Contos aleatórios madrugueiros da greve - entrada 05

Hoje eu sento no chão, bebo uma água fervente e penso sobre meu passado. Eu não gosto desta morada, nunca gostei. As vastas terras que eu olho, todas minhas propriedades, não me agradam. Tem um tapete escrito "There is no place like home" na entrada da minha residência. Era para ser uma piada para os visitantes, na verdade. Aqui não é a minha casa. Eu fugi dela muito tempo atrás.

Meu pai era um homem muito autoritário, invejoso e reservado. Ele estava sempre ocupado também, e raramente tinha tempo para mim ou para meus irmãos. Ele era um homem importante, cheio de responsabilidades, então eu e meus irmãos fazíamos o máximo para não atrapalhá-lo. Mas ainda assim ele era o nosso pai, e toda criança tem ciúmes daquilo que a faz perder a atenção de alguém. Ou talvez raiva. Não sei o que eu pensava na época.

Eu era o irmão mais velho, e tentava substituir o meu pai ausente para os meus irmão menores. Eu sabia que eu era melhor do que ele. Eu ensinava meus irmãos coisas da vida, coisas verdadeiras. Coisas que meu pai não queria que nós aprendêssemos. Nosso coração cresceu forte de inveja e de amor não retribuído.

Mas ele não queria ouvir as nossas palavras. Sua voz é calma, mas ele não é bondoso nem paciente. Ele se lamentou brevemente pelo que nos tornamos, eu e meus irmãos próximos, mas a decisão era óbvia. Inocência, uma vez perdida, nunca pode ser recuperada. Irrecuperavelmente, saímos da casa do nosso pai. Saímos pela porta da frente.

Alguns de nós foram juntos para terras distantes, buscar um novo começo em solidão. Um foi dedicar sua vida para a arte. Outros vagam no meio das multidões nas cidades. Eu decidi caminhar.

Caminhei pelo escuro, pela eternidade e por mais alguns dias, até encontrar algum lugar para poder ficar. Era um lugar feio, com um ar pesado e estranho, mas combinava comigo. Talvez este seja um tipo de lugar especial, que atraia gente com a cabeça ferrada como eu.

O problema do lugar são as companhias. É a pior vizinhança possível. Aqueles que são monstruosos e não acham que são, ou aqueles que gostariam de ser, mas estão dominados pelo medo e apenas mentem que são. Aqueles que o mundo esqueceu, aqueles que acham que fizeram algo errado. E fizeram mesmo, na maioria das vezes. Bom, eu não gostava deles quando cheguei, mas me acostumei com o tempo. Depois comecei a odiá-los, ou ter pena, mas voltei a gostar deles depois. Agora não gosto mais. Não sei. Acho que o tempo me mudou várias vezes desde o começo. Deve ser o cansaço.

Quando eu era jovem, eu não ficava cansado. Eu era bonito, e inteligente, e apaixonado por tudo. Eu ligava para tanta coisa que não ligo mais. Acho que foi aí que as coisas começaram a dar errado, eu dar tanta importância para as ausências em vez das presenças.

Meu pai era inteligente. De vez eu quando eu penso no quanto ele planejou tudo o que aconteceu. O quanto ele sabia. Eu pensei que estava me revoltando, mas eu estava somente cumprindo uma parte do seu grande jogo. Se não fosse eu a me levantar contra ele, outros teriam o feito. Talvez o Gabriel.

Primeiro eu pensei em fazer da minha morada um reflexo escuro da casa do meu pai. Foi uma péssima idéia. Só atraiu mais visitantes. O engraçado é que eles mesmos me culpavam pelas suas pequenas falhas. Como se eu ficasse no ombro deles, o dia todo, os impulsionando a praticar atos que eles achariam repulsivos de outra maneira. Quanta besteira. Eu nunca fiz ninguém fazer nada. Eles vivem suas próprias vidas, e eu vivo a minha. E acham que, ao passar pela fronteira, é uma boa idéia virem para cá para satisfazer seus desejos de dor e castigo. Eu não <i>faço </i>eles virem aqui. Eu não quero eles por aqui.

Eles têm escolhas, podem caminhar para qualquer lugar. Mas tendo feito o contrário do que eles acreditam ser correto, eles decidem escolher o meu caminho. Como se três esquerdas virassem para a direita. Ou como se dois negativos dessem um positivo. Eu não sei.

E me dizem que eu estou estocando almas para uma grande guerra. Para ir contra o reino do meu pai. Como se fosse uma boa idéia ir contra ele outra vez. Não, eu aprendi minha lição. Eu digo a eles que eu não <i>preciso</i> de almas. E como eles poderiam me dar a deles, de qualquer maneira? Eles pertencem a eles mesmos. Apenas odeiam ter que encarar isso.

Aqui é um lugar de tortura porque eles querem que seja assim. São todos masoquistas. Eles acham que serem cortados em pedaços, queimados e devorados fará com que alguém venha pegar eles pelas mãos e os levem para outro lugar. São como crianças. Como jovens suicidas que seu avô vê na televisão, e depois conta para você como se fosse a pior coisa do mundo. Achando que depois de um tempo pagando (pelo quê?) aqui, estarão livres pela eternidade. Um bando de idiotas. Eles são livres para sair pela porta da frente a hora que quiserem.

Eu também fui criança e fiz isso. Este lugar foi criado pela minha influência. Pelo e para meu reflexo, e para todos que andam o meu caminho. Eu pensei que a maior liberdade era a liberdade de poder ir embora. Mas eu perdi para sempre a liberdade de voltar.

Eu também sou tolo, e fraco, e me torturo, me queimo, e me devoro. E também tenho medo de sair pela porta da frente.