era uma loja de
  5066. louga, escassa e pobre; tinha as portas meio cerradas, e a pessoa que me
  5067. chamava era um pobre homem grisalho e mal vestido.
  5068.  
  5069. — Sr. Bentinho, disse-me ele chorando; sabe que meu filho Manduca morreu?
  5070.  
  5071. — Morreu?
  5072.  
  5073. — Morreu ha meia hora, enterra-se amanha. Mandei recado a sua mae agora
  5074. mesmo, e ela fez-me a caridade de mandar algumas flores para botar no caixao.
  5075. Meu pobre filho! Tinha de morrer, e foi bom que morresse, coitado, mas apesar de
  5076. tudo sempre doi. Que vida que ele teve!... Um dia destes ainda se lembrou do
  5077. senhor, e perguntou se estava no seminario... Quer ve-lo? Entre, ande ve-lo...
  5078.  
  5079. Custa-me dizer isto, mas antes peque por excessivo que por diminuto. Quis
  5080. responder que nao, que nao queria ver o Manduca, e fiz ate um gesto para fugir.
  5081. Nao era medo; noutra ocasiao pode ser ate que entrasse com facilidade e
  5082. curiosidade, mas agora ia tao contente! Ver um defunto ao voltar de uma
  5083. namorada... Ha coisas que se nao ajustam nem combinam. A simples notfcia era
  5084. ja uma turvagao grande. As minhas ideias de ouro perderam todas a cor e o metal
  5085. para se trocarem em cinza escura e feia, e nao distingui mais nada. Penso que
  5086. cheguei a dizer que tinha pressa, mas provavelmente nao falei por palavras claras,
  5087. nem sequer humanas, porque ele, encostado ao portal, abria-me espago com o
  5088. gesto, e eu, sem alma para entrar nem fugir, deixei ao corpo fazer o que pudesse,
  5089. e o corpo acabou entrando.
  5090.  
  5091. Nao culpo ao homem; para ele, a coisa mais importante do momento era o filho.
  5092. Mas tambem nao me culpem a mim; para mim, a coisa mais importante era
  5093. Capitu. O mal foi que os dois casos se conjugassem na mesma tarde, e que a
  5094. morte de um viesse meter o nariz na vida do outro. Eis o mal todo. Se eu
  5095. passasse antes ou depois, ou se o Manduca esperasse algumas horas para morrer,
  5096. nenhuma nota aborrecida viria interromper as melodias da minha alma. Por que
  5097. morrer exatamente ha meia hora? Toda hora e apropriada ao obito; morre-se
  5098. muito bem as seis ou sete horas da tarde.
  5099.  
  5100.  
  5101.  
  5102. CAPI TULO LXXXV
  5103. O DEFUNTO
  5104.  
  5105. Tal foi o sentimento confuso com que entrei na loja de louga. A loja era escura, e o
  5106. interior da casa menos luz tinha, agora que as janelas da area estavam cerradas.
  5107. A um canto da sala de jantar vi a mae chorando; a porta da alcova duas criangas
  5108. olhavam espantadas para dentro, com o dedo na boca. O cadaver jazia na cama; a
  5109. cama...
  5110.  
  5111. Suspendamos a pena e vamos a janela espairecer a memoria. Realmente, o
  5112. quadra era feio, ja pela morte, ja pelo defunto, que era horrivel... Isto aqui, sim, e
  5113. outra coisa. Tudo o que vejo la fora respira vida, a cabra que rumina ao pe de
  5114. uma carroga, a galinha que marisca no chao da rua, o trem da Estrada Central que
  5115. bufa, assobia, fumega e passa, a palmeira que investe para o ceu, e finalmente
  5116. aquela torre de igreja, apesar de nao ter musculos nem folhagem. Um rapaz, que
  5117. ali no beco empina um papagaio de papel, nao morreu nem morre, posto tambem
  5118. se chame Manduca.
  5119.  
  5120. Verdade e que o outro Manduca era mais velho que este, pouco mais velho. Teria
  5121. dezoito ou dezenove anos, mas tanto Ihe darias quinze como vinte e dois, a cara
  5122. nao permitia trazer a idade a vista, antes a escondia nas dobras da... Va, diga-se
  5123. tudo; e morto, os seus parentes sao mortos, se existe algum nao e em tal
  5124.  
  5125.  
  5126.  
  5127.  
  5128. evidencia que se vexe ou doa. Diga-se tudo; Manduca padecia de uma cruel
  5129. enfermidade, nada menos que a lepra. Vivo era feio; morto pareceu-me horrfvel.
  5130. Quando eu vi, estendido na cama, o triste corpo daquele meu vizinho, fiquei
  5131. apavorado e desviei os olhos. Nao sei que mao oculta me compeliu a olhar outra
  5132. vez, ainda que de fugida; cedi, olhei, tornei a olhar, ate que recuei de todo e saf
  5133. do quarto.
  5134.  
  5135. — Padeceu muito! suspirou o pai.
  5136.  
  5137. — Coitado de Manduca! solugava a mae.
  5138.  
  5139. Eu cuidei de sair, disse que era esperado em casa, e despedi-me. O pai
  5140. perguntou-me se Ihe faria o favor de ir ao enterro; respondi com a verdade, que
  5141. nao sabia, faria o que minha mae quisesse. E rapido saf, atravessei a loja, e saltei
  5142. a rua.
  5143.  
  5144.  
  5145.  
  5146. CAPITULO LXXXVI
  5147. AMAI , RAPAZES!
  5148.  
  5149. Era tao perto, que antes de tres minutos me achei em casa. Parei no corredor, a
  5150. tomar folego; buscava esquecer o defunto, palido e disforme, e o mais que nao
  5151. disse para nao dar a estas paginas um aspecto repugnante, mas podes imagina-lo.
  5152. Tudo arredei da vista, em poucos segundos; bastou-me pensar na outra casa, e
  5153. mais na vida e na cara fresca e lepida de Capitu... Amai, rapazes! e,
  5154. principalmente, amai mogas lindas e graciosas; elas dao remedio ao mal, aroma
  5155. ao infecto, trocam a morte pela vida... Amai, rapazes!
  5156.  
  5157.  
  5158.  
  5159. CAPI TULO LXXXVI I
  5160. A SEGE
  5161.  
  5162. Chegara ao ultimo degrau, e uma ideia me entrou no cerebro, como se estivesse a
  5163. esperar por mim, entre as grades da cancela. Ouvi de memoria as palavras do pai
  5164. de Manduca pedindo-me que fosse ao enterro no dia seguinte. Parei no degrau.
  5165. Refleti um instante; sim, podia ir ao enterro, pediria a minha mae que me
  5166. alugasse um carro...
  5167.  
  5168. Nao cuides que era o desejo de andar de carro, por mais que tivesse o gosto da
  5169. condugao. Em pequeno, lembra-me que ia assim muita vez com minha mae as
  5170. visitas de amizade ou de cerimonia, e a missa, se chovia. Era uma velha sege de
  5171. meu pai, que ela conservou o mais que pode. O cocheiro, que era nosso escravo,
  5172. tao velho como a sege, quando me via a porta, vestido, esperando minha mae,
  5173. dizia-me rindo:
  5174.  
  5175. — Pai J oao vai levar nhonho!
  5176.  
  5177. E era raro que eu nao Ihe recomendasse:
  5178.  
  5179. — Joao, demora muito as bestas; vai devagar.
  5180.  
  5181. — Nha Gloria nao gosta.
  5182.  
  5183. — Mas demora!
  5184.  
  5185. Fica entendido que era para saborear a sege, nao pela vaidade, porque ela nao
  5186. permitia ver as pessoas que iam dentro. Era uma velha sege obsoleta, de duas
  5187. rodas, estreita e curta, com duas cortinas de couro na frente, que corriam para os
  5188.  
  5189.  
  5190.  
  5191.  
  5192. lados quando era preciso entrar ou sair. Cada cortina tinha um oculo de vidro, por
  5193. onde eu gostava de espiar para fora.
  5194.  
  5195. — Senta, Bentinho!
  5196.  
  5197. — Deixa espiar, mamae!
  5198.  
  5199. E em pe, quando era mais pequeno, metia a cara no vidro, e via o cocheiro com as
  5200. suas grandes botas, escanchado na mula da esquerda, e segurando a redea da
  5201. outra; na mao levava o chicote grosso e comprido. Tudo incomodo, as botas, o
  5202. chicote e as mulas, mas ele gostava e eu tambem. Dos lados via passar as casas,
  5203. lojas ou nao, abertas ou fechadas, com gente ou sem ela, e na rua as pessoas que
  5204. iam e vinham, ou atravessavam diante da sege, com grandes pernadas ou passos
  5205. miudos. Quando havia impedimento de gente ou de animais, a sege parava, e
  5206. entao o espetaculo era particularmente interessante; as pessoas paradas na
  5207. calgada ou a porta das casas, olhavam para a sege e falavam entre si,
  5208. naturalmente sobre quern iria dentro. Quando fui crescendo em idade imaginei
  5209. que adivinhavam e diziam: "E aquela senhora da Rua de Mata-cavalos, que tern
  5210. um filho, Bentinho..."
  5211.  
  5212. A sege ia tanto com a vida recondita de minha mae, que quando ja nao havia
  5213. nenhuma outra, continuamos a andar nela, e era conhecida na rua e no bairro
  5214. pela "sege antiga". Afinal minha mae consentiu em deixa-la, sem a vender logo;
  5215. so abriu mao dela porque as despesas de cocheira a obrigaram a isso. A razao de
  5216. a guardar inutil foi exclusivamente sentimental; era a lembranga do marido. Tudo
  5217. o que vinha de meu pai era conservado como um pedago dele, um resto da
  5218. pessoa, a mesma alma integral e pura. Mas o uso, esse era filho tambem do
  5219. carrancismo que ela confessava aos amigos. Minha mae exprimia bem a fidelidade
  5220. aos velhos habitos, velhas maneiras, velhas ideias, velhas modas. Tinha o seu
  5221. museu de relfquias, pentes desusados, um trecho de mantilha; umas moedas de
  5222. cobre datadas de 1824 e 1825, e, para que tudo fosse antigo, a si mesma se
  5223. queria fazer velha; mas ja deixei dito que, neste ponto, nao alcangava tudo o que
  5224. queria.
  5225.  
  5226.  
  5227.  
  5228. CAPITULO LXXXVI II
  5229. UM PRETEXTO HONESTO
  5230.  
  5231. Nao, a ideia de ir ao enterro nao vinha da lembranga do carro e suas doguras. A
  5232. origem era outra: era porque, acompanhando o enterro no dia seguinte, nao iria
  5233. ao seminario, e podia fazer outra visita a Capitu, um tanto mais demorada. Eis af
  5234. o que era. A lembranga do carro podia vir acessoriamente depois, mas a principal
  5235. e imediata foi aquela. Voltaria a Rua dos Invalidos, a pretexto de saber de
  5236. sinhazinha Gurgel. Contava que tudo me safsse como naquele dia. Gurgel aflito,
  5237. Capitu comigo no canape, as maos presas, o penteado...
  5238.  
  5239. — Vou pedir a mamae.
  5240.  
  5241. Abri a cancela. Antes de transpo-la, assim como ouvira da memoria a palavra do
  5242. pai do morto, ouvi agora a da mae, e repeti a meia voz:
  5243.  
  5244. — Coitado de Manduca!
  5245.  
  5246.  
  5247.  
  5248. CAPI TULO LXXXIX
  5249. A RECUSA
  5250.  
  5251.  
  5252.  
  5253. Minha mae ficou perplexa quando Ihe pedi para ir ao enterro.
  5254.  
  5255.  
  5256.  
  5257.  
  5258. — Perder um dia de seminario...
  5259.  
  5260.  
  5261.  
  5262. Fiz-lhe notar a amizade que o Manduca me tinha, e depois era gente pobre... Tudo
  5263. o que me lembrou dizer, disse. Prima Justina opinou pela negativa.
  5264.  
  5265. — Voce acha que nao deve ir? perguntou-lhe minha mae.
  5266.  
  5267. — Acho que nao. Que amizade e essa que eu nunca vi?
  5268.  
  5269. Prima Justina venceu. Quando referi o caso ao agregado, este sorriu, e disse-me
  5270. que o motivo escondido da prima era provavelmente nao dar ao enterro "o lustre
  5271. da minha pessoa". Fosse o que fosse, fiquei amuado; no dia seguinte, pensando
  5272. no motivo, nao me desagradou; mais tarde achei-lhe um sabor particular.
  5273.  
  5274.  
  5275.  
  5276. CAPI TULO XC
  5277. A POLEMICA
  5278.  
  5279. No dia seguinte, passei pela casa do defunto, sem entrar nem parar, — ou, se
  5280. parei, foi so um instante, ainda mais breve que este em que vo-lo digo. Se me nao
  5281. engano, andei ate mais depressa, receando que me chamassem como na vespera.
  5282. Uma vez que nao ia ao enterro, antes longe que proximo. Fui andando e pensando
  5283. no pobre diabo.
  5284.  
  5285. Nao eramos amigos, nem nos conhedamos de muito. Intimidade, que intimidade
  5286. podia haver entre a doenga dele e a minha saude? Tivemos relagoes breves e
  5287. distantes. Fui pensando nelas, recordando algumas. Reduziam-se todas a uma
  5288. polemica, entre nos, dois anos antes, a proposito... Mai podeis crer a que
  5289. proposito foi. Foi a guerra da Crimeia.
  5290.  
  5291. Manduca vivia no interior da casa, deitado na cama, lendo por desfastio. Ao
  5292. domingo, sobre a tarde, o pai enfiava-lhe uma camisola escura, e trazia-o para o
  5293. fundo da loja, donde ele espiava um palmo da rua e a gente que passava. Era
  5294. todo o seu recreio. Foi ali que o vi uma vez, e nao fiquei pouco espantado; a
  5295. doenga ia-lhe comendo parte das carnes, os dedos queriam apertar-se; o aspecto
  5296. nao atrafa, decerto. Tinha eu de treze para quatorze anos. Da segunda vez que o
  5297. vi ali, como falassemos da guerra da Crimeia, que entao ardia e andava nos
  5298. jornais, Manduca disse que os aliados haviam de veneer, e eu respondi que nao.
  5299.  
  5300. — Pois veremos, tornou ele. So se a justiga nao veneer neste mundo, o que e
  5301. impossfvel, e a justiga esta com os aliados.
  5302.  
  5303. — Nao, senhor, a razao e dos russos.
  5304.  
  5305. Naturalmente, famos com o que nos diziam os jornais da cidade, transcrevendo os
  5306. de fora, mas pode ser tambem que cada um de nos tivesse a opiniao do seu
  5307. temperamento. Fui sempre um tanto moscovita nas minhas ideias. Defendi o
  5308. direito da Russia, Manduca fez o mesmo ao dos aliados, e o terceiro domingo em
  5309. que entrei na loja tocamos outra vez no assunto. Entao Manduca propos que
  5310. trocassemos a argumentagao por escrito, e na terga ou quarta-feira recebi duas
  5311. folhas de papel contendo a exposigao e defesa do direito dos aliados, e da
  5312. integridade da Turquia, concluindo por esta frase profetica:
  5313.  
  5314. "Os russos nao hao de entrar em Constantinople!"
  5315.  
  5316. Li-a e meti-me a refuta-la. Nao me recorda um so dos argumentos que empreguei,
  5317. nem talvez interesse conhece-los, agora que o seculo esta a expirar; mas a ideia
  5318. que me ficou deles e que eram irrespondfveis. Fui eu mesmo levar-lhe o meu
  5319.  
  5320.  
  5321.  
  5322.  
  5323. papel. Fizeram-me entrar na alcova, onde ele jazia estirado na cama, mal coberto
  5324. por uma colcha de retalhos. Ou gosto da polemica ou qualquer outra causa que
  5325. nao alcango, nao me deixou sentir toda a repugnancia que safa da cama e do
  5326. doente, e o prazer com que Ihe dei o papel foi sincero. Manduca, pela sua parte,
  5327. por mais nojosa que tivesse entao a cara, o sorriso que a acendeu dissimulou o
  5328. mal ffsico. A convicgao com que me recebeu o papel e disse que ia ler e
  5329. responderia e que nao tern palavras nossas nem alheias que a digam de todo e
  5330. com verdade; nao era exaltada, nao era ruidosa, nao tinha gestos, nem a molestia
  5331. os permitiria; era simples, grande, profunda, um gozo infinito de vitoria, antes de
  5332. saber os meus argumentos. Tinha ja papel, pena e tinta ao pe da cama. Dias
  5333. depois recebi a replica; nao me lembra se trazia coisas novas ou nao; o calor e
  5334. que crescia, e o final era o mesmo:
  5335.  
  5336. "Os russos nao hao de entrar em Constantinople!"
  5337.  
  5338. Trepliquei, e daf continuou por algum tempo uma polemica ardente, em que
  5339. nenhum de nos cedia, defendendo cada um os seus clientes com forga e brio.
  5340. Manduca era mais longo e pronto que eu. Naturalmente a mim sobravam mil
  5341. coisas que distrafam, o estudo, os recreios, a famflia, e a propria saude, que me
  5342. chamava a outros exercfcios. Manduca, salvo o palmo de rua ao domingo de tarde,
  5343. tinha so esta guerra, assunto da cidade e do mundo, mas que ninguem ia tratar
  5344. com ele. O acaso dera-lhe em mim um adversario; ele, que tinha gosto a escrita,
  5345. deitou-se ao debate, como a um remedio novo e radical. As horas tristes e
  5346. compridas eram agora breves e alegres; os olhos desaprenderam de chorar, se
  5347. porventura choravam antes. Senti esta mudanga dele nas proprias maneiras do
  5348. pai e da mae.
  5349.  
  5350. — Nao imagina como ele anda agora, depois que o senhor Ihe escreve aqueles
  5351. papeis, dizia-me o dono da loja, uma vez, a porta da rua. Fala e ri muito. Logo
  5352. que eu mando o caixeiro levar-lhe os papeis dele, entra a indagar da resposta, e
  5353. se demorara muito, e que pergunte ao moleque, quando passar. Enquanto espera,
  5354. rele jornais e toma notas. Mas tambem, apenas recebe os seus papeis, atira-se a
  5355. le-los, e comega logo a escrever a resposta. Ha ocasioes em que nao come ou
  5356. come mal; tanto que eu queria pedir-lhe uma coisa, e que nao os mande a hora
  5357. do almogo ou de jantar...
  5358.  
  5359. Fui eu que cansei primeiro. Comecei a demorar as respostas, ate que nao dei mais
  5360. nenhuma; ele ainda teimou duas ou tres vezes depois do meu silencio, mas nao
  5361. recebendo contestagao alguma, por fadiga tambem ou por nao aborrecer, acabou
  5362. de todo com as suas apologias. A ultima, como a primeira, como todas, afirmava a
  5363. mesma predigao eterna:
  5364.  
  5365. "Os russos nao hao de entrar em Constantinopla!"
  5366.  
  5367. Nao entraram, efetivamente, nem entao, nem depois, nem ate agora. Mas a
  5368. predigao sera eterna? Nao chegarao a entrar algum dia? Problema diffcil. O proprio
  5369. Manduca, para entrar na sepultura, gastou tres anos de dissolugao, tao certo e
  5370. que a natureza, como a historia, nao se faz brincando. A vida dele resistiu como a
  5371. Turquia; se afinal cedeu foi porque Ihe faltou uma alianga como a anglo-francesa,
  5372. nao se podendo considerar tal o simples acordo da Medicina e da farmacia. Morreu
  5373. afinal, como os Estados morrem; no nosso caso particular, a questao e saber, nao
  5374. se a Turquia morrera, porque a morte nao poupa a ninguem, mas se os russos
  5375. entrarao algum dia em Constantinopla; essa era a questao para o meu vizinho
  5376. leproso, debaixo da triste, rota e infecta colcha de retalhos...
  5377.  
  5378.  
  5379.  
  5380. CAPI TULO XCI
  5381. ACHADO QUE CONSOLA
  5382.  
  5383.  
  5384.  
  5385.  
  5386. E claro que as reflexoes que af deixo nao foram feitas entao, a caminho do
  5387. seminario, mas agora no gabinete do Engenho Novo. Entao, nao fiz propriamente
  5388. nenhuma, a nao ser esta: que servi de alfvio um dia ao meu vizinho Manduca.
  5389. Hoje, pensando melhor, acho que nao so servi de alfvio, mas ate Ihe dei felicidade.
  5390. E o achado consola-me; ja agora nao esquecerei mais que dei dois ou tres meses
  5391. de felicidade a um pobre diabo, fazendo-lhe esquecer o mal e o resto. E alguma
  5392. coisa na liquidagao da minha vida. Se ha no outro mundo tal ou qual premio para
  5393. as virtudes sem intengao, esta pagara um ou dois dos meus muitos pecados.
  5394. Quanto ao Manduca, nao creio que fosse pecado opinar contra a Russia, mas, se
  5395. era, ele estara purgando ha quarenta anos a felicidade que alcangou em dois ou
  5396. tres meses, — donde concluira (ja tarde) que era ainda melhor haver gemido
  5397. somente, sem opinar coisa nenhuma.
  5398.  
  5399.  
  5400.  
  5401. CAPITULO XCII
  5402.  
  5403. O Dl ABO NAO E TAO FEI O COMO SE PI NTA
  5404.  
  5405. Manduca enterrou-se sem mim. A muitos outros aconteceu a mesma coisa, sem
  5406. que eu sentisse nada, mas este caso afligiu-me particular mente pela razao ja
  5407. dita. Tambem senti nao sei que melancolia ao recordar a primeira polemica da
  5408. vida, o gosto com que ele recebia os meus papeis e se propunha a refuta-los, nao
  5409. contando o gosto do carro... Mas o tempo apagou depressa todas essas saudades
  5410. e ressurreigoes. Nem foi so ele; duas pessoas vieram ajuda-lo: Capitu, cuja
  5411. imagem dormiu comigo na mesma noite, e outra que direi no capftulo que vem. O
  5412. resto deste capftulo e so para pedir que, se alguem tiver de ler o meu livro com
  5413. alguma atengao mais da que Ihe exigir o prego do exemplar, nao deixe de concluir
  5414. que o Diabo nao e tao feio como se pinta. Quero dizer...
  5415.  
  5416. Quero dizer que o meu vizinho de Mata-cavalos, temperando o mal com a opiniao
  5417. anti-russa, dava a podridao das suas carnes um reflexo espiritual que as
  5418. consolava. Ha consolagao maiores, decerto, e uma das mais excelentes e nao
  5419. padecer esse nem outro mal algum, mas a natureza e tao divina que se diverte
  5420. com tais contrastes, e aos mais nojentos ou mais aflitos acena com uma flor. E
  5421. talvez saia assim a flor mais bela; o meu jardineiro afirma que as violetas, para
  5422. terem um cheiro superior, hao mister de estrume de porco. Nao examinei, mas
  5423. deve ser verdade.
  5424.  
  5425.  
  5426.  
  5427. CAPITULO XCII I
  5428. UM AMIGO POR UM DEFUNTO
  5429.  
  5430. Quanto a outra pessoa que teve a forga obliterativa, foi o meu colega Escobar que
  5431. no domingo, antes do meio-dia, veio ter a Mata-cavalos. Um amigo supria assim
  5432. um defunto, e tal amigo que durante cerca de cinco minutos esteve com a minha
  5433. mao entre as suas, como se me nao visse desde longos meses.
  5434.  
  5435. — Voce janta comigo, Escobar?
  5436.  
  5437. — Vim para isto mesmo.
  5438.  
  5439. Minha mae agradeceu-lhe a amizade que me tinha, e ele respondeu com muita
  5440. polidez, ainda que um tanto atado, como se carecesse de palavra pronta. Ja viste
  5441. que nao era assim, a palavra obedecia-lhe, mas o homem nao e sempre o mesmo
  5442. em todos os instantes. O que ele disse, em resumo, foi que me estimava pelas
  5443. minhas boas qualidades e aprimorada educagao; no seminario todos me queriam
  5444. bem, nem podia deixar de ser assim, acrescentou. Insistia na educagao, nos bons
  5445. exemplos, "na doce e rara mae" que o ceu me deu... Tudo isso com a voz
  5446. engasgada e tremula.
  5447.  
  5448.  
  5449.  
  5450.  
  5451. Todos ficaram gostando dele. Eu estava tao contente como se Escobar fosse
  5452. invengao minha. Jose Dias desfechou-lhe dois superlativos, tio Cosme dois
  5453. capotes, e prima Justina nao achou tacha que Ihe por; depois, sim, no segundo ou
  5454. terceiro domingo, veio ela confessar-nos que o meu amigo Escobar era um tanto
  5455. metedigo e tinha uns olhos policiais a que nao escapava nada.
  5456.  
  5457. — Sao os olhos dele, expliquei.
  5458.  
  5459. — Nem eu digo que sejam de outro.
  5460.  
  5461. — Sao olhos refletidos, opinou tio Cosme.
  5462.  
  5463. — Seguramente, acudiu Jose Dias; entretanto, pode ser que a senhora D. Justina
  5464. tenha alguma razao. A verdade e que uma coisa nao impede outra, e a reflexao
  5465. casa-se muito bem a curiosidade natural. Parece curioso, isso parece, mas...
  5466.  
  5467. — A mim parece-me um mocinho muito serio, disse minha mae.
  5468.  
  5469. — J ustamente! confirmou J ose Dias para nao discordar dela.
  5470.  
  5471. Quando eu referi a Escobar aquela opiniao de minha mae (sem Ihe contar as
  5472. outras, naturalmente), vi que o prazer dele foi extraordinario. Agradeceu, dizendo
  5473. que eram bondades, e elogiou tambem minha mae, senhora grave, distinta e
  5474. moga, muito moga... Que idade teria?
  5475.  
  5476. — J a fez quarenta, respondi eu vagamente por vaidade.
  5477.  
  5478. — Nao e possfvel! exclamou Escobar. Quarenta anos! Nem parece trinta; esta
  5479. muito moga e bonita. Tambem a alguem ha de voce sair, com esses olhos que
  5480. Deus Ihe deu; sao exatamente os dela. Enviuvou ha muitos anos?
  5481.  
  5482. Contei-lhe o que sabia da vida dela e de meu pai. Escobar escutava atento,
  5483. perguntando mais, pedindo explicagao das passagens omissas ou so escuras.
  5484. Quando eu Ihe disse que nao me lembrava nada da roga, tao pequenino viera,
  5485. contou-me duas ou tres reminiscencias dos seus tres anos de idade, ainda agora
  5486. frescas. E nao contavamos voltar a roga?
  5487.  
  5488. — Nao, agora nao voltamos mais. Olhe, aquele preto que ali vai passando, e de la.
  5489. Tomas!
  5490.  
  5491. — Nhonho!
  5492.  
  5493. Estavamos na horta da minha casa, e o preto andava em servigo; chegou-se a nos
  5494. e esperou.
  5495.  
  5496. — E casado, disse eu para Escobar. Maria onde esta?
  5497.  
  5498. — Esta socando milho, sim, senhor.
  5499.  
  5500. — Voce ainda se lembra da roga, Tomas?
  5501.  
  5502. — Alembra, sim, senhor.
  5503.  
  5504. — Bem, va-se embora.
  5505.  
  5506. Mostrei outro, mais outro, e ainda outro, este Pedro, aquele Jose, aquele outro
  5507. Damiao. . .
  5508.  
  5509.  
  5510.  
  5511. — Todas as letras do alfabeto, interrompeu Escobar.
  5512.  
  5513.  
  5514.  
  5515.  
  5516. Com efeito, eram diferentes letras, e so entao reparei nisto; apontei ainda outros
  5517. escravos, alguns com os mesmos nomes, distinguindo-se por um apelido, ou da
  5518. pessoa, como Joao Fulo, Maria Gorda, ou de nagao como Pedro Benguela, Antonio
  5519. Mozambique...
  5520.  
  5521. — E estao todos aqui em casa? perguntou ele.
  5522.  
  5523. — Nao, alguns andam ganhando na rua, outros estao alugados. Nao era possfvel
  5524. ter todos em casa. Nem sao todos os da roga; a maior parte ficou la.
  5525.  
  5526. — O que me admira e que D. Gloria se acostumasse logo a viver em casa da
  5527. cidade, onde tudo e apertado; a de la e naturalmente grande.
  5528.  
  5529. — Nao sei, mas parece. Mamae tern outras casas maiores que esta; diz porem que
  5530. ha de morrer aqui. As outras estao alugadas. Algumas sao bem grandes, como a
  5531. da Rua da Quitanda...
  5532.  
  5533. — Conhego essa; e bonita.
  5534.  
  5535. — Tern tambem no Rio Comprido, na Cidade-Nova, uma no Catete...
  5536.  
  5537. — Nao Ihe hao de faltar tetos, concluiu ele sorrindo com simpatia.
  5538.  
  5539. Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante af,
  5540. mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexoes a proposito do asseio; depois
  5541. continuamos. Quais foram as reflexoes nao me lembra agora; lembra-me so que
  5542. as achei engenhosas, e ri, ele riu tambem. A minha alegria acordava a dele, e o
  5543. ceu estava tao azul, e o ar tao claro, que a natureza parecia rir tambem conosco.
  5544. Sao assim as boas horas deste mundo. Escobar confessou esse acordo do interno
  5545. com o externo, por palavras tao finas e altas que me comoveram; depois, a
  5546. proposito da beleza moral que se ajusta a ffsica, tornou a falar de minha mae, "um
  5547. anjo dobrado", disse ele.
  5548.  
  5549.  
  5550.  
  5551. CAPITULO XCIV
  5552. I DEI AS ARITMETI CAS
  5553.  
  5554. Nao digo o mais, que foi muito. Nem ele sabia so elogiar e pensar, sabia tambem
  5555. calcular depressa e bem. Era das cabegas aritmeticas de Holmes (2 + 2 = 4). Nao
  5556. se imagina a facilidade com que ele somava ou multiplicava de cor. A divisao, que
  5557. foi sempre uma das operagoes diffceis para mim, era para ele como nada: cerrava
  5558. um pouco os olhos, voltados para cima, e sussurrava as denominagoes dos
  5559. algarismos; estava pronto. Isto com sete, treze, vinte algarismos. A vocagao era
  5560. tal que o fazia amar os proprios sinais das somas, e tinha esta opiniao que os
  5561. algarismos, sendo poucos, eram muito mais conceituosos que as vinte e cinco
  5562. letras do alfabeto.
  5563.  
  5564. — Ha letras inuteis e letras dispensaveis, dizia ele. Que servigo diverso prestam o
  5565. d e o t? Tern quase o mesmo som. O mesmo digo do b e do p, o mesmo do s, do c
  5566. e do z, o mesmo do k e do g, etc. Sao trapalhices caligraficas. Veja os algarismos:
  5567. nao ha dois que fagam o mesmo offcio; 4 e 4, e 7 e 7. E admire a beleza com que
  5568. um 4 e um 7 formam esta coisa que se exprime por 11. Agora dobre 11 e tera 22;
  5569. multiplique por igual numero, da 484, e assim por diante. Mas onde a perfeigao e
  5570. maior e no emprego do zero. O valor do zero e, em si mesmo, nada; mas o offcio
  5571. deste sinal negativo e justamente aumentar. Um 5 sozinho e um 5; ponha-lhe dois
  5572. 00, e 500. Assim, o que nao vale nada faz valer muito, coisa que nao fazem as
  5573. letras dobradas, pois eu tanto aprovo com um p como com dois pp.
  5574.  
  5575.  
  5576.  
  5577.  
  5578. Criado na ortografia de meus pais, custava-me a ouvir tais blasfemias, mas nao
  5579. ousava refuta-lo. Contudo, urn dia, proferi algumas palavras de defesa, ao que ele
  5580. respondeu que era um preconceito, e acrescentou que as ideias aritmeticas
  5581. podiam ir ao infinito, com a vantagem que eram mais faceis de menear. Assim
  5582. que, eu nao era capaz de resolver de momento um problema filosofico ou
  5583. lingufstico, ao passo que ele podia somar, em tres minutos, quaisquer quantias.
  5584.  
  5585. — Por exemplo... de-me um caso, de-me uma porgao de numeros que eu nao
  5586. saiba nem possa saber antes... olhe, de-me o numero das casas de sua mae e os
  5587. alugueis de cada uma, e se eu nao disser a soma total em dois, em um minuto,
  5588. enforque-me!
  5589.  
  5590. Aceitei a aposta, e na semana seguinte levei-lhe escritos em um papel os
  5591. algarismos das casas e dos alugueis. Escobar pegou o papel, passou-os pelos
  5592. olhos a fim de os decorar, e enquanto eu fitava o relogio, ele erguia as pupilas,
  5593. cerrava as palpebras, e sussurrava... Oh! o vento nao e mais rapido! Foi dito e
  5594. feito; em meio minuto bradava-me:
  5595.  
  5596. — Da tudo 1:070$000 mensais.
  5597.  
  5598. Fiquei pasmado. Considera que eram nao menos de nove casas, e que os alugueis
  5599. variavam de uma para outra, indo de 70$000 a 180$000. Pois tudo isto em que eu
  5600. gastaria tres ou quatro minutos, — e havia de ser no papel, — fe-lo Escobar de
  5601. cor, brincando. Olhava-me triunfalmente, e perguntava se nao era exato. Eu, so
  5602. por Ihe mostrar que sim, tirei do bolso o papelzinho que levava com a soma total,
  5603. e mostrei-lho; era aquilo mesmo, nem um erro: 1:070$000.
  5604.  
  5605. — Isto prova que as ideias aritmeticas sao mais simples, e portanto mais naturais.
  5606. A natureza e simples. A arte e atrapalhada.
  5607.  
  5608. Fiquei tao entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que nao pude
  5609. deixar de abraga-lo. Era no patio; outros seminaristas notaram a nossa efusao;
  5610. um padre que estava com eles nao gostou.
  5611.  
  5612. — A modestia, disse-nos, nao consente esses gestos excessivos; podem estimar-
  5613. se com moderagao.
  5614.  
  5615. Escobar observou-me que os outros e o padre falavam de inveja e propos-me
  5616. viver separados. Interrompi-o dizendo que nao; se era inveja, tanto pior para eles.
  5617.  
  5618. — Quebremos-lhe a castanha na boca!
  5619.  
  5620. — Mas...
  5621.  
  5622. — Fiquemos ainda mais amigos que ate aqui.
  5623.  
  5624. Escobar apertou-me a mao as escondidas, com tal forga que ainda me doem os
  5625. dedos. E ilusao, decerto, se nao e efeito das longas horas que tenho estado a
  5626. escrever sem parar. Suspendamos a pena por alguns instantes...
  5627.  
  5628.  
  5629.  
  5630. CAPITULO XCV
  5631. O PAPA
  5632.  
  5633. A amizade de Escobar fez-se grande e fecunda; a de Jose Dias nao Ihe quis ficar
  5634. atras. Na primeira semana disse-me este em casa:
  5635.  
  5636.  
  5637.  
  5638. — Agora e certo que voce vai sair ja do seminario.
  5639.  
  5640.  
  5641.  
  5642.  
  5643. — Como?
  5644.  
  5645.  
  5646.  
  5647. — Espere ate amanha. Vou jogar com eles que me chamaram; amanha, la no
  5648. quarto, no quintal, ou na rua, indo a missa, conto-lhe o que ha. A ideia e tao santa
  5649. que nao esta mal no santuario. Amanha, Bentinho.
  5650.  
  5651. — Mas e coisa certa?
  5652.  
  5653. — Certfssima!
  5654.  
  5655. No dia seguinte revelou-me o misterio. Ao primeiro aspecto, confesso que fiquei
  5656. deslumbrado. Trazia uma nota de grandeza e de espiritualidade que falava aos
  5657. meus olhos de seminarista. Era nao menos que isto. Minha mae, ao parecer dele,
  5658. estava arrependida do que fizera, e desejaria ver-me ca fora, mas entendia que o
  5659. vinculo moral da promessa a prendia indissoluvelmente. Cumpria rompe-lo, e para
  5660. tanto valia a Escritura, com o poder de desligar dado aos apostolos. Assim que, ele
  5661. e eu inamos a Roma pedir a absolvigao do papa... Que me parecia?
  5662.  
  5663. — Parece-me bem, respondi depois de alguns segundos de reflexao. Pode ser um
  5664. bom remedio.
  5665.  
  5666. — E o unico, Bentinho, e o unico! Vou ja hoje conversar com D. Gloria, exponho-
  5667. Ihe tudo, e podemos partir daqui a dois meses, ou antes...
  5668.  
  5669. — Melhor e falar domingo que vem; deixe-me pensar primeiro...
  5670.  
  5671. — Oh! Bentinho! interrompeu o agregado. Pensar em que? Voce o que quer...
  5672. Digo? Nao se amofina com o seu velho? Voce o que quer e consultar a uma
  5673. pessoa.
  5674.  
  5675. Rigorosamente, eram duas pessoas, Capitu e Escobar, mas eu neguei a pes juntos
  5676. que quisesse consultar ninguem. E que pessoa, o reitor? Nao era natural que Ihe
  5677. confiasse tal assunto. Nao, nem reitor, nem professor, nem ninguem; era so o
  5678. tempo de refletir, uma semana, no domingo daria a resposta, e desde ja Ihe dizia
  5679. que a ideia nao me parecia ma.
  5680.  
  5681. — Nao?
  5682.  
  5683. — Nao.
  5684.  
  5685. — Pois resolvamos hoje mesmo.
  5686.  
  5687. — Nao se vai a Roma brincando.
  5688.  
  5689. — Quern tern boca vai a Roma, e boca no nosso caso e a moeda. Ora, voce pode
  5690. muito bem gastar consigo... Comigo, nao; um par de calgas, tres camisas e o pao
  5691. diario, nao preciso mais. Serei como Sao Paulo, que vivia do offcio enquanto ia
  5692. pregando a palavra divina. Pois eu vou, nao prega-la, mas busca-la. Levaremos
  5693. cartas do internuncio e do bispo, cartas para o nosso ministro, cartas de
  5694. capuchinhos... Bem sei a objegao que se pode opor a esta ideia; dirao que e dado
  5695. pedir a dispensa ca de longe; mas, alem do mais que nao digo, basta refletir que e
  5696. muito mais solene e bonito ver entrar no Vaticano, e prostrar-se aos pes do papa
  5697. o proprio objeto do favor, o levita prometido, que vai pedir para sua mae
  5698. termssima e dulcissima a dispensa de Deus. Considere o quadro, voce beijando o
  5699. pe ao prfncipe dos apostolos; Sua Santidade, com o sorriso evangelico, inclina-se,
  5700. interroga, ouve, absolve e abengoa. Os anjos o contemplam, a Virgem recomenda
  5701. ao santfssimo filho que todos os seus desejos, Bentinho, sejam satisfeitos, e que o
  5702. que voce amar na Terra seja igualmente amado no Ceu...
  5703.  
  5704. Nao digo mais, porque e preciso acabar o capftulo, e ele nao acabou o discurso.
  5705.  
  5706.  
  5707.  
  5708.  
  5709. Falou a todos os meus sentimentos de catolico e de namorado. Vi a alma aliviada
  5710. de minha mae, vi a alma feliz de Capitu, ambas em casa, e eu com elas, e ele
  5711. conosco, tudo mediante uma pequena viagem a Roma, que eu so geograficamente
  5712. sabia onde ficava; espiritualmente, tambem, mas a distancia que estaria da
  5713. vontade de Capitu e que nao. Eis o ponto essencial. Se Capitu achasse longe, nao
  5714. iria; mas era preciso ouvi-la, e assim tambem a Escobar, que me daria um bom
  5715. conselho.
  5716.  
  5717.  
  5718.  
  5719. CAPITU LO XCVI
  5720. UM SUBSTITUTO
  5721.  
  5722. Expus a Capitu a ideia dejose Dias. Ouviu-me atentamente, e acabou triste.
  5723.  
  5724. — Voce indo, disse ela, esquece-me inteiramente.
  5725.  
  5726. — Nunca!
  5727.  
  5728. — Esquece. A Europa dizem que e tao bonita, e a Italia principalmente. Nao e de
  5729. la que verm as cantoras? Voce esquece-me, Bentinho. E nao havera outro meio? D.
  5730. Gloria esta morta para que voce saia do seminario.
  5731.  
  5732. — Sim, mas julga-se presa pela promessa.
  5733.  
  5734. Capitu nao achava outra ideia, nem acabava de adotar esta. De caminho, pediu-
  5735. me que, se acaso fosse a Roma, jurasse que no fim de seis meses estaria de volta.
  5736.  
  5737.  
  5738.  
  5739. — J uro.
  5740.  
  5741.  
  5742.  
  5743. — Por Deus?
  5744.  
  5745. — Por Deus, por tudo. J uro que no fim de seis meses estarei de volta.
  5746.  
  5747. — Mas se o papa nao tiver ainda soltado a voce?
  5748.  
  5749. — Mando dizer isso mesmo.
  5750.  
  5751. — E se voce mentir?
  5752.  
  5753. Esta palavra doeu-me muito, e nao achei logo que Ihe replicasse. Capitu meteu o
  5754. negocio a bulha, rindo e chamando-me disfargado. Depois, declarou crer que eu
  5755. cumpriria o juramento, mas ainda assim nao consentiu logo; ia ver se nao haveria
  5756. outra coisa, e eu que visse tambem por meu lado.
  5757.  
  5758. Quando voltei ao seminario, contei tudo ao meu amigo Escobar, que me ouviu com
  5759. igual atengao e acabou com a mesma tristeza da outra. Os olhos, de costume
  5760. fugidios, quase me comeram de contemplagao. De repente, vi-lhe no rosto um
  5761. clarao, um reflexo de ideia. E ouvi-lhe dizer com volubilidade:
  5762.  
  5763. — Nao, Bentinho, nao e preciso isso. Ha melhor, — nao digo melhor, porque o
  5764. Santo Padre vale sempre mais que tudo, — mas ha coisa que produz o mesmo
  5765. efeito.
  5766.  
  5767.  
  5768.  
  5769. — Que e?
  5770.  
  5771.  
  5772.  
  5773. — Sua mae fez promessa a Deus de Ihe dar um sacerdote, nao e? Pois bem, de-
  5774. Ihe um sacerdote, que nao seja voce. Ela pode muito bem tomar a si algum
  5775. mocinho orfao, faze-lo ordenar a sua custa, esta dado um padre ao altar, sem que
  5776. voce...
  5777.  
  5778.  
  5779.  
  5780.  
  5781. — Entendo, entendo, e isso mesmo.
  5782.  
  5783. — Nao acha? continuou ele. Consulte sobre isto o protonotario; ele Ihe dira se nao
  5784. e a mesma coisa, ou eu mesmo consulto, se quer; e se ele hesitar, fala-se ao Sr.
  5785. bispo.
  5786.  
  5787. Eu, refletindo:
  5788.  
  5789. — Sim, parece que e isso; realmente, a promessa cumpre-se, nao se perdendo o
  5790. padre.
  5791.  
  5792. Escobar observou que, pelo lado economico, a questao era facil; minha mae
  5793. gastaria o mesmo que comigo, e um orfao nao precisaria grandes comodidades.
  5794. Citou a soma dos alugueis das casas, 1.070$000, alem dos escravos...
  5795.  
  5796. — Nao ha outra coisa, disse eu.
  5797.  
  5798. — E safmos juntos.
  5799.  
  5800. — Voce tambem?
  5801.  
  5802. — Tambem eu. Vou melhorar o meu latim e saio; nem dou teologia. O proprio
  5803. latim nao e preciso; para que no comercio?
  5804.  
  5805. — In hoc signo vinces, disse eu rindo.
  5806.  
  5807. Sentia-me pilherico. Oh! como a esperanga alegra tudo. Escobar sorriu, parecendo
  5808. gostar da resposta. Depois ficamos a cuidar de nos mesmos, cada um com os seus
  5809. olhos perdidos, provavelmente. Os dele estavam assim, quando tornei de longe, e
  5810. agradeci de novo o piano lembrado; nao podia have-lo melhor. Escobar ouviu-me
  5811. contentfssimo.
  5812.  
  5813. — Ainda uma vez, disse ele gravemente, a religiao e a liberdade fazem boa
  5814. companhia.
  5815.  
  5816.  
  5817.  
  5818. CAPITULO XCVII
  5819. A SAI DA
  5820.  
  5821. Tudo se fez por esse teor. Minha mae hesitou um pouco, mas acabou cedendo,
  5822. depois que o Padre Cabral, tendo consultado o bispo, voltou a dizer-lhe que sim,
  5823. que podia ser. Saf do seminario no fim do ano.
  5824.  
  5825. Tinha entao pouco mais de dezessete... Aqui devia ser o meio do livro, mas a
  5826. inexperiencia fez-me ir atras da pena, e chego quase ao fim do papel, com o
  5827. melhor da narragao por dizer. Agora nao ha mais que leva-la a grandes pernadas,
  5828. capftulo sobre capftulo, pouca emenda, pouca reflexao, tudo em resumo. Ja esta
  5829. pagina vale por meses, outras valerao por anos, e assim chegaremos ao fim. Um
  5830. dos sacrifices que fago a esta dura necessidade e a analise das minhas emogoes
  5831. dos dezessete anos. Nao sei se alguma vez tiveste dezessete anos. Se sim, deves
  5832. saber que e a idade em que a metade do homem e a metade do menino formam
  5833. um so curioso. Eu era um curiosfssimo, diria o meu agregado Jose Dias, e nao
  5834. diria mal. O que essa qualidade superlativa me rendeu nao poderia nunca dize-lo
  5835. aqui, sem cair no erro que acabo de condenar; a analise das minhas emogoes
  5836. daquele tempo e que entrava no meu piano. Posto que filho do seminario e de
  5837. minha mae, sentia ja debaixo do recolhimento casto uns assomos de petulancia e
  5838. de atrevimento; eram do sangue, mas eram tambem das mogas que na rua ou da
  5839. janela nao me deixavam viver sossegado. Achavam-me lindo, e diziam-mo;
  5840.  
  5841.  
  5842.  
  5843.  
  5844. algumas queriam mirar de mais perto a minha beleza, e a vaidade e um princfpio
  5845. de corrupgao.
  5846.  
  5847.  
  5848.  
  5849. CAPITULO XCVIII
  5850. Cl NCO ANOS
  5851.  
  5852. Venceu a razao; fui-me aos estudos.
  5853.  
  5854. Passei os dezoito anos, os dezenove, os vinte, os vinte e um; aos vinte e dois era
  5855. bacharel em Direito.
  5856.  
  5857. Tudo mudara em volta de mim. Minha mae resolvera-se a envelhecer; ainda assim
  5858. os cabelos brancos vinham de ma vontade, aos poucos e espalhadamente; a
  5859. touca, os vestidos, os sapatos rasos e surdos eram os mesmos de outrora. Ja nao
  5860. andaria tanto de um lado para outro. Tio Cosme padecia do coragao e ia
  5861. descansar. A prima Justina apenas estava mais idosa. Jose Dias tambem, nao
  5862. tanto que me nao fizesse a fineza de ir assistir a minha graduagao, e descer
  5863. comigo a serra, lepido e vigoso, como se o bacharel fosse ele. A mae de Capitu
  5864. falecera, o pai aposentara-se no mesmo cargo em que quis dar demissao da vida.
  5865.  
  5866. Escobar comegava a negociar em cafe depois de haver trabalhado quatro anos em
  5867. uma das primeiras casas do Rio de Janeiro. Era opiniao de prima Justina que ele
  5868. afagara a ideia de convidar minha mae a segundas nupcias; mas, se tal ideia
  5869. houve, cumpre nao esquecer a grande diferenga de idade. Talvez ele nao pensasse
  5870. em mais que associa-la aos seus primeiros tentamens comerciais, e de fato, a
  5871. pedido meu, minha mae adiantou-lhe alguns dinheiros, que ele Ihe restituiu, logo
  5872. que pode, nao sem este remoque: "D. Gloria e medrosa e nao tern ambigao."
  5873.  
  5874. A separagao nao nos esfriou. Ele foi o terceiro na troca das cartas entre mim e
  5875. Capitu. Desde que a viu animou-me muito no nosso amor. As relagoes que travou
  5876. com o pai de Sancha estreitaram as que ja trazia com Capitu, e fe-lo servir a
  5877. ambos nos, como amigo. A princfpio, custou-lhe a ela aceita-lo, preferia Jose Dias,
  5878. mas Jose Dias repugnava-me por um resto de respeito de crianga. Venceu
  5879. Escobar; posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira carta, que foi mae e
  5880. avo das outras. Nem depois de casado suspendeu ele o obsequio... Que ele casou,
  5881. — adivinha com quern, — casou com a boa Sancha, a amiga de Capitu, quase irma
  5882. dela, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chamava a esta a "sua
  5883. cunhadinha". Assim se formam as afeigoes e os parentescos, as aventuras e os
  5884. livros.
  5885.  
  5886.  
  5887.  
  5888. CAPITULO XCIX
  5889. O FI LHO E A CARA DO PAI
  5890.  
  5891. Minha mae, quando eu regressei bacharel quase estalou de felicidade. Ainda ougo
  5892. a voz de Jose Dias, lembrando o evangelho de Sao J oao, e dizendo ao ver-nos
  5893. abragados:
  5894.  
  5895. — Mulher, eis af o teu filho! Filho, eis af a tua mae!
  5896.  
  5897. Minha mae, entre lagrimas:
  5898.  
  5899. — Mano Cosme, e a cara do pai, nao e?
  5900.  
  5901. — Sim, tern alguma coisa, os olhos, a disposigao do rosto. E o pai, um pouco mais
  5902. moderno, concluiu por chalaga. E diga-me agora, mana Gloria, nao foi melhor que
  5903. ele nao teimasse em ser padre? Veja se este peralta daria um padre capaz.
  5904.  
  5905.  
  5906.  
  5907.  
  5908. — Como vai o meu substituto?
  5909.  
  5910.  
  5911.  
  5912. — Vai indo, ordena-se para o ano, respondeu tio Cosme. Has de ir ver a
  5913. ordenagao; eu tambem, se o meu senhor coragao consentir. E bom que te sintas
  5914. na alma do outro, como se recebesses em ti mesmo a sagragao.
  5915.  
  5916. — Justamente! exclamou minha mae. Mas veja bem, mano Cosme, veja se nao e
  5917. a figura do meu defunto. Olha, Bentinho, olha bem para mim. Sempre achei que
  5918. te parecias com ele, agora e muito mais. O bigode e que desfaz um pouco...
  5919.  
  5920. — Sim, mana Gloria, o bigode realmente... mas e muito parecido.
  5921.  
  5922. E minha mae beijava-me com uma ternura que nao sei escrever. Tio Cosme, para
  5923. alegra-la, chamava-me doutor, Jose Dias tambem, e todos em casa, a prima, os
  5924. escravos, as visitas, Padua, a filha, e ela mesma repetiam-me o tftulo.
  5925.  
  5926.  
  5927.  
  5928. CAPI TULO C
  5929.  
  5930. "TU SERAS FELIZ, BENTINHO"
  5931.  
  5932. No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de dentro da lata, ia
  5933. pensando na felicidade e na gloria. Via o casamento e a carreira ilustre, enquanto
  5934. Jose Dias me ajudava, calado e zeloso. Uma fada invisfvel desceu ali e me disse
  5935. em voz igualmente macia e calida: "Tu seras feliz, Bentinho; tu vais ser feliz. "
  5936.  
  5937. — E por que nao seria feliz? perguntou Jose Dias, endireitando o tronco e fitando-
  5938. me.
  5939.  
  5940. — Voce ouviu? perguntei eu erguendo-me tambem, espantado.
  5941.  
  5942. — Ouviu o que?
  5943.  
  5944. — Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz?
  5945.  
  5946. — E boa! Voce mesmo e que esta dizendo...
  5947.  
  5948. Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente as fadas,
  5949. expulsas dos contos e dos versos, meteram-se no coragao da gente e falam de
  5950. dentro para fora. Esta, por exemplo, muita vez a ouvi clara e distinta. Ha de ser
  5951. prima das feiticeiras da Escocia: "Tu seras rei, Macbeth!" — "Tu seras feliz,
  5952. Bentinho!" Ao cabo, e a mesma predigao, pela mesma toada universal e eterna.
  5953. Quando voltei do meu espanto, ouvi o resto do discurso de J ose Dias:
  5954.  
  5955. —...Ha de ser feliz, como merece, assim como mereceu esse diploma que ali esta,
  5956. que nao e favor de ninguem. A distingao que tirou em todas as materias e prova
  5957. disso; ja Ihe contei que ouvi da boca dos lentes, em particular, os maiores elogios.
  5958. Demais, a felicidade nao e so a gloria, e tambem outra coisa... Ah! voce nao
  5959. confiou tudo ao velhojose Dias! O pobre J ose Dias esta af para um canto, e caju
  5960. chupado, nao vale nada; agora sao os novos, os Escobares... Nao Ihe nego que e
  5961. mogo muito distinto, e trabalhador, e marido de truz; mas, enfim, velho tambem
  5962. sabe amar...
  5963.  
  5964. — Mas que e?
  5965.  
  5966. — Que ha de ser? Quern e que nao sabe tudo?... Aquela intimidade de vizinhos
  5967. tinha de acabar nisto, que e verdadeiramente uma bengao do ceu, porque ela e
  5968. um anjo, e um anjfssimo... Perdoe a cincada, Bentinho, foi um modo de acentuar a
  5969. perfeigao daquela moga. Cuidei o contrario, outrora; confundi os modos de crianga
  5970.  
  5971.  
  5972.  
  5973.  
  5974. com expressoes de carater, e nao vi que essa menina travessa e ja de olhos
  5975. pensativos era a flor caprichosa de um fruto sadio e doce... Por que e que nao me
  5976. contou tambem o que outros sabem, e ca em casa esta mais que adivinhado e
  5977. aprovado?
  5978.  
  5979. — Mamae aprova deveras?
  5980.  
  5981. — Pois entao? Temos falado sobre isso, e ela fez-me o favor de pedir a minha
  5982. opiniao. Pergunte-lhe o que e que eu Ihe disse em termos claros e positivos;
  5983. pergunte-lhe. Disse-lhe que nao podia desejar melhor nora para si, boa, discreta,
  5984. prendada, amiga da gente... e uma dona de casa, que nao Ihe digo nada. Depois
  5985. da morte da mae, tomou conta de tudo. Padua, agora que se aposentou, nao faz
  5986. mais que receber o ordenado e entrega-lo a filha. A filha e que distribui o dinheiro,
  5987. paga as contas, faz o rol das despesas, cuida de tudo, mantimento, roupa, luz;
  5988. voce ja a viu o ano passado. E quanto a formosura voce sabe melhor que
  5989. ninguem...
  5990.  
  5991. — Mas, deveras, mamae consultou o senhor sobre o nosso casamento?
  5992.  
  5993. — Positivamente, nao; fez-me o favor de perguntar se Capitu nao daria uma boa
  5994. esposa; eu e que, na resposta, falei em nora. D. Gloria nao negou e ate deu um ar
  5995. de riso.
  5996.  
  5997. — Mamae sempre que me escrevia, falava de Capitu.
  5998.  
  5999. — Voce sabe que elas se dao muito, e por isso e que sua prima anda cada vez
  6000. mais amuada. Talvez agora case mais depressa.
  6001.  
  6002. — Prima J ustina?
  6003.  
  6004. — Nao sabe? Sao contos, naturalmente; mas enfim, o Doutor Joao da Costa
  6005. enviuvou ha poucos meses, e dizem (nao sei, o protonotario e que me contou),
  6006. dizem que os dois andam meio inclinados a acabar com a viuvez, entre si,
  6007. casando-se. Ha de ver que nao ha nada, mas nao e fora de proposito, conquanto
  6008. ela sempre achasse que o doutor era um feixe de ossos... So se ela e um
  6009. cemiterio, comentou rindo; e logo serio: Digo isto por gracejo...
  6010.  
  6011. Nao ouvi o resto. Ouvia so a voz da minha fada interior, que me repetia, mas ja
  6012. entao sem palavras: "Tu seras feliz, Bentinho!" E a voz de Capitu me disse a
  6013. mesma coisa, com termos diversos, e assim tambem a de Escobar, os quais
  6014. ambos me confirmaram a notfcia dejose Dias pela sua propria impressao. Enfim,
  6015. minha mae, algumas semanas depois, quando Ihe fui pedir licenga para casar,
  6016. alem do consentimento, deu-me igual profecia, salva a redagao propria de mae:
  6017. "Tu seras feliz, meu filho!
  6018.  
  6019.  
  6020.  
  6021. CAPITULO Cl
  6022. NO CEU
  6023.  
  6024. Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de
  6025. esperar, e va espairecer a outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma tarde de
  6026. margo, por sinal que chovia. Quando chegamos ao alto da Tijuca, onde era o
  6027. nosso ninho de noivos, o ceu recolheu a chuva e acendeu as estrelas, nao so as ja
  6028. conhecidas, mas ainda as que so serao descobertas daqui a muitos seculos. Foi
  6029. grande fineza e nao foi unica. Sao Pedro, que tern as chaves do Ceu, abriu-nos as
  6030. portas dele, fez-nos entrar, e depois de tocar-nos com o baculo, recitou alguns
  6031. versfculos da sua primeira epfstola: "As mulheres sejam sujeitas a seus maridos...
  6032. Nao seja o adorno delas o enfeite dos cabelos rigados ou as rendas de ouro, mas o
  6033. homem que esta escondido no coragao... Do mesmo modo, vos, maridos, coabitai
  6034.  
  6035.  
  6036.  
  6037.  
  6038. com elas, tratando-as com honra, como a vasos mais fracos, e herdeiras convosco
  6039. da graga da vida..." Em seguida, fez sinal aos anjos, e eles entoaram um trecho do
  6040. Cantico, tao concertadamente, que desmentiriam a hipotese do tenor italiano, se a
  6041. execugao fosse na Terra; mas era no Ceu. A musica ia com o texto, como se
  6042. houvessem nascido juntos, a maneira de uma opera de Wagner. Depois, visitamos
  6043. uma parte daquele lugar infinito. Descansa que nao farei descrigao alguma, nem a
  6044. lingua humana possui formas idoneas para tanto.
  6045.  
  6046. Ao cabo, pode ser que tudo fosse um sonho; nada mais natural a um ex-
  6047. seminarista que ouvir por toda a parte latim e Escritura. E verdade que Capitu,
  6048. que nao sabia Escritura nem latim, decorou algumas palavras, como estas, por
  6049. exemplo: "Sentei-me a sombra daquele que tanto havia desej ado". Quanto as de
  6050. Sao Pedro, disse-me no dia seguinte que estava por tudo, que eu era a unica
  6051. renda e o unico enfeite que jamais poria em si. Ao que eu repliquei que a minha
  6052. esposa teria sempre as mais finas rendas deste mundo.
  6053.  
  6054.  
  6055.  
  6056. CAPI TULO Cl I
  6057. DE CASADA
  6058.  
  6059. Imagina um relogio que so tivesse pendulo, sem mostrador, de maneira que nao
  6060. se vissem as horas escritas. O pendulo iria de um lado para outro, mas nenhum
  6061. sinal externo mostraria a marcha do tempo. Tal foi aquela semana da Tijuca.
  6062.  
  6063. De quando em quando, tornavamos ao passado e divertfamo-nos em relembrar as
  6064. nossas tristezas e calamidades, mas isso mesmo era um modo de nao sairmos de
  6065. nos. Assim vivemos novamente a nossa longa espera de namorados, os anos da
  6066. adolescencia, a denuncia que esta nos primeiros capftulos, e namos de J ose Dias
  6067. que conspirou a nossa desuniao, e acabou festejando o nosso consorcio. Uma ou
  6068. outra vez, falavamos em descer, mas as manhas marcadas eram sempre de chuva
  6069. ou de sol, e nos esperavamos um dia encoberto, que teimava em nao vir.
  6070.  
  6071. Nao obstante, achei que Capitu estava um tanto impaciente por descer.
  6072. Concordava em ficar, mas ia falando do pai e de minha mae, da falta de notfcias
  6073. nossas, disto e daquilo, a ponto que nos arrufamos um pouco. Perguntei-lhe se ja
  6074. estava aborrecida de mim.
  6075.  
  6076. — Eu?
  6077.  
  6078. — Parece.
  6079.  
  6080. — Voce ha de ser sempre crianga, disse ela fechando-me a cara entre as maos e
  6081. chegando muito os olhos aos meus. Entao eu esperei tantos anos para aborrecer-
  6082. me em sete dias? Nao, Bentinho; digo isto porque e realmente assim, creio que
  6083. eles podem estar desejosos de ver-nos e imaginar alguma doenga; e confesso,
  6084. pela minha parte, que queria ver papai.
  6085.  
  6086. — Pois vamos amanha.
  6087.  
  6088. — Nao; ha de ser com tempo encoberto, redarguiu rindo.
  6089.  
  6090. Peguei-lhe no riso e na palavra, mas a impaciencia continuou, e descemos com
  6091. sol.
  6092.  
  6093. A alegria com que pos o seu chapeu de casada, e o ar de casada com que me deu
  6094. a mao para entrar e sair do carro, e o brago para andar na rua, tudo me mostrou
  6095. que a causa da impaciencia de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado.
  6096. Nao Ihe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas arvores; precisava do
  6097. resto do mundo tambem. E quando eu me vi embaixo, pisando as ruas com ela,
  6098.  
  6099.  
  6100.  
  6101.  
  6102. parando, olhando, falando, senti a mesma coisa. Inventava passeios para que me
  6103. vissem, me confirmassem e me invejassem. Na rua, muitos voltavam a cabega
  6104. curiosos, outros paravam, alguns perguntavam: "Quern sao?" e um sabido
  6105. explicava: "Este e o Doutor Santiago, que casou ha dias com aquela moga, D.
  6106. Capitolina, depois de uma longa paixao de criangas; moram na Gloria, as famflias
  6107. residem em Mata-cavalos." E ambos os dois: "E uma mocetona!"
  6108.  
  6109.  
  6110.  
  6111. CAPITULO Cl 1 1
  6112.  
  6113. A FELI Cl DADE TEM BOA ALMA
  6114.  
  6115. Mocetona e vulgar; Jose Dias achou melhor. Foi a unica pessoa ca de baixo que
  6116. nos visitou na Tijuca, levando abragos dos nossos e palavras suas, mas palavras
  6117. que eram musicas verdadeiras; nao as ponho aqui para ir poupando papel, mas
  6118. foram deliciosas. Um dia, comparou-nos a aves criadas em dois vaos de telhados
  6119. contfguos. Imagina o resto, as aves emplumando as asas e subindo ao ceu, e o
  6120. ceu agora mais largo para poder conte-las tambem. Nenhum de nos riu; ambos
  6121. escutavamos comovidos e convencidos, esquecendo tudo, desde a tarde de
  6122. 1857... A felicidade tern boa alma.
  6123.  
  6124.  
  6125.  
  6126. CAPITULO CIV
  6127. AS PIRAMIDES
  6128.  
  6129. Jose Dias dividia-se agora entre mim e minha mae, alternando os jantares da
  6130. Gloria com os almogos de Mata-cavalos. Tudo corria bem. Ao fim de dois anos de
  6131. casado, salvo o desgosto grande de nao ter um filho, tudo corria bem. Perdera
  6132. meu sogro, e verdade, e o tio Cosme estava por pouco, mas a saude de minha
  6133. mae era boa; a nossa excelente.
  6134.  
  6135. Eu era advogado de algumas casas ricas, e os processos vinham chegando.
  6136. Escobar contribufra muito para as minhas estreias no foro. Interveio com um
  6137. advogado celebre para que me admitisse a sua banca, e arranjou-me algumas
  6138. procuragoes, tudo espontaneamente.
  6139.  
  6140. Demais, as nossas relagoes de famflia estavam previamente feitas; Sancha e
  6141. Capitu continuavam depois de casadas a amizade da escola, Escobar e eu a do
  6142. seminario. Eles moravam em Andaraf, aonde queriam que fossemos muitas vezes,
  6143. e, nao podendo ser tantas como desejavamos, famos la jantar alguns domingos,
  6144. ou eles vinham faze-lo conosco. Jantar e pouco. lamos sempre muito cedo, logo
  6145. depois do almogo, para gozarmos o dia compridamente, e so nos separavamos as
  6146. nove, dez e onze horas, quando nao podia ser mais. Agora que penso naqueles
  6147. dias de Andaraf e da Gloria, sinto que a vida e o resto nao sejam tao rijos como as
  6148. Piramides.
  6149.  
  6150. Escobar e a mulher viviam felizes; tinham uma filhinha. Em tempo ouvi falar de
  6151. uma aventura do marido, negocio de teatro, nao sei que atriz ou bailarina, mas se
  6152. foi certo, nao deu escandalo. Sancha era modesta, o marido trabalhador. Como eu
  6153. um dia dissesse a Escobar que lastimava nao ter um filho, replicou-me:
  6154.  
  6155. — Homem, deixa la. Deus os dara quando quiser, e se nao der nenhum e que os
  6156. quer para si, e melhor sera que fiquem no Ceu.
  6157.  
  6158. — Uma crianga, um filho e o complemento natural da vida.
  6159.  
  6160. — Vira, se for necessario.
  6161.  
  6162. Nao vinha. Capitu pedia-o em suas oragoes, eu mais de uma vez dava por mim a
  6163.  
  6164.  
  6165.  
  6166.  
  6167. rezar e a pedi-lo. Ja nao era como em crianga; agora pagava antecipadamente,
  6168. como os alugueis da casa.
  6169.  
  6170.  
  6171.  
  6172. CAPITULO CV
  6173. OS BRAVOS
  6174.  
  6175. No mais, tudo corria bem. Capitu gostava de rir e divertir-se, e, nos primeiros
  6176. tempos, quando famos a passeios ou espetaculos, era como um passaro que
  6177. safsse da gaiola. Arranjava-se com graga e modestia. Embora gostasse de joias,
  6178. como as outras mogas, nao queria que eu Ihe comprasse muitas nem caras, e um
  6179. dia afligiu-se tanto que prometi nao comprar mais nenhuma; mas foi so por pouco
  6180. tempo.
  6181.  
  6182. A nossa vida era mais ou menos placida. Quando nao estavamos com a famflia ou
  6183. com amigos, ou se nao famos a algum espetaculo ou serao particular (e estes
  6184. eram raros), passavamos as noites a nossa janela da Gloria, mirando o mar e o
  6185. ceu, a sombra das montanhas e dos navios, ou a gente que passava na praia. As
  6186. vezes, eu contava a Capitu a historia da cidade, outras dava-lhe notfcias de
  6187. astronomia; notfcias de amador que ela escutava atenta e curiosa, nem sempre
  6188. tanto que nao cochilasse um pouco. Nao sabendo piano, aprendeu depois de
  6189. casada, e depressa, e daf a pouco tocava nas casas de amizade. Na Gloria era
  6190. uma das nossas recreagoes; tambem cantava, mas pouco e raro, por nao ter voz;
  6191. um dia chegou a entender que era melhor nao cantar nada e cumpriu o alvitre. De
  6192. dangar gostava, e enfeitava-se com amor quando ia a um baile; os bragos e que...
  6193. Os bragos merecem um perfodo.
  6194.  
  6195. Eram belos, e na primeira noite que os levou nus a um baile, nao creio que
  6196. houvesse iguais na cidade, nem os seus, leitora, que eram entao de menina, se
  6197. eram nascidos, mas provavelmente estariam ainda no marmore, donde vieram, ou
  6198. nas maos do divino escultor. Eram os mais belos da noite, a ponto que me
  6199. encheram de desvanecimento. Conversava mal com as outras pessoas, so para
  6200. ve-los, por mais que eles se entrelagassem aos das casacas alheias. Ja nao foi
  6201. assim no segundo baile; nesse, quando vi que os homens nao se fartavam de
  6202. olhar para eles, de os buscar, quase de os pedir, e que rogavam por eles as
  6203. mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro nao fui, e aqui tive o apoio
  6204. de Escobar, a quern confiei candidamente os meus tedios; concordou logo comigo.
  6205.  
  6206. — Sanchinha tambem nao vai, ou ira de mangas compridas; o contrario parece-
  6207. me indecente.
  6208.  
  6209. — Nao e? Mas nao diga o motivo; hao de chamar-nos seminaristas. Capitu ja me
  6210. chamou assim.
  6211.  
  6212. Nem por isso deixei de contar a Capitu a aprovagao de Escobar. Ela sorriu e
  6213. respondeu que os bragos de Sanchinha eram mal feitos, mas cedeu depressa, e
  6214. nao foi ao baile; a outros foi, mas levou-os meio vestidos de escumilha ou nao sei
  6215. que, que nem cobria nem descobria inteiramente, como o cendal de Camoes.
  6216.  
  6217.  
  6218.  
  6219. CAPITULO CVI
  6220. DEZ LI BRAS ESTERLI NAS
  6221.  
  6222. Ja disse que era poupada, ou fica dito agora, e nao so de dinheiro mas tambem de
  6223. coisas usadas, dessas que se guardam por tradigao, por lembranga ou por
  6224. saudade. Uns sapatos, por exemplo, uns sapatinhos rasos de fitas pretas que se
  6225. cruzavam no peito do pe e princfpio da perna, os ultimos que usou antes de calgar
  6226. botinas, trouxe-os para casa, e tirava-os de longe em longe da gaveta da comoda,
  6227.  
  6228.  
  6229.  
  6230.  
  6231. com outras velharias, dizendo-me que eram pedagos de crianga. Minha mae, que
  6232. tinha o mesmo genio, gostava de ouvir falar e fazer assim.
  6233.  
  6234. Quanto as puras economias de dinheiro, direi um caso, e basta. Foi justamente
  6235. por ocasiao de uma ligao de astronomia, a Praia da Gloria. Sabes que alguma vez
  6236. a fiz cochilar um pouco. Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal forga e
  6237. concentragao, que me deu ciumes.
  6238.  
  6239. — Voce nao me ouve, Capitu.
  6240.  
  6241. — Eu? Ougo perfeitamente.
  6242.  
  6243. — O que e que eu dizia?
  6244.  
  6245. — Voce... voce falava de Sirius.
  6246.  
  6247. — Qual Sirius, Capitu. Ha vinte minutos que eu falei de Sirius.
  6248.  
  6249. — Falava de... falava de Marte, emendou ela apressada.
  6250.  
  6251. Realmente, era de Marte, mas e claro que so apanhara o som da palavra, nao o
  6252. sentido. Fiquei serio, e o fmpeto que me deu foi deixar a sala; Capitu, ao percebe-
  6253. lo, fez-se a mais mimosa das criaturas, pegou-me na mao, confessou-me que
  6254. estivera contando, isto e, somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que
  6255. nao achava. Tratava-se de uma conversao de papel em ouro. A princfpio supus
  6256. que era um recurso para desenfadar-me, mas daf a pouco estava eu mesmo
  6257. calculando tambem, ja entao com papel e lapis, sobre o joelho, e dava a diferenga
  6258. que ela buscava.
  6259.  
  6260. — Mas que libras sao essas? perguntei-lhe no fim.
  6261.  
  6262. Capitu fitou-me rindo, e replicou que a culpa de romper o segredo era minha.
  6263. Ergueu-se, foi ao quarto e voltou com dez libras esterlinas, na mao; eram as
  6264. sobras do dinheiro que eu Ihe dava mensalmente para as despesas.
  6265.  
  6266. — Tudo isto?
  6267.  
  6268. — Nao e muito, dez libras so; e o que a avarenta de sua mulher pode arranjar, em
  6269. alguns meses, concluiu fazendo tinir o ouro na mao.
  6270.  
  6271. — Quern foi o corretor?
  6272.  
  6273. — O seu amigo Escobar.
  6274.  
  6275. — Como e que ele nao me disse nada?
  6276.  
  6277. — Foi hoje mesmo.
  6278.  
  6279. — Ele esteve ca?
  6280.  
  6281. — Pouco antes de voce chegar; eu nao disse para que voce nao desconfiasse.
  6282.  
  6283. Tive vontade de gastar o dobro do ouro em algum presente comemorativo, mas
  6284. Capitu deteve-me. Ao contrario, consultou-me sobre o que havfamos de fazer
  6285. daquelas libras.
  6286.  
  6287. — Sao suas, respondi.
  6288.  
  6289.  
  6290.  
  6291. — Sao nossas, emendou.
  6292.  
  6293.  
  6294.  
  6295.  
  6296. — Pois voce guarde-as.
  6297.  
  6298.  
  6299.  
  6300. No dia seguinte, fui ter com Escobar ao armazem, e ri-me do segredo de ambos.
  6301. Escobar sorriu e disse-me que estava para ir ao meu escritorio contar-me tudo. A
  6302. cunhadinha (continuava a dar este nome a Capitu) tinha-lhe falado naquilo por
  6303. ocasiao da nossa ultima visita a Andaraf, e disse-lhe a razao do segredo.
  6304.  
  6305. — Quando contei isto a Sanchinha, concluiu ele, ficou espantada: "Como e que
  6306. Capitu pode economizar, agora que tudo esta tao caro?” — "Nao sei, filha; sei que
  6307. arranjou dez libras.”
  6308.  
  6309. — Ve se ela aprende tambem.
  6310.  
  6311. — Nao creio; Sanchinha nao e gastadeira, mas tambem nao e poupada; o que Ihe
  6312. dou chega, mas so chega.
  6313.  
  6314. Eu, depois de alguns instantes de reflexao:
  6315.  
  6316. — Capitu e um anjo!
  6317.  
  6318. Escobar concordou de cabega, mas sem entusiasmo, como quern sentia nao poder
  6319. dizer o mesmo da mulher. Assim pensarias tu tambem, tao certo e que as virtudes
  6320. das pessoas proximas nos dao tal ou qual vaidade, orgulho ou consolagao.
  6321.  
  6322.  
  6323.  
  6324. CAPI TULO CVI I
  6325.  
  6326. ci Ones do mar
  6327.  
  6328. Se nao fosse a astronomia, nao descobriria eu tao cedo as dez libras de Capitu;
  6329. mas nao e por isso que torno a ela, e para que nao cuides que a vaidade de
  6330. professor e que me fez padecer com a desatengao de Capitu e ter ciumes do mar.
  6331. Nao, meu amigo. Venho explicar-te que tive tais ciumes pelo que podia estar na
  6332. cabega de minha mulher, nao fora ou acima dela. E sabido que as distragoes de
  6333. uma pessoa podem ser culpadas, metade culpadas, um tergo, um quinto, um
  6334. decimo de culpadas, pois que em materia de culpa a graduagao e infinita. A
  6335. recordagao de uns simples olhos basta para fixar outros que os recordem e se
  6336. deleitem com a imaginagao deles. Nao e mister pecado efetivo e mortal, nem
  6337. papel trocado, simples palavra, aceno, suspiro ou sinal ainda mais miudo e leve.
  6338. Um anonimo ou anonima que passe na esquina da rua faz com que metamos
  6339. Sirius dentro de Marte, e tu sabes, leitor, a diferenga que ha de um a outro na
  6340. distancia e no tamanho, mas a astronomia tern dessas confusoes. Foi isto que me
  6341. fez empalidecer, calar e querer fugir da sala para voltar, Deus sabe quando;
  6342. provavelmente, dez minutos depois. Dez minutos depois, estaria eu outra ve z na
  6343. sala, ao piano ou a janela, continuando a ligao interrompida:
  6344.  
  6345. — Marte esta a distancia de...
  6346.  
  6347. Tao pouco tempo? Sim, tao pouco tempo, dez minutos. Os meus ciumes eram
  6348. intensos, mas curtos; com pouco derrubaria tudo, mas com o mesmo pouco ou
  6349. menos reconstruiria o ceu, a terra e as estrelas.
  6350.  
  6351. A verdade e que fiquei mais amigo de Capitu, se era possfvel, ela ainda mais
  6352. meiga, o ar mais brando, as noites mais claras, e Deus mais Deus. E nao foram
  6353. propriamente as dez libras esterlinas que fizeram isto, nem o sentimento de
  6354. economia que revelavam e que eu conhecia, mas as cautelas que Capitu
  6355. empregou para o fim de descobrir-me um dia o cuidado de todos os dias. Escobar
  6356. tambem se me fez mais pegado ao coragao. As nossas visitas foram-se tornando
  6357. mais proximas, e as nossas conversagoes mais fntimas.
  6358.  
  6359.  
  6360.  
  6361.  
  6362. CAPITULO CVII I
  6363. UM FILHO
  6364.  
  6365. Pois nem tudo isso me matava a sede de um filho, um triste menino que fosse,
  6366. amarelo e magro, mas um filho, um filho proprio da minha pessoa. Quando famos
  6367. a Andaraf e vfamos a filha de Escobar e Sancha, familiarmente Capituzinha, por
  6368. diferenga-la de minha mulher, visto que Ihe deram o mesmo nome a pia,
  6369. ficavamos cheios de invejas. A pequena era graciosa e gorducha, faladeira e
  6370. curiosa. Os pais, como os outros pais, contavam as travessuras e agudezas da
  6371. menina, e nos, quando voltavamos a noite para a Gloria, vfnhamos suspirando as
  6372. nossas invejas, e pedindo mentalmente ao Ceu que no-las matasse...
  6373.  
  6374. ...As invejas morreram, as esperangas nasceram, e nao tardou que viesse ao
  6375. mundo o fruto delas. Nao era escasso nem feio, como eu ja pedia, mas um
  6376. rapagao robusto e lindo.
  6377.  
  6378. A minha alegria quando ele nasceu, nao sei dize-la; nunca a five igual, nem creio
  6379. que a possa haver identica, ou que de longe ou de perto se parega com ela. Foi
  6380. uma vertigem e uma loucura. Nao cantava na rua por natural vergonha, nem em
  6381. casa para nao afligir Capitu convalescente. Tambem nao cafa, porque ha um deus
  6382. para os pais novos. Fora, vivia com o espfrito no menino; em casa, com os olhos,
  6383. a observa-lo, a mira-lo, a perguntar-lhe donde vinha, e por que e que eu estava
  6384. tao inteiramente nele, e varias outras tolices sem palavras, mas pensadas ou
  6385. deliradas a cada instante. Talvez perdi algumas causas no foro por descuido.
  6386.  
  6387. Capitu nao era menos terna para ele e para mim. Davamos as maos um ao outro,
  6388. e, quando nao olhavamos para o nosso filho, conversavamos de nos, do nosso
  6389. passado e do nosso futuro. As horas de maior encanto e misterio eram as de
  6390. amamentagao. Quando eu via o meu filho chupando o leite da mae, e toda aquela
  6391. uniao da natureza para a nutrigao e vida de um ser que nao fora nada, mas que o
  6392. nosso destino afirmou que seria, e a nossa constancia e o nosso amor fizeram que
  6393. chegasse a ser, ficava que nao sei dizer nem digo; positivamente nao me lembra,
  6394. e receio que o que dissesse me safsse escuro.
  6395.  
  6396. Escusai minucias. Assim que, nao e preciso contar a dedicagao de minha mae e de
  6397. Sancha, que tambem foi passar com Capitu os primeiros dias e noites. Quis
  6398. rejeitar o obsequio de Sancha; respondeu-me que eu nao tinha nada com isso;
  6399. tambem Capitu, em solteira, fora trata-la a Rua dos Invalidos.
  6400.  
  6401. — Nao se lembra que o senhor foi la ve-la?
  6402.  
  6403. — Lembra-me; mas Escobar...
  6404.  
  6405. — Eu virei jantar com voces, e as noites sigo para Andaraf; oito dias, e esta tudo
  6406. passado. Bern se ve que voce e pai de primeira viagem.
  6407.  
  6408. — Tambem voce; onde esta a segunda?
  6409.  
  6410. Usavamos entao estas gragas em famflia. Fioje, que me recolhi a minha
  6411. casmurrice, nao sei se ainda ha tal linguagem, mas deve haver. Escobar cumpriu o
  6412. que disse; jantava conosco, e ia-se a noite. Sobre tarde desefamos a praia ou
  6413. famos ao Passeio Publico, fazendo ele os seus calculos, eu os meus sonhos. Eu via
  6414. o meu filho medico, advogado, negociante, meti-o em varias universidades e
  6415. bancos, e ate aceitei a hipotese de ser poeta. A possibilidade de politico foi
  6416. consultada, e cri que me safsse orador, e grande orador.
  6417.  
  6418.  
  6419.  
  6420. — Pode ser, redarguia Escobar; ninguem diria o que veio a se Demostenes.
  6421.  
  6422.  
  6423.  
  6424.  
  6425. Escobar acompanhava muita vez as minhas criancices; tambem interrogava o
  6426. futuro. Chegou a falar da hipotese de casar o pequeno com a filha. A amizade
  6427. existe; esteve toda nas maos com que apertei as de Escobar, ao ouvir-lhe isto, e
  6428. na total ausencia de palavras com que ali assinei o pacto; estas vieram depois, de
  6429. atropelo, afinadas pelo coragao, que batia com grande forga. Aceitei a lembranga,
  6430. e propus que os encaminhassemos a este fim, pela educagao igual e comum, pela
  6431. infancia unida e correta.
  6432.  
  6433. Era minha ideia que Escobar fosse padrinho do pequeno; a madrinha devia ser e
  6434. seria minha mae. Mas a primeira parte se trocou por intervengao do tio Cosme,
  6435. que, ao ver a crianga, disse-lhe entre outros carinhos:
  6436.  
  6437. — Anda, toma a bengao a teu padrinho, velhaco.
  6438.  
  6439. E, voltando-se para mim:
  6440.  
  6441. — Nao desisto do favor; e ha de ser depressa o batizado, antes que a minha
  6442. doenga me leve de vez.
  6443.  
  6444. Contei discretamente a anedota a Escobar, para que ele me compreendesse e
  6445. desculpasse; riu-se e nao se magoou. Fez mais, quis que o almogo do batizado
  6446. fosse na chacara dele, e foi. Eu ainda tentei espagar a cerimonia a ver se tio
  6447. Cosme sucumbia primeiro a doenga, mas parece que esta era mais de aborrecer
  6448. que de matar. Nao houve remedio senao levar o menino a pia, onde se Ihe deu o
  6449. nome de Ezequiel; era o de Escobar, e eu quis suprir deste modo a falta de
  6450. compadrio.
  6451.  
  6452.  
  6453.  
  6454. CAPI TULO CIX
  6455. UM FILHO UNI CO
  6456.  
  6457. Ezequiel, quando comegou o capftulo anterior, nao era ainda gerado; quando
  6458. acabou era cristao e catolico. Este outro e destinado a fazer chegar o meu Ezequiel
  6459. aos cinco anos, um rapagao bonito, com os seus olhos claros, ja inquietos, como
  6460. se quisessem namorar todas as mogas da vizinhanga, ou quase todas.
  6461.  
  6462. Agora, se considerares que ele foi unico, que nenhum outro veio, certo nem
  6463. incerto, morto nem vivo, um so e unico, imaginaras os cuidados que nos deu, os
  6464. sonos que nos tirou, e que sustos nos meteram as crises dos dentes e outras, a
  6465. menor febrfcula, toda a existencia comum das criangas. A tudo acudfamos,
  6466. segundo cumpria e urgia, coisa que nao era necessario dizer, mas ha leitores tao
  6467. obtusos, que nada entendem, se Ihes nao relata tudo e o resto. Vamos ao resto.
  6468.  
  6469.  
  6470.  
  6471. CAPITULO CX
  6472. RASGOS DA I NFANCI A
  6473.  
  6474. O resto come-me ainda muitos capftulos; ha vidas que os tern menos, e fazem-se
  6475. ainda assim completas e acabadas.
  6476.  
  6477. Aos cinco e seis anos, Ezequiel nao parecia desmentir os meus sonhos da Praia da
  6478. Gloria; ao contrario, adivinhavam-se nele todas as vocagoes possfveis, desde
  6479. vadio ate apostolo. Vadio e aqui posto no bom sentido, no sentido de homem que
  6480. pensa e cala; metia-se as vezes consigo, e nisto fazia lembrar a mae, desde
  6481. pequena. Assim tambem, agitava-se todo e instava por ir persuadir as vizinhas
  6482. que os doces que eu Ihe trazia eram doces deveras; nao o fazia antes de farto
  6483. deles, mas tambem os apostolos nao levam a boa doutrina senao depois de a
  6484. terem toda no coragao. Escobar, bom negociante, opinava que a causa principal
  6485.  
  6486.  
  6487.  
  6488.  
  6489. desta outra inclinagao, talvez fosse convidar implicitamente as vizinhas a igual
  6490. apostolado, quando os pais Ihe trouxessem doces; e ria-se da propria graga, e
  6491. anunciava-me que o faria seu socio.
  6492.  
  6493. Gostava de musica, nao menos que de doce, e eu disse a Capitu que Ihe tirasse ao
  6494. piano o pregao do preto das cocadas de Mata-cavalos...
  6495.  
  6496. — Nao me lembra.
  6497.  
  6498. — Nao diga isso; voce nao se lembra daquele preto que vendia doce, as tardes...
  6499.  
  6500. — Lembra- me de um preto que vendia doce, mas nao sei mais da toada.
  6501.  
  6502. — Nem das palavras?
  6503.  
  6504. — Nem das palavras.
  6505.  
  6506. A leitora, que ainda se lembrara das palavras, dado que me tenha lido com
  6507. atengao, ficara espantada de tamanho esquecimento, tanto mais que Ihe
  6508. lembrarao ainda as vozes da sua infancia e adolescencia; havera olvidado
  6509. algumas, mas nem tudo fica na cabega. Assim me replicou Capitu, e nao achei
  6510. treplica. Fiz, porem, o que ela nao esperava; corri aos meus papeis velhos. Em
  6511. Sao Paulo, quando estudante, pedi a um professor de musica que me
  6512. transcrevesse a toada do pregao; ele o fez com prazer (bastou-me repetir-lho de
  6513. memoria), e eu guardei o papelzinho; fui procura-lo. Dai a pouco interrompi um
  6514. romance que ela tocava, com o pedacinho de papel na mao. Expliquei-lho; ela
  6515. teclou as dezesseis notas.
  6516.  
  6517. Capitu achou a toada um sabor particular, quase delicioso; contou ao filho a
  6518. historia do pregao, e assim o cantava e teclava. Ezequiel aproveitou a musica para
  6519. pedir-me que desmentisse o texto, dando-lhe algum dinheiro.
  6520.  
  6521. Fazia de medico, de militar, de ator e bailarino. Nunca Ihe dei oratorios; mas
  6522. cavalos de pau e espada a cinta eram com ele. Ja nao falo dos batalhoes que
  6523. passavam na rua, e que ele corria a ver; todas as criangas o fazem. O que nem
  6524. todas fazem e ter os olhos que esta tinha. Em nenhuma vi as ansias de gosto com
  6525. que assistia a passagem da tropa e ouvia tocar a marcha dos tambores.
  6526.  
  6527. — Olha, papai! olha!
  6528.  
  6529. — Estou vendo, meu filho!
  6530.  
  6531. — Olha o comandante! Olha o cavalo do comandante! Olha os soldados!
  6532.  
  6533. Um dia amanheceu tocando corneta com a mao; dei-lhe uma cornetinha de metal.
  6534. Comprei-lhe soldadinhos de chumbo, gravuras de batalhas que ele mirava por
  6535. muito tempo, querendo que Ihe explicasse uma pega de artilharia, um soldado
  6536. cafdo, outro de espada algada, e todos os seus amores iam para o de espada
  6537. algada. Um dia (ingenua idade!) perguntou-me impaciente:
  6538.  
  6539. — Mas, papai, por que e que ele nao deixa cair a espada de uma vez?
  6540.  
  6541. — Meu filho, e porque e pintado.
  6542.  
  6543. — Mas entao por que e que ele se pintou?
  6544.  
  6545. Ri-me do engano e expliquei-lhe que nao era o soldado que se tinha pintado no
  6546. papel, mas o gravador, e tive de explicar tambem o que era gravador e o que era
  6547. gravura: as curiosidades de Capitu, em suma.
  6548.  
  6549.  
  6550.  
  6551.  
  6552. Tais sao os principals rasgos da infancia: mais um e acabo o capftulo. Um dia, na
  6553. chacara de Escobar, deu com um gato que tinha um rato atravessado na boca. O
  6554. gato nem deixava a presa, nem via por onde fugisse. Ezequiel nao disse nada,
  6555. deteve-se, acocorou-se, e ficou olhando. Ao ve-lo assim atento, perguntamos-lhe
  6556. de longe o que era; fez-nos sinal que nos calassemos. Escobar concluiu:
  6557.  
  6558. — Vao ver que e o gato que apanhou algum rato. Os ratos continuam a infestar-
  6559. me a casa, que e o diabo. Vamos ver.
  6560.  
  6561. Capitu quis tambem ver o filho; acompanhei-os. Efetivamente, era um gato e um
  6562. rato, lance banal, sem interesse nem graga. A unica circunstancia particular era
  6563. estar o rato vivo, esperneando, e o meu pequeno enlevado. De resto, o instante
  6564. foi curto. O gato, logo que sentiu mais gente, dispos-se a correr; o menino, sem
  6565. tirar-lhe os olhos de cima, fez-nos outro sinal de silencio; e o silencio nao podia
  6566. ser maior. la dizer religioso, risquei a palavra, mas aqui a ponho outra vez, nao so
  6567. por significar a totalidade do silencio, mas tambem porque havia naquela agao do
  6568. gato e do rato alguma coisa que prendia com ritual. O unico rumor eram os
  6569. ultimos guinchos do rato, alias frouxfssimos; as pernas mal se Ihe moviam e
  6570. desordenadamente. Um tanto aborrecido, bati palmas para que o gato fugisse, e o
  6571. gato fugiu. Os outros nem tiveram tempo de atalhar-me, Ezequiel ficou abatido.
  6572.  
  6573. — Ora, papai!
  6574.  
  6575. — Que foi? A esta hora o rato esta comido.
  6576.  
  6577. — Pois sim, mas eu queria ver.
  6578.  
  6579. Os dois riram-se; eu mesmo achei-lhe graga.
  6580.  
  6581.  
  6582.  
  6583. CAPI TU LO CXI
  6584. CONTADO DEPRESSA
  6585.  
  6586. Achei-lhe graga, e nao Ihe nego ainda agora, apesar do tempo passado, dos
  6587. sucessos ocorridos e da tal ou qual simpatia ao rato que acho em mim; teve
  6588. graga. Nao me pesa dize-lo; os que amam a natureza como ela quer ser amada,
  6589. sem repudio parcial nem exclusoes injustas, nao acham nela nada inferior. Amo o
  6590. rato, nao desamo o gato. Ja pensei em os fazer viver juntos, mas vi que sao
  6591. incompatfveis. Em verdade, um roi-me os livros, outro o queijo; mas nao e muito
  6592. que eu Ihes perdoe, se ja perdoei a um cachorro que me levou o descanso em
  6593. piores circunstancias. Contarei o caso depressa.
  6594.  
  6595. Foi quando nasceu Ezequiel; a mae estava com febre, Sancha vivia ao pe dela, e
  6596. tres caes na rua latiam toda a noite. Procurei o fiscal, e foi como se procurasse o
  6597. leitor, que so agora sabe disto. Entao resolvi mata-los; comprei veneno, mandei
  6598. fazer tres bolas de carne, e eu mesmo inseri nelas a droga. De noite, saf; era uma
  6599. hora; nem a doente, nem a enfermeira podiam dormir, com a bulha dos caes.
  6600. Quando eles me viram, afastaram-se, dois desceram para o lado da Praia do
  6601. Flamengo, um ficou a curta distancia, como que esperando. Fui-me a ele,
  6602. assobiando e dando estalinhos com os dedos. O diabo ainda latiu, mas fiado nos
  6603. sinais de amizade, foi-se calando, ate que se calou de todo. Como eu continuasse,
  6604. ele veio a mim, devagar, mexendo a cauda, que e o seu modo de rir deles; eu
  6605. tinha ja na mao as bolas envenenadas, e ia deitar-lhe uma delas, quando aquele
  6606. riso especial, carinho, confianga ou o que quer que seja, me atou a vontade; fiquei
  6607. assim nao sei como, tocado de pena e guardei as bolas no bolso. Ao leitor pode
  6608. parecer que foi o cheiro da carne que remeteu o cao ao silencio. Nao digo que
  6609. nao; eu cuido que ele nao me quis atribuir perffdia ao gesto, e entregou-se-me. A
  6610. conclusao e que se livrou.
  6611.  
  6612.  
  6613.  
  6614.  
  6615. CAPITULO CXI I
  6616. AS IMITACOES DE EZEQUIEL
  6617.  
  6618.  
  6619.  
  6620. Tal nao faria Ezequiel. Nao comporia bolas envenenadas, suponho, mas nao as
  6621. recusaria tambem. O que faria com certeza era ir atras dos caes, a pedrada, ate
  6622. onde Ihe dessem as pernas. E se tivesse um pau, iria a pau. Capitu morria por
  6623. aquele batalhador futuro.
  6624.  
  6625. — Nao sai a nos, que gostamos da paz, disse-me ela um dia, mas papai em mogo
  6626. era assim tambem; mamae e que contava.
  6627.  
  6628. — Sim, nao saira maricas, repliquei; eu so Ihe descubro um defeitozinho, gosta de
  6629. imitar os outros.
  6630.  
  6631. — I mitar como?
  6632.  
  6633. — I mitar os gestos, os modos, as atitudes; imita prima J ustina, imita J ose Dias; ja
  6634. Ihe achei ate um jeito dos pes de Escobar e dos olhos...
  6635.  
  6636. Capitu deixou-se estar pensando e olhando para mim, e disse afinal que era
  6637. preciso emenda-lo. Agora reparava que realmente era vezo do filho, mas parecia-
  6638. Ihe que era so imitar por imitar, como sucede a muitas pessoas grandes, que
  6639. tomam as maneiras dos outros; e para que nao fosse mais longe...
  6640.  
  6641. — Tambem nao vamos mortifica-lo. Sempre ha tempo de corrigi-lo.
  6642.  
  6643. — Ha, vou ver. Voce tambem nao era assim, quando se zangava com alguem...
  6644.  
  6645. — Quando me zangava, concordo; vinganga de menino.
  6646.  
  6647. — Sim, mas eu nao gosto de imitagoes em casa.
  6648.  
  6649. — E naquele tempo gostavas de mim? disse eu batendo-lhe na face.
  6650.  
  6651. A resposta de Capitu foi um riso doce de escarnio, um desses risos que nao se
  6652. descrevem, e apenas se pintarao; depois estirou os bragos e atirou-mos sobre os
  6653. ombros, tao cheios de graga que pareciam (velha imagem!) um colar de flores. Eu
  6654. fiz o mesmo aos meus, e senti nao haver ali um escultor que nos transferisse a
  6655. atitude a um pedago de marmore. So brilharia o artista, e certo. Quando uma
  6656. pessoa ou um grupo saem bem, ninguem quer saber do modelo, mas da obra, e a
  6657. obra e que fica. Nao importa; nos sabenamos que eramos nos.
  6658.  
  6659.  
  6660.  
  6661. CAPITULO CXIII
  6662. EMBARGOS DE TERCEI RO
  6663.  
  6664. Por falar nisto, e natural que me perguntes se, sendo antes tao cioso dela, nao
  6665. continuei a se-lo apesar do filho e dos anos. Sim, senhor, continuei. Continuei, a
  6666. tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais fnfima palavra, uma insistence
  6667. qualquer; muita vez so a indiferenga bastava. Cheguei a ter ciumes de tudo e de
  6668. todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, mogo ou maduro, me
  6669. enchia de terror ou desconfianga. E certo que Capitu gostava de ser vista, e o
  6670. meio mais proprio a tal fim (disse-me uma senhora, um dia) e ver tambem, e nao
  6671. ha ver sem mostrar que se ve.
  6672.  
  6673. A senhora que me disse isto cuido que gostou de mim, e foi naturalmente por nao
  6674. achar da minha parte correspondence aos seus afetos que me explicou daquela
  6675.  
  6676.  
  6677.  
  6678.  
  6679. maneira os seus olhos teimosos. Outros olhos me procuravam tambem, nao
  6680. muitos, e nao digo nada sobre eles, tendo alias confessado a princfpio as minhas
  6681. aventuras vindouras, mas eram ainda vindouras. Naquele tempo, por mais
  6682. mulheres bonitas que achasse, nenhuma receberia a minima parte do amor que
  6683. tinha a Capitu. A minha propria mae nao queria mais que metade. Capitu era tudo
  6684. e mais que tudo; nao vivia nem trabalhava que nao fosse pensando nela. Ao
  6685. teatro (arnos juntos; so me lembra que fosse duas vezes sem ela, um beneffcio de
  6686. ator, e uma estreia de opera, a que ela nao foi por ter adoecido, mas quis por
  6687. forga que eu fosse. Era tarde para mandar o camarote a Escobar; saf, mas voltei
  6688. no fim do primeiro ato. Encontrei Escobar a porta do corredor.
  6689.  
  6690. — Vinha falar-te, disse-me ele.
  6691.  
  6692. Expliquei-lhe que tinha safdo para o teatro donde voltara receoso de Capitu, que
  6693. ficara doente.
  6694.  
  6695. — Doente de que? perguntou Escobar.
  6696.  
  6697. — Queixava-se da cabega e do estomago.
  6698.  
  6699. — Entao, vou-me embora. Vinha para aquele negocio dos embargos...
  6700.  
  6701. Eram uns embargos de terceiro; ocorrera um incidente importante, e, tendo ele
  6702. jantado na cidade, nao quis ir para casa sem dizer-me o que era, mas ja agora
  6703. falaria depois...
  6704.  
  6705. — Nao, falemos ja, sobe; ela pode estar melhor. Se estiver pior, desces.
  6706.  
  6707. Capitu estava melhor e ate boa. Confessou-me que apenas tivera uma dor de
  6708. cabega de nada, mas agravara o padecimento para que eu fosse divertir-me. Nao
  6709. falava alegre, o que me fez desconfiar que mentia, para me nao meter medo, mas
  6710. jurou que era a verdade pura. Escobar sorriu e disse:
  6711.  
  6712. — A cunhadinha esta tao doente como voce ou eu. Vamos aos embargos.
  6713.  
  6714.  
  6715.  
  6716. CAPITU LO CXIV
  6717.  
  6718. EM QUE SE EXPLICA O EXPLICADO
  6719.  
  6720. Antes de ir aos embargos, expliquemos ainda um ponto que ja ficou explicado,
  6721. mas nao bem explicado. Viste que eu pedi (cap. CX) a um professor de musica de
  6722. Sao Paulo que me escrevesse a toada daquele pregao de doces de Mata-cavalos.
  6723. Em si, a materia e chocha, e nao vale a pena de um capftulo, quanto mais dois;
  6724. mas ha materias tais que trazem ensinamentos interessantes, senao agradaveis.
  6725. Expliquemos o explicado.
  6726.  
  6727. Capitu e eu tfnhamos jurado nao esquecer mais aquele pregao; foi em momento
  6728. de grande ternura, e o tabeliao divino sabe as coisas que se juram em tais
  6729. momentos, ele que as registra nos livros eternos.
  6730.  
  6731. — Voce jura?
  6732.  
  6733. — J uro, disse ela estendendo tragicamente o brago.
  6734.  
  6735. Aproveitei o gesto para beijar-lhe a mao; estava ainda no seminario. Quando fui
  6736. para Sao Paulo, querendo um dia relembrar a toada, vi que a ia perdendo
  6737. inteiramente; consegui recorda-la e corri ao professor, que me fez o obsequio de a
  6738. escrever no pedacinho de papel. Foi para nao faltar ao juramento que fiz isto. Mas
  6739. has de crer que, quando corri aos papeis velhos, naquela noite da Gloria, tambem
  6740.  
  6741.  
  6742.  
  6743.  
  6744. nao me lembrava ja da toada nem do texto? Fiz-me de pontual ao juramento, e
  6745. este e que foi o meu pecado; esquecer, qualquer esquece.
  6746.  
  6747. Ao certo, ninguem sabe se ha de manter ou nao urn juramento. Coisas futuras!
  6748. Portanto, a nossa constituigao polftica, transferindo o juramento a afirmagao
  6749. simples, e profundamente moral. Acabou com um pecado ternvel. Faltar ao
  6750. compromisso e sempre infidelidade, mas a alguem que tenha mais temor a Deus
  6751. que aos homens nao Ihe importara mentir, uma vez ou outra, desde que nao mete
  6752. a alma no purgatorio. Nao confundam purgatorio com inferno, que e o eterno
  6753. naufragio. Purgatorio e uma casa de penhores, que empresta sobre todas as
  6754. virtudes, a juro alto e prazo curto. Mas os prazos renovam-se, ate que um dia
  6755. uma ou duas virtudes medianas pagam todos os pecados grandes e pequenos.
  6756.  
  6757.  
  6758.  
  6759. CAPITULO CXV
  6760. DUVI DAS SOBRE DUVI DAS
  6761.  
  6762. Vamos agora aos embargos... E por que iremos aos embargos? Deus sabe o que
  6763. custa escreve-los, quanto mais conta-los. Da circunstancia nova que Escobar me
  6764. trazia apenas digo o que Ihe disse entao, isto e, que nao valia nada.
  6765.  
  6766. — Nada?
  6767.  
  6768. — Quase nada.
  6769.  
  6770. — Entao vale alguma coisa.
  6771.  
  6772. — Para reforgar as razoes que ja temos vale menos que o cha que voce vai tomar
  6773. comigo.
  6774.  
  6775. — E tarde para tomar cha.
  6776.  
  6777. — Tomaremos depressa.
  6778.  
  6779. Tomamos depressa. Durante ele, Escobar olhava para mim desconfiado, como se
  6780. cuidasse que eu recusava a circunstancia nova por forrar-me a escreve-la; mas tal
  6781. suspeita nao ia com a nossa amizade.
  6782.  
  6783. Quando ele saiu, referi as minhas duvidas a Capitu; ela as desfez com a arte fina
  6784. que possufa, um jeito, uma graga toda sua, capaz de dissipar as mesmas tristezas
  6785. de Olfmpio.
  6786.  
  6787. — Seria o negocio dos embargos, concluiu; e ele que veio ate aqui, a esta hora, e
  6788. que esta impressionado com a demanda.
  6789.  
  6790. — Tens razao.
  6791.  
  6792. Palavra puxa palavra, falei de outras duvidas. Eu era entao um pogo delas;
  6793. coaxavam dentro de mim, como verdadeiras ras, a ponto de me tirarem o sono
  6794. algumas vezes. Disse-lhe que comegava a achar minha mae um tanto fria e
  6795. arredia com ela. Pois aqui mesmo valeu a arte fina de Capitu!
  6796.  
  6797. — J a disse a voce o que e; coisas de sogra. Mamaezinha tern ciumes de voce; logo
  6798. que eles passem e as saudades aumentem, ela torna a ser o que era. Em Ihe
  6799. faltando o neto...
  6800.  
  6801.  
  6802.  
  6803. — Mas eu tenho notado que ja e fria tambem com Ezequiel. Quando ele vai
  6804. comigo, mamae nao Ihe faz as mesmas gragas.
  6805.  
  6806.  
  6807.  
  6808.  
  6809. — Quem sabe se nao anda doente?
  6810.  
  6811. — Vamos nos jantar com ela amanha?
  6812.  
  6813. — Vamos... Nao... Pois vamos.
  6814.  
  6815. Fomos jantar com a minha velha. Ja Ihe podia chamar assim, posto que os seus
  6816. cabelos brancos nao o fossem todos nem totalmente, e o rosto estivesse
  6817. comparativamente fresco; era uma especie de mocidade quinquagenaria ou de
  6818. ancianidade vigosa, a escolha... Mas nada de melancolias; nao quero falar dos
  6819. olhos molhados, a entrada e a safda. Pouco entrou na conversagao. Tambem nao
  6820. era diferente da costumada. Jose Dias falou do casamento e suas belezas, da
  6821. polftica, da Europa e da homeopatia, tio Cosme das suas molestias, prima Justina
  6822. da vizinhanga, ou de J ose Dias, quando este safa da sala.
  6823.  
  6824. Quando voltamos, a noite, viemos por ali a pe, falando das minhas duvidas. Capitu
  6825. novamente me aconselhou que esperassemos. Sogras eram todas assim; la vinha
  6826. um dia e mudavam. Ao passo que me falava, recrudescia de ternura. Dali em
  6827. diante foi cada vez mais doce comigo; nao me ia esperar a janela, para nao
  6828. espertar-me os ciumes, mas quando eu subia, via no alto da escada, entre as
  6829. grades da cancela, a cara deliciosa da minha amiga e esposa, risonha como toda a
  6830. nossa infancia. Ezequiel as vezes estava com ela; nos o havfamos acostumado a
  6831. ver o osculo da chegada e da safda, e ele enchia-me a cara de beijos.
  6832.  
  6833.  
  6834.  
  6835. CAPITULO CXVI
  6836. FILHO DO HOMEM
  6837.  
  6838. Apalpei Jose Dias sobre as maneiras novas de minha mae; ficou espantado. Nao
  6839. havia nada, nem podia haver coisa nenhuma, tantos eram os louvores incessantes
  6840. que ele ouvia "a bela e virtuosa Capitu."
  6841.  
  6842. — Agora, quando os ougo, entro tambem no coro; mas a princfpio ficava
  6843. envergonhadfssimo. Para quem chegou, como eu, a arrenegar deste casamento,
  6844. era duro confessar que ele foi uma verdadeira bengao do Ceu. Que digna senhora
  6845. nos saiu a crianga travessa de Mata-cavalos! O pai e que nos separou um pouco,
  6846. enquanto nao nos conhecfamos, mas tudo acabou em bem. Pois, sim, senhor,
  6847. quando D. Gloria elogia a sua nora e comadre...
  6848.  
  6849. — Entao, mamae?...
  6850.  
  6851. — Perfeitamente!
  6852.  
  6853. — Mas, por que e que nao nos visita ha tanto tempo?
  6854.  
  6855. — Creio que tern andado mais achacada dos seus reumatismos. Este ano tern feito
  6856. muito frio... Imagine a afligao dela, que andava o dia inteiro; agora e obrigada a
  6857. estar quieta, ao pe do irmao, que la tern o seu mal...
  6858.  
  6859. Quis observar-lhe que tal razao explicava a interrupgao das visitas, e nao a frieza
  6860. quando famos nos a Mata-cavalos; mas nao estendi tao longe a intimidade do
  6861. agregado. Jose Dias pediu para ver o nosso "profetazinho" (assim chamava a
  6862. Ezequiel) e fez-lhe as festas do costume. Desta vez falou ao modo bfblico (estivera
  6863. na vespera a folhear o livro de Ezequiel, como soube depois) e perguntava-lhe:
  6864. "Como vai isso, filho do homem?" "Dize-me, filho do homem, onde estao os teus
  6865. brinquedos?" "Queres comer doce, filho do homem?”
  6866.  
  6867.  
  6868.  
  6869. — Que filho do homem e esse? perguntou-lhe Capitu agastada.
  6870.  
  6871.  
  6872.  
  6873.  
  6874. — Sao os modos de dizer da Bfblia.
  6875.  
  6876.  
  6877.  
  6878. — Pois eu nao gosto deles, replicou ela com aspereza.
  6879.  
  6880. — Tern razao, Capitu, concordou o agregado. Voce nao imagina como a Bfblia e
  6881. cheia de expressoes cruas e grosseiras. Eu falava assim para variar... Tu como
  6882. vais, meu anjo? Meu anjo, como e que eu ando na rua?
  6883.  
  6884. — Nao, atalhou Capitu; ja Ihe vou tirando esse costume de imitar os outros.
  6885.  
  6886. — Mas tern muita graga; a mim, quando ele copia os meus gestos, parece-me que
  6887. sou eu mesmo, pequenino. Outro dia chegou a fazer um gesto de D. Gloria, tao
  6888. bem que ela Ihe deu um beijo em paga. Vamos, como e que eu ando?
  6889.  
  6890. — Nao, Ezequiel, disse eu, mamae nao quer.
  6891.  
  6892. Eu mesmo achava feio tal sestro. Alguns dos gestos ja Ihe iam ficando mais
  6893. repetidos, como os das maos e pes de Escobar; ultimamente, ate apanhara o
  6894. modo de voltar a cabega deste, quando falava, e o de deixa-la cair, quando ria.
  6895. Capitu ralhava. Mas o menino era travesso, como o diabo; apenas comegamos a
  6896. falar de outra coisa, saltou ao meio da sala, dizendo a J ose Dias:
  6897.  
  6898. — O senhor anda assim.
  6899.  
  6900. Nao podemos deixar de rir, eu mais que ninguem. A primeira pessoa que fechou a
  6901. cara, que o repreendeu e chamou a si foi Capitu.
  6902.  
  6903. — Nao quero isso, ouviu?
  6904.  
  6905.  
  6906.  
  6907. CAPITULO CXVII
  6908. AMIGOS PROXI MOS
  6909.  
  6910. Ja entao Escobar deixara Andaraf e comprara uma casa no Flamengo, casa que
  6911. ainda ali vi, ha dias, quando me deu na gana experimentar se as sensagoes
  6912. antigas estavam mortas ou dormiam so; nao posso dize-lo bem, porque os sonos,
  6913. quando sao pesados, confundem vivos e defuntos, a nao ser a respiragao. Eu
  6914. respirava um pouco, mas pode ser que fosse do mar, meio agitado. Enfim, passei,
  6915. acendi um charuto, e dei por mim no Catete; tinha subido pela Rua da Princesa,
  6916. uma rua antiga... 6 ruas antigas! 6 casas antigas! 6 pernas antigas! Todos nos
  6917. eramos antigos, e nao e preciso dizer que no mau sentido, no sentido de velho e
  6918. acabado.
  6919.  
  6920. Velha e a casa, mas nao Ihe alteraram nada. Nao sei ate se ainda tern o mesmo
  6921. numero. Nao digo que numero e para nao irem indagar e cavar a historia. Nao e
  6922. que Escobar ainda la more nem sequer viva; morreu pouco depois, por um modo
  6923. que hei de contar. Enquanto viveu, uma vez que estavamos tao proximos,
  6924. tfnhamos por assim dizer uma so casa, eu vivia na dele, ele na minha, e o pedago
  6925. de praia entre a Gloria e o Flamengo era como um caminho de uso proprio e
  6926. particular. Fazia-me pensar nas duas casas de Mata-cavalos, com o seu muro de
  6927. permeio.
  6928.  
  6929. Um historiador da nossa lingua, creio que Joao de Barros, poe na boca de um rei
  6930. barbaro algumas palavras mansas, quando os portugueses Ihe propunham
  6931. estabelecer ali ao pe uma fortaleza; dizia o rei que os bons amigos deviam ficar
  6932. longe uns dos outros, nao perto, para se nao zangarem como as aguas do mar
  6933. que batiam furiosas no rochedo que eles viam dali. Que a sombra do escritor me
  6934. perdoe, se eu duvido que o rei dissesse tal palavra nem que ela seja verdadeira.
  6935. Provavelmente foi o mesmo escritor que a inventou para adornar o texto, e nao
  6936.  
  6937.  
  6938.  
  6939.  
  6940. fez mal, porque e bonita; realmente, e bonita. Eu creio que o mar entao batia na
  6941. pedra, como e seu costume, desde Ulisses e antes. Agora que a comparagao seja
  6942. verdadeira e que nao. Seguramente ha inimigos contfguos, mas tambem ha
  6943. amigos de perto e do peito. E o escritor esquecia (salvo se ainda nao era do seu
  6944. tempo), esquecia o adagio: longe dos olhos, longe do coragao. Nos nao podfamos
  6945. ter os coragoes agora mais perto. As nossas mulheres viviam na casa uma da
  6946. outra, nos passavamos as noites ca ou la conversando, jogando ou mirando o
  6947. mar. Os dois pequenos passavam dias, ora no Flamengo, ora na Gloria.
  6948.  
  6949. Como eu observasse que podia acontecer com eles o que se dera entre mim e
  6950. Capitu, acharam todos que sim, e Sancha acrescentou que ate ja se iam
  6951. parecendo. Eu expliquei:
  6952.  
  6953. — Nao; e porque Ezequiel imita os gestos dos outros.
  6954.  
  6955. Escobar concordou comigo, e insinuou que alguma vez as criangas que se
  6956. frequentam muito acabam parecendo-se umas com as outras. Opinei de cabega,
  6957. como me sucedia nas materias que eu nao sabia bem nem mal. Tudo podia ser. O
  6958. certo e que eles se queriam muito, e podiam acabar casados, mas nao acabaram
  6959. casados.
  6960.  
  6961.  
  6962.  
  6963. CAPI TU LO CXVIII
  6964. A MAO DE SANCHA
  6965.  
  6966. Tudo acaba, leitor; e um velho trufsmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o
  6967. que dura, dura muito tempo. Esta segunda parte nao acha crentes faceis; ao
  6968. contrario, a ideia de que um castelo de vento dura mais que o mesmo vento de
  6969. que e feito, dificilmente se despegara da cabega, e e bom que seja assim, para
  6970. que se nao perca o costume daquelas construgoes quase eternas.
  6971.  
  6972. O nosso castelo era solido, mas um domingo... Na vespera tfnhamos passado a
  6973. noite no Flamengo, nao so os dois casais inseparaveis, como ainda o agregado e
  6974. prima Justina. Foi entao que Escobar, falando-me a janela, disse-me que fossemos
  6975. la jantar no dia seguinte; precisavamos falar de um projeto em famflia, um projeto
  6976. para os quatro.
  6977.  
  6978. — Para os quatro? Uma contradanga.
  6979.  
  6980. — Nao. Nao es capaz de adivinhar o que seja, nem eu digo. Vem amanha.
  6981.  
  6982. Sancha nao tirava os olhos de nos durante a conversa, ao canto da janela. Quando
  6983. o marido saiu, veio ter comigo. Perguntou-me de que e que falaramos; disse-lhe
  6984. que de um projeto que eu nao sabia qual fosse; ela pediu-me segredo, e revelou-
  6985. me o que era: uma viagem a Europa dali a dois anos. Disse isto de costas para
  6986. dentro, quase suspirando. O mar batia com grande forga na praia; havia ressaca.
  6987.  
  6988. — Vamos todos? perguntei por fim.
  6989.  
  6990. — Vamos.
  6991.  
  6992. Sancha ergueu a cabega e olhou para mim com tanto prazer que eu, gragas as
  6993. relagoes dela e Capitu, nao se me daria beija-la na testa. Entretanto, os olhos de
  6994. Sancha nao convidavam a expansoes fraternais, pareciam quentes e intimativos,
  6995. diziam outra coisa, e nao tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei
  6996. olhando para o mar, pensativo. A noite era clara.
  6997.  
  6998.  
  6999.  
  7000. Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pe do piano; encontrei-os em
  7001. caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando que
  7002.  
  7003.  
  7004.  
  7005.  
  7006. os outros passassem, mas nenhuns passavam. Tal se da na rua entre dois
  7007. teimosos. A cautela desligou-nos; eu tornei a voltar-me para fora. E assim posto
  7008. entrei a cavar na memoria se alguma vez olhara para ela com a mesma
  7009. expressao, e fiquei incerto. Tive uma certeza so, e que um dia pensei nela, como
  7010. se pensa na bela desconhecida que passa; mas entao dar-se-ia que ela,
  7011. adivinhando. . . Talvez o simples pensamento me transluzisse ca fora, e ela me
  7012. fugisse outrora irritada ou acanhada, e agora por um movimento invencfvel...
  7013. Invencfvel; esta palavra foi como uma bengao de padre a missa, que a gente
  7014. recebe e repete em si mesma.
  7015.  
  7016. — O mar amanha esta de desafiar a gente, disse-me a voz de Escobar, ao pe de
  7017. mim.
  7018.  
  7019. — Voce entra no mar amanha?
  7020.  
  7021. — Tenho entrado com mares maiores, muito maiores. Voce nao imagina o que e
  7022. um bom mar em hora bravia. E preciso nadar bem, como eu, e ter estes pulmoes,
  7023. disse ele batendo no peito, e estes bragos; apalpa.
  7024.  
  7025. Apalpei-lhe os bragos, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta confissao,
  7026. mas nao posso suprimi-la; era jarretar a verdade. Nao so os apalpei com essa
  7027. ideia, mas ainda senti outra coisa; achei-os mais grossos e fortes que os meus, e
  7028. tive-lhes inveja; acresce que sabiam nadar.
  7029.  
  7030. Quando safmos, tornei a falar com os olhos a dona da casa. A mao dela apertou
  7031. muito a minha, e demorou-se mais que de costume.
  7032.  
  7033. A modestia pedia entao, como agora, que eu visse naquele gesto de Sancha uma
  7034. sangao ao projeto do marido e um agradecimento. Assim devia ser, mas um fluido
  7035. particular que me correu todo o corpo desviou de mim a conclusao que deixo
  7036. escrita. Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros.
  7037. Foi um instante de vertigem e de pecado. Passou depressa no relogio do tempo;
  7038. quando cheguei o relogio ao ouvido trabalhavam so os minutos da virtude e da
  7039. razao.
  7040.  
  7041. — ... Uma senhora deliciosfssima, concluiu Jose Dias um discurso que vinha
  7042. fazendo.
  7043.  
  7044. — Deliciosfssima! repeti com algum ardor, que moderei logo, emendando-me:
  7045. Realmente, uma bela noite!
  7046.  
  7047. — Como devem ser todas as daquela casa, continuou o agregado. Ca fora, nao; ca
  7048. fora o mar esta zangado; escute.
  7049.  
  7050. Ouvia-se o mar forte, — como ja se ouvia de casa, — a ressaca era grande e, a
  7051. distancia, viam-se crescer as ondas. Capitu e prima Justina, que iam adiante,
  7052. detiveram-se numa das voltas da praia, e fomos conversando os quatro; mas eu
  7053. conversava mal. Nao havia meio de esquecer inteiramente a mao de Sancha nem
  7054. os olhos que trocamos. Agora achava-lhes isto, agora aquilo. Os instantes do
  7055. Diabo intercalavam-se nos minutos de Deus, e o relogio foi assim marcando
  7056. alternativamente a minha perdigao e a minha salvagao. Jose Dias despediu-se de
  7057. nos a porta. Prima Justina dormiu em nossa casa; iria embora, no dia seguinte,
  7058. depois do almogo e da missa. Eu recolhi-me ao meu gabinete, onde me demorei
  7059. mais que de costume.
  7060.  
  7061. O retrato de Escobar, que eu tinha ali, ao pe do de minha mae, falou-me como se
  7062. fosse a propria pessoa. Combati sinceramente os impulsos que trazia do
  7063. Flamengo; rejeitei a figura da mulher do meu amigo, e chamei-me desleal.
  7064. Demais, quern me afirmava que houvesse alguma intengao daquela especie no
  7065. gesto da despedida e nos anteriores? Tudo podia ligar-se ao interesse da nossa
  7066.  
  7067.  
  7068.  
  7069.  
  7070. viagem. Sancha e Capitu eram tao amigas que seria um prazer mais para elas
  7071. irem juntas. Quando houvesse alguma intengao sexual, quem me provaria que nao
  7072. era mais que uma sensagao fulgurante, destinada a morrer com a noite e o sono?
  7073. Ha remorsos que nao nascem de outro pecado, nem tern maior duragao. Agarrei-
  7074. me a esta hipotese que se conciliava com a mao de Sancha, que eu sentia de
  7075. memoria dentro da minha mao, quente e demorada, apertada e apertando...
  7076.  
  7077. Sinceramente, eu achava-me mal entre um amigo e a atragao. A timidez pode ser
  7078. que fosse outra causa daquela crise; nao e so o Ceu que da as nossas virtudes, a
  7079. timidez tambem, nao contando o acaso, mas o acaso e um mero acidente; a
  7080. melhor origem delas e o ceu. Entretanto, como a timidez vem do ceu, que nos da
  7081. a compleigao, a virtude, filha dela, e, genealogicamente, o mesmo sangue
  7082. celestial. Assim refletiria, se pudesse; mas a princfpio vaguei a toa. Paixao nao
  7083. era, nem inclinagao. Capricho seria, ou que? Ao fim de vinte minutos era nada,
  7084. inteiramente nada. O retrato de Escobar pareceu falar-me; vi-lhe a atitude franca
  7085. e simples, sacudi a cabega e fui deitar-me.
  7086.  
  7087.  
  7088.  
  7089. CAPITU LO CXIX
  7090. NAO FACA I SSO, QUERI DA!
  7091.  
  7092. A leitora, que e minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina
  7093. de ontem para a valsa de hoje, quer fecha-lo as pressas, ao ver que beiramos um
  7094. abismo. Nao faga isso, querida; eu mudo de rumo.
  7095.  
  7096.  
  7097.  
  7098. CAPITULO CXX
  7099. OS AUTOS
  7100.  
  7101. Na manha seguinte acordei livre das abominagoes da vespera; chamei-lhes
  7102. alucinagoes, tomei cafe, percorri os jornais e fui estudar uns autos. Capitu e prima
  7103. Justina safram para a missa das nove, na Lapa. A figura de Sancha desapareceu
  7104. inteiramente no meio das alegagoes da parte adversa, que eu ia lendo nos autos,
  7105. alegagoes falsas, inadmissfveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era facil
  7106. ganhar a demanda; consultei Dalloz, Pereira e Sousa...
  7107.  
  7108. Uma so vez olhei para o retrato de Escobar. Era uma bela fotografia tirada um ano
  7109. antes. Estava de pe, sobrecasaca abotoada, a mao esquerda no dorso de uma
  7110. cadeira, a direita metida ao peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador.
  7111. Tinha garbo e naturalidade. A moldura que Ihe mandei por nao encobria a
  7112. dedicatoria, escrita embaixo, nao nas costas do cartao: "Ao meu querido Bentinho
  7113. o seu querido Escobar 20- 4-70".Estas palavras fortaleceram-me os pensamentos
  7114. daquela manha, e espancaram de todo as recordagoes da vespera. Naquele tempo
  7115. a minha vista era boa; eu podia le-las do lugar em que estava. Tornei aos autos.
  7116.  
  7117.  
  7118.  
  7119. CAPITULO CXXI
  7120. A CATASTROFE
  7121.  
  7122. No melhor deles, ouvi passos precipitados na escada, a campainha soou, soaram
  7123. palmas, golpes na cancela, vozes, acudiram todos, acudi eu mesmo. Era um
  7124. escravo da casa de Sancha que me chamava:
  7125.  
  7126. — Para ir la... sinho nadando, sinho morrendo.
  7127.  
  7128. Nao disse mais nada, ou eu nao Ihe ouvi o resto. Vesti-me, deixei recado a Capitu
  7129. e corri ao Flamengo.
  7130.  
  7131.  
  7132.  
  7133.  
  7134. Em caminho, fui adivinhando a verdade. Escobar meteu-se a nadar, como usava
  7135. fazer, arriscou-se um pouco mais fora que de costume, apesar do mar bravio, foi
  7136. enrolado e morreu. As canoas que acudiram mal puderam trazer-lhe o cadaver.
  7137.  
  7138.  
  7139.  
  7140. CAPITULO CXXII
  7141. O ENTERRO
  7142.  
  7143. A viuva... Poupo-vos as lagrimas da viuva, as minhas, as da outra gente. Saf de la
  7144. cerca de onze horas; Capitu e prima Justina esperavam-me, uma com o parecer
  7145. abatido e estupido, outra enfastiada apenas.
  7146.  
  7147. — Vao fazer companhia a pobre Sanchinha; eu vou cuidar do enterro.
  7148.  
  7149. Assim fizemos. Quis que o enterro fosse pomposo, e a afluencia dos amigos foi
  7150. numerosa. Praia, ruas, Praga da Gloria, tudo eram carros, muitos deles
  7151. particulares. A casa nao sendo grande, nao podiam la caber todos; muitos
  7152. estavam na praia, falando do desastre, apontando o lugar em que Escobar
  7153. falecera, ouvindo referir a chegada do morto. Jose Dias ouviu tambem falar dos
  7154. negocios do finado, divergindo alguns na avaliagao dos bens, mas havendo acordo
  7155. em que o passivo devia ser pequeno. Elogiavam as qualidades de Escobar, um ou
  7156. outro discutia o recente gabinete Rio Branco; estavamos em margo de 1871.
  7157. Nunca me esqueceu o mes nem o ano.
  7158.  
  7159. Como eu houvesse resolvido falar no cemiterio, escrevi algumas linhas e mostrei-
  7160. as em casa a Jose Dias, que as achou realmente dignas do morto e de mim.
  7161. Pediu-me o papel, recitou lentamente o discurso, pesando as palavras, e
  7162. confirmou a primeira opiniao; no Flamengo espalhou a notfcia. Alguns conhecidos
  7163. vieram interrogar-me:
  7164.  
  7165. — Entao, vamos ouvi-lo?
  7166.  
  7167. — Quatro palavras.
  7168.  
  7169. Poucas mais seriam. Tinha-as escrito com receio de que a emogao me impedisse
  7170. de improvisar. No tflburi em que andei uma ou duas horas, nao fizera mais que
  7171. recordar o tempo do seminario, as relagoes de Escobar, as nossas simpatias, a
  7172. nossa amizade, comegada, continuada e nunca interrompida, ate que um lance da
  7173. fortuna fez separar para sempre duas criaturas que prometiam ficar por muito
  7174. tempo unidas. De quando em quando enxugava os olhos. O cocheiro aventurou
  7175. duas ou tres perguntas sobre a minha situagao moral; nao me arrancando nada,
  7176. continuou o seu offcio. Chegando a casa, deitei aquelas emogoes ao papel; tal
  7177. seria o discurso.
  7178.  
  7179.  
  7180.  
  7181. CAPITULO CXXII I
  7182. OLHOS DE RESSACA
  7183.  
  7184. Enfim, chegou a hora da encomendagao e da partida. Sancha quis despedir-se do
  7185. marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens
  7186. choravam tambem, as mulheres todas. So Capitu, amparando a viuva, parecia
  7187. vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arranca-la dali. A confusao era
  7188. geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadaver tao fixa, tao
  7189. apaixonadamente fixa, que nao admira Ihe saltassem algumas lagrimas poucas e
  7190. caladas...
  7191.  
  7192. As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa,
  7193.  
  7194.  
  7195.  
  7196.  
  7197. olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carfcias para a
  7198. amiga, e quis leva-la; mas o cadaver parece que a retinha tambem. Momento
  7199. houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viuva, sem o
  7200. pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar la fora,
  7201. como se quisesse tragar tambem o nadador da manha.
  7202.  
  7203.  
  7204.  
  7205. CAPITULO CXXIV
  7206. O DISCURSO
  7207.  
  7208.  
  7209.  
  7210. — Vamos, sao horas...
  7211.  
  7212. Era Jose Dias que me convidava a fechar o ataude. Fechamo-lo, e eu peguei numa
  7213. das argolas; rompeu o alarido final. Palavra que, quando cheguei a porta, vi o sol
  7214. claro, tudo gente e carros, as cabegas descobertas, tive um daqueles meus
  7215. impulsos que nunca chegavam a execugao: foi atirar a rua caixao, defunto e tudo.
  7216. No carro disse a Jose Dias que se calasse. No cemiterio tive de repetir a cerimonia
  7217. da casa, desatar as correias, e ajudar a levar o feretro a cova. O que isto me
  7218. custou imagina. Descido o cadaver a cova, trouxeram a cal e a pa; sabes disto,
  7219. teras ido a mais de um enterro, mas o que nao sabes nem pode saber nenhum
  7220. dos teus amigos, leitor, ou qualquer outro estranho, e a crise que me tomou
  7221. quando vi todos os olhos em mim, os pes quietos, as orelhas atentas, e, ao cabo
  7222. de alguns instantes de total silencio, um sussurro vago, algumas vozes
  7223. interrogativas, sinais, e alguem, Jose Dias, que me dizia ao ouvido:
  7224.  
  7225. — Entao, fale.
  7226.  
  7227. Era o discurso. Queriam o discurso. Tinham jus ao discurso anunciado.
  7228. Maquinalmente, meti a mao no bolso, saquei o papel e li-o aos trambolhoes, nao
  7229. todo, nem seguido, nem claro; a voz parecia-me entrar em vez de sair, as maos
  7230. tremiam-me. Nao era so a emogao nova que me fazia assim, era o proprio texto,
  7231. as memorias do amigo, as saudades confessadas, os louvores a pessoa e aos seus
  7232. meritos; tudo isto que eu era obrigado a dizer e dizia mal. Ao mesmo tempo,
  7233. temendo que me adivinhassem a verdade, forcejava por esconde-la bem. Creio
  7234. que poucos me ouviram, mas o gesto geral foi de compreensao e de aprovagao.
  7235. As maos que me deram a apertar eram de solidariedade; alguns diziam: "Muito
  7236. bonito! muito bem! magmfico!" Jose Dias achou que a eloquencia estivera na
  7237. altura da piedade. Um homem, que me pareceu jornalista, pediu-me licenga para
  7238. levar o manuscrito e imprimi-lo. So a minha grande turvagao recusaria um
  7239. obsequio tao simples.
  7240.  
  7241.  
  7242.  
  7243. CAPITULO CXXV
  7244. UMA COMPARACAO
  7245.  
  7246. Priamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mao daquele que Ihe
  7247. matou o filho. Homero e que relata isto, e e um bom autor, nao obstante conta-lo
  7248. em verso, mas ha narragoes exatas em verso, e ate mau verso. Compara tu a
  7249. situagao de Priamo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes do homem que
  7250. recebera, defunto, aqueles olhos... E impossfvel que algum Homero nao tirasse da
  7251. minha situagao muito melhor efeito, ou quando menos, igual. Nem digas que nos
  7252. faltam Homeros, pela causa apontada em Camoes; nao, senhor, faltam-nos, e
  7253. certo, mas e porque os Pnamos procuram a sombra e o silencio. As lagrimas, se
  7254. as tern, sao enxugadas atras da porta, para que as caras aparegam limpas e
  7255. serenas; os discursos sao antes de alegria que de melancolia, e tudo passa como
  7256. se Aquiles nao matasse Heitor.
  7257.  
  7258.  
  7259.  
  7260.  
  7261. CAPITULO CXXVI
  7262. CISMANDO
  7263.  
  7264.  
  7265.  
  7266. Pouco depois de sair do cemiterio, rasguei o discurso e deitei os pedagos pela
  7267. portinhola fora, sem embargo dos esforgos de J ose Dias para impedi-lo.
  7268.  
  7269. — Nao presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentagao de da-lo a
  7270. imprimir, fica ja destrufdo de uma vez. Nao presta, nao vale nada.
  7271.  
  7272. Jose Dias demonstrou longamente o contrario, depois elogiou o enterro, e por
  7273. ultimo fez o panegfrico do morto, uma grande alma, espfrito ativo, coragao reto,
  7274. amigo, bom amigo, digno da esposa amantfssima que Deus Ihe dera...
  7275.  
  7276. Neste ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar comigo. O que
  7277. cismei foi tao escuro e confuso que nao me deixou tomar pe. No Catete mandei
  7278. parar o carro, disse a Jose Dias que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as
  7279. levasse para casa; eu iria a pe.
  7280.  
  7281. — Mas...
  7282.  
  7283. — Vou fazer uma visita.
  7284.  
  7285. A razao disto era acabar de cismar, e escolher uma resolugao que fosse adequada
  7286. ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas; estas iriam pausadas
  7287. ou nao, podia afrouxar o passo, parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabega
  7288. cismasse a vontade. Fui andando e cismando. Tinha ja comparado o gesto de
  7289. Sancha na vespera e o desespero daquele dia; eram inconciliaveis. A viuva era
  7290. realmente amantfssima. Assim se desvaneceu de todo a ilusao da minha vaidade.
  7291. Nao seria o mesmo caso de Capitu? Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posigao em
  7292. que a vi, o ajuntamento de pessoas que devia naturalmente impor-lhe a
  7293. dissimulagao, se houvesse algo que dissimular. O que aqui vai por ordem logica e
  7294. dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de ideias e sensagoes, gragas aos
  7295. solavancos do carro e as interrupgoes de Jose Dias. Agora, porem, raciocinava e
  7296. evocava claro e bem. Concluf de mim para mim que era a antiga paixao que me
  7297. ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.
  7298.  
  7299. Quando cheguei a esta conclusao final, chegava tambem a porta de casa, mas
  7300. voltei para tras, e subi outra vez a Rua do Catete. Eram as duvidas que me
  7301. afligiam ou a necessidade de afligir Capitu com a minha grande demora?
  7302. Ponhamos que eram as duas causas; andei largo espago, ate que me senti
  7303. sossegar, e endireitei para casa. Batiam oito horas numa padaria.
  7304.  
  7305.  
  7306.  
  7307. CAPITULO CXXVI I
  7308. O BARBEIRO
  7309.  
  7310. Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rabeca e
  7311. nao tocava inteiramente mal. Na ocasiao em que ia passando, executava nao sei
  7312. que pega. Parei na calgada a ouvi-lo (tudo sao pretextos a um coragao agoniado),
  7313. ele viu-me, e continuou a tocar. Nao atendeu a um fregues, e logo a outro, que ali
  7314. foram, a despeito da hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras a navalha.
  7315. Perdeu-os sem perder uma nota; ia tocando para mim. Esta consideragao fez-me
  7316. chegar francamente a porta da loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando a
  7317. cortina de chita que fechava o interior da casa, vi apontar uma moga trigueira,
  7318. vestido claro, flor no cabelo. Era a mulher dele; creio que me descobriu de dentro,
  7319. e veio agradecer-me com a presenga o favor que eu fazia ao marido. Se me nao
  7320. engano, chegou a dize-lo com os olhos. Quanto ao marido, tocava agora com mais
  7321. calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face no instrumento,
  7322.  
  7323.  
  7324.  
  7325.  
  7326. passava a alma ao arco, e tocava, tocava...
  7327.  
  7328.  
  7329.  
  7330. Divina arte! la-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim andando para
  7331. casa; enfiei pelo corredor e subi as escadas sem estrepito. Nunca me esqueceu o
  7332. caso deste barbeiro, ou por estar ligado a um momento grave da minha vida, ou
  7333. por esta maxima, que os compiladores podem tirar daqui e inserir nos compendios
  7334. de escola. A maxima e que a gente esquece devagar as boas agoes que pratica, e
  7335. verdadeiramente nao as esquece nunca. Pobre barbeiro! perdeu duas barbas
  7336. naquela noite, que eram o pao do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um
  7337. transeunte. Supoe agora que este, em vez de ir-se embora, como eu fui, ficava a
  7338. porta a ouvi-lo e a enamorar-lhe a mulher; entao e que ele, todo arco, todo
  7339. rabeca, tocaria desesperadamente. Divina arte!
  7340.  
  7341.  
  7342.  
  7343. CAPITULO CXXVIII
  7344. PUNHADO DE SUCESSOS
  7345.  
  7346. Como ia dizendo, subi as escadas sem estrepito, empurrei a cancela, que estava
  7347. apenas encostada, e dei com prima Justina e Jose Dias jogando cartas na saleta
  7348. proxima. Capitu levantou-se do canape e veio a mim. O rosto dela era agora
  7349. sereno e puro. Os outros suspenderam o jogo, e todos falamos do desastre e da
  7350. viuva. Capitu censurou a imprudencia de Escobar, e nao dissimulou a tristeza que
  7351. Ihe trazia a dor da amiga. Perguntei-lhe por que nao ficara com Sancha aquela
  7352. noite.
  7353.  
  7354. — Tern la muita gente; ainda assim ofereci-me, mas nao quis. Tambem Ihe disse
  7355. que era melhor vir para ca, e passar aqui uns dias conosco.
  7356.  
  7357. — Tambem nao quis?
  7358.  
  7359. — Tambem nao.
  7360.  
  7361. — Entretanto, a vista do mar ha de ser-lhe penosa, todas as manhas, ponderou
  7362. Jose Dias, e nao sei como podera...
  7363.  
  7364. — Mas passa; o que e que nao passa? atalhou prima J ustina.
  7365.  
  7366. E como em torno desta ideia, comegassemos uma troca de palavras, Capitu saiu
  7367. para ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, concertou os cabelos tao
  7368. demoradamente que pareceria afetagao, se nao soubessemos que ela era muito
  7369. amiga de si. Quando tornou trazia os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o
  7370. filho dormindo, pensara na filhinha de Sancha, e na afligao da viuva. E, sem se Ihe
  7371. dar das visitas, nem reparar se havia algum criado, abragou-me e disse-me que,
  7372. se quisesse pensar nela, era preciso pensar primeiro na minha vida. Jose Dias
  7373. achou a frase "lindfssima", e perguntou a Capitu por que e que nao fazia versos.
  7374. Tentei meter o caso a bulha, e assim acabamos a noite.
  7375.  
  7376. No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, nao que quisesse da-
  7377. lo a imprimir, mas era lembranga do finado. Pensei em recompo-lo, mas so achei
  7378. frases soltas, que uma vez juntas nao tinham sentido. Tambem pensei em fazer
  7379. outro, mas era ja diffcil, e podia ser apanhado em falso pelos que me tinham
  7380. ouvido no cemiterio. Quanto a recolher os pedacinhos de papel deitados a rua, era
  7381. tarde; estariam ja varridos.
  7382.  
  7383. Inventariei as lembrangas de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, uma bengala
  7384. de marfim, um passaro, o album de Capitu, duas paisagens do Parana e outras.
  7385. Tambem ele as possufa de minha mao. Vivemos assim a trocar memorias e
  7386. regalos, ora em dia de anos, ora sem razao particular. Tudo isso me empanava os
  7387. olhos... Vieram os jornais do dia: davam notfcia do desastre e da morte de
  7388.  
  7389.  
  7390.  
  7391.  
  7392. Escobar, os estudos e os negocios deste, as qualidades pessoais, a simpatia do
  7393. comercio, e tambem falavam dos bens deixados, da mulher e da filha. Tudo isso
  7394. foi na segunda-feira. Na terga-feira foi aberto o testamento, que me nomeava
  7395. segundo testamenteiro; o primeiro lugar cabia a mulher. Nao me deixava nada,
  7396. mas as palavras que me escrevera em carta separada eram sublimes de amizade
  7397. e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas compos-se depressa.
  7398.  
  7399. Testamento, inventario, tudo andou quase tao depressa como aqui vai dito. Ao
  7400. cabo de pouco tempo, Sancha retirou-se para a casa dos parentes no Parana.
  7401.  
  7402.  
  7403.  
  7404. CAPITULO CXXIX
  7405. A D. SANCHA
  7406.  
  7407. D. Sancha, pego-lhe que nao leia este livro; ou, se o houver lido ate aqui,
  7408. abandone o resto. Basta fecha-lo; melhor sera queima-lo, para Ihe nao dar
  7409. tentagao e abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir ate o fim, a culpa e
  7410. sua; nao respondo pelo mal que receber. O que ja Ihe tiver feito, contando os
  7411. gestos daquele sabado, esse acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com
  7412. eles, desmentimos a minha ilusao; mas o que agora a alcangar, esse e indelevel.
  7413. Nao, amiga minha, nao leia mais. Va envelhecendo, sem marido nem filha, que eu
  7414. fago a mesma coisa, e e ainda o melhor que se pode fazer depois da mocidade.
  7415. Um dia, iremos daqui ate a porta do Ceu, onde nos encontraremos renovados,
  7416. como as plantas novas, come piante novelle,
  7417.  
  7418. Rinovellate di novelle fronde.
  7419.  
  7420. O resto em Dante.
  7421.  
  7422.  
  7423.  
  7424. CAPITULO CXXX
  7425. UM DIA...
  7426.  
  7427. Porquanto, um dia Capitu quis saber o que e que me fazia andar calado e
  7428. aborrecido. E propos-me a Europa, Minas, Petropolis, uma serie de bailes, mil
  7429. desses remedios aconselhados aos melancolicos. Eu nao sabia que Ihe
  7430. respondesse; recusei as diversoes. Como insistisse, repliquei-lhe que os meus
  7431. negocios andavam mal. Capitu sorriu para animar-me. E que tinha que andassem
  7432. mal? Tornariam a andar bem, e ate la as joias, os objetos de algum valor seriam
  7433. vendidos, e inamos residir em algum beco. Vivenamos sossegados e esquecidos;
  7434. depois tornanamos a tona da agua. A ternura com que me disse isto era de
  7435. comover as pedras. Pois nem assim. Respondi-lhe secamente que nao era preciso
  7436. vender nada. Deixei-me estar calado e aborrecido. Ela propos-me jogar cartas ou
  7437. damas, um passeio a pe, uma visita a Mata-cavalos; e, como eu nao aceitasse
  7438. nada, foi para a sala, abriu o piano, e comegou a tocar; eu aproveitei a ausencia,
  7439. peguei do chapeu e saf.
  7440.  
  7441. ...Perdao, mas este capftulo devia ser precedido de outro, em que contasse um
  7442. incidente, ocorrido poucas semanas antes, dois meses depois da partida de
  7443. Sancha. Vou escreve-lo; podia antepo-lo a este, antes de mandar o livro ao prelo,
  7444. mas custa muito alterar o numero das paginas; vai assim mesmo, depois a
  7445. narragao seguira direita ate o fim. Demais, e curto.
  7446.  
  7447.  
  7448.  
  7449. CAPI TULO CXXXI
  7450. ANTERI OR AO ANTERI OR
  7451.  
  7452.  
  7453.  
  7454.  
  7455. Foi o caso que a minha vida era outra vez doce e placida, a banca do advogado
  7456. rendia-me bastante, Capitu estava mais bela, Ezequiel ia crescendo. Comegava o
  7457. ano de 1872.
  7458.  
  7459. — Voce ja reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressao esquisita?
  7460. perguntou-me Capitu. So vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto
  7461. Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papai, nao precisa
  7462. revirar os olhos, assim, assim...
  7463.  
  7464. Era depois de jantar; estavamos ainda a mesa, Capitu brincava com o filho, ou ele
  7465. com ela, ou um com outro, porque, em verdade, queriam-se muito, mas e
  7466. tambem certo que ele me queria ainda mais a mim. Aproximei-me de Ezequiel,
  7467. achei que Capitu tinha razao; eram os olhos de Escobar, mas nao me pareceram
  7468. esquisitos por isso. Afinal nao haveria mais que meia duzia de expressoes no
  7469. mundo, e muitas semelhangas se dariam naturalmente. Ezequiel nao entendeu
  7470. nada, olhou espantado para ela e para mim, e afinal saltou-me ao colo:
  7471.  
  7472. — Vamos passear, papai?
  7473.  
  7474. — Logo, meu filho.
  7475.  
  7476. Capitu, alheia a ambos, fitava agora a outra borda da mesa; mas, dizendo-lhe eu
  7477. que, na beleza, os olhos de Ezequiel safam aos da mae, Capitu sorriu, abanando a
  7478. cabega com um ar que nunca achei em mulher alguma, provavelmente porque nao
  7479. gostei tanto das outras. As pessoas valem o que vale a afeigao da gente, e e daf
  7480. que mestre Povo tirou aquele adagio que quern o feio ama bonito Ihe parece.
  7481. Capitu tinha meia duzia de gestos unicos na Terra. Aquele entrou-me pela alma
  7482. dentro. Assim fica explicado que eu corresse a minha esposa e amiga e Ihe
  7483. enchesse a cara de beijos; mas este outro incidente nao e radicalmente necessario
  7484. a compreensao do capftulo passado e dos futuros; fiquemos nos olhos de Ezequiel.
  7485.  
  7486.  
  7487.  
  7488. CAPITU LO CXXXII
  7489. O DEBUXO E O COLORI DO
  7490.  
  7491. Nem so os olhos, mas as restantes feigoes, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-
  7492. se apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vai
  7493. enchendo e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar
  7494. quase, ate que a famflia pendura o quadro na parede, em memoria do que foi e ja
  7495. nao pode ser. Aqui podia ser e era. O costume valeu muito contra o efeito da
  7496. mudanga; mas a mudanga fez-se, nao a maneira de teatro, fez-se como a manha
  7497. que aponta vagarosa, primeiro que se possa ler uma carta, depois le-se a carta na
  7498. rua, em casa, no gabinete, sem abrir as janelas; a luz coada pelas persianas basta
  7499. a distinguir as letras. Li a carta, mal a princfpio e nao toda, depois fui lendo
  7500. melhor. Fugia-lhe, e certo, metia o papel no bolso, corria a casa, fechava-me, nao
  7501. abria as vidragas, chegava a fechar os olhos. Quando novamente abria os olhos e
  7502. a carta, a letra era clara e a notfcia clanssima.
  7503.  
  7504. Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminario e do Flamengo para se
  7505. sentar comigo a mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manha,
  7506. ou pedir-me a noite a bengao do costume. Todas essas agoes eram repulsivas; eu
  7507. tolerava-as e praticava-as, para me nao descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas
  7508. o que pudesse dissimular ao mundo, nao podia faze-lo a mim, que vivia mais
  7509. perto de mim que ninguem. Quando nem mae nem filho estavam comigo o meu
  7510. desespero era grande, e eu jurava mata-los a ambos, ora de golpe, ora devagar,
  7511. para dividir pelo tempo da morte todos os minutos da vida embagada e agoniada.
  7512. Quando, porem, tornava a casa e via no alto da escada a criaturinha que me
  7513. queria e esperava, ficava desarmado e diferia o castigo de um dia para outro.
  7514.  
  7515.  
  7516.  
  7517.  
  7518. O que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, nao se notara aqui,
  7519. por ser tao miudo e repetido, e ja tao tarde que nao se podera dize-lo sem falha
  7520. nem canseira. Mas o principal ira. E o principal e que os nossos temporais eram
  7521. agora contfnuos e ternveis. Antes de descoberta aquela ma terra da verdade,
  7522. tivemos outros de pouca dura; nao tardava que o ceu se fizesse azul, o sol claro e
  7523. o mar chao, por onde abrfamos novamente as velas que nos levavam as ilhas e
  7524. costas mais belas do universo, ate que outro pe de vento desbaratava tudo, e nos,
  7525. postos a capa, esperavamos outra bonanza, que nao era tardia nem dubia, antes
  7526. total, proxima e firme.
  7527.  
  7528. Releva-me estas metaforas; cheiram ao mar e a mare que deram morte ao meu
  7529. amigo e comborgo Escobar. Cheiram tambem aos olhos de ressaca de Capitu.
  7530. Assim, posto sempre fosse homem de terra, conto aquela parte da minha vida,
  7531. como um marujo contaria o seu naufragio.
  7532.  
  7533. Ja entre nos so faltava dizer a palavra ultima; nos a Ifamos, porem, nos olhos um
  7534. do outro, vibrante e decisiva, e sempre que Ezequiel vinha para nos nao fazia mais
  7535. que separar-nos. Capitu propos mete-lo em um colegio, donde so viesse aos
  7536. sabados; custou muito ao menino aceitar esta situagao.
  7537.  
  7538. — Quero ir com papai! Papai ha de ir comigo! bradava ele.
  7539.  
  7540. Fui eu mesmo que o levei um dia de manha, uma segunda-feira. Era no antigo
  7541. Largo da Lapa, perto da nossa casa. Levei-o a pe, pela mao, como levara o ataude
  7542. do outro. O pequeno ia chorando e fazendo perguntas a cada passo, se voltaria
  7543. para casa, e quando, e se eu iria ve-lo...
  7544.  
  7545.  
  7546.  
  7547. — Vou.
  7548.  
  7549.  
  7550.  
  7551. — Papai nao vai!
  7552.  
  7553. — Vou sim.
  7554.  
  7555. — J ura, papai!
  7556.  
  7557. — Pois sim.
  7558.  
  7559. — Papai nao diz que jura.
  7560.  
  7561. — Pois juro.
  7562.  
  7563. E la o levei e deixei. A ausencia temporaria nao atalhou o mal, e toda a arte fina
  7564. de Capitu para faze-lo atenuar, ao menos, foi como se nao fosse; eu sentia-me
  7565. cada vez pior. A mesma situagao nova agravou a minha paixao. Ezequiel vivia
  7566. agora mais fora da minha vista; mas a volta dele, ao fim das semanas, ou pelo
  7567. descostume em que eu ficava, ou porque o tempo fosse andando e completando a
  7568. semelhanga, era a volta de Escobar mais vivo e ruidoso. Ate a voz, dentro de
  7569. pouco, ja me parecia a mesma. Aos sabados, buscava nao jantar em casa e so
  7570. entrar quando ele estivesse dormindo; mas nao escapava ao domingo, no
  7571. gabinete, quando eu me achava entre jornais e autos. Ezequiel entrava turbulento,
  7572. expansivo, cheio de riso e de amor, porque o demo do pequeno cada vez morria
  7573. mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora uma aversao que mal podia
  7574. disfargar, tanto a ela como aos outros. Nao podendo encobrir inteiramente esta
  7575. disposigao moral, cuidava de me nao fazer encontradigo com ele, ou so o menos
  7576. que pudesse; ora tinha trabalho que me obrigava a fechar o gabinete, ora safa ao
  7577. domingo para ir passear pela cidade e arrabaldes o meu mal secreto.
  7578.  
  7579.  
  7580.  
  7581. CAPITULO CXXXIII
  7582.  
  7583.  
  7584.  
  7585.  
  7586. UMA I DEI A
  7587.  
  7588.  
  7589.  
  7590. Um dia, — era uma sexta-feira, — nao pude mais. Certa ideia, que negrejava em
  7591. mim, abriu as asas e entrou a bate-las de um lado para outro, como fazem as
  7592. ideias que querem sair. O ser sexta-feira creio que foi acaso, mas tambem pode
  7593. ter sido proposito; fui educado no terror daquele dia; ouvi cantar baladas em casa,
  7594. vindas da roga e da antiga metropole, nas quais a sexta-feira era o dia de agouro.
  7595. Entretanto, nao havendo almanaques no cerebro, e provavel que a ideia nao
  7596. batesse as asas senao pela necessidade que sentia de vir ao ar e a vida. A vida e
  7597. tao bela que a mesma ideia da morte precisa de vir primeiro a ela, antes de se ver
  7598. cumprida. Ja me vais entendendo; le agora outro capftulo.
  7599.  
  7600.  
  7601.  
  7602. CAPITULO CXXXI V
  7603. O DIA DE SABADO
  7604.  
  7605. A ideia saiu finalmente do cerebro. Era noite, e nao pude dormir, por mais que a
  7606. sacudisse de mim. Tambem nenhuma noite me passou tao curta. Amanheceu,
  7607. quando cuidava nao ser mais que uma ou duas horas. Saf, supondo deixar a ideia
  7608. em casa; ela veio comigo. Ca fora tinha a mesma cor escura, as mesmas asas
  7609. trepidas, e posto avoasse com elas, era como se fosse fixa; eu a levava na retina,
  7610. nao que me encobrisse as coisas externas, mas via-as atraves dela, com a cor
  7611. mais palida que de costume, e sem se demorarem nada.
  7612.  
  7613. Nao me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas, comprei uma
  7614. substancia, que nao digo, para nao espertar o desejo de prova-la. A farmacia faliu,
  7615. e verdade; o dono fez-se banqueiro, e o banco prospera. Quando me achei com a
  7616. morte no bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande,
  7617. ou ainda maior, porque o premio da loteria gasta-se, e a morte nao se gasta. Fui a
  7618. casa de minha mae, com o fim de despedir-me, a tftulo de visita. Ou de verdade
  7619. ou por ilusao, tudo ali me pareceu melhor nesse dia, minha mae menos triste, tio
  7620. Cosme esquecido do coragao, prima Justina da lingua. Passei uma hora em paz.
  7621. Cheguei a abrir mao do projeto. Que era preciso para viver? Nunca mais deixar
  7622. aquela casa, ou prender aquela hora a mim mesmo...
  7623.  
  7624.  
  7625.  
  7626. CAPITULO CXXXV
  7627. OTELO
  7628.  
  7629. Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu nao
  7630. vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidence. Vi as
  7631. grandes raivas do mouro, por causa de um lengo, — um simples lengo!— e aqui
  7632. dou materia a meditagao dos psicologos deste e de outros continentes, pois nao
  7633. me pude furtar a observagao de que um lengo bastou a acender os ciumes de
  7634. Otelo e compor a mais sublime tragedia deste mundo. Os lengos perderam-se,
  7635. hoje sao precisos os proprios lengois; alguma vez nem lengois ha, e valem so as
  7636. camisas. Tais eram as ideias que me iam passando pela cabega, vagas e turvas, a
  7637. medida que o mouro rolava convulso, e I ago destilava a sua calunia. Nos
  7638. intervalos nao me levantava da cadeira; nao queria expor-me a encontrar algum
  7639. conhecido. As senhoras ficavam quase todas nos camarotes, enquanto os homens
  7640. iam fumar. Entao eu perguntava a mim mesmo se alguma daquelas nao teria
  7641. amado alguem que jazesse agora no cemiterio, e vinham outras incoerencias, ate
  7642. que o pano subia e continuava a pega. O ultimo ato mostrou-me que nao eu, mas
  7643. Capitu devia morrer. Ouvi as suplicas de Desdemona, as suas palavras amorosas e
  7644. puras, e a furia do mouro, e a morte que este Ihe deu entre aplausos freneticos do
  7645. publico.
  7646.  
  7647. — E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; — que faria o publico, se ela
  7648.  
  7649.  
  7650.  
  7651.  
  7652. deveras fosse culpada, tao culpada como Capitu? E que morte Ihe daria o mouro?
  7653. Um travesseiro nao bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto,
  7654. que a consumisse de todo, e a reduzisse a po, e o po seria langado ao vento, como
  7655. eterna extingao...
  7656.  
  7657. Vaguei pelas ruas o resto da noite. Ceei, e verdade, um quase nada, mas o
  7658. bastante para ir ate a manha. Vi as ultimas horas da noite e as primeiras do dia, vi
  7659. os derradeiros passeadores e os primeiros varredores, as primeiras carrogas, os
  7660. primeiros rufdos, os primeiros albores, um dia que vinha depois do outro e me
  7661. veria ir para nunca mais voltar. As ruas que eu andava como que me fugiam por si
  7662. mesmas. Nao tornaria a contemplar o mar da Gloria, nem a serra dos Orgaos,
  7663. nem a fortaleza de Santa Cruz e as outras. A gente que passava nao era tanta,
  7664. como nos dias comuns da semana, mas era ja numerosa e ia a algum trabalho,
  7665. que repetiria depois; eu e que nao repetiria mais nada.
  7666.  
  7667. Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pe ante pe, e meti-me no gabinete;
  7668. iam dar seis horas. Tirei o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi
  7669. ainda uma carta, a ultima, dirigida a Capitu. Nenhuma das outras era para ela;
  7670. senti necessidade de Ihe dizer uma palavra em que Ihe ficasse o remorso da minha
  7671. morte. Escrevi dois textos. O primeiro queimei-o por ser longo e difuso. O segundo
  7672. continha so o necessario, claro e breve. Nao Ihe lembrava o nosso passado, nem
  7673. as lutas havidas, nem alegria alguma; falava-lhe so de Escobar e da necessidade
  7674. de morrer.
  7675.  
  7676.  
  7677.  
  7678. CAPITULO CXXXVI
  7679. A XI CARA DE CAFE
  7680.  
  7681. O meu piano foi esperar o cafe, dissolver nele a droga e ingeri-la. Ate la, nao
  7682. tendo esquecido de todo a minha historia romana, lembrou-me que Catao, antes
  7683. de se matar, leu e releu um livro de Platao. Nao tinha Platao comigo; mas um
  7684. tomo truncado de Plutarco, em que era narrada a vida do celebre romano, bastou-
  7685. me a ocupar aquele pouco tempo, e, para em tudo imita-lo, estirei-me no canape.
  7686. Nem era so imita-lo nisso; tinha necessidade de incutir em mim a coragem dele,
  7687. assim como ele precisara dos sentimentos do filosofo, para intrepidamente morrer.
  7688. Um dos males da ignorancia e nao ter este remedio a ultima hora. Ha muita gente
  7689. que se mata sem ele, e nobremente expira; mas estou que muita mais gente poria
  7690. termo aos seus dias, se pudesse achar essa especie de cocafna moral dos bons
  7691. livros. Entretanto, querendo fugir a qualquer suspeita de imitagao, lembra-me
  7692. bem que, para nao ser encontrado ao pe de mim o livro de Plutarco, nem ser dada
  7693. a notfcia nas gazetas com a da cor das calgas que eu entao vestia, assentei de po-
  7694. lo novamente no seu lugar, antes de beber o veneno.
  7695.  
  7696. O copeiro trouxe o cafe. Ergui-me, guardei o livro, e fui para a mesa onde ficara a
  7697. xfcara. Ja a casa estava em rumores; era tempo de acabar comigo. A mao
  7698. tremeu-me ao abrir o papel em que trazia a droga embrulhada. Ainda assim tive
  7699. animo de despejar a substancia na xfcara, e comecei a mexer o cafe, os olhos
  7700. vagos, a memoria em Desdemona inocente; o espetaculo da vespera vinha
  7701. intrometer-se na realidade da manha. Mas a fotografia de Escobar deu-me o
  7702. animo que me ia faltando; la estava ele, com a mao nas costas da cadeira, a olhar
  7703. ao longe...
  7704.  
  7705. "Acabemos com isto", pensei.
  7706.  
  7707. Quando ia a beber, cogitei se nao seria melhor esperar que Capitu e o filho
  7708. safssem para a missa; beberia depois; era melhor. Assim disposto, entrei a
  7709. passear no gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o entrar e correr a
  7710. mim bradando:
  7711.  
  7712.  
  7713.  
  7714.  
  7715. — Papai! papai!
  7716.  
  7717.  
  7718.  
  7719. Leitor, houve aqui um gesto que eu nao descrevo por have-lo inteiramente
  7720. esquecido, mas ere que foi belo e tragico. Efetivamente, a figura do pequeno fez-
  7721. me recuar ate dar de costas na estante. Ezequiel abragou-me os joelhos, esticou-
  7722. se na ponta dos pes, como querendo subir e dar-me o beijo do costume; e repetia,
  7723. puxando-me:
  7724.  
  7725. — Papai! papai!
  7726.  
  7727.  
  7728.  
  7729. CAPITULO CXXXVI I
  7730. SEGUNDO IMPULSO
  7731.  
  7732. Se eu nao olhasse para Ezequiel, e provavel que nao estivesse aqui escrevendo
  7733. este livro, porque o meu primeiro fmpeto foi correr ao cafe e bebe-lo. Cheguei a
  7734. pegar na xfcara, mas o pequeno beijava-me a mao, como de costume, e a vista
  7735. dele, como o gesto, deu-me outro impulso que me custa dizer aqui; mas va la,
  7736. diga-se tudo. Chamem-me embora assassino; nao serei eu que os desdiga ou
  7737. contradiga; o meu segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a
  7738. Ezequiel se ja tomara cafe.
  7739.  
  7740. — Ja, papai; vou a missa com mamae.
  7741.  
  7742. — Toma outra xfcara, meia xfcara so.
  7743.  
  7744. — E papai?
  7745.  
  7746. — Eu mando vir mais; anda, bebe!
  7747.  
  7748. Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xfcara, tao tremulo que quase a entornei,
  7749. mas disposto a faze- la cair pela goela abaixo, caso o sabor Ihe repugnasse, ou a
  7750. temperatura, porque o cafe estava frio... Mas nao sei que senti que me fez recuar.
  7751. Pus a xfcara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doidamente a cabega do
  7752. menino.
  7753.  
  7754. — Papai! papai! exclamava Ezequiel.
  7755.  
  7756. — Nao, nao, eu nao sou teu pai!
  7757.  
  7758.  
  7759.  
  7760. CAPITULO CXXXVI II
  7761. CAPITU QUE ENTRA
  7762.  
  7763. Quando levantei a cabega, dei com a figura de Capitu diante de mim. Eis af outro
  7764. lance, que parecera de teatro, e e tao natural como o primeiro, uma vez que a
  7765. mae e o filho iam a missa, e Capitu nao safa sem falar-me. Era ja um falar seco e
  7766. breve; a maior parte das vezes, eu nem olhava para ela. Ela olhava sempre,
  7767. esperando.
  7768.  
  7769. Desta vez, ao dar com ela, nao sei se era dos meus olhos, mas Capitu pareceu-me
  7770. Ifvida. Seguiu-se um daqueles silencios, a que, sem mentir, se pode chamar de um
  7771. seculo, tal e a extensao do tempo nas grandes crises. Capitu recompos-se; disse
  7772. ao filho que se fosse embora, e pediu-me que Ihe explicasse...
  7773.  
  7774. — Nao ha que explicar, disse eu.
  7775.  
  7776. — Ha tudo; nao entendo as tuas lagrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre
  7777.  
  7778.  
  7779.  
  7780.  
  7781. voces?
  7782.  
  7783.  
  7784.  
  7785. — Nao ouviu o que Ihe disse?
  7786.  
  7787. Capitu respondeu que ouvira choro e rumor de palavras. Eu creio que ouvira tudo
  7788. claramente, mas confessa-lo seria perder a esperanga do silencio e da
  7789. reconciliagao; por isso negou a audiencia e confirmou unicamente a vista. Sem Ihe
  7790. contar o episodio do cafe, repeti-lhe as palavras do final do capftulo.
  7791.  
  7792. — O que? perguntou ela como se ouvira mal.
  7793.  
  7794. — Que nao e meu filho.
  7795.  
  7796. Grande foi a estupefagao de Capitu, e nao menor a indignagao que Ihe sucedeu,
  7797. tao naturais ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do
  7798. nosso foro. Ja ouvi que as ha para varios casos, questao de prego; eu nao creio,
  7799. tanto mais que a pessoa que me contou isto acabava de perder uma demanda.
  7800. Mas, haja ou nao testemunhas alugadas, a minha era verdadeira; a propria
  7801. natureza jurava por si, e eu nao queria duvidar dela. Assim que, sem atender a
  7802. linguagem de Capitu, aos seus gestos, a dor que a retorcia, a coisa nenhuma,
  7803. repeti as palavras ditas duas vezes com tal resolugao que a fizeram afrouxar. Apos
  7804. alguns instantes, disse-me ela:
  7805.  
  7806. — So se pode explicar tal injuria pela convicgao sincera; entretanto, voce que era
  7807. tao cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfianga.
  7808. Que e que Ihe deu tal ideia? Diga, — continuou vendo que eu nao respondia nada,
  7809.  
  7810. — diga tudo; depois do que ouvi, posso ouvir o resto, nao pode ser muito. Que e
  7811. que Ihe deu agora tal convicgao? Ande, Bentinho, fale! fale! Despega-me daqui,
  7812. mas diga tudo primeiro.
  7813.  
  7814. — Ha coisas que se nao dizem.
  7815.  
  7816. — Que se nao dizem so metade; mas ja que disse metade, diga tudo.
  7817.  
  7818. Tinha-se sentado numa cadeira ao pe da mesa. Podia estar um tanto confusa, o
  7819. porte nao era de acusada. Pedi-lhe ainda uma vez que nao teimasse.
  7820.  
  7821. — Nao, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se voce acha que
  7822. tenho defesa, ou pego-lhe desde ja a nossa separagao: nao posso mais!
  7823.  
  7824. — A separagao e coisa decidida, redargui, pegando-lhe na proposta. Era melhor
  7825. que a fizessemos por meias palavras ou em silencio; cada um iria com a sua
  7826. ferida. Uma vez, porem, que a senhora insiste, aqui vai o que Ihe posso dizer, e e
  7827. tudo.
  7828.  
  7829. Nao disse tudo; mas pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome.
  7830. Capitu nao pode deixar de rir, de um riso que eu sinto nao poder transcrever aqui;
  7831. depois, em um tom juntamente ironico e melancolico:
  7832.  
  7833. — Pois ate os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciumes!
  7834.  
  7835. Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que
  7836. nao pedia outra coisa mais que a plena justificagao dela, disse-lhe nao sei que
  7837. palavras adequadas a este fim. Capitu olhou para mim com desdem, e murmurou:
  7838.  
  7839. — Sei a razao disto; e a casualidade da semelhanga... A vontade de Deus
  7840. explicara tudo... Ri-se? E natural; apesar do seminario, nao acredita em Deus; eu
  7841. creio... Mas nao falemos nisto; nao nos fica bem dizer mais nada.
  7842.  
  7843.  
  7844.  
  7845.  
  7846. CAPITULO CXXXIX
  7847. A FOTOGRAFI A
  7848.  
  7849.  
  7850.  
  7851. Palavra que estive a pique de crer que era vftima de uma grande ilusao, uma
  7852. fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: —
  7853. "Mamae! mamae! e hora da missa!" restituiu-me a consciencia da realidade.
  7854. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um
  7855. para o outro. Desta vez a confusao dela fez-se confissao pura. Este era aquele;
  7856. havia por forga alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno
  7857. Ezequiel. De boca, porem, nao confessou nada; repetiu as ultimas palavras, puxou
  7858. do filho e safram para a missa.
  7859.  
  7860.  
  7861.  
  7862. CAPITULO CXL
  7863. VOLTA DA IGREjA
  7864.  
  7865. Ficando so, era natural pegar do cafe e bebe-lo. Pois, nao, senhor; tinha perdido o
  7866. gosto a morte. A morte era uma solugao; eu acabava de achar outra, tanto melhor
  7867. quanto que nao era definitiva, e deixava a porta aberta a reparagao, se devesse
  7868. have-la. Nao disse perdao, mas reparagao, isto e, justiga. Qualquer que fosse a
  7869. razao do ato, rejeitei a morte, e esperei o regresso de Capitu. Este foi mais
  7870. demorado que de costume; cheguei a temer que ela houvesse ido a casa de minha
  7871. mae, mas nao foi.
  7872.  
  7873. — Confiei a Deus todas as minhas amarguras, disse-me Capitu ao voltar da igreja;
  7874. ouvi dentro de mim que a nossa separagao e indispensavel, e estou as suas
  7875. ordens.
  7876.  
  7877. Os olhos com que me disse isto eram embugados, como espreitando um gesto de
  7878. recusa ou de espera. Contava com a minha debilidade ou com a propria incerteza
  7879. em que eu podia estar da paternidade do outro, mas falhou tudo. Acaso haveria
  7880. em mim um homem novo, um que aparecia agora, desde que impressoes novas e
  7881. fortes o descobriam? Nesse caso era um homem apenas encoberto. Respondi-lhe
  7882. que ia pensar, e fanamos o que eu pensasse. Em verdade vos digo que tudo
  7883. estava pensado e feito.
  7884.  
  7885. No intervalo, evocara as palavras do finado Gurgel, quando me mostrou em casa
  7886. dele o retrato da mulher, parecido com Capitu. Has de lembrar-te delas; se nao,
  7887. rele o capftulo, cujo numero nao ponho aqui, por nao me lembrar ja qual seja,
  7888. mas nao fica longe. Reduzem-se a dizer que ha tais semelhangas inexplicaveis...
  7889. Pelo dia adiante, e nos outros dias, Ezequiel ia ter comigo ao gabinete, e as
  7890. feigoes do pequeno davam ideia clara das do outro, ou eu ia atentando mais nelas.
  7891. De envolta, lembravam-me episodios vagos e remotos, palavras, encontros e
  7892. incidentes, tudo em que a minha cegueira nao pos malfcia, e a que faltou o meu
  7893. velho ciume. Uma vez em que os fui achar sozinhos e calados, um segredo que me
  7894. fez rir, uma palavra dela sonhando, todas essas reminiscencias vieram vindo
  7895. agora, em tal atropelo que me atordoaram... E por que os nao esganei um dia,
  7896. quando desviei os olhos da rua onde estavam duas andorinhas trepadas no fio
  7897. telegrafico? Dentro, as minhas outras andorinhas estavam trepadas no ar, os
  7898. olhos enfiados nos olhos, mas tao cautelosos que se desenfiaram logo, dizendo-me
  7899. uma palavra amiga e alegre. Contei-lhes o namoro das andorinhas de fora, e
  7900. acharam-lhe graga; Escobar declarou que, para ele, seria melhor se as andorinhas,
  7901. em vez de trepadas no fio de arame, estivessem a mesa do jantar cozidas. "Nunca
  7902. comi os ninhos delas, continuou, mas devem ser bons, se os chins os
  7903. inventaram”.E ficamos a tratar dos chins e dos classicos que falaram deles,
  7904. enquanto Capitu, confessando que a aborredamos, foi a outros cuidados. Agora
  7905. lembrava-me tudo o que entao me pareceu nada.
  7906.  
  7907.  
  7908.  
  7909.  
  7910. CAPITULO CXLI
  7911. A SOLUQAO
  7912.  
  7913.  
  7914.  
  7915. Aqui esta o que fizemos. Pegamos em nos e fomos para a Europa, nao passear,
  7916. nem ver nada, novo nem velho; paramos na Sufga. Uma professora do Rio
  7917. Grande, que foi conosco, ficou de companhia a Capitu, ensinando a lingua materna
  7918. a Ezequiel, que aprenderia o resto nas escolas do pais. Assim regulada a vida,
  7919. tornei ao Brasil.
  7920.  
  7921. Ao cabo de alguns meses, Capitu comegara a escrever-me cartas, a que respondi
  7922. com brevidade e sequidao. As dela eram submissas, sem odio, acaso afetuosas, e
  7923. para o fim saudosas; pedia-me que a fosse ver. Embarquei um ano depois, mas
  7924. nao a procurei, e repeti a viagem com o mesmo resultado. Na volta, os que se
  7925. lembravam dela, queriam notfcias, e eu dava-lhes, como se acabasse de viver com
  7926. ela; naturalmente as viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e
  7927. enganar a opiniao. Um dia, finalmente...
  7928.  
  7929.  
  7930.  
  7931. CAPI TULO CXLI I
  7932. UMA SANTA
  7933.  
  7934. Entenda-se que, se nas viagens que fiz a Europa, Jose Dias nao foi comigo, nao e
  7935. que Ihe faltasse vontade; ficava de companhia a tio Cosme, quase invalido, e a
  7936. minha mae, que envelheceu depressa. Tambem ele estava velho, posto que rijo.
  7937. la a bordo despedir-se de mim, e as palavras que me dizia, os gestos de lengo, os
  7938. proprios olhos que enxugava eram tais que me comoviam tambem. A ultima vez
  7939. nao foi a bordo.
  7940.  
  7941. — Venha...
  7942.  
  7943. — Nao posso.
  7944.  
  7945. — Esta com medo?
  7946.  
  7947. — Nao; nao posso. Agora, adeus, Bentinho, nao sei se me vera mais; creio que
  7948. vou para a outra Europa, a eterna...
  7949.  
  7950. Nao foi logo; minha mae embarcou primeiro. Procura no cemiterio de Sao Joao
  7951. Batista uma sepultura sem nome, com esta unica indicagao: Uma santa. E af. Fiz
  7952. fazer essa inscrigao com alguma dificuldade. O escultor achou-a esquisita; o
  7953. administrador do cemiterio consultou o vigario da paroquia; este ponderou-me
  7954. que as santas estao no altar e no Ceu.
  7955.  
  7956. — Mas, perdao, atalhei, eu nao quero dizer que naquela sepultura esta uma
  7957. canonizada. A minha ideia e dar com tal palavra uma definigao terrena de todas as
  7958. virtudes que a finada possuiu na vida. Tanto e assim que, sendo a modestia uma
  7959. delas, desejo conserva-la postuma, nao Ihe escrevendo o nome.
  7960.  
  7961. — Todavia, o nome, a filiagao, as datas...
  7962.  
  7963. — Quern se importara com datas, filiagao, nem nomes, depois que eu acabar?
  7964.  
  7965. — Quer dizer que era uma santa senhora, nao?
  7966.  
  7967. — Justamente. O protonotario Cabral, se fosse vivo, confirmaria aqui o que Ihe
  7968. digo.
  7969.  
  7970.  
  7971.  
  7972.  
  7973. — Nem eu contesto a verdade, hesito so na formula. Conheceu entao o
  7974. protonotario?
  7975.  
  7976. — Conheci-o. Era um padre-modelo.
  7977.  
  7978. — Bom canonista, bom latinista, pio e caridoso, continuou o vigario.
  7979.  
  7980. — E possufa algumas prendas de sociedade, disse eu; la em casa sempre ouvi que
  7981. era insigne parceiro ao gamao...
  7982.  
  7983. — Tinha muito bom dado! suspirou lentamente o vigario. Um dado de mestre!
  7984.  
  7985. — Entao, parece-lhe...?
  7986.  
  7987. — Uma vez que nao ha outro sentido, nem poderia have-lo, sim, senhor, admite-
  7988. se...
  7989.  
  7990. Jose Dias assistiu a estas diligencias, com grande melancolia. No fim, quando
  7991. safmos, disse mal do padre, chamou-lhe meticuloso. So Ihe achava desculpa por
  7992. nao ter conhecido minha mae, nem ele nem os outros homens do cemiterio.
  7993.  
  7994. — Nao a conheceram; se a conhecessem mandariam esculpir santfssima.
  7995.  
  7996.  
  7997.  
  7998. CAPITULO CXLIII
  7999. O ULTI MO SUPERLATI VO
  8000.  
  8001. Nao foi o ultimo superlativo de Jose Dias. Outros teve que nao vale a pena
  8002. escrever aqui, ate que veio o ultimo, o melhor deles, o mais doce, o que Ihe fez da
  8003. morte um pedago de vida. Ja entao morava comigo; posto que minha mae Ihe
  8004. deixasse uma pequena lembranga, veio dizer-me que, com legado ou sem ele, nao
  8005. se separaria de mim. Talvez a esperanga dele fosse enterrar-me. Correspondia-se
  8006. com Capitu, a que pedia que Ihe mandasse o retrato de Ezequiel; mas Capitu ia
  8007. adiando a remessa de correio a correio, ate que ele nao pediu mais nada, a nao
  8008. ser o coragao do jovem estudante; pedia-lhe tambem que nao deixasse de falar a
  8009. Ezequiel no velho amigo do pai e do avo, "destinado pelo Ceu a amar o mesmo
  8010. sangue".Era assim que ele preparava os cuidados da terceira geragao; mas a
  8011. morte veio antes de Ezequiel. A doenga foi rapida. Mandei chamar um medico
  8012. homeopata.
  8013.  
  8014. — Nao, Bentinho, disse ele; basta um alopata; em todas as escolas se morre.
  8015. Demais, foram ideias da mocidade, que o tempo levou; converto-me a fe de meus
  8016. pais. A alopatia e o catolicismo da Medicina...
  8017.  
  8018. Morreu sereno, apos uma agonia curta. Pouco antes ouviu que o ceu estava lindo,
  8019. e pediu que abrissemos a janela.
  8020.  
  8021. — Nao, o ar pode fazer-lhe mal.
  8022.  
  8023. — Que mal? Ar e vida.
  8024.  
  8025. Abrimos a janela. Realmente, estava um ceu azul e claro. Jose Dias soergueu-se e
  8026. olhou para fora; apos alguns instantes, deixou cair a cabega, murmurando:
  8027. Lindfssimo! Foi a ultima palavra que proferiu neste mundo. Pobre J ose Dias! Por
  8028. que hei de negar que chorei por ele?
  8029.  
  8030.  
  8031.  
  8032. CAPITULO CXLIV
  8033.  
  8034.  
  8035.  
  8036.  
  8037. UMA PERGUNTA TARDI A
  8038.  
  8039.  
  8040.  
  8041. Assim chorem por mim todos os olhos de amigos e amigas que deixo neste
  8042. mundo, mas nao e provavel. Tenho-me feito esquecer. Moro longe e saio pouco.
  8043. Nao e que haja efetivamente ligado as duas pontas da vida. Esta casa do Engenho
  8044. Novo, conquanto reproduza a de Mata-cavalos, apenas me lembra aquela, e mais
  8045. por efeito de comparagao e de reflexao que de sentimento. J a disse isto mesmo.
  8046.  
  8047. Hao de perguntar-me por que razao, tendo a propria casa velha, na mesma rua
  8048. antiga, nao impedi que a demolissem e vim reproduzi-la nesta. A pergunta devia
  8049. ser feita a princfpio, mas aqui vai a resposta. A razao e que, logo que minha mae
  8050. morreu, querendo ir para la, fiz primeiro uma longa visita de inspegao por alguns
  8051. dias, e toda a casa me desconheceu. No quintal a aroeira e a pitangueira, o pogo,
  8052. a cagamba velha e o lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina era a mesma que
  8053. eu deixara ao fundo, mas o tronco, em vez de reto, como outrora, tinha agora um
  8054. ar de ponto de interrogagao; naturalmente pasmava do intruso. Corri os olhos pelo
  8055. ar, buscando algum pensamento que ali deixasse, e nao achei nenhum. Ao
  8056. contrario, a ramagem comegou a sussurrar alguma coisa que nao entendi logo, e
  8057. parece que era a cantiga das manhas novas. Ao pe dessa musica sonora e jovial,
  8058. ouvi tambem o grunhir dos porcos, especie de troga concentrada e filosofica.
  8059.  
  8060. Tudo me era estranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, mais tarde,
  8061. quando vim para o Engenho Novo, lembrou-me fazer esta reprodugao por
  8062. explicagoes que dei ao arquiteto, segundo contei em tempo.
  8063.  
  8064.  
  8065.  
  8066. CAPITULO CXLV
  8067. O REGRESSO
  8068.  
  8069. Ora, foi ja nesta casa que um dia, estando a vestir-me para almogar, recebi um
  8070. cartao com este nome:
  8071.  
  8072. Ezequiel A. de Santiago
  8073.  
  8074. — A pessoa esta af? perguntei ao criado.
  8075.  
  8076. — Sim, senhor; ficou esperando.
  8077.  
  8078. Nao fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou quinze minutos na sala. So depois e
  8079. que me lembrou que cumpria ter certo alvorogo e correr, abraga-lo, falar-lhe na
  8080. mae. A mae, — creio que ainda nao disse que estava morta e enterrada. Estava;
  8081. la repousa na velha Sufga. Acabei de vestir-me as pressas. Quando saf do quarto,
  8082. tomei ares de pai, um pai entre manso e crespo, metade Dom Casmurro. Ao
  8083. entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa,
  8084. pintado na parede. Vim cauteloso, e nao fiz rumor. Nao obstante, ouviu-me os
  8085. passos, e voltou-se depressa. Conhece-me pelos retratos e correu para mim. Nao
  8086. me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e jovem companheiro do
  8087. seminario de Sao Jose, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo e, salvo as
  8088. cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. Trajava a moderna,
  8089. naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o aspecto geral reproduzia a
  8090. pessoa morta. Era o proprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborgo;
  8091. era o filho de seu pai. Vestia de luto pela mae; eu tambem estava de preto.
  8092. Sentamo-nos.
  8093.  
  8094. — Papai nao faz diferenga dos ultimos retratos, disse-me ele.
  8095.  
  8096. A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancesado. Expliquei-lhe que
  8097. realmente pouco diferia do que era, e comecei um interrogator^ para ter menos
  8098. que falar e dominar assim a minha emogao. Mas isto mesmo dava animagao a
  8099.  
  8100.  
  8101.  
  8102.  
  8103. cara dele, e o meu colega do seminario ia ressurgindo cada vez mais do cemiterio.
  8104. Ei-lo aqui, diante de mim, com igual riso e maior respeito; total, o mesmo
  8105. obsequio e a mesma graga. Ansiava por ver-me. A mae falava muito em mim,
  8106. louvando-me extraordinariamente, como o homem mais puro do mundo, o mais
  8107. digno de ser querido.
  8108.  
  8109. — Morreu bonita, concluiu.
  8110.  
  8111. — Vamos almogar.
  8112.  
  8113. Se pensas que o almogo foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos de
  8114. aborrecimento, e verdade; a princfpio doeu-me que Ezequiel nao fosse realmente
  8115. meu filho, que me nao completasse e continuasse. Se o rapaz tern safdo a mae, eu
  8116. acabava crendo tudo, tanto mais facilmente quando que ele parecia haver-me
  8117. deixado na vespera, evocava a meninice, cenas e palavras, a ida para o colegio...
  8118.  
  8119. — Papai ainda se lembra quando me levou para o colegio? perguntou rindo.
  8120.  
  8121. — Pois nao hei de lembrar-me?
  8122.  
  8123. — Era na Lapa; eu ia desesperado, e papai nao parava, dava-me cada puxao, e eu
  8124. com as perninhas... Sim, senhor, aceito.
  8125.  
  8126. Estendeu o copo ao vinho que eu Ihe oferecia, bebeu um gole, e continuou a
  8127. comer. Escobar comia assim tambem, com a cara metida no prato. Contou-me a
  8128. vida na Europa, os estudos, particularmente os de arqueologia, que era a sua
  8129. paixao. Falava da antiguidade com amor, contava o Egito e os seus milhares de
  8130. seculos, sem se perder nos algarismos; tinha a cabega aritmetica do pai. Eu, posto
  8131. que a ideia da paternidade do outro me estivesse ja familiar, nao gostava da
  8132. ressurreigao. As vezes, fechava os olhos para nao ver gestos nem nada, mas o
  8133. diabrete falava e ria, e o defunto falava e ria por ele.
  8134.  
  8135. Nao havendo remedio senao ficar com ele, fiz-me pai deveras. A ideia de que
  8136. pudesse ter visto alguma fotografia de Escobar, que Capitu por descuido levasse
  8137. consigo, nao me acudiu, nem, se acudisse, persistiria. Ezequiel cria em mim, como
  8138. na mae. Se fosse vivo Jose Dias, acharia nele a minha propria pessoa. Prima
  8139. Justina quis ve-lo; mas, estando enferma, pediu-me que o levasse la. Conhecia
  8140. aquela parenta. Creio que o desejo de ver Ezequiel era para o fim de verificar no
  8141. mogo o debuxo que porventura houvesse achado no menino. Seria um regalo
  8142. ultimo; atalhei-o a tempo.
  8143.  
  8144. — Esta muito mal, disse eu a Ezequiel que queria ir ve-la, qualquer emogao pode
  8145. trazer-lhe a morte. I remos ve-la, quando ficar melhor.
  8146.  
  8147. Nao fomos; a morte levou-a dentro de poucos dias. Ela descansa no Senhor ou
  8148. como quer que seja. Ezequiel viu-lhe a cara no caixao e nao a conheceu, nem
  8149. podia, tao outra a fizeram os anos e a morte. No caminho para o cemiterio, iam-
  8150. Ihe lembrando uma porgao de coisas, alguma rua, alguma torre, um trecho de
  8151. praia, e era todo alegria. Assim acontecia sempre que voltava para casa, ao fim do
  8152. dia; contava-me as recordagoes que ia recebendo das ruas e das casas. Admirava-
  8153. se que muitas destas fossem as mesmas que ele deixara, como se as casas
  8154. morressem meninas.
  8155.  
  8156. Ao cabo de seis meses, Ezequiel falou-me em uma viagem a Grecia, ao Egito, e a
  8157. Palestina, viagem cientffica, promessa feita a alguns amigos.
  8158.  
  8159. — De que sexo? perguntei rindo.
  8160.  
  8161. Sorriu, vexado, e respondeu-me que as mulheres eram criaturas tao da moda e do
  8162. dia que nunca haviam de entender uma rufna de trinta seculos. Eram dois colegas
  8163.  
  8164.  
  8165.  
  8166.  
  8167. da universidade. Prometi-lhe recursos, e dei-lhe logo os primeiros dinheiros
  8168. precisos. Como disse que uma das consequencias dos amores furtivos do pai era
  8169. pagar eu as arqueologias do filho; antes Ihe pegasse a lepra... Quando esta ideia
  8170. me atravessou o cerebro, senti-me tao cruel e perverso que peguei no rapaz, e
  8171. quis aperta-lo ao coragao, mas recuei; encarei-o depois, como se faz a um filho de
  8172. verdade; os olhos que ele me deitou foram ternos e agradecidos.
  8173.  
  8174.  
  8175.  
  8176. CAPI TULO CXLVI
  8177. NAO HOUVE LEPRA
  8178.  
  8179. Nao houve lepra, mas ha febres por todas essas terras humanas, sejam velhas ou
  8180. novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de uma febre tifoide, e foi enterrado
  8181. nas imediagoes de Jerusalem, onde os dois amigos da universidade Ihe levantaram
  8182. um tumulo com esta inscrigao, tirada do profeta Ezequiel, em grego: "Tu eras
  8183. perfeito nos teus caminhos".Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o
  8184. desenho da sepultura, a conta das despesas e o resto do dinheiro que ele levava;
  8185. pagaria o triplo para nao tornar a ve-lo.
  8186.  
  8187. Como quisesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, e achei que era exato,
  8188. mas tinha ainda um complemento: "Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o
  8189. dia da tua criagao".Parei e perguntei calado: "Quando seria o dia da criagao de
  8190. Ezequiel?" Ninguem me respondeu. Eis af mais um misterio para ajuntar aos
  8191. tantos deste mundo. Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro.
  8192.  
  8193.  
  8194.  
  8195. CAPI TULO CXLVI I
  8196. A EXPOSI QAO RETROSPECTIVA
  8197.  
  8198. Ja sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, nao ficou af para
  8199. um canto como uma flor Ifvida e solitaria. Nao Ihe dei essa cor ou descor. Vivi o
  8200. melhor que pude sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira.
  8201. Caprichos de pouca dura, e verdade. Elas e que me deixavam como pessoas que
  8202. assistem a uma exposigao retrospectiva, e, ou se fartam de ve-la, ou a luz da sala
  8203. esmorece. Uma so dessas visitas tinha carro a porta e cocheiro de libre. As outras
  8204. iam modestamente, calcante pede, e, se chovia, eu e que ia buscar um carro de
  8205. praga, e as metia dentro, com grandes despedidas, e maiores recomendagoes.
  8206.  
  8207. — Levas o catalogo?
  8208.  
  8209. — Levo; ate amanha.
  8210.  
  8211. — Ate amanha.
  8212.  
  8213. Nao voltavam mais. Eu ficava a porta, esperando, ia ate a esquina, espiava,
  8214. consultava o relogio, e nao via nada nem ninguem. Entao, se aparecia outra visita,
  8215. dava-lhe o brago, entravamos, mostrava-lhe as paisagens, os quadros historicos
  8216. ou de genero, uma aquarela, um pastel, uma gouache, e tambem esta cansava, e
  8217. ia embora com o catalogo na mao...
  8218.  
  8219.  
  8220.  
  8221. CAPI TULO CXLVI 1 1
  8222. E BEM, E O RESTO?
  8223.  
  8224.  
  8225.  
  8226. Agora, por que e que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira
  8227. amada do meu coragao? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem
  8228. os de cigana oblfqua e dissimulada. Mas nao e este propriamente o resto do livro.
  8229.  
  8230.  
  8231.  
  8232.  
  8233. O resto e saber se a Capitu da Praia da Gloria ja estava dentro da de Mata-
  8234. cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus,
  8235. filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciumes, dir-me-ia, como no seu
  8236. cap. IX, vers. I: "Nao tenhas ciumes de tua mulher para que ela nao se meta a
  8237. enganar-te com a malfcia que aprender de ti". Mas eu creio que nao, e tu
  8238. concordats comigo; se te lembras bem da Capitu menina, has de reconhecer que
  8239. uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.
  8240.  
  8241. E bem, qualquer que seja a solugao, uma coisa fica, e e a suma das sumas, ou o
  8242. resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tao
  8243. extremosos ambos e tao queridos tambem, quis o destino que acabassem
  8244. juntando-se e enganando-me... A terra Ihes seja level Vamos a Historia dos
  8245. Suburbios.
  8246.  
  8247.  
  8248.  
  8249. FIM
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