Advertisement
Not a member of Pastebin yet?
Sign Up,
it unlocks many cool features!
- “Te vejo depois”, você disse naquele dia. Naquela tarde ensolarada que ficou como uma pintura na minha cabeça. Ainda lembro tanto daquele dia que os raios de sol fazem meus olhos arder. “Te vejo depois” e saiu acenando, olhando pra trás enquanto saltitava um, dois, três passos e virava o rosto pra lançar um sorriso de promessa de céu.
- Ah! Minhas mãos ardem. Seu belo sorriso se transformou em uma máscara dolorosa de fera. Sim, eu quis ficar ao seu lado. Sim, eu sabia o que poderia acontecer. A única coisa que me dá sinal de que ainda estou viva é a lembrança daquela tarde. No que você pensava antes de perder a razão? O que te ancorou ao meu lado até que sua mão suave, a mesma que me entregou aquela rosa com um beijo nas pétalas no meio da Praça da República, segurasse meus pulsos e os levassem aos seus dentes diabolicamente trêmulos e famintos? No fim da tarde de hoje, quando deveríamos comemorar 30 anos de casados, eu não tinha uma rosa vermelha, mas uma mão mastigada, destroçada, e eu só não perdi mais porque nosso Golden, nosso fiel cachorro de tantos anos, esforçou suas patas idosas para me proteger enquanto eu corria para cá e fechava a porta. Não deu tempo de me trancar toda, o som cáustico de pêlos e carne rasgando, um ganido cansado e vidro no chão ainda me alcançaram. Em um flash eu vi o filhotinho entrando pela porta do apartamento e não tive coragem de bisbilhotar o que você está fazendo com ele. Ele te distraiu por alguns minutos, você tinha o que esmagar com sua boca morta e eu tinha que procurar o que arrastar pra fazer peso na porta. Nem percebo mais seus gritos animalescos, virou bicho, matou o bicho, fez isso com a minha mão… olha só, meu dedo com nossa aliança irreversivelmente machucado. Que forma horrível de pedir divórcio, seu desgraçado. Eu sei que você tinha um caso com aquela mulher do escritório. Agora eu nem ligo mais, queria você aqui, normal, risonho, brincalhão, não esmagando o focinho com Dengo com as mãos. Não preciso mais desse dedo, o casamento acabou, eu acho.
- Hei, você está aí? Eu sinto a sua respiração atrás da porta. Está pensando em arrombar tudo e espancar até morrer ou meu sussurro atinge alguma parte sobrevivente de sua consciência? Essa coisa que você colocou dentro de mim quando me mordeu, ela fala comigo, sabia? Ela falava o que com você? Ela me fala palavras de dor e sofrimento, ela puxa do meu cérebro momentos terríveis da minha vida. Ela diz que você mereceu, que todos merecem, que eu mereço. Estou agora mesmo desenhando palavras de ódio no meu braço com uma lasca de madeira afiada que achei aqui. Você ia gostar, tem carne aberta e muito sangue derramando. Mesmo com tantos problemas, a gente é do tipo até-que-a-morte-nos-separe, mas ninguém pensou em nada disso, não é? Ah! Ela tá me dizendo que milhões de pessoas agora estão na mesma situação que você, me mostra cidades inteiras em chamas, casas de portas abertas, estradas com carros desalinhados… eu tentei conversar com ela mentalmente, ela me responde e me mostra cenas, não preciso dos meus olhos pra isso, fechados ou abertos, elas aparecem aqui dentro do meu crânio. Talvez não precise dos meus olhos mesmo, essa lasca de madeira aqui… que grito é esse? Não vai! Para aí, a porta do corredor está fechada, você vai… droga, amor, você quebrou a porta, vai ser caro consertar. Vou aí ver o que você fez com nosso lar. Poxa, Dengo, não sobrou muita coisa de você, olha sua coleirinha, pegue a coleirinha, sua vaca, sua inútil, sua louca, por isso ele te traiu, olha pra você, toda desarrumada, fracassada, nem foi capaz de dar pra ele um filho, ele queria tanto, eu queria tanto, pare de usar minha boca, coisa do inferno. Você e eu somos um só, agora você é minha, como seu marido é meu. Então é isso, eu falo com você e algo dentro dele atende? Talvez, minha égua, ou talvez seja eu parando pra ouvir. Ouvir… ouve os gritos ainda? Cessaram. O apartamento do fim do corredor. Os pais não chegaram a tempo, as crianças ficaram sozinhas, não mais! PARA DE ME MOSTRAR ESSAS CENAS! EU NÃO QUERO VER! Mas você gosta, não gosta? Vai gostar, vai morder, vai saborear. A morte tem um gosto único. Os passos, vou voltar pro quarto. Passos velozes martelando o chão, chegando perto da porta, preciso correr. Adeus, Dengo!
- Você voltou. Você sempre volta. Todas as noites você volta, não é mesmo? Foi assim em vida, é assim na morte. Mas a primeira noite nem passou. Quanto tempo faz que tenho essa coisa comendo minhas células? Não sei! Cinco horas? A luz do poste e a noite sem graça por trás do vidro da porta pra varanda indicam ser madrugada. Que som estranho, a madrugada tinha voz de carros espaçados e grilos, de vez em quando bêbados e casais alegres sob os holofotes mágicos do palco noturno da noite. Agora, tem gritos ao longe, explosões, tiros e gemidos. Estou olhando agora, abaixada, pra ninguém me notar. Olha, amor, a velha do prédio da frente está com a cara lascada e a mandíbula deslocada. A língua fora do lugar é uma coisa estranha, não é? O policial que mora acima dela tá olhando pra cá. Não vejo muita coisa, mas o rosto dele tá sério! Ele fechou a cortina. Uma luz rápida. Tirou uma foto ou deu um tiro em si mesmo? Não sei, não ouvi. Não consigo ouvir muita coisa mais, esse zumbido tá pressionando minha cabeça, dói, dói, dói, droga, bati com força no chão, será que ouviram? Você ouviu mais do que devia? Acho que não, não tá tentando derrubar a porta. Mais um barulho, tem peso nele, o corte de luz passa pela vidraça e eu vejo que é um helicóptero. Sobreviventes? Resgate? Massacre? O que é? Mais outro e mais outro. Uma dúzia de rasgos luminosos na escuridão e nenhum parou aqui. Você não importa pra eles, você só importa pra mim. Olha esse presente que te dei. Qual? Crave as unhas no chão e puxe o dedo pra trás. O que sente? Nada! Faz de novo. Faz com seu indicador, faz com seu mindinho. Olha que bonito quando a unha sai. Parece uma pequena joia opaca. Que presente me deste? Ausência de dor. Nunca mais vais sentir dor. Se quebrasse o braço, a perna, não sentiria a dor da fratura. Eu sinto dor de perder a alma, ela escorre pelo ralo… ela nada serve, carne serve, sua carne serve a mim.
- Tem uma voz na minha cabeça e ela se confunde com a minha voz, ela sou eu? Eu sou o quê? Faz um bom tempo que estou olhando pro teto, arrancando mechas do cabelo e soltando lentamente pelo esfregar dos dedos em cima do meu peito. Tem mais cabelo no chão e no vestido que na cabeça, acho. Sem dor, nem vaidade. Você me amaria mesmo assim? Já somos iguais? Já pode me abraçar? O que está esperando para entrar? Ouço seu roçar de testa na porta, sinto sua presença aí do outro lado. Estou sussurrando desde o início e você não sai. Eu sou sua noiva, me aprontando para as núpcias dessa nova vida e você me aguarda ansioso? É isso? É assim que me sinto, sabia? Na verdade, você não se sente como uma noiva esperançosa, mas como uma mãe recusada. Lembra de quando o médico chamou só seu marido e você não? Ele ficou assim mesmo, e você como está agora, no chão, olhando pro teto, sem pensar em muita coisa. Sua alma escorreu naquele dia, então aqui não tem mais nada. Isso que você está tocando com a ponta dos dedos que restam, isso… aí mesmo… é oco. Esmurre. Não! Soque. Não! ESMURRE. AAAAAAAAAAAAAH! ARRANHE! AAAAAAAAAAAH! APERTA! AAAAAAAAAH! TIRE OS PEDAÇOS! AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH! Está chorando? Por quê? Não sei por que estou chorando, nem se estou, você que está dizendo. Seus gritos, não se preocupe, sua boca não vomitou sua dor, vomitou seu almoço, mas não sua dor. Droga, toda suja! Você agora está trancada dentro de sua cabeça. Olhe suas pernas, olhe como eu ando com elas. Pare de rir, coisa maldita, me deixe em paz. Em paz? Preciso de você aí dentro, calada ou não, pouco me importa. E essa luz cortando de novo a rua?
- Estou ouvindo passos, estão correndo. Amor, para, não vá pro corredor. O que isso, tiros? Amor, não! O que sai da minha boca? Que urros são esses? Matar, morder, espancar, quero quebrar ossos e arrancar pedaços. Eu vejo minhas mãos arrebentando a porta, eu vejo homens fardados, eu quero pedir socorro, mas eles apontam a arma pra mim, eu vejo um fogo, um dia ensolarado, raios que doem nos olhos. “Te vejo depois”.
Advertisement
Add Comment
Please, Sign In to add comment
Advertisement