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kraauser

gt do mike

Oct 29th, 2018
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  1. GT do Mike
  2. (Prólogo)
  3.  
  4. >seja eu!
  5. >21 aninhos, pivete ainda
  6. >formado no CFAP ( Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças, em tailandês )
  7. >carteira na mão, pistola no coldre
  8. >feels like atirar em vagabundo
  9. > polícia militar do estado do rio de janeiro, abre aspas
  10. > FÁBRICA-DE-BUCETA
  11. >era 06 de turma, então pude escolher pra qual batalhão eu iria
  12. >lembre-se disso
  13. >escolhi o 23º BPM
  14. >leblon, ipanema, gávea, são conrado
  15. >mais tranquilo que isso só a casa da sua avó agora que ela parou de fazer suruba
  16. >na hora da formatura, tava lá minha coroa
  17. >batalhadora, ralou pra caralho pra me dar um futuro
  18. >chorou vendo o filho formado com aquela farda azul
  19. >os olhos começaram a suar o mais masculino dos suores
  20. >depois do toque da corneta, abracei a velha, olhei pra ela e falei:
  21. > ” agora vai ser tudo diferente mãe ”
  22. >ela abriu um sorrisão emocionado que faria até os olhos do capeta lacrimejarem
  23. > ” agora vai ficar tudo bem ”
  24.  
  25. ( Parte I )
  26.  
  27. >século x=(√4.10^3)+5^2-3^3 ( faz as contas, otário )
  28. >adivinha só, vacilão?
  29. >não ficou tudo bem
  30. >um ano depois da minha formatura, a coroa desenvolveu uma doença
  31. >cardiopatia reumática
  32. >levei ela no HCPM, mas não tem recurso nem pra cuidar dos pms baleados
  33. >imagina pra porra da minha mãe
  34. >não teve jeito
  35. >fui levando de clínica em clínica, buscando ajuda
  36. >cada diagnóstico era pior que o anterior
  37. >um dos médicos (o que mais passou confiança), disse que seria necessária uma cirurgia
  38. >não vou falar o valor, basta dizer que era o suficiente pra tirar sua mãe, suas irmãs, suas tias e até seu avô da prostituição
  39. >eu tinha um ano para conseguir a grana e pagar o tratamento dela, senão já sabe né?
  40. >eis que eu tava lá, me sentindo um merda
  41. >blitz 7h da manhã, só pra fuder trabalhador mesmo
  42. >paro um carro com os vidros escuros
  43. >peço a documentação
  44. >o cidadão, cheio de marra, joga duas notas de cem no meu peito e pergunta se estamos entendidos
  45. >o dedo do gatilho chega a coçar
  46. >o procedimento é claro, tentativa de suborno, era deslocar para a delegacia e manter sob custódia do delegado
  47. >olhei pra nota
  48. >pensei em enfiar a mão na cara daquele babaca
  49. >pensei em encher o filho da puta de porrada
  50. >pensei na coroa, deitada na cama sem poder trabalhar
  51. >puta que pariu
  52. >como disse Aristóteles ” ou você se omite, ou se corrompe, ou vai pra guerra ”
  53. >me corrompi
  54. >peguei as notas e fiz sinal pra ele ir embora
  55. >o babaca fez questão de dar aquele sorrisinho convencido
  56. > vaisefuder.rar
  57. >daria pra comprar remédios pra velha, aliviar um pouco o sofrimento
  58. >engoli minha raiva e fui pedir permissão pro sgt pra ir comer alguma coisa
  59. >ele faz cara de cu, mas a comida do rancho é uma merda e ele também tava com fome
  60. >traz duas coxinhas e um mate com limão pra mim ô seu viado, disse o tal
  61. >maldito sgt barrigudo, cansou de dar prejuízo em pizzaria
  62. >fui no boteco comprar o maldito lanche para nós e, pelo caminho, tinha que passar por debaixo de um viaduto
  63. >o lugar ali era carinhosamente chamado de beco da maldade, porque quem passava sempre perdia alguma coisa
  64. >não deu outra, eu tava me aproximando quando vi uma depósito 8/10 vindo na direção oposta
  65. >quando tava logo abaixo do viaduto, dois pivetes já enquadraram ela
  66. >um com uma pedra na mão, uma PEDRA
  67. >por um momento quis encher os dois de chumbo
  68. >mas eu já sabia que se fizesse isso minha cara estaria estampada no mesmo dia lá no RJ TV
  69. >”policial mata duas vítimas da sociedade ”
  70. >não quero ser preso
  71. >não posso ser preso
  72. >com o cacetete na mão, chego na encolha para eles não me verem
  73. >os imbecis tavam ocupados demais catando a bolsa da menina para repararem em mim
  74. >a cacetada que eu dei na nuca do primeiro foi tão forte que ele desmaiou na hora
  75. >acertei uma no outro, mas o pivete correu mais que trinta nordestinos atrás de rapadura e conseguiu se evadir do local
  76. >fui segurar o gansinho que eu tinha colocado pra dormir, quando vi a menina desesperada
  77. >congelou de medo, coisa comum
  78. > ” eles conseguiram levar alguma coisa? ”
  79. > ”não senhor ” ela respondeu baixinho
  80. > ” senhor tá no céu, pode me chamar de Costa ” falei, levantando o vagabundo na marra
  81. > ” tem que tomar mais cuidado quando andar por aqui, é perigoso, procura andar em grupo ”
  82. > ” eu sei, não costumo pegar esse caminho, é que hoje eu tive que vir de ônibus pra faculdade e não sabia chegar lá sem ser por aqui ”
  83. >nessa hora me liguei que a patricinha era estudante da PUC
  84. >aquele tipinho que abraça árvore, fuma maconha e faz sarau
  85. >beijaço fora temer, sexo anal contra o capital, marcha pela paz (e contra a policia)
  86. >percebi que a novinha ainda estava congelada e perguntei, um pouco mais impaciente ” você vai ficar aí parada ou o quê? ”
  87. >ela olhou nervosa e começou a gaguejar, falou que era estudante de psicologia e estava fazendo algum trabalho sobre violência
  88. >ela explicou lá o negócio, mas eu estava ocupado demais carregando o pivetinho
  89. >até que ela perguntou ” teria como voce me dar seu whatsapp para eu te mandar um questionário? ajudaria muito no meu trabalho ”
  90. >olhei pra ela, desconfiado
  91. >isso parecia caô, e pm que dá mole leva tiro
  92. >ela reparou na minha indecisão
  93. > ” se você topar, vai receber uma participação no valor de 500 reais ”
  94. > abriu um sorrisinho meigo e meio desconcertado
  95. >não tinha mais o que dizer
  96. >passei meu número e levei ela e o marginalzinho embora do lugar
  97. >cheguei de volta na viatura, e o sgt (vamos chama-lo de bigode) estava lá me esperando, puto
  98. >” caralho seu viado eu te mando buscar coxinha e mate e tu me trás um ganso dormindo? puta que pariu, bota esse viado no carro e vamo embora logo daqui ”
  99. >fui de lá até o batalhão ouvindo o trololó do bigode
  100. >mas minha mente tava em outro lugar
  101. >tava na novinha, cujo nome eu nem perguntei
  102. >algo de estranho me atraia nela
  103. >algo de diferente
  104.  
  105. ( Parte II )
  106.  
  107. >o dia tinha começado bem merda
  108. >já fazia mais ou menos uma semana desde o episódio com a depósito lá no viaduto
  109. >quando se é polícia, irmão, essas paradas pra você viram rotina
  110. >ou tu acha que ela é a única mina gostosa que eu já vi em ocorrência?
  111. >cês iam ficar malucos se vissem a quantidade de mina bonita que aparece pedindo ajuda pra policial, com a cara vermelha de tanto apanhar do namoradinho
  112. >mas ela, mesmo não sendo a mais bonita nem a mais cheia de papo (a mina congelou, lembram?), ela me chamou a atenção de alguma forma
  113. >passei a merda da semana olhando o tempo todo pro whatsapp, quase que o bigode me deu uma advertência
  114. >só não me deu porque viu que eu tava no grupo de putaria dos soldados da companhia e pediu pra eu adiciona-lo
  115. >depois do quinto dia eu tinha me estressado, já achava que ela tava só zuando com a minha cara
  116. >mas, depois de exatos 7 dias, a filha da puta mandou a mensagem
  117. >”oi, lembra de mim? rs… sou a Ju, você me ajudou naquele dia e ficou de participar do meu questionário? queria te ver na confeitaria colombo, lá no forte de copacabana, amanhã ”
  118. >filha da puta
  119. >essa maluca me chamou pra comer na confeitaria colombo
  120. >lugarzinho de RYKO
  121. >um salgado é papo de 30 temers
  122. >to fudido
  123. >mas também não vou negar, não vou dar uma de duro
  124. >”saio do serviço às 17:30, te encontro às 18h” respondi, fria e secamente como um soldado que sou
  125. >sem essas porras de emojizinho, viadagem do caralho
  126. >na minha época era msn, porra
  127. >mas por dentro tava igual um muleque
  128. >fiquei desatento a porra do serviço inteiro, bigode chamou minha atenção de novo
  129. >se eu desse bobeira ia dar merda, militar não pode ficar desatento
  130. >pm então, nem pensar
  131. >cheguei em casa no final do dia morto, abri a porta pra ver como tava minha mãe
  132. >tava deitada na cama, com aquela cara de cansada como sempre, vendo a netflix que eu pagava com muito suor
  133. >me olhou com um brilho nos olhos, como se soubesse que algo ia acontecer
  134. >algo bom
  135. >valoriza tua mãe, maluco. ela sabe da tua vida mais do que você
  136. >foco no gt
  137. >trouxe a quentinha da rua pra ela, e mais os remédios
  138. >era química pesada, exigia muito do corpo dela, mas a coroa era batalhadora
  139. >fui dormir e acordei no dia seguinte com uma disposição que eu já não tinha a muito tempo
  140. >o serviço passou se arrastando, mas dessa vez o bigode não encheu meu saco
  141. >acho que até o velho tinha notado algo de diferente
  142. >mas não falou nada
  143. >terminou o serviço
  144. >igual um maluco eu fui pro ponto de ônibus (ahh bonitão, e tu aí achando que pm tem carro né)
  145. >(bom, ter até tem)
  146. >(mas não eu)
  147. >tinha deixado no alojamento a roupa menos pior que eu tinha, junto com um perfume vagabundo
  148. >ia quebrar o galho
  149. >cheguei no forte um pouco atrasado, e de cara vi a moça lá me esperando
  150. >eram 18h, o sol tava se pondo e ela tomando um suco de laranja
  151. >que cena meu irmão, é aquele tipo de coisa que tu vê e dá vontade de tu escrever uma música mpb de tão bonita que é
  152. >me sentei, meio envergonhado por dentro, mas sempre mantendo aquela pose
  153. >porra, já troquei tiro com vagabundo, não ia ser um rostinho bonito que ia me intimidar
  154. >” desculpa a demora ”, lancei
  155. >ela me olhou de um jeito constrangido e disse que não tinha problema. puxou um notebook de dentro da bolsa e começou a fazer algumas perguntas, coisas básicas tipo nome, idade, bairro, essas paradas assim
  156. >aí chegou uma hora que perguntou pra mim: ”por que você escolheu trabalhar em uma profissão de violência? ”
  157. >porra moça, tá de sacanagem?
  158. >lancei assim mesmo, ela chegou a arregalar os olhos
  159. >tu acha que alguém escolhe ser pm ou ser bandido? tu acha que isso é uma parada que tu decide no terceiro ano do ensino médio?
  160. >o que tu falou é certo, somos homens de violência
  161. >mas isso nasce com a gente
  162. >nasce e morre com a gente
  163. >eu percebi que tinha nascido pra lutar nessa guerra quando eu era moleque
  164. >teve um tiroteio na porta da minha escola, e lembro dos meus coleguinhas deitados no chão chorando apavorados
  165. >e eu enojado com toda aquela viadagem
  166. >não sou super homem e nem tenho peito de aço, mas não vou ficar choramingando se tiver que lutar
  167. >porque a lei da selva é matar ou morrer, e isso ninguém tira do homem
  168. >nós usamos a violência e fazemos barbáries para que outros possam viver vidas confortáveis e tranquilas
  169. >por isso que quando eu to deprimido, eu tento pensar na quantidade de pessoas que estão dormindo tranquilamente, curtindo a vida, namorando, jogando bola, dando risada enquanto eu to de serviço
  170. >porque a vida tem um senso de humor mórbido, e uns tem que sofrer pra outros poderem viver em paz
  171. >quando terminei meu discurso, a mina ficou perplexa
  172. >não conseguia dizer nada
  173. >mas, depois de alguns segundos de tensão (onde eu comecei a me sentir um mongol por ter falado tudo isso), ela abriu um sorrisão
  174. >começou a fazer perguntas e mais perguntas
  175. >e eu respondendo
  176. >mano, sabe o que é tu conversar com uma pessoa que tá genuinamente interessada naquilo que tu tá dizendo?
  177. >que realmente quer ouvir tua história, o que tu pensa, o que tu sente?
  178. >uma pessoa que tu pode se abrir sem ter medo de ser julgado ou perseguido?
  179. >conversamos até anoitecer, eu só notei que estava tarde quando um soldado veio me avisar que o quartel ia fechar
  180. >nós íamos nos despedindo quando ela olhou pra mim e sussurrou no meu ouvido
  181. >”não queria que essa fosse a última vez que nós nos vemos. que tal nos encontrarmos aqui toda sexta nesse mesmo horário? ”
  182. >eu sorri, involuntariamente. ” como se fosse nosso lugar especial? ”
  183. >ela sorriu de volta e me olhou. ”isso. nosso lugar especial” ela repetiu, e deu um beijo na minha bochecha, quase encostando na minha boca
  184. >deu uma risadinha meio tímida, virou e foi embora
  185. >e eu fiquei olhando, vendo ela caminhar pra longe, até entrar em um táxi e desaparecer nas ruas de copacabana
  186. >”nosso lugarzinho especial”
  187.  
  188. (Parte III)
  189.  
  190. >ficamos nessa paumolescência por uns 6 meses
  191. >toda sexta feira, eu ia lá e encontrava a Juliana
  192. >no começo, eu mais ajudava o trabalho dela do que qualquer outra coisa
  193. >trouxe depoimentos de outros policiais, gravações de operações, coisa que ela nunca iria conseguir sozinha
  194. >podia ganhar uma nota vendendo isso pra jornalista da globo, mas preferi dar tudo de graça, na humildade
  195. >a menina era inteligente, nem precisaria de tudo isso pra fazer um trabalho genial, mas com a minha ajuda, a pesquisa dela foi selecionada pelo governo federal e ela ganhou uma bolsa pesquisa que devia dar o dobro do meu soldo
  196. >ela agradecia e insistia em dividir comigo, mas eu sempre recusei
  197. >dignidade, caralho
  198. >no serviço, nada de novo
  199. >serviço sempre calmo, a área do meu batalhão era muito tranquila
  200. >a coroa não demorou pra notar algo de diferente
  201. >porra eu sempre chego em casa com a cara amarrada, e agora tava até falando manso
  202. >”arthur… quando você vai me apresentar essa menina? ” ela perguntou
  203. >” que menina, mãe?”
  204. >” você acha que eu sou boba, rapaz? tá chegando em casa tarde toda sexta, com cheiro de mulher e cara de adolescente. ou tá apaixonado ou ficou maluco ”
  205. >dei muita risada com a coroa
  206. >ela lentamente tava melhorando, graças ao esforço que eu tava fazendo pra bancar o tratamento dela
  207. >achei que não teria problema se eu começasse a economizar um pouquinho no dinheiro dos remédios dela
  208. >ia dar as doses com uma frequência um pouco menor, e, com o dinheiro que eu juntasse, eu ia comprar um par de alianças para mim e pra juliana
  209. >sim, eu ia pedir direto em noivado. vai tomar no cu, pedir em namoro é coisa de ensino médio
  210. >óbvio que já estávamos nos pegando
  211. >óbvio que já estavamos metendo
  212. >(rapaz, e aquela patricinha mete muito)
  213. >vê se pode eu pedir a mina em namoro?
  214. >namorada de pm é puta irmão, fiel mesmo a gente pega pra casar
  215. >e era todo dia eu com ela no whatsapp
  216. >bigode já tinha desistido de dar esporro
  217. >agora eu só tirava serviço em lugar cu
  218. >perto de boteco, cheio de bêbado
  219. >guarda de trânsito
  220. >guarda escolar
  221. >caguei baldes
  222. >aquela bucetinha maldita já tinha me enfeitiçado
  223. >quando deu 6 meses exatos, chamei ela pro nosso lugar especial
  224. >o nosso lugar, onde nós podiamos ser quem quiséssemos, podiamos falar o que quiséssemos
  225. >onde passamos tantas e tantas horas juntos
  226. >eu tava usando a mesma roupa que eu usei da primeira vez que fui lá (gosto de fazer essas coisas, pra mim tudo isso tem um simbolismo muito forte)
  227. >não sei se era por causa do nervosismo, mas nesse dia ela me parecia ainda mais linda
  228. >conversamos, como de costume, até que, depois que anoiteceu e o brilho dos prédios começou a refletir no mar como um espelho, eu falei
  229. >” juliana, eu preciso te contar uma coisa ”
  230. >” fala, mô ” ela disse, daquele jeito meigo dela
  231. >” eu sei que você sabe como você fez bem pra mim nesses últimos meses ”
  232. > ”a única pessoa que me conhece de verdade, mais do que qualquer outra ”
  233. > ” a única pessoa com quem eu posso realmente me abrir e confiar mais do que tudo ”
  234. > ” seria injusto eu dizer que você não é tudo pra mim, que você não é o amor da minha vida ”
  235. > ” e seria covarde se eu tivesse medo de assumir que te amo e que não quero mais ninguém ”
  236. > ” quer casar comigo? ” perguntei, mostrando a ela os anéis
  237. >ela abriu um sorriso tão largo que fez meu coração explodir
  238. >irmão, tu sabe o que é melhor que ser feliz?
  239. >fazer quem tu ama feliz
  240. >porra, a carinha dela quando goza é tão linda que daria até pra eu parar de come-la só pra apreciar o rostinho dela com aquele sorrisão bobo
  241. >quando eu mostrei os anéis, foi tipo isso
  242. >ela cobriu o rostinho dela com as mãos e começou a chorar baixinho
  243. > eu sorri e cheguei perto dela, sabia que ela ia reagir dessa forma
  244. >”não precisa chorar amor, esse momento é importante pra mim também, eu to aqui contigo”
  245. >ela continuou chorando, até que me empurrou pra longe com força. ela não tinha força o suficiente pra realmente me empurrar pra longe mas eu percebi que ela se esforçou
  246. >” você não entende, né? ” ela perguntou
  247. >” nada disso é real, Arthur. nada! ”
  248. >” olha pra nós dois, arthur! meu pai é rico, é diretor na odebrecht ”
  249. >” minha mãe é doutora e dá aula em várias faculdades prestigiosas ”
  250. >”meu namorado, o Renan, também é rico e estuda comigo lá na PUC, temos os mesmos amigos, os mesmos contatos, a mesma vibe, tudo!”
  251. >epa
  252. >epa
  253. >NAMORADO?
  254. >QUE PORRA É ESSA, VADIA?
  255. >fiquei encarando a fdp, esperando ela desembuchar
  256. >”só Deus sabe o quanto eu te amo, o quanto eu te quero, tudo que eu quero é fugir e viver minha vida contigo amor”
  257. >”mas não posso”
  258. >”não queria que isso fosse um clichê tipo filme de a dama e o vagabundo, mas você sabe que não daria certo”
  259. >é verdade o que ela dizia
  260. >o coroa dela sempre me olhou atravessado
  261. >a mãe dificilmente dirigia a palavra à mim
  262. >preconceito escrotão mesmo, bagulho feio
  263. >eu cagava, mas sabia que isso incomodava ela
  264. >só não sabia que afetava ela tanto assim
  265. >” sabe aquele trabalho que você me ajudou a fazer? ”
  266. >” eu fui escolhida pra apresentar ele num evento estudantil patrocinado pela ONU, em Bruxelas ”
  267. >” o vôo é amanhã ”
  268. >” me perdoa ”
  269. > ela levantou e começou a ir embora. ” não faz nada, não faz nada ” eu dizia pra mim mesmo, tentando me controlar
  270. > não deu
  271. >segurei ela pelo braço com tanta força que meus dedos marcaram a pele branca dela
  272. >coloquei o dedo na cara dela
  273. >” sua filha da puta ”
  274. >” esse tempo todo tu me deu esperança, tu me fez me apegar a você”
  275. >” fez eu te amar”
  276. >” e agora tu faz isso? ”
  277. >” diz que namora, que não dá pra rolar, que vai pra Bruxelas? ”
  278. >” me solta Arthur, tá me machucando! ” ela protestou
  279. >” você tem noção do que você fez com a minha vida? tem noção do que é brincar com o sentimento de alguém? acha que eu sou só mais um brinquedo de criança mimada que você usa até se divertir e joga fora? ”
  280. >” me esquece Arthur! vai ser melhor para nós dois! ”
  281. >” presta atenção no que eu vou te dizer, Juliana. se eu te encontrar de novo, eu não vou me controlar. nunca mais apareça na minha frente, e anda na sombra que é mais difícil de eu te encontrar”
  282. >” ME SOLTA ARTHUR ” ela berrou, fazendo as pessoas em volta olharem para nós
  283. >larguei o braço dela e ela fugiu, em prantos
  284. >dias se passaram
  285. >semanas
  286. >meu rendimento no quartel só caía
  287. >fui realocado para o administrativo
  288. >só a rua podia curar minha depressão, e os caras me mandam pra escritório
  289. >logo eu, policial destaque
  290. >prestes a ser promovido
  291. >agora tava jogando minha carreira no lixo
  292. >odiei tudo, odiei minha vida
  293. >odiei minha mãe, minha única responsabilidade, a única coisa que me impedia de me matar
  294. >só encontrei conforto na bebida
  295. >o vício cobra seu preço mano
  296. >cada vez mais e mais do soldo ia pra bancar a bebida
  297. >as putas
  298. >o cigarro
  299. >os remédios da coroa começaram a faltar
  300. >mas ela nunca reclamou, batalhadora como é
  301. >resistiu de cabeça em pé, sempre
  302. >um dia desses eu saí do serviço com outros dois companheiros
  303. >fomos ainda fardados pra um puteirinho de luxo (tipo termas) ali na região
  304. >eu bancava as putas como se fosse burguês
  305. >mal sabem elas que sou um merda
  306. >essas minas são fodas, riem, dizem que te amam
  307. >mas no fundo sabem que tu é só mais um deprimido que tá ali pra achar conforto
  308. >conforto que elas dão, mediante ao preço delas
  309. >foi quando eu tava levando uma pro quarto que recebi uma ligação de um vizinho
  310. >atendi o telefone já puto
  311. >” qual foi irmão? ”
  312. >” sua mãe está no hospital sousa aguiar. vem urgente pra cá ” ele disse, apressadamente, antes de desligar
  313. >o vício cobra seu preço, mano
  314.  
  315. (Parte IV)
  316.  
  317. >cheguei no hospital desesperado
  318. >já temendo o pior
  319. >me culpando por tudo isso, eu era um merda e eu sabia
  320. >passei direto pelo meu vizinho e foi logo falar com o médico
  321. >me identifiquei com dificuldade, porque tava me controlando pra não cair no chão chorando
  322. >tudo aquilo era culpa minha, as duas pessoas mais importantes pra mim me abandonariam, eu ia ficar sozinho, e acabar me matando mais cedo ou mais tarde
  323. >o médico me olhou com uma cara séria
  324. >” sua mãe está em estado grave. já pedimos a transferência pro HCPM onde eles vão poder cuidar dela por mais tempo ”
  325. >” mas ela precisa urgente de uma cirurgia para reverter seu quadro clínico
  326. >arregalei meus olhos, sem acreditar
  327. >” ela tá viva, doutor? ” perguntei
  328. >”sim, mas não por muito tempo ”
  329. >” quanto tempo eu tenho, doutor? ”
  330. >” até o fim do ano ela precisa estar na mesa de cirurgia, senão o quadro dela vai ficar grave demais para os nossos meios atuais ”
  331. >irmão, naquela hora eu agradeci tanto a Deus que perdi a noção do tempo e do espaço
  332. >ouvi a voz d’Ele saindo pela boca daquele médico
  333. >Ele tava me dando uma segunda chance
  334. >dessa vez eu não ia falhar
  335. >” quanto seria essa cirurgia, doutor? ” perguntei, decidido a bancar não importa o quanto custasse
  336. > ”nas mãos de um bom cirurgião? coloca aí 85, 95k ”
  337. >o número me acertou em cheio
  338. >eu nunca ia conseguir arrumar essa grana
  339. >nunca pelos meios normais, pelo menos
  340. >perguntei se poderia falar com ela, mas ele disse que ela estava em repouso
  341. >apenas olhei pra ela enquanto ela dormia
  342. >naquele momento, eu já não tinha mais dúvidas
  343. >não consegui voltar pra casa, andei pelas ruas até o amanhecer
  344. >me apresentei no quartel com uma carta na mão
  345. >um pedido de transferência
  346. >para o 41º batalhão
  347. >o encarregado me olhou assustado
  348. >todos conhecíamos a fama do 41
  349. >patrulhar a área mais perigosa da cidade
  350. >complexos do Chapadão e da Pedreira
  351. >apoiar as guarnições da Maré e do Complexo da Penha/Alemão
  352. >o batalhão que mais via combate, só perdendo pro BOPE
  353. >a fama corria rápido
  354. >chegando lá, não demorou pra sentir a diferença
  355. >saindo de um batalhão de zona sul, onde a gente só usa revólver e cacetete
  356. >no 41 é AR-15 e FAL de luneta
  357. >tanto pm equipado lá dentro que tu chega a tremer
  358. >me apresentei ao comandante, como dita o figurino, e depois fui pra minha nova companhia
  359. >”PUTA QUE PARIU NÃO ACREDITO” alguém gritou um pouco atrás de mim
  360. >olhei pra trás e reconheci a cara de um velho amigo
  361. >filho da puta do Yuri
  362. >esse maluco é um animal
  363. >no CFAP ele tirou 10 em TODOS os testes físicos
  364. >fez estágio no BOPE
  365. >chegou a ser convidado a fazer o curso do BOPE
  366. >promessa da PM
  367. >não fiquei surpreso em ver que já era cabo e tava alocado no GAT (um minibope que alguns batalhões da pm possuem pra casos excepcionais)
  368. >” o que é que cê veio fazer no Iraque, muleque? ” ele me perguntou com aquela voz meio rouca dele, dando um tapão amigável que quase levou meu braço embora
  369. >” cansei de ser babá de gringo e de madame, quero brincar de polícia porra! ” respondi, do jeito que ele gosta
  370. >o cara ficou maluco
  371. >” irmão, quinta vai ter uma operação na Kelson’s (uma favelinha lá). vamo barulhar aqueles filha da puta. cola junto do GAT que a gente te leva ”
  372. >” por mim já fechou ”
  373. >nos despedimos e cada um tomou seu caminho
  374. >o comandante deu uma semana pra eu me ambientar ao batalhão
  375. >dar uma aquecida na carcaça e praticar tiro e umas lutas lá
  376. >quem vem de batalhões tranquilos como o meu geralmente precisava disso
  377. >passei a semana me preparando pro nosso passeio
  378. >chegou quinta de noite
  379. >depois do meu expediente, fui reunir com os caras do GAT
  380. >a rapazeada era boa, uma galera parruda, a maioria morador ou ex morador de favela, sabiam se guiar bem
  381. >coloquei o colete e a touca ninja e peguei meu fuzil
  382. >bora porra
  383. >entramo nas viaturas e partimos pra lá
  384. >chegamos voado na favela, pra aproveitar o efeito surpresa já que não tinhamos caveirão nem cobertura
  385. >as viaturas pararam na barricada dos bandidos e já saímos disparando
  386. >os vagabundos tentaram trocar com a gente, mas nós estávamos dando muito tiro
  387. >confesso que fiquei com um cagaço fudido
  388. >me abriguei e fiquei só aplicando nos marginais
  389. >vi a tropa progredindo e eu ficando pra trás, com medo de tomar bala
  390. >que porra é essa mermão?
  391. >já esqueceu das merdas que tu fez?
  392. >já esqueceu da tua mãe que tá fudida por tua causa?
  393. >bota a cara nessa porra!
  394. >saí do buraco que eu tava e cheguei de peito aberto
  395. >eu e mais dois tomamos de assalto a boca lá e os vagabundos fugiram
  396. >o resto da tropa foi caçar os marginais, e eu fiquei lá
  397. >guarnecendo a boca
  398. >reparei que um vagabundo baleado ainda tava vivo e cheguei nele já com a arma na cara
  399. >” fala onde tu guarda o dinheiro que eu te mato logo, sem sofrer ”
  400. >o verme fez careta, mas tava muito fraco pra me xingar
  401. >dei um murro na cara dele pra ele sentir o melado descer pela testa dele
  402. >” vai falar ou vou ter que esculachar? ”
  403. >ele apontou pra uma sacola preta lá
  404. >abri e vi o malote
  405. >várias notas de 100 e 50
  406. >lógico, era muito pouco ainda
  407. >mas já era um bom começo
  408. >antes de conseguir encher os bolsos com as notas, reparei alguém chegando
  409. >era o Yuri, sozinho
  410. >” que porra é essa Costa? Tu é bandido, mermão? ”
  411. >” coé Yuri não é nada disso cara ”
  412. >” nada disso o caralho ” ele disse, vindo pra cima de mim
  413. >” eu vi tudo parceiro”
  414. >” te trouxe pra trocar tiro e tu vem roubar vagabundo, qual foi? ”
  415. >vendo que não tinha alternativa, expliquei minha situação pra ele
  416. >falei tudo, desde o começo, na maior sinceridade
  417. >no fundo a gente ainda ouvia tiros, mas com intervalos cada vez maiores
  418. >os poucos bandidos já deviam ter fugido ou se entocado
  419. >Yuri ouviu tudo e refletiu, ficou um bom tempo pnderando minhas palavras
  420. >” tu vai me entregar? ”perguntei
  421. >ele fez que não com a cabeça
  422. >” mas nós vamos fazer um trato ” ele respondeu
  423. >” eu sei que tu é um cara bom, puro e que não tá fazendo isso na maldade. e tu sabe que meu sonho sempre foi ser caveira ”
  424. >” eu vou requisitar pra tu entrar pra minha unidade, o GAT. e tu vai vir em operação comigo toda semana irmão ”
  425. >” vai trocar toda semana, com risco de morte. vai ser meu parceiro nessa guerra. vai me ajudar a me preparar pro curso do bope ”
  426. >” em troca, eu não te deduro, e deixo tu ficar com todo o dinheiro que tu achar. e aí? tu topa? ”
  427. >olhei bem pra cara dele
  428. >Yuri era maluco
  429. >tava cagando pra dinheiro, status, essas merdas
  430. >a tara dele era matar, e o cara era bom nisso
  431. >enfim, que escolha eu tinha?
  432. >apertei a mão dele com firmeza, e olhei dentro dos olhos dele
  433. >”fechado”
  434.  
  435. (Parte V)
  436.  
  437. >semanas se passaram
  438. >já era meados de setembro
  439. >nesse intervalo, eu já contabilizava 8 operações
  440. >mais de 50 kilos de cocaína apreendidos
  441. >27 fuzis
  442. >19 menores
  443. >e 7 vagabundos mortos
  444. >além de uma promoção pra cabo
  445. >tava tudo indo bem
  446. >já tinha separado 30k que eu arrecadei nas operações
  447. >não era muito, mas já dava para cobrir a entrada da cirurgia
  448. >mas nada disso se comparava ao que estava por vir
  449. >uma bela manhã de terça, eu, Yuri (que estava mais feliz do que sua mãe vendo um álbum de pirocas angolanas) e mais 2 caras do GAT estávamos na sala de estar do batalhão
  450. >vendo a versão pornô da operação lava-jato
  451. >a operação leva jato
  452. >excelente filme
  453. >quando entra na sala o coronel, comandante do batalhão
  454. >pera
  455. >vocês não entenderam
  456. >quem entrou foi um coronel
  457. >um cara que a gente só vê em solenidade e em retrato no mural
  458. >um cara que a gente não tem autorização nem pra chupar a piroca (tem que ser no mínimo sargento)
  459. >o cara entrou na sala e nós imediatamente nos levantamos
  460. >e ninguém teve a brilhante ideia de desligar a televisão
  461. >o coronel começou a falar enquanto o pornozão rolava solto
  462. >” essa semana uma mega operação acontecerá na área de nosso batalhão ”
  463. >” a presença do GAT foi requisitada diretamente pelo secretário de segurança, que está impressionado com a qualidade apresentada pela unidade ”
  464. >” os senhores irão ocupar o complexo do Chapadão, dando apoio ao BOPE ”
  465. >” terão a semana inteira para se preparar para isso ”
  466. >o coronel olhou com uma cara de sacana pra tv e disse, antes de sair ” à vontade, cavalheiros ”
  467. >para os que não conhecem, o Complexo do Chapadão é uma favela localizada na zona norte do Rio
  468. >em uma posição estratégica que dá à facção que a dominar a capacidade de lançar ataques em várias frentes simultaneamente
  469. >uma peça chave para as três facções cariocas
  470. >o complexo era dominado atualmente pelo Comando Vermelho, a mais violenta e competitiva das três facções
  471. >eles não se rendiam
  472. >e nós adorávamos
  473. >porque não precisávamos ter pena deles quando nós os matávamos
  474. >a inteligência dizia que haviam pelo menos 70 marginais armados na favela
  475. >liderados por Ferrugem, o bandido bola da vez
  476. >todos queriam ele preso, era o ”queridinho” da mídia
  477. >” se a gente pegar esse filho da puta, nossa cara vai estar estampada na mídia, vamos passar na frente dos caveiras porra ” o Yuri dizia
  478. >ele tinha razão, mas nunca que os caveiras iam permitir isso
  479. >mas ele não se importava
  480. >nem nós, nosso foco era outro
  481. >passamos a semana inteira treinando
  482. >dando tiro até cansar o dedo
  483. >correndo ladeira acima, ao meio dia, com colete e fuzil
  484. >esse tipo de brincadeira de soldado
  485. >chegou, finalmente, o grande dia
  486. >eserávamos no pátio do batalhão a chegada dos caveiras
  487. >quando eles chegaram, fizeram a entrada triunfal que eles tanto gostam
  488. >caveirão, fuzil pra caralho, máscara de caveira, farda preta, tudo
  489. >porra, não dá pra negar, os caras são fodas
  490. >no auge do vigor físico, no auge da capacidade
  491. >são uma elite, e gostam de mostrar, tipo aquela mina gostosa que sabe que é gostosa e adora provocar
  492. >ouvimos els nos zoando enquanto embarcávamos nas nossas viaturas
  493. >”isso aí convencional, vão subir a favela de triciclo né?”
  494. >”os caveiras matam, os convencionais carregam os defuntos ”
  495. >” ei, convencional! pega no meu *** (isso é um gt de família) ”
  496. >não damos uma foda
  497. >no tiroteio vamos ver quem é quem
  498. >Yuri está claramente ouriçado
  499. >eu adoro esse cara, rio muito com as caras que ele faz antes das operações
  500. >sabe quando você tá prestes a comer uma mulher, e o teu sangue esquenta?
  501. >tu fica nervoso, mas ao mesmo tempo quer mostrar o que tem
  502. >é mais ou menos por aí
  503. >o comboio sai em direção ao chapadão
  504. >na calada da noite, as ruas mais ou menos desertas
  505. >os rapazes tão em silêncio
  506. >Yuri senta do meu lado e puxa o assunto
  507. >” Porra Arthur, hoje é nosso dia irmão. o dia que nós vamos mostrar do que nós somos feitos ”
  508. >ele sabia que eu estava nervoso, e, apesar de não ser muito bom com palavras, veio me ajudar
  509. >” irmão, tira teus problemas da cabeça. no tiroteio é tu, tua arma, o vagabundo e a arma do vagabundo ”
  510. >” sabe por que eu gosto tanto de guerra? ”
  511. >” porque lá não importa quem tu é, o que tu faz. a tua vida faz sentido.
  512. >” no momento que a bala começa a voar tu descobre o quanto quer viver e o quanto tua vida vale a pena.”
  513. >”tu acha que eu me importo com depressão, com mulher, com conta pra pagar?”
  514. >” o que eu quero é trocar tiro com meliante, deixar corpo no chão e chegar vivo em casa. sem complicação. sem filosofia. sem nada”
  515. >eu olhei pro muleque com um sorriso. não é que o doente tinha razão?
  516. >” vamo deitar esses filhas da puta poha ” falei
  517. >não precisou falar mais nada. ele abriu um sorrisão e segurou o fuzil
  518. >logo depois, as viaturas embicaram pra dentro da favela
  519. >os tiros de traçante atingiam os caveirões, que vinham na frente pra dar cobertura
  520. >só rajada de traçante vermelho, parecia coisa de filme americano
  521. >descemos do carro dando tiro já
  522. >nós progrediamos direitinho, igual os caveiras, mas os caras tinham mais estilo
  523. >entravam nos becos berrando
  524. >”O CAPETA CHEGOU”
  525. >”VIEMOS BUSCAR VOCÊS”
  526. >”VOU BEBER O SEU SANGUE”
  527. >até nós nos assustávamos com aquela porra
  528. >mas funcionava
  529. >deixamos a equipe do BOPE enfrentar os pontos fortes dos vagabundos
  530. >mandamos metade do nosso efetivo ficar na contenção e apoiar os caveiras
  531. >a outra metade foi comigo e com o Yuri buscar o dono do morro
  532. >contornamos o tiroteio mais pesado até chegar na casa do filho da puta
  533. >uma mansão pica no meio da favela
  534. >era bem guardada pra cacete, os bandidos mais pesados e bem equipados tavam lá
  535. >mas nós cercamos e deitamos todos eles, não teve jeito
  536. >eu e Yuri fomos os primeiros a invadir a casa, com uma puta piscina linda, tv de não sei quantas polegadas, videogame, a porra toda mermão
  537. >subimos as escadas e palmeamos a casa toda
  538. >só tinha uma porta trancada
  539. >nós olhamos um pro outro e, no trés, eu meti o pé na porta, que caiu dura no chão
  540. >entramos no quarto e achamos o Ferrugem, com uma pistola na mão
  541. >as duas mãos levantadas
  542. >e, atrás dele, a esposa, a filha (devia ter uns 4 anos) e a mãe
  543. >uma senhora, idosa já
  544. >doente
  545. >eu não falei nada, nem o Yuri.
  546. >nós ficamos encarando ele, com a arma apontada pro peito dele.
  547. >ele largou a pistola e não disse nada, pôs as mãos na cabeça e esperou
  548. >talvez ele achasse que nós os mataríamos mas pouparíamos a família dele
  549. >não sei
  550. >só sei que baixei a minha arma e o Yuri fez a mesma coisa
  551. >eu não ia matar um cara na frente da família dele, por mais que ele fosse vagabundo
  552. >de repente, um zunido forte passa do lado da minha orelha
  553. >fico desnorteado e me jogo no chão, junto com o Yuri
  554. > quando levantamos, vimos o que aconteceu.
  555. >um grupo de caveiras entrou no quarto atrás de nós e encheu o Ferrugem de bala
  556. >o cara ainda tava vivo, estribuchando na frente da filha
  557. >a criança toda cagada de sangue
  558. >levantei puto, mas antes que eu pudesse abrir a boca, o Yuri levantou, mais puto ainda
  559. >” SEUS VIADOS FILHOS DA PUTA ”
  560. >” VOCÊS TÃO MALUCOS PORRA ”
  561. >” ELE TINHA SE RENDIDO ”
  562. >os caveiras cagaram, entraram no quarto rindo da nossa cara e já foram imobilizando a família do bandido
  563. >o Yuri não deixou barato
  564. >segurou um deles pelo braço e puxou
  565. >” Tá dando uma de maluco, caveira? tá achando que tem algum babaca aqui? ‘
  566. > os caveiras se viraram e enquadraram o Yuri, jogando ele contra a parede
  567. >fui interceder mas um me puxou por trás, pelo pescoço
  568. > ” Vocês dois acham que a gente não sabe o joguinho de vocês?? ” um deles perguntou
  569. >” um é frustrado, quer ser caveira mas tem medo de não conseguir, então busca atenção da mídia a todo custo.”
  570. >” O outro é um pobre coitado que fica mendigando o dinheiro de marginal”
  571. >” Vocês são patéticos ” ele terminou, enquanto levavam a família do cara embora.
  572. >Um caveira veio e empurrou no meu peito uma sacola grande, com mais de 100k temers dentro.
  573. >Olhei para o Yuri, que tinha sentado no chão, e não consegui segurar as lágrimas
  574. >consegui o dinheiro que eu precisava. mas a que custo?
  575.  
  576. (Parte VI)
  577.  
  578. >depois do incidente no Chapadão, fomos as celebridades do momento
  579. >o BOPE, que ironia, elogiou a ”ação meritória do GAT, que demonstrou extremo profissionalismo em face do perigo”
  580. >eu e Yuri fomos promovidos a 3º Sgts
  581. >nossas carreiras estavam mais turbinadas que foguete da NASA
  582. >a princípio ele não quis aceitar a promoção, depois da humilhação que sofremos na mão dos caveiras
  583. >mas eu convenci ele que não valia a pena comprar essa briga
  584. >”nossa guerra é outra, irmão. foca nas lutas que a gente pode vencer”
  585. >mais cedo ou mais tarde, o inevitável acabou acontecendo
  586. >eu e Yuri nos matriculamos no curso de operações especiais, do BOPE
  587. >com o dinheiro que eu já tinha arrecadado, consegui pagar a cirurgia da coroa
  588. >graças a Deus (e aos cirurgiões, é claro), deu tudo certo
  589. >o problema tinha sido contido e ela estava estável
  590. >agora era repouso, descansar e não expor ela a estresse
  591. >e em seis meses ela já poderia sair de casa sozinha
  592. >deixei ela no apartamento, sem contar que ia fazer o curso
  593. >ela sabia se virar
  594. >” você vai longe, arthur. vai fazer grandes coisas ” ela falou, com os olhos marejados
  595. >tudo era motivo pra ela chorar
  596. >”só quem pode impedir você é você mesmo”
  597. >já era próximo de dezembro quando o curso iniciou
  598. >não, não vou entrar em detalhes. todos já viram o filme e tem idéia de como é
  599. >tem porrada sim, tem esculacho sim, tem tudo isso
  600. >é uma merda, mas faz parte
  601. >se fosse pra formar princesa, o curso seria no castelinho da Disney
  602. >eu sofria mas sustentava
  603. >já tava nessa guerra então era melhor mergulhar de cabeça
  604. >mas percebia que o Yuri tava diferente
  605. >muito diferente do que eu imaginei
  606. >meio frio, meio distante
  607. >”não tem mais nada pra mim lá fora irmãozinho ” ele falava
  608. >” isso aqui é a minha vida ”
  609. >” para de falar merda, Yuri ” eu respondi
  610. >” tu tem uma vida toda lá fora ”
  611. >” e um dia eu sei que tu vai encontrar uma mina que vai te fazer esquecer da guerra ” eu falei, profetizando
  612. >lembre-se disso
  613. >a segunda fase do curso era mais legal
  614. >muito mais técnica e prática, aprendemos diversos procedimentos que teriam nos ajudado muito na época do GAT
  615. >quando nos formamos, já éramos dois monstrinhos
  616. >o BOPE costuma mandar os recém formados pra muita operação, pra aproveitar o gás insano do pós curso
  617. >deixei muito bandido no chão, irmão
  618. >deixei muita mãe chorando
  619. >cheguei em casa sujo de sangue e com cheiro de morte
  620. >a guerra cobra o seu preço, e nem sempre ele é barato
  621. >minha vida passou a ser a guerra, fiz da morte minha religião
  622. >cansei de entrar com o Yuri em favela e trocar tiro, e ver a morte me encarando
  623. >como diz Nietzsche: ” atentai para, quando luta com monstros, não tornar-se a ti mesmo um monstro”
  624. >”pois se tu olhas por muito tempo para dentro do abismo, o abismo também olha para dentro de você”
  625. >já tinha me acostumado com aquilo, virou a minha rotina
  626. >comecei a tratar os convencionais com o mesmo desprezo que os caveiras me tratavam no início
  627. >é foda, irmão. é o sistema
  628. >sem querer ser clichê mas já sendo
  629. >isso nunca vai mudar, sempre vai haver a guerra e aqueles loucos o bastante para entrarem nela
  630. >um belo dia, recebo uma chamada de um número oculto
  631. >atendo e uma voz feminina fala ” me encontra no nosso lugar, no nosso horário ”
  632. >eu conhecia aquela voz
  633. >juliana
  634. >nem fudendo que eu iria encontrar aquela piranha
  635. >mas o Yuri insistiu
  636. >” vai mano, vai ”
  637. >” tu precisa de alguém que te ajude a largar isso ”
  638. >matar já tinha virado nosso vício
  639. >agora nós precisávamos de um motivo para viver
  640. >Yuri estava desiludido como eu, mas pelo menos queria me ver bem
  641. >muito a contragosto, fui no forte encontrá-la, no mesmo horário de sempre
  642. >ela demorou a me reconhecer
  643. >”o que houve com você? ” ela perguntou, assustada
  644. >” eu disse para você não me procurar, juliana ”
  645. >”arthur, eu preciso conversar contigo”
  646. >”nos não temos nada para conversar, juliana”
  647. >”a sua mãe não está bem, arthur”
  648. >nessa hora não me contive
  649. >puxei ela pela blusa e encarei ela
  650. >”ela estaria muito bem se você não tivesse me largado para dar essa buceta suja para o maconheiro do seu namorado, e bancar a turista na europa”
  651. >ela estava visivelmente chocada, mas tentou se controlar
  652. >” arthur, você está fora de si. todos ao seu redor estão reparando. por favor, deixa eu te ajudar ”
  653. >” me ajudar? você é a culpa de tudo isso, juliana. tudo isso.”
  654. >” tudo que eu queria era continuar no meu batalhão, trabalhar tranquilamente e seguir minha carreira em paz ”
  655. >” mas depois de você minha vida se tornou uma guerra, um caos que só pode ser aplacado mediante a sacrifício de sangue ”
  656. >” e agora você, que não sabe porra nenhuma sobre nada, aparece aqui se achando a gostosona e dizendo que vai me ajudar? ”
  657. >percebo que os olhos dela estão escorrendo lágrimas
  658. >” me desculpa pelo que eu fiz, amor ” ela falou, com a voz embargada
  659. >” eu nunca imaginei que você fosse se tornar nisso que você se tornou ”
  660. >” mas eu voltei, e dessa vez quero fazer as coisas certas. você errou e eu também, tudo que eu te peço é uma chance de fazermos a coisa certa dessa vez”
  661. >virei a cara, me recusando a olhar pra vagabunda e ouvir o que ela tinha a dizer
  662. >” arthur ” ela falou, quase sussurrando. ” eu estou grávida ”
  663. > naquela hora meu mundo desabou, irmão
  664. >filha da puta
  665. >meu primeiro impulso foi de negar e de xinga-la de todos os nomes que eu conhecia
  666. >mas no fundo, no fundo mesmo, eu sabia que o filho era meu
  667. >respirei fundo e me controlei
  668. >” juliana, da última vez que nos vimos você disse que nós deveríamos nos afastar, para o meu próprio bem ”
  669. >”hoje sou eu que digo isso para você. não chegue perto de mim se não quiser sofrer comigo ”
  670. >” essa guerra não é sua, é minha. eu decidi entrar e eu vou sair por conta própria ”
  671. >” vou bancar a criança e todas as necessidades dela ”
  672. >” mas entre eu e você, já não pode rolar mais nada ”
  673. >” me desculpe ” eu terminei, levantando e indo embora, ouvindo os soluços dela ao fundo
  674. >a depressão bateu forte dessa vez, mas eu tinha meu remédio
  675. >fui à caça, fui à luta
  676. >mais operação, mais operação
  677. >chegava em casa ensanguentado, por vezes até baleado
  678. >nem o Yuri mais conseguia me acompanhar
  679. >fiz meu nome no batalhão, me chamavam de ”super homem”
  680. >segundo eles, eu botava a cara no tiroteio, como se não tivesse medo de tomar tiro
  681. >mas eu realmente não tinha
  682. >na verdade, seria um favor
  683. >foi numa quinta feira que a juliana me ligou novamente
  684. >atendi a contragosto e ouvi a voz dela me chamando com urgência para o HCPM
  685. >sem entender nada, cheguei lá
  686. >fui recebido por ela, consternada, e por um médico
  687. >”o senhor é o sargento Arthur Costa da Silva? ” perguntou o doutor
  688. >” sou eu ” respondi
  689. >”lamento informar, mas a mãe do senhor faleceu hoje às 22:48. meus pêsames ” ele disse, se retirando antes que eu pudesse pedir mais informações
  690. >naquela hora meu mundo desabou
  691. >tudo ficou escuro pra mim
  692. >a Juliana conseguiu me segurar e me arrastar para um banco
  693. >eu estava tonto, desnorteado
  694. >”por quê? não pode ser… ” eu me perguntava, com uma voz fraca
  695. >” eu dei todos os remédios, paguei pela cirurgia, o que pode ter acontecido? ” eu falava comigo mesmo
  696. >tentando me convencer que aquilo não podia ser real
  697. >simplesmente não podia
  698. >”sua mãe estava depressiva, arthur” a juliana me respondeu
  699. >”ela viu no que o filho estava se tornando. você era tudo pra ela ”
  700. >” sua motivação deixou de ser o bem estar dela para ser a guerra e a morte ”
  701. >” ela não suportou perder você dessa forma ”
  702. >pela primeira vez em anos, chorei
  703. >mas chorei muito, mano
  704. >naquela hora, eu sabia que tudo tinha perdido sentido pra mim
  705. >o último fio que me ligava à terra, à vida, havia partido
  706. >me deixado
  707. >juliana me levou pra casa, cuidou de mim
  708. >ficou comigo
  709. >não deixou eu estourar minha cabeça naquela noite, nem na seguinte, nem na outra
  710. >mal sabia ela que eu já estava morto por dentro
  711. >ela se esforçava, fazia tudo pra me ver feliz
  712. >me acordava com todo o carinho do mundo, lia comigo, escolhia filmes para vermos
  713. >seria uma ótima esposa e com certeza será uma excelente mãe
  714. >vai ser pro nosso filho como a minha mãe foi pra mim
  715. >e infelizmente a criança vai crescer sem pai, igual a mim
  716. >porque apesar de tudo, eu estava morto por dentro
  717. >e tudo que a juliana fazia por mim só postergava o inevitável
  718. >separei uma quantia considerável para ela, conseguiria bancar a criança por um bom tempo
  719. >como se a juliana precisasse do meu dinheiro, enfim
  720. >sexta feira era dia de operação
  721. >morro da pedreira, favela perigosa
  722. >subi com a equipe alpha, um time experiente
  723. >ninguém ali era moleque
  724. >e como nós dizemos, não é autorizado ao caveira tomar tiro
  725. >somos proibidos de morrer
  726. >caguei
  727. >pedi para ir com a alpha para não ir com o Yuri, que é da bravo
  728. >somos irmãos de guerra, mas não queria que ele me visse tombando
  729. >pode parecer bobeira, mas no fim nós nos preocupamos mais com o que os outros pensam de nós
  730. >subi o morro igual um maluco
  731. >gritando
  732. >barulhando
  733. >os bandidos fugiam alucinados, como se vissem na minha imagem o próprio capeta
  734. >deixei vários corpos caídos, enquanto procurava alguém que fosse digno de me matar
  735. >aqueles bandidões com cara de marra foram os primeiros a correr
  736. >eu já xingava a Deus, perguntando se era alguma maldição que tinha sobre mim
  737. >se Ele estava me punindo, fazendo da terra o meu inferno
  738. >foi aí que senti um calor incontrolável no meu corpo, como se me queimasse por dentro
  739. >um tiro certeiro me atingiu debaixo do braço, na axila
  740. >olhei para o lado para ver quem foi o valente que me alvejou
  741. >vi um moleque, de 16 anos no máximo
  742. >apavorado
  743. >com medo de morrer
  744. >sem saber o que fazia ali
  745. >sorri, satisfeito, e caí no chão
  746. >o meu sangue morno já ensopava minha farda, e quando meus companheiros me encontraram eu já estava delirando
  747. >quem diria que, depois de tudo, seria um moleque que me mataria
  748. >ia virar considerado na favela, um bandido perigoso
  749. >ia matar muitos até que um valente o derrubasse
  750. >ia manter meu legado
  751. >manter viva essa guerra
  752. >tirar muitas vidas em nome da morte
  753. >minha missão nessa terra foi cumprida
  754. >matar e morrer para que outros possam viver
  755. >e quando meus olhos fecharam, pensei na minha mãe, e como tudo poderia ter sido diferente se eu e juliana não fôssemos tão bobos, naqueles encontros de sexta à tarde.
  756. >agora já era, irmão
  757. >me perdoa, mãe
  758. >me perdoa filho
  759. >me perdoa Yuri
  760. >me perdoa amor
  761.  
  762. (Epílogo)
  763.  
  764. >o enterro do sargento Costa foi feito com toda a pompa militar que ele merecia
  765. >discurso dos seus comandantes no BOPE, no 41º e no 23º
  766. >homenagens da tropa
  767. >coroas de flores no Jardim da Saudade
  768. >entre a multidão, o sargento Yuri encontra uma moça
  769. >segura-a pelo braço e pergunta ” você deve ser a juliana? ”
  770. >ela faz que sim, com a cabeça, limpando o rosto das lágrimas
  771. >o sargento não diz nada. não precisava
  772. >arthur foi mais que seu amigo, foi seu irmão
  773. >e lhe deixava uma última missão após partir
  774. >cuidar de sua mulher e de seu filho
  775. >o yuri abraçou a juliana com carinho, segurando ela firme
  776. >e falou calmamente para a jovem
  777. >”agora tudo vai ser diferente juliana”
  778. >os dois choravam enquanto se abraçavam
  779. >”agora tudo vai ficar bem”
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