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Arthiola

Hans Kelsen - A teoria pura do Direito

Nov 12th, 2018
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  1. Hans Kelsen - A teoria pura do direito
  2. 1. "A pureza"
  3. -> Teoria pura do direito é uma teoria do Direito positivo
  4. - É uma teoria geral do Direito, "não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação"
  5.  
  6. -> Busca responder a esta questão: o que é, como é o Direito?
  7. - "Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito"
  8.  
  9. -> Visa-se a garantia de um conhecimento apenas dirigido ao Direito e a exclusão de tudo que não pertença ao seu objeto
  10. - Libertação da ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos
  11. - "De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política"
  12.  
  13. 2. O ato e o seu significado jurídico
  14. -> Busca-se saber se o Direito é um fenômeno natural ou social
  15. - "Mas esta contraposição de natureza e sociedade não é possível sem mais, pois a sociedade, quando entendida como a real ou efetiva convivência entre homens, pode ser pensada como parte da vida em geral e, portanto, como parte da natureza"
  16.  
  17. -> O Direito parece, pelo menos quanto a uma parte do seu ser (como frisa Pontes de Miranda, Miguel Reale), situar-se no domínio da natureza, ter uma existência inteiramente natural
  18. -> "Se analisarmos qualquer dos fatos que classificamos de jurídicos ou que têm qualquer conexão com o Direito poderemos distinguir dois elementos:
  19. i. primeiro, um ato que se realiza no espaço e no tempo, sensorialmente perceptível, ou uma série de tais atos, uma manifestação externa de conduta humana;
  20. ii. segundo, a sua significação jurídica, isto é, a significação que o ato tem do ponto de vista do Direito"
  21.  
  22. 3. O sentido subjetivo e o sentido objetivo do ato. A sua auto-explicação
  23. -> A significação jurídica não pode ser percebida no ato por meio dos sentidos, tal como nos apercebemos das qualidades naturais de um objeto, como a cor, a dureza, o peso
  24. -> Sentido subjetivo (ao qual exprime o sujeito que o realiza) pode ou não coincidir com o significado objetivo que o ato tem do ponto de vista do Direito
  25. - "Se alguém dispõe por escrito do seu patrimônio para depois da morte, o sentido subjetivo deste ato é o de um testamento. Objetivamente, porém, do ponto de vista do Direito, não o é, por deficiência deforma"
  26.  
  27. -> "Um ato, na medida em que se expresse em palavras faladas ou escritas, pode ele próprio até dizer algo sobre a sua significação jurídica"
  28. - "Um ato de conduta humana pode muito bem levar consigo uma auto-explicação jurídica, isto é, uma declaração sobre aquilo que juridicamente significa"
  29.  
  30. -> O ato pode ou não gozar de autoexplicação
  31.  
  32. 4. A norma
  33. a) A norma como esquema de interpretação
  34. -> Um ato jurídico (subjetiva e objetivamente) é perceptível sensorialmente; goza de uma parcela de natureza
  35. - Determinado, como parcela da natureza, pela lei da causalidade
  36. - Este ato não é pura e simplesmente algo jurídico
  37. ~ O que empresta a natureza jurídico ao ato é a significação que possui, recebida por uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo
  38. ~> O ato pode ser interpretado de acordo com esa norma
  39. ~> A norma funciona como esquema de interpretação
  40. ~> "Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa"
  41.  
  42. - "Mas também na visualização que o apresenta como um acontecer natural apenas se exprime uma determinada interpretação, diferente da interpretação normativa: a interpretação causal"
  43.  
  44. -> "A norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica de uma outra norma"
  45.  
  46. b) Norma e produção normativa
  47. -> Conhecimento jurídico dirige-se a estas normas que possuem o caráter de normas jurídicas e conferem a determinados fatos o caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos)
  48. - O Direito, que constitui o objeto deste conhecimento [jurídico], é uma ordem normativa da conduta humana
  49. ~ Sistema de normas que regulam o comportamento humano
  50.  
  51. -> Com o termo "norma" se quer significar que algo "deve ser" ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira
  52. - É este o sentido que possuem determinados atos humanos que intencionalmente se dirigem à conduta de alguém
  53. ~ Dizemos que se dirigem intencionalmente à conduta de outrem não só quando, em conformidade com o seu sentido, prescrevem (comandam) essa conduta, mas também quando a permitem e, especialmente, quando conferem o poder de a realizar, isto é, quando a outrem é atribuído um determinado poder, especialmente o poder de ele próprio estabelecer normas
  54. ~> Tais atos são atos de vontade
  55. ~> "Quando um indivíduo, através de qualquer ato, exprime a vontade de que um outro indivíduo se conduza de determinada maneira, quando ordena ou permite esta conduta ou confere o poder de a realizar, o sentido do seu ato não pode enunciar-se ou descrever-se dizendo que o outro ***se conduzirá dessa maneira, mas somente dizendo que o outro se deverá conduzir dessa maneira***"
  56.  
  57. -> Aquele que ordena ou confere o poder de agir: quer
  58. -> Aquele a quem o comando é dirigido, ou a quem a autorização ou o poder de agir é conferido: deve
  59. -> Dever no uso corrente da linguagem significa "ordenar"
  60. - "Aqui, porém, emprega-se o verbo “dever” para significar um ato intencional dirigido à conduta de outrem. Neste “dever” vão incluídos o “ter permissão” e o “poder” (ter competência)."
  61. - Norma pode não só comandar mas permitir e, especialmente, conferir a competência ou o poder de agir de certa maneira
  62.  
  63. -> "Se aquele a quem é ordenada ou permitida uma determinada conduta, ou a quem é conferido o poder de realizar essa conduta, pergunta pelo fundamento dessa ordem, permissão ou poder, apenas o pode fazer desta forma: por que devo (ou também, no sentido da linguagem corrente: sou autorizado, posso) conduzir-me desta maneira?"
  64. - “Norma” e o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém
  65.  
  66. -> "Neste ponto importa salientar que a norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, ***é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui***"
  67. - Norma: dever ser
  68. - Ato de vontade de que a norma se constitui o sentido: ser
  69.  
  70. -> Um indivíduo ***quer*** (1a parte) que o outro ***se conduza*** (2a parte) de determinada maneira
  71. - A primeira parte refere-se a um ser, o ser fático do ato de vontade
  72. - A segunda parte refere-se a um dever-ser, a uma norma como sentido do ato
  73.  
  74. -> O enunciado de um dever-ser não se deixa reconduzir ao enunciado de um ser
  75. -> "No entanto, este dualismo de ser e dever-ser não significa que ser e dever-ser se coloquem um ao lado do outro sem qualquer relação"
  76. - "Diz-se: um ser pode corresponder a um dever-ser, o que significa que algo pode ser da maneira como deve ser. Afirma-se, por outro lado, que o dever-ser é’ ‘dirigido” a um “ser”"
  77. - Por vezes a conduta que "deve ser" equivale à conduta que "é" em toda a medida, exceto no que respeita à circunstância (modus) de que uma é e a outra deve ser
  78.  
  79. -> "Portanto a conduta estatuída numa norma como devida (como devendo ser) tem de ser distinguida da correspondente conduta de fato"
  80. - "Porém, a conduta estatuída na norma como devida (como devendo ser), e que constitui o conteúdo da norma, pode ser comparada com a conduta de fato e, portanto, pode ser julgada como correspondendo ou não correspondendo à norma (isto é, ao conteúdo da norma)"
  81.  
  82. -> Quando se diz que o dever-ser é “dirigido” a um ser, a norma a uma conduta fática (efetiva), quer-se significar a conduta de fato que corresponde ao conteúdo da norma...
  83. - ... o conteúdo do ser que equivale ao conteúdo do dever-ser
  84. - ... a conduta em ser que equivale à conduta posta na norma como devida (devendo ser)
  85. - ... mas que se não identifica com ela, por força da ***diversidade do modus***: ser, num caso, dever-ser, no outro
  86.  
  87. -> Os atos que têm por sentido uma norma podem ser realizados de diferentes maneiras
  88. - Gestual, verbal, escrita...
  89. - ... sob o modo modo imperativo (v. g.: Cala-te)...
  90. - ... ou proposição (v. g.: eu ordeno-te que te cales)
  91. ~ Sob esta forma podem também ser concedidas autorizações ou conferidos poderes
  92. ~ "O sentido dessas proposições, porém, não é o de um enunciado sobre um fato da ordem do ser, mas uma norma da ordem do dever-ser, quer dizer, uma ordem, uma permissão, uma atribuição de competência."
  93.  
  94. -> "O processo legiferante é constituído por uma série de atos, que, na sua totalidade, possuem o sentido de normas"
  95. - "Quando dizemos que, por meio de um dos atos acima referidos ou através dos atos do procedimento legiferante, se “produz” ou “põe” uma norma, isto é apenas uma expressão figurada para traduzir que ***o sentido ou o significado do ato ou dos atos que constituem o procedimento legiferante é uma norma***"
  96.  
  97. -> "No entanto, é preciso distinguir o sentido subjetivo do sentido objetivo"
  98. - ""Dever-ser" é o sentido subjetivo de todo o ato de vontade de um indivíduo que intencionalmente visa a conduta de outro"
  99. - "Porém, nem sempre um tal ato tem também objetivamente [perante o Direito] este sentido"
  100. - "Somente quando esse ato tem também objetivamente o sentido de dever-ser é que designamos o dever-ser como "norma""
  101.  
  102. -> "A circunstância de o “dever-ser” constituir também o sentido objetivo do ato exprime que a conduta a que o ato intencionalmente se dirige é considerada como obrigatória (devida), ***não apenas do ponto de vista do indivíduo que põe o ato, mas também do ponto de vista de um terceiro desinteressado***"
  103. - "e isso muito embora o querer, cujo sentido subjetivo é o dever-ser, tenha deixado faticamente de existir, uma vez que, com a vontade, não desaparece também o sentido, o dever-ser"
  104. - Caso em que o indivíduo ao qual a norma é dirigida, caso nada saiba do sentido desta, ainda terá o dever (ou direito) de se conduzir de conformidade com aquele dever-ser
  105. - "Dever-ser objetivo" é uma "norma válida" ("vigente"), vinculando os destinatários
  106. ~ "E sempre este o caso quando ao ato de vontade, cujo sentido subjetivo é um dever-ser, é emprestado esse sentido objetivo por uma norma, quando uma norma, que por isso vale como norma “superior”, atribui a alguém a competência (ou poder) para esse ato
  107.  
  108. -> "Se o ato legislativo, que subjetivamente tem o sentido de dever-ser, tem também objetivamente este sentido, quer dizer, tem o sentido de uma norma válida, ***é porque a Constituição empresta ao ato legislativo este sentido objetivo***"
  109. - "O ato criador da Constituição, por seu turno, tem sentido normativo, não só subjetiva como objetivamente, desde que se pressuponha que nos devemos conduzir como o autor da Constituição preceitua"
  110. ~ "Um tal pressuposto, fundante da validade objetiva, será designado aqui por norma fundamental (Grundnorm)"
  111. ~> "Portanto, não é do ser fático de um ato de vontade dirigido à conduta de outrem, mas é ainda e apenas de uma norma de dever-ser que deflui a validade – ***sem sentido objetivo*** - da norma segundo a qual esse outrem se deve conduzir em harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade"
  112.  
  113. -> "As normas através das quais uma conduta é determinada como obrigatória (como devendo ser) podem também ser estabelecidas por atos que constituem o fato do costume"
  114. - "O sentido subjetivo dos atos que constituem a situação fática do costume não
  115. é logo e desde o início um dever-ser..."
  116. ~ Somente quando estes atos se repetiram durante um certo tempo
  117.  
  118. - "Porém, o sentido subjetivo dos atos constitutivos do costume apenas pode ser interpretado como norma objetivamente válida ***se o costume é assumido como fato produtor de normas por uma norma superior***"
  119. - Através do costume tanto podem ser produzidas:
  120. ~ Normas morais
  121. ~ Normas jurídicas: são normas produzidas pelo costume se a Constituição da comunidade assume o costume - um costume qualificado - como fato criador de Direito
  122.  
  123. c) Vigência e domínio de vigência da norma
  124. -> "Vigência": existência específica de uma norma
  125. - "Quando descrevemos ***o sentido ou o significado de um ato normativo*** dizemos que, com o ato em questão, uma qualquer ***conduta humana*** é preceituada, ordenada, prescrita, exigida, proibida; ou então consentida, permitida ou facultada"
  126.  
  127. -> Vigência de uma norma significa que uma coisa deve ou não deve ser, deve ou não ser feita
  128. -> "Se designarmos a ***existência*** específica da norma como a sua “vigência”, damos desta forma expressão à maneira particular pela qual a norma..."
  129. - "... - diferentemente do ser dos fatos naturais - ..."
  130. - "... Nos é dada ou se nos apresenta"
  131. - "A “existência” de uma norma positiva, a sua vigência, é diferente da existência do ato de vontade de que ela é o sentido objetivo"
  132.  
  133. -> ***"A norma pode valer (ser vigente) quando o ato de vontade de que ela constitui o sentido já não existe"***
  134. - Norma só entra em vigor depois que o ato de vontade que a constituiu deixa de existir
  135. - "Errôneo caracterizar a norma em geral e a norma jurídica em particular como “vontade” ou “comando” - do legislador ou do Estado..."
  136. ~ "... quando por “vontade” ou “comando” se entenda o ato de vontade psíquica"
  137.  
  138. -> Como a vigência da norma pertence à ordem do dever-ser, e não à ordem do ser, deve também distinguir-se:
  139. - A vigência da norma: existência
  140. - A sua eficácia: isto é, do fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada
  141. ~ "da circunstância de uma conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos fatos"
  142.  
  143. -> "Dizer que uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente do que se diz quando se afirma que ela é efetivamente aplicada e respeitada"
  144. - Entre vigência e eficácia pode existir uma certa conexão
  145.  
  146. -> "Uma norma jurídica é considerada como objetivamente válida apenas quando a conduta humana que ela regula lhe corresponde efetivamente, pelo menos numa certa medida"
  147. - "Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que - como costuma dizer-se - não é eficaz em uma certa medida, não será considerada como norma válida (vigente)"
  148. - "Um mínimo de eficácia (como sói dizer-se) é a condição da sua vigência"
  149.  
  150. -> Deve existir a possibilidade de uma conduta em desarmonia com a norma
  151. -> "Vigência e eficácia de uma norma jurídica também não coincidem cronologicamente"
  152. - "Uma norma jurídica entra em vigor antes ainda de se tornar eficaz, isto é, antes de ser seguida e aplicada"
  153. ~ "Um tribunal que aplica uma lei num caso concreto imediatamente após a sua promulgação - portanto, antes que tenha podido tornar-se eficaz - aplica uma norma jurídica válida"
  154.  
  155. - Todavia, se a norma permanece duradouramente ineficaz, deixará de ser considerada válida
  156.  
  157. -> A eficácia diz respeito não apenas à aplicação da norma pelos órgãos jurisdicionados, mas também ao respeito dos subordinados à ordem jurídica
  158. - A conduta prescrita na norma deve ser adotada para que se evite a aplicação de sanções
  159. - A estatuição de sanções tem por fim impedir (prevenir) a conduta condicionante da sanção
  160. - Vigência ideal de uma norma jurídica é quando a mesma nem chega a ser aplicada
  161. ~ Hipótese em que a eficácia da norma jurídica reduz-se à sua observância
  162.  
  163. -> "No entanto, a observância da norma jurídica pode ser provocada por outros motivos, de forma tal que o que é 'eficaz' não é propriamente a representação da norma jurídica mas a representação de uma norma religiosa ou moral"
  164. - "Mais tarde voltaremos ainda a falar desta tão importante conexão entre a vigência e a chamada eficácia da norma jurídica"
  165.  
  166. -> "Se, com a expressão: a norma refere-se a uma determinada conduta, se quer significar ***a conduta*** que constitui o conteúdo da norma..."
  167. - "... então a norma pode referir-se também a fatos ou situações que não constituem conduta humana, mas isso só na medida em que esses fatos ou situações são condições ou efeitos de condutas humanas"
  168. - Norma jurídica pode referir-se a um "cataclismo da natureza", como no caso que determina que aqueles que não forem imediatamente atingidos estão obrigados a prestar socorro às vítimas na medida do possível
  169. - "O que as normas de um ordenamento regulam é sempre uma conduta humana, pois apenas a conduta humana é regulável através das normas
  170. ~ "Os outros fatos que não são conduta humana somente podem constituir conteúdo de normas quando estejam em conexão com uma conduta humana - ou, como já notamos, apenas enquanto condição ou efeito de uma conduta humana"
  171.  
  172. -> "Quando uma norma jurídica pune o homicídio com a pena capital, o tipo legal da ilicitude não consistem apenas numa determinada conduta humana..."
  173. - "... mas também num efeito específico desta conduta: a morte de um homem, que é um processo fisiológico, e não uma ação humana"
  174.  
  175. -> "Visto a conduta humana, assim como as suas condições e efeitos se processarem no espaço e no tempo..."
  176. - "... o espaço e o tempo em que os fatos descritos pela norma decorrem devem ser fixados no conteúdo da mesma norma"
  177. - "A vigência de todas as normas em geral que regulam a conduta humana, e em particular a das normas jurídicas, é uma vigência espaço-temporal na medida em que as normas têm por conteúdo processos espaço-temporais"
  178. - "Dizer que uma norma vale significa sempre dizer ***que ela vale para um qualquer espaço ou para um qualquer período de tempo***, isto é, que ela se refere a uma conduta que somente se pode verificar em um certo lugar ou em um certo momento (se bem que porventura não venha de fato a verificar-se)
  179.  
  180. -> "A referência da norma ao espaço e ao tempo é o domínio da vigência espacial e temporal da norma. Este domínio de vigência pode ser limitado, mas pode também ser ilimitado"
  181. - "A norma pode valer apenas para um determinado espaço e para um determinado tempo, fixados por ela mesma ou por uma outra norma superior"
  182. - "Pode, porém, valer também - de harmonia com o seu sentido - em toda a parte e sempre, isto é, referir-se a determinados fatos em geral, onde quer que e quando quer que se possam verificar"
  183. ~ É "este o seu sentido quando ela não contém qualquer determinação espacial e temporal e nenhuma outra norma superior delimita o seu domínio espacial ou temporal"
  184. ~ "Neste caso, ela não vale a-espacial e intemporalmente, mas apenas sucede que não vigora para um espaço determinado e para um período de tempo determinado, isto é, os seus domínios de vigência espacial e temporal não são limitados"
  185.  
  186. -> "O domínio de vigência de uma norma é um elemento do seu conteúdo, e este conteúdo pode, como mais adiante veremos, ser predeterminado até certo ponto por uma norma superior"
  187. -> "Em geral, as normas referem-se apenas a condutas futuras. No entanto, podem referir-se também a condutas passadas"
  188. - Mudança no significado normativo
  189.  
  190. -> "Além dos domínios de validade espacial e temporal pode ainda distinguir-se um domínio de validade pessoal e um domínio de validade material das normas"
  191. - "Importa aqui notar que [nos casos de domínio de validade pessoal da norma] não é o indivíduo como tal que, visado por uma norma, lhe fica submetido, mas o é apenas e sempre uma determinada conduta do indivíduo"
  192.  
  193. -> "Pode falar-se ainda de um domínio material de validade tendo em conta os diversos aspectos da conduta humana que são normados: aspecto econômico, religioso, político, etc. De uma norma que disciplina a conduta econômica dos indivíduos diz-se que ela regula a economia, de uma norma que disciplina a conduta religiosa diz-se que ela regula a religião, etc."
  194. - "O domínio material de validade de uma ordem jurídica global [como no caso de um Estado Federal] é sempre ilimitado, na medida em que uma tal ordem jurídica, por sua própria essência, pode regular sob qualquer aspecto a conduta dos indivíduos que lhe estão subordinados"
  195.  
  196. d) Regulamentação positiva e negativa: ordenar, conferir poder ou competência, permitir
  197. -> "A conduta humana disciplinada por um ordenamento normativo ou é uma ação por esse ordenamento determinada, ou a omissão de tal ação"
  198. - "A regulamentação da conduta humana por um ordenamento normativo processa-se por uma forma positiva e por uma forma negativa"
  199. ~ "A conduta humana é regulada positivamente por um ordenamento positivo, desde logo, quando a um indivíduo é prescrita a realização ou a omissão de um determinado ato"
  200. ~> Quando é prescrita a omissão de um ato, esse ato é proibido
  201. ~> "A conduta humana é ainda regulada num sentido positivo quando a um indivíduo é conferido, pelo ordenamento normativo, o poder ou competência para produzir, através de uma determinada atuação, determinadas consequências pelo mesmo ordenamento normadas..."
  202. ~> "...especialmente - se o ordenamento regula a sua própria criação - para produzir normas ou para intervir na produção de normas"
  203. ~> "O caso é ainda o mesmo quando o ordenamento jurídico, estatuindo atos de coerção atribui a um indivíduo poder ou competência para estabelecer esses atos coercitivos sob as condições estatuídas pelo mesmo ordenamento jurídico"
  204. ~> "A mesma hipótese de regulamentação positiva se verifica também quando uma determinada conduta, que é em geral proibida, é permitida a um indivíduo por uma norma que limita o domínio de validade da outra norma que proíbe essa conduta [este é o caso da legítima defesa]"
  205.  
  206. ~ "Negativamente regulada por um ordenamento normativo é a conduta humana quando, não sendo proibida por aquele ordenamento, também não é positivamente permitida por uma norma delimitadora do domínio de validade de uma outra norma proibitiva - sendo, assim, permitida num sentido meramente negativo"
  207.  
  208. -> Se a conduta é prescrita por uma norma objetivamente válida, o indivíduo torna-se obrigado a comportar-se de tal maneira
  209. - O contrário importa em violação da norma
  210.  
  211. -> "A palavra “permitir” é também utilizada no sentido de 'conferir um direito'"
  212. - "Quando, numa relação entre A e B, se prescreve a A o dever de suportar que B se conduza de determinada maneira, diz-se que a B é permitido (isto é, que ele tem o direito de) conduzir-se dessa maneira"
  213. - "E quando se prescreve a A o dever de prestar a B um determinado quid, diz-se que a B é permitido (isto é, que ele tem o direito de) receber aquela determinada prestação de A"
  214.  
  215. e) Norma e valor
  216. -> "Quando uma norma estatui uma determinada conduta como devida (no sentido de 'prescrita'), a conduta real (fática) pode corresponder à norma ou contrariá-la"
  217. - "Corresponde à norma quando é tal como ***deve ser*** de acordo com a norma"
  218. - "Contraria a norma quando não é tal como, de acordo com a norma, "deveria ser", porque é o contrário de uma conduta que corresponde à norma"
  219.  
  220. -> "O juízo segundo o qual uma conduta real é tal como deve ser, de acordo com uma norma objetivamente válida, é um ***juízo de valor***, e, neste caso, um juízo de valor positivo"
  221. - "Significa que a conduta real é 'boa'"
  222. - "O juízo, segundo o qual uma conduta real não é tal como, de acordo com uma norma válida, deveria ser, porque é o contrário de uma conduta que corresponde à norma, é um juízo de valor negativo"
  223. ~ "Significa que a conduta real é 'má'"
  224.  
  225. -> "Uma norma objetivamente válida, que fixa uma conduta como devida,***constitui um valor positivo ou negativo***"
  226. - "A norma considerada objetivamente válida funciona como medida de valor relativamente à conduta real"
  227.  
  228. -> "Os juízos de valor segundo os quais uma conduta real corresponde a uma norma considerada objetivamente válida e, neste sentido, é boa, isto é, valiosa, ou contraria tal norma e, neste sentido, é má, isto é, desvaliosa, devem ser distinguidos dos ***juízos de realidade*** que, sem referência a uma norma considerada objetivamente válida - o que, em última análise, quer dizer: sem referência a uma norma fundamental pressuposta - ***enunciam que algo é ou como algo é***"
  229. -> "A conduta real a que se refere o juízo de valor e que constitui o objeto da valoração, que tem um valor positivo ou negativo, é um ***fato da ordem do ser***, existente no tempo e no espaço, um elemento parte da realidade"
  230. - "Apenas um fato da ordem do ser pode, quando comparado com uma norma, ser julgado valioso ou desvalioso, ter um valor positivo ou negativo"
  231. ~ "E a realidade que se avalia"
  232.  
  233. -> "Na medida em que as normas que constituem o fundamento dos juízos de valor são estabelecidas por ***atos de uma vontade humana***, e não de uma vontade supra-humana, os valores através delas constituídos são arbitrários"
  234. - "Por isso as normas legisladas por homens - e não por uma autoridade supra-humana - apenas constituem valores relativos"
  235. ~ "Quer isto dizer que a ***vigência de uma norma*** desta espécie que prescreva uma determinada conduta como obrigatória, bem como a do valor por ela constituído, não exclui a possibilidade de vigência de uma outra norma que prescreva a conduta oposta e constitua um valor oposto"
  236.  
  237. -> "Assim, a norma que proíbe o suicídio ou a mentira em todas e quaisquer circunstâncias pode valer o mesmo que a norma que, em certas circunstâncias, permita ou até prescreva o suicídio ou a mentira, sem que seja possível demonstrar, por via racional, que apenas uma pode ser considerada como válida e não a outra"
  238. - Podemos considerar como válida quer uma quer outra - mas não as duas ao mesmo tempo"
  239.  
  240. -> "Uma teoria científica dos valores apenas toma em consideração as normas estabelecidas por atos de vontade humana e os valores por elas constituídos"
  241. - Desta maneira, são rejeitadas hipóteses de valores estabelecidos por entidades supra-humanas
  242.  
  243. -> "Se o valor é constituído por uma norma objetivamente valida, o juízo que afirma que um quid real, uma conduta humana efetiva, é “boa”, isto é, valiosa, ou “má”, isto é, desvaliosa, exprime e traduz que ela é conforme a uma norma objetivamente válida...
  244. - "... ou seja, que deve ser (tal como é), ou que contradiz uma norma objetivamente válida, quer dizer, não deve ser (tal como é)"
  245.  
  246. -> "O valor, como dever-ser, coloca-se em face da realidade, como ser
  247. - "Valor e realidade - tal como o dever-ser e o ser - pertencem a duas esferas diferentes"
  248.  
  249. -> "Se chamarmos à proposição que afirma que uma conduta humana é conforme a uma norma objetivamente válida, ou a contradiz, ***um juízo de valor***, então o juízo de valor
  250. deve ser distinguido da norma constitutiva do valor"
  251. - O juízo pode ser uma proposição verdadeira ou falsa, pois refere-se à norma de um ordenamento vigente
  252. ~ Uma norma, contrariamente, não pode ser verdadeira ou falsa, mas apenas ***válida ou inválida***
  253.  
  254. - "O juízo segundo o qual é bom, de acordo com a Moral cristã, amar os amigos e odiar os inimigos, é inverídico se uma norma da Moral cristã vigente exige que amemos não só os amigos como também os inimigos"
  255. - Por sua vez, o juízo, segundo o qual é conforme ao Direito punir um ladrão com pena de morte é falso quando, de conformidade ao Direito vigente, um ladrão deve ser punido com a privação da liberdade, mas não com a privação da vida
  256.  
  257. -> ***"O chamado 'juízo' judicial não é, de forma alguma, tampouco como a lei que aplica, um juízo no sentido lógico da palavra, mas uma norma - uma norma individual, limitada na sua validade a um caso concreto, diferentemente do que sucede com a norma geral, designada como 'lei'***
  258. -> "Devemos distinguir ***do valor constituído através de uma norma considerada objetivamente válida*** o valor que consiste, não na relação com uma tal norma, mas na relação de um objeto com o desejo ou a vontade de um ou de vários indivíduos a tal objeto dirigida"
  259. - "Conforme o objeto corresponde ou não a este desejo ou vontade, tem um valor positivo ou negativo, é 'bom' ou 'mau'"
  260. - "Se designarmos como ***juízo de valor*** o juízo através do qual determinamos a relação de um objeto com o desejo ou a vontade de um ou vários indivíduos dirigida a esse mesmo objeto e, desse modo, considerarmos bom o objeto quando corresponde àquele desejo ou vontade, e mau, quando contradiz aquele desejo ou vontade, ***este juízo de valor não se distingue de um juízo de realidade***, pois que estabelece apenas a relação entre dois fatos da ordem do ser e não a relação de um fato da ordem do ser com uma norma de ordem do dever-ser objetivamente válida"
  261. ~ Esse juízo de valor da relação objeto-indivíduos constitui apenas um particular juízo de realidade
  262.  
  263. -> "Se a afirmação de alguém de que algo é bom ou mau constitui apenas a imediata expressão do seu desejo desse algo (ou do seu contrário), essa afirmação não é um 'juízo' de valor, visto não corresponder a uma função do conhecimento mas a uma função dos componentes emocionais da consciência"
  264. - "Quando aquela manifestação se dirige à conduta alheia, como expressão de uma aprovação ou desaprovação emocional, pode traduzir-se por exclamações como "bravo!" ou "pfiu!"
  265.  
  266. -> "O valor que consiste na relação de um objeto, especialmente de uma conduta humana, com o desejo ou vontade de um ou vários indivíduos, àquele objeto dirigida, pode ser designado como ***valor subjetivo*** - para o distinguir do valor que consiste na relação de uma conduta com uma norma objetivamente válida e que pode ser designado como ***valor objetivo***"
  267. - Diferenciação entre valor subjetivo e valor objetivo
  268.  
  269. -> "Quando o juízo segundo o qual uma determinada conduta humana é boa apenas significa que ela é desejada ou querida por uma outra ou várias outras pessoas, e o juízo segundo o qual uma conduta é má apenas traduz que a conduta contrária é desejada ou querida por uma ou várias outras pessoas, então o valor 'bom' e o valor 'mau' apenas existem para aquela ou aquelas pessoas que desejam ou querem aquela conduta ou a conduta oposta, e não para a pessoa ou pessoas cuja conduta é desejada ou querida"
  270. - Valor subjetivo
  271.  
  272. -> "Quando o juízo segundo o qual uma determinada conduta humana é boa traduz que ela corresponde a uma norma objetivamente válida, e o juízo segundo o qual uma determinada conduta humana é má traduz que tal conduta contraria uma norma objetivamente válida, o valor 'bom' e o desvalor 'mau' valem em relação às pessoas cuja conduta assim é apreciada ou julgada, e até em reação a todas as pessoas cuja conduta é determinada como ***devida (devendo ser)*** pela norma objetivamente válida, independentemente do fato de elas desejarem ou quererem essa conduta ou a conduta oposta"
  273. - "A sua conduta tem um valor positivo ou negativo, não por ser desejada ou querida - ela mesma ou a conduta oposta -, mas porque é conforme a uma norma ou a contradiz"
  274. - "O ato de vontade cujo sentido objetivo é a norma não entra aqui em linha de conta" (como visto antes)
  275.  
  276. -> "O valor em sentido ***subjetivo***, ou seja, ***o valor que consiste na relação de um objeto com o desejo ou vontade de uma pessoa***, distingue-se do ***valor em sentido objetivo*** - ou seja do valor que consiste na relação de uma conduta com uma norma objetivamente válida - ainda na medida em que aquele pode ter diferentes graduações, pois o desejo ou vontade do homem é susceptível de diferentes graus de intensidade, ao passo que a ***graduação do valor no sentido objetivo não é possível***, visto uma conduta somente pode ser conforme ou não ser conforme a uma norma objetivamente validade, contrariá-la ou não a contrariar - mas não ser-lhe conforme ou contrariá-la em maior ou menor grau"
  277. - Subsunção
  278.  
  279. -> "Quando designamos os juízos de valor que exprimem um valor objetivo como objetivos, e os juízos de valor que exprimem um valor subjetivo como subjetivos, devemos notar que os predicados 'objetivo' e 'subjetivo' se referem aos valores expressos e não ao juízo como função do conhecimento
  280. - "Como função do conhecimento tem um juízo de ser sempre objetivo, isto é, tem de formular-se independentemente do desejo e da vontade do sujeito judicante
  281. ~ "Isso é bem possível. ***Podemos, com efeito, determinar a relação de uma determinada conduta humana com um ordenamento normativo, ou seja, afirmar que esta conduta está de acordo ou não está de acordo com o ordenamento, sem ao mesmo tempo tomarmos emocionalmente posição em face dessa ordem normativa, aprovando-a ou desaprovando-a"
  282. ~ "A resposta à questão de saber se, de acordo com o Direito vigente, um assassino deve ser punido com a pena capital, e, deve verificar-se sem ter em conta se aquele que deve dar a resposta aprova ou desaprova a pena de morte"
  283. ~> "Então, e somente então, é objetivo o juízo de valor"
  284.  
  285. ~ "Quando o juízo traduz a relação de um objeto, especialmente de uma conduta humana, com o desejo ou vontade de uma ou várias pessoas dirigidas a esse objeto, e exprime, portanto, um valor subjetivo, esse juízo de valor é objetivo na medida em que o sujeito judicante formula tal juízo sem atenção ao fato de ele próprio desejar ou querer determinado objeto ou o objeto oposto, de ele próprio aprovar ou desaprovar tal conduta, mas simplesmente enuncia o fato de que uma ou várias pessoas desejam ou querem um determinado objeto ou o objeto oposto, particularmente o fato de que essa ou essas pessoas aprovam ou desaprovam determinada conduta."
  286.  
  287. -> "Contra a distinção aqui feita entre juízos de valor que exprimem um valor objetivo
  288. enquanto enunciam a relação de uma conduta humana com uma norma considerada objetivamente válida - pelo que se distinguem essencialmente dos juízos de realidade - e juízos de valor que expressam um valor subjetivo, enquanto traduzem a relação de um objeto, e particularmente da conduta humana, com o fato de que uma ou várias pessoas desejam ou querem esse objeto ou o seu oposto, especialmente com o fato de que aprovam ou desaprovam determinada conduta humana - pelo que são apenas uma espécie particular dos juízos de realidade - ***objeta-se que os juízos de valor em primeiro lugar referidos também são juízos de realidade***"
  289.  
  290. -> "Com efeito - ***diz-se*** -, a norma que constitui o fundamento do juízo de valor é fixada através de um ato ou imperativo humano ou produzida através do costume - e, portanto, através de fatos da realidade empírica
  291. - A relação de um fato, particularmente de uma conduta real efetiva, com uma norma também representaria, assim, apenas uma relação entre fatos da realidade empírica
  292. - "Esta objeção ***esquece*** que o fato, que é o ato de comando ou imperativo, ou o costume, e a norma, que através destes fatos é produzida, são duas coisas diferentes [...]"
  293. ~ "um fato e um conteúdo de sentido; e que, por isso, a relação de uma conduta real com uma norma, e a relação desta conduta com o fato da ordem do ser cujo sentido é a norma, constituem duas relações diferentes"
  294.  
  295. - "***O enunciado da relação de uma conduta com a norma que a estatui como devida (devendo ser) é inteiramente possível sem tomar em consideração o fato do ato imperativo ou do costume através do qual a norma é produzida***"
  296.  
  297. -> "Como valor designa-se ainda a relação que tem um objeto, e particularmente uma conduta humana, com um fim"
  298. - "Adequação ao fim (Zweckmässigkeit) é o valor positivo, contradição com o fim (Zweckwidrigkeit), o valor negativo"
  299. - "Por 'fim' pode entender-se tanto um fim objetivo como um fim subjetivo"
  300. ~ "Um fim objetivo é um fim que deve ser realizado isto é, um fim estatuído por uma norma considerada como objetivamente válida"
  301. ~> "É um fim posto à natureza em geral, ou ao homem em particular, por uma autoridade sobrenatural ou supra-humana"
  302.  
  303. ~ "Um fim subjetivo é um fim que um indivíduo se põe a si próprio, um fim que ele deseja realizar"
  304.  
  305. - "O valor que reside na correspondência-ao-fim é, portanto, idêntico ao valor que consiste na correspondência-à-norma, ou ao valor que consiste na correspondência-ao-desejo"
  306.  
  307. -> "Se se deixa de parte a circunstância de aquilo que o fim representa, aquilo que se visa (escopo), ser objetivamente devido (obrigatório) ou subjetivamente desejado, a relação de meio a fim apresenta-se como relação de causa a efeito"
  308. - "Dizer que algo é adequado ao fim (zweckmässig) significa que é apropriado a realizar o fim, isto é, a produzir, como causa, o efeito representado pelo fim"
  309. - "O juízo que afirma que algo é adequado ao fim pode, conforme o caráter subjetivo ou objetivo do fim, ser um juízo de valor subjetivo ou objetivo"
  310. ~ "Um tal juízo de valor, porém, é apenas possível com base numa visualização da relação causal que existe entre os fatos a considerar como meio e como fim"
  311. ~ "Só quando se sabe que entre A e B existe a relação de causa e efeito, que A é a causa de que B é o efeito, se alcança o juízo de valor (subjetivo ou objetivo): se B é desejado como fim ou é estatuído numa norma como devido (como devendo ser), A é o adequado ao fim (é producente)"
  312. ~> "O juízo relativo à relação entre A e B é um juízo de valor - subjetivo ou objetivo - apenas na medida em que B é pressuposto como fim subjetivo ou objetivo, isto é, como desejado, ou estatuído por uma norma"
  313.  
  314. 5. A ordem social
  315. a) Ordens sociais que estatuem sanções
  316. -> "A conduta de um indivíduo pode estar - mas não tem necessariamente de estar - em relação com um ou vários indivíduos, isto é, um indivíduo pode comportar-se de determinada maneira em face de outros indivíduos"
  317. - Pode a conduta ser dirigida face a um objeto (animais, plantas, objetos inanimados)
  318.  
  319. -> "A relação em que a conduta de uma pessoa está com uma ou várias outras pessoas pode ser imediata ou mediata"
  320. - "O homicídio é uma conduta do homicida em face da vítima. É uma relação imediata de homem a homem"
  321.  
  322. -> "Uma ordem normativa que regula a conduta humana na medida em que ela está em relação com outras pessoas é uma ordem social"
  323. - Moral, Direito
  324. - "A lógica tem por objeto uma ordem normativa que não tem qualquer caráter social, pois os atos de pensar do homem, que as normas desta ordem regulam, não afetam outras pessoas - o homem não pensa 'perante' outro homem da mesma forma que atua em face de outro homem"
  325.  
  326. -> "A conduta que uma pessoa observa perante uma ou várias outras pessoas pode ser prejudicial ou útil a esta ou estas pessoas"
  327. - "Vista de uma perspectiva psicossociológica, a função de qualquer ordem social consiste em obter uma determinada conduta por parte daquele que a esta ordem está subordinado, fazer com que essa pessoa omita determinadas ações consideradas como socialmente - isto é, em relação às outras pessoas - prejudiciais, e, pelo contrário, realize determinadas ações consideradas socialmente úteis"
  328. ~ "Esta ***função motivadora*** é exercida pelas representações das normas que prescrevem ou proíbem determinadas ações humanas"
  329.  
  330. -> "Conforme o modo pelo qual as ações humanas são prescritas ou proibidas, podem distinguir-se diferentes tipos - tipos ideais, não tipos médios"
  331. - "A ordem social pode prescrever uma determinada conduta humana sem ligar à observância ou não observância deste imperativo quaisquer consequências"
  332. ~ "Também pode, porém, estatuir uma determinada conduta humana e, simultaneamente, ligar a esta conduta a concessão de uma vantagem, de um prêmio, ou ligar à conduta oposta uma desvantagem, uma pena (no sentido mais amplo da palavra)"
  333.  
  334. - "O princípio que conduz a reagir a uma determinada conduta com um prêmio ou uma pena é o princípio retributivo (Vergeltung)"
  335. ~ ***"Podem compreender-se no conceito de sanção"***
  336.  
  337. -> "Finalmente, uma ordem social pode - e este é o caso da ordem jurídica - prescrever uma determinada conduta precisamente pelo fato de ligar à conduta oposta uma desvantagem"
  338. - Como a privação de bens
  339. ~ Sendo estes: a vida, a saúde, a liberdade, a honra, valores econômicos
  340.  
  341. -> Uma conduta apenas pode ser considerada prescrita (na hipótese de uma ordem jurídica, como juridicamente prescrita) "na medida em que a conduta oposta é pressuposto de uma sanção
  342. - "Quando uma ordem social, tal como a ordem jurídica, prescreve uma conduta pelo fato de estatuir como devida (devendo ser) uma sanção para a hipótese de conduta oposta, podemos descrever esta situação dizendo que, no caso de se verificar uma determinada conduta, se deve seguir determinada sanção"
  343. ~ "O ser-devida da sanção inclui em si o ser-proibida da conduta que é o seu pressuposto específico e o ser-prescrita da conduta oposta"
  344. ~> Casos em que não é devida a conduta, mas sim a consequência, isto é, a sanção
  345.  
  346. -> Como dito, ***"a conduta prescrita não é a conduta devida; devida é a sanção"
  347. - "A execução da sanção é prescrita, é conteúdo de um dever jurídico, se a sua omissão é tornada pressuposto de uma sanção"
  348. ~ "Se não for esse o caso, ela apenas pode valer como autorizada, e não também como prescrita"
  349. ~> Ou seja, não se torna um dever jurídico
  350. ~> "Visto não podermos admitir um regressum ad infinitum, a última sanção nesta série apenas pode ser autorizada, e não prescrita"
  351.  
  352. -> "Dentro de uma tal ordem normativa, uma mesma conduta pode, neste sentido, ser 'prescrita' e simultaneamente 'proibida', e que tal situação pode ser descrita sem contradição lógica"
  353. - A deve ser e A não deve ser
  354. ~ Proposições que excluem-se mutuamente
  355. ~ De ambas as normas assim descritas apenas uma pode ser válida
  356.  
  357. - Se A é, X deve ser e, se não-A é, X deve ser
  358. ~ Proposições que não se excluem mutuamente e ambas as normas por elas descritas podem ser simultaneamente válidas
  359. ~ "No domínio de uma ordem jurídica pode surgir uma situação - e de fato surgem tais situações, como veremos - em que uma determinada conduta humana e, ao mesmo tempo, a conduta oposta, têm uma sanção como consequência"
  360. ~> "Ambas as normas - as normas que estatuem as sanções - podem valer uma ao lado da outra e ser efetivamente aplicadas porque não se contradizem, isto é, porque podem ser descritas sem contradição lógica"
  361. ~> "Mas nas duas normas obtêm expressão duas tendências políticas opostas que, se bem que não provoquem uma contradição lógica, engendram um conflito teleológico"
  362. ~> Ou seja, a situação é possível, mas politicamente insatisfatória...
  363. ~> ... "Por isso os ordenamentos jurídicos contêm, em regra, preceitos por força dos quais uma das normas é nula ou pode ser anulada"
  364.  
  365. -> Sanção tem o caráter de uma to de coação
  366. - "Uma ordem normativa que estatui atos de coerção como reação contra uma determinada conduta humana é uma ***ordem coercitiva***"
  367. - "Mas os atos de coerção podem ser estatuídos - e é este o caso da ordem jurídica, como veremos - não só como sanção, isto é, como reação contra uma determinada conduta humana, mas também como reação contra situações de fato socialmente indesejáveis que não representam conduta humana e, por isso, não podem ser consideradas como proibidas"
  368.  
  369. -> "O sentido do ordenamento traduz-se pela afirmação de que, na hipótese de uma determinada conduta - quaisquer que sejam os motivos que efetivamente a determinaram -, deve ser aplicada uma sanção (no sentido amplo de prêmio ou de pena)"
  370.  
  371. -> "Já que atrás falamos da 'eficácia' de um ordenamento, importa aqui destacar que um ordenamento que estabelece um prêmio ou uma pena só é 'eficaz', no sentido próprio da palavra, quando a conduta que condiciona a sanção (no sentido amplo de prêmio ou de pena) é causalmente determinada pelo desejo do prêmio ou - a conduta oposta - pelo receio da pena"
  372. - "Mas fala-se ainda de um ordenamento 'eficaz' quando a conduta das pessoas corresponde em geral e grosso modo a esse ordenamento, sem ter em conta os motivos pelos quais ela é determinada [vontade do legislador]. O conceito de eficácia tem aqui um significado normativo, e não causal"
  373.  
  374. b) Haverá ordens sociais desprovidas de sanção?
  375. -> Contrário a um ordenamento social que estatui sanções é aquele que prescreve condutas sem que ligue um prêmio ou um castigo à conduta oposta
  376. - Ordenamento que não aplica o princípio retributivo (Vergeltung)
  377. - Natureza comum à ordenamentos morais, aparentemente
  378. ~ Todavia, até mesmo em tais ordenamentos, há previsões de prêmios e sanções, ainda que não terrenos
  379.  
  380. -> "A única distinção de ordens sociais a ter em conta não reside em que umas estatuem sanções e outras não, mas nas diferentes espécies de sanções que estatuem"
  381.  
  382. c) Sanções transcendentes e sanções socialmente imanentes
  383. -> Sanções transcendentes: são aquelas que, segundo a crença das pessoas submetidas ao ordenamento, provêm de uma instância supra-humana
  384. -> Sanções socialmente imanantes: são aquelas que não só se realizam no aquém, dentro da sociedade, mas também são executadas por homens, membros da sociedade
  385. - "Tais sanções podem consistir na simples aprovação ou desaprovação, expressa de qualquer maneira, por parte dos nossos semelhantes, ou em atos específicos, determinados mais rigorosamente pelo ordenamento social, o qual também designa os indivíduos por quem esses atos são realizados ou postos num processo pelo mesmo ordenamento regulado"
  386. - Fala-se em sanções socialmente organizadas
  387. ~ "A mais antiga sanção desta espécie é a vingança de sangue (Blutrache), praticada na sociedade primitiva"
  388.  
  389. 6. A Ordem Jurídica
  390. a) O Direito: ordem de conduta humana
  391. -> Uma teoria do Direito deve determinar conceitualmente seu objeto
  392. - "Para alcançar uma definição do Direito, é aconselhável primeiramente partir do uso da linguagem, quer dizer, determinar o significado que tem a palavra Recht (Direito) na língua alemã e as suas equivalentes nas outras línguas (law, droit, diritto, etc.)"
  393.  
  394. -> Com a palavra Recht ("Direito") e as suas equivalentes de outras línguas, verifica-se que se designa objetos similares abrangendo um "conceito comum"
  395. - "Com efeito, quando confrontamos uns com os outros os objetos que, em diferentes povos e em diferentes épocas, são designados como “Direito”, resulta logo que todos eles se apresentam como ordens de conduta humana"
  396. - Sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade: uma norma fundamental (grundnorm)
  397.  
  398. -> "As normas de uma ordem jurídica regulam a conduta humana. E certo que, aparentemente, isto só se aplica às ordens sociais dos povos civilizados, pois nas sociedades primitivas também o comportamento dos animais, das plantas e mesmo das coisas mortas é regulado da mesma maneira que o dos homens"
  399. - "Assim, lemos na Bíblia que um boi que matou um homem deve também ser morto - como castigo, evidentemente"
  400. - "Se as sanções previstas pela ordem jurídica se não dirigem só contra os homens mas também contra os animais, é porque isto significa que não só a conduta dos homens mas também a dos animais é juridicamente fixada"
  401. ~ "Por outro lado, se o que é juridicamente prescrito deve ser considerado conteúdo de um dever jurídico, isto quer dizer que não só os homens mas também os animais são considerados como juridicamente adstritos a uma determinada conduta"
  402. ~> "este conteúdo jurídico, absurdo para as nossas atuais concepções, deve ser reconduzido à representação animística segundo a qual não só os homens mas também os animais e os objetos inanimados têm uma 'alma' e, por isso, não existe qualquer diferença essencial entre eles e os indivíduos humanos"
  403.  
  404. - "O fato de as modernas ordens jurídicas regularem apenas a conduta dos homens e não a dos animais, das plantas e dos objetos inanimados, enquanto dirigem sanções apenas àqueles e não a estes, não exclui, no entanto, que estas ordens jurídicas prescrevam uma determinada conduta de homens não só em face de outros homens como também em face dos animais, das plantas e dos objetos inanimados"
  405. ~ "Através de tais normas jurídicas, no entanto, não se regula a conduta dos animais, plantas ou objetos inanimados assim protegidos, mas a conduta do homem contra o qual se dirige a ameaça da pena"
  406.  
  407. -> "Esta conduta pode consistir numa ação positiva ou numa omissão"
  408. - "Na medida, porém, em que a ordem jurídica é uma ordem social, ela somente regula, de uma maneira positiva, a conduta de um indivíduo enquanto esta se refere - imediata e mediatamente - a um outro indivíduo"
  409. ~ "É a conduta de um indivíduo em face de um, vários ou todos os outros indivíduos, a conduta recíproca dos indivíduos, que constitui o objeto desta regulamentação"
  410.  
  411. - "A referência da conduta de um a outro ou a vários outros indivíduos pode ser ***individual***, como no caso da norma que vincula toda e qualquer pessoa a não matar outra pessoa, ou da norma que obriga o devedor a pagar ao credor determinada soma de dinheiro, ou da norma que a todos obriga a respeitar a propriedade alheia"
  412. ~ "Essa referência, porém, também pode ter um caráter ***coletivo***"
  413. ~> Caso da conduta que obriga ao serviço militar, que vincula um indivíduo face da comunidade jurídica, "isto é, em face de todos os subordinados à ordem jurídica, de todas as pessoas pertencentes à comunidade jurídica"
  414. ~> Casos também das normas que visam proteger animais, plantas e objetos inanimados
  415. ~> "A autoridade jurídica prescreve uma determinada conduta humana apenas porque - com razão ou sem ela - a considera valiosa para a comunidade jurídica dos indivíduos"
  416. ~> "Esta referência à comunidade jurídica é também decisiva, em última análise, para a regulamentação jurídica da conduta de uma pessoa que individualmente se refere a outra pessoa determinada"
  417.  
  418. b) O Direito: uma ordem coativa
  419. -> "Uma outra característica comum às ordens sociais a que chamamos Direito é que elas são ordens coativas, no sentido de que reagem contra as situações consideradas indesejáveis, por serem socialmente perniciosas - particularmente contra condutas humanas indesejáveis"...
  420. - ... "com um ato de coação, isto é, com um mal - como a privação da vida, da saúde, da liberdade, de bens econômicos e outros"
  421. ~ "[...] um mal que é aplicado ao destinatário mesmo contra sua vontade, se necessário empregando até a força física - coativamente, portanto"
  422.  
  423. -> "Dizer-se que, com o ato coativo que funciona como sanção, se aplica um mal ao destinatário, significa que este ato é normalmente recebido pelo destinatário como um mal"
  424. - "Pode excepcionalmente [casos de exceção, ressalta Kelsen] suceder, no entanto, que não seja este o caso"
  425. ~ "Assim acontece, por exemplo, quando alguém que cometeu um crime deseja, por remorso, sofrer a pena estatuída pela ordem jurídica e sinta esta pena, portanto, como um bem"
  426. ~ "Ou quando alguém comete um delito para sofrer a pena de prisão correspondente, porque a prisão lhe garante teto e alimento"
  427.  
  428. -> "Neste sentido, as ordens sociais a que chamamos Direito são ordens coativas da conduta humana"
  429. - "Exigem uma determinada conduta humana na medida em que ligam à conduta oposta um ato de coerção dirigido à pessoa que assim se conduz (ou aos seus familiares)"
  430. - "Quer isto dizer que elas dão a um determinado indivíduo poder ou competência para aplicar a um outro indivíduo um ato coativo como sanção"
  431.  
  432. -> Sanções estatuídas por uma ordem jurídica são sanções socialmente imanantes e socialmente organizadas
  433. -> "[...] uma ordem jurídica pode, através dos atos de coação por ela estatuídos, reagir não só contra uma determinada conduta humana mas ainda, como melhor veremos, contra outros fatos socialmente nocivos"
  434. - Ou seja, o ato de coação não depende necessariamente de uma conduta humana
  435.  
  436. -> "O ato de coação normado pela ordem jurídica pode - como veremos mais tarde - ser referido à unidade da ordem jurídica, ser atribuído à comunidade jurídica constituída pela mesma ordem jurídica, ser explicado como reação da comunidade jurídica contra uma situação de fato considerada socialmente nociva e, quando esta situação de fato é uma determinada conduta humana, como sanção"
  437. -> "Dizer que o Direito é uma ordem coativa significa que as suas normas estatuem atos de coação atribuíveis à comunidade jurídica"
  438. - O que não significa que em todos os casos da efetivação do Direito se tenha de empregar a coação física
  439. ~ A coação física faz-se necessária quando a efetivação do direito encontra resistência, "o que não é normalmente o caso"
  440.  
  441. -> "Como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras ordens sociais"
  442. - "O momento coação, isto é, a circunstância de que o ato estatuído pela ordem como conseqüência de uma situação de fato considerada socialmente prejudicial deve ser executado mesmo contra a vontade da pessoa atingida e - em caso de resistência -
  443. mediante o emprego da força física, é o critério decisivo"
  444.  
  445. b.1) Os atos de coação estatuídos pela ordem jurídica como sanções
  446. -> O ato de coação dá-se, como se fosse sanção, face conduta humana reputada como proibida, antijurídica, ilícita ou até mesmo delito
  447. -> "Dizer que o Direito é uma ordem coativa não significa - como às vezes se afirma - que pertença à essência do Direito 'forçar' (obter à força) a conduta conforme ao Direito, prescrita pela ordem jurídica"
  448. - "Essa conduta não é conseguida à força através da efetivação do ato coativo, pois o ato de coação deve precisamente ser efetivado quando se verifique, não a conduta prescrita, mas a conduta proibida, a conduta que é contrária ao Direito"
  449.  
  450. -> "Se, com a afirmação em questão, se pretende significar que o Direito, pela estatuição de sanções, motiva os indivíduos a realizarem a conduta prescrita, na medida em que o desejo de evitar a sanção intervém como motivo na produção desta conduta, deve responder-se que esta motivação constitui apenas uma função possível e não uma função necessária do Direito, que a conduta conforme ao Direito, que é a conduta prescrita, também pode ser provocada por outros motivos e, de fato, é muito freqüentemente, provocada também por outros motivos, como sejam as idéias religiosas ou morais"
  451. -> "A coação que reside na motivação é uma coação psíquica"
  452. - "E esta coação, que a representação do Direito e, particularmente, das sanções por ele estatuídas exerce sobre os súditos da ordem jurídica, enquanto se transforma em motivo da conduta prescrita ou conduta conforme ao Direito, não deve ser confundida com a estatuição do ato coativo"
  453. - Outras ordens também exercem a coação psíquica, de molde que esta não é, pois, uma característica que distinga o Direito das outras ordens socais
  454.  
  455. -> "O Direito é uma ordem coativa não no sentido de que ele - ou, mais rigorosamente, a sua representação - produz coação psíquica"
  456. - "Mas, no sentido de que estatui atos de coação, designadamente a privação coercitiva da vida, da liberdade, de bens econômicos e outros, como consequência dos pressupostos por ele estabelecidos"
  457.  
  458. b.2) O monopólio de coação da comunidade jurídica
  459. -> "Enquanto as diferentes ordens jurídicas coincidem globalmente quanto aos atos de coação por elas estatuídos e atribuíveis à comunidade jurídica - estes consistem sempre, com efeito, na privação forçada dos bens mencionados - divergem consideravelmente pelo que respeita aos pressupostos a que esses atos de coação estão ligados, particularmente quanto à conduta humana cuja contrária deve ser obtida através da estatuição de sanções..."
  460. - ... "isto é, quanto à situação garantida pela ordem jurídica e socialmente desejada, consistente na conduta conforme ao Direito, ou seja ainda, quanto ao valor jurídico que é constituído através das normas"
  461.  
  462. -> "Se considerarmos a evolução por que o Direito passou desde os seus primeiros começos até ao estádio representado pelo Direito estadual moderno, podemos observar, com referência ao valor jurídico a realizar, uma certa tendência que é comum às ordens jurídicas que se encontram nos níveis mais altos da evolução"
  463. - "É a tendência para proibir - numa medida que aumenta com o decorrer da evolução - o emprego da coação física, o uso da força por um indivíduo contra o outro"
  464.  
  465. -> Deve ser feita a distinção entre o uso proibido e o uso autorizado da força
  466. - "Autorizado [...] como reação contra uma situação de fato socialmente indesejável, particularmente como reação contra uma conduta humana socialmente perniciosa"
  467. - "Gradualmente [...] estabelece-se o princípio de que todo o emprego da força física é proibido quando não seja - e temos aqui uma limitação ao princípio - especialmente autorizado como reação, da competência da comunidade jurídica, contra uma situação de fato considerada socialmente perniciosa"
  468. ~ "Então é a ordem jurídica que, taxativamente, determina as condições sob as quais a coação física deverá ser aplicada e os indivíduos que a devem aplicar"
  469.  
  470. -> "Dado que o indivíduo a quem a ordem jurídica atribui poder para aplicar a coação pode ser considerado como órgão da ordem jurídica, ou - o que é o mesmo - da comunidade constituída pela ordem jurídica, pode a execução de atos de coerção, realizada por este indivíduo, ser imputada à comunidade constituída pela ordem jurídica"
  471. - "Neste sentido, pois, estamos perante um monopólio da coação por parte da comunidade jurídica"
  472.  
  473. -> Monopólio é descentralizado em comunidades onde perdura o princípio da autodefesa
  474.  
  475. b.3) Ordem jurídica e segurança coletiva
  476. -> "Quando a ordem jurídica determina os pressupostos sob os quais a coação, como força física, deve ser exercida, e os indivíduos pelos quais deve ser exercida, protege os indivíduos que lhe estão submetidos contra o emprego da força por parte dos outros indivíduos"
  477. - "Quando esta proteção alcança um determinado mínimo, fala-se de segurança coletiva - no sentido de que é garantida pela ordem jurídica enquanto ordem social"
  478.  
  479. -> "A segurança coletiva atinge o seu grau máximo quando a ordem jurídica, para tal fim, estabelece tribunais dotados de competência obrigatória e órgãos executivos centrais tendo à sua disposição meios de coerção de tal ordem que a resistência normalmente não tem quaisquer perspectivas de resultar"
  480. - "É o caso do Estado moderno, que representa uma ordem jurídica centralizada no
  481. mais elevado grau"
  482.  
  483. -> "A segurança coletiva visa a paz, pois a paz é ausência do emprego da força física"
  484. - "Determinando os pressupostos sob os quais deve recorrer-se ao emprego da força e os indivíduos pelos quais tal emprego deve ser efetivado, instituindo um monopólio da coerção por parte da comunidade, a ordem jurídica estabelece a paz nessa comunidade por ela mesma constituída"
  485.  
  486. -> "A paz do Direito, porém, é uma paz relativa e não uma paz absoluta, pois o Direito não exclui o uso da força, isto é, a coação física exercida por um indivíduo contra o outro"
  487. - "Não constitui uma ordem isenta de coação, tal como exige um ***anarquismo utópico***"
  488. - "O Direito é uma ordem de coerção e, como ordem de coerção, é - conforme o seu grau de evolução - uma ordem de segurança, quer dizer, uma ordem de paz"
  489.  
  490. -> "***Enquanto, nas relações entre os Estados, a guerra não for proibida pelo Direito internacional, não pode validamente afirmar-se que a situação jurídica represente necessariamente uma situação de paz, que assegurar a paz constitua uma função essencial do Direito***"
  491. - "O que pode afirmar-se é que a evolução do Direito tem esta tendência"
  492.  
  493. -> "Mesmo que, portanto, a paz fosse de considerar como um valor moral absoluto, ou como um valor comum a todas as ordens morais positivas - o que, como mais tarde veremos, não é o caso -, não poderia o asseguramento da paz, a pacificação da comunidade jurídica, ser considerado como valor moral essencial a todas as ordens jurídicas, como o 'mínimo ético' comum a todo o Direito"
  494. -> Ainda é resguardado ao indivíduo a possibilidade de atuar com coação
  495. - Caso da legítima defesa
  496. - Fala-se, ainda, em direito de correção dos pais na educação aos filhos, limitado à integridade física do filho
  497.  
  498. b.4) Atos coercitivos que não têm o caráter de sanções
  499. -> "Com o decorrer da evolução - especialmente na passagem do Estado-jurisdição para o Estado-administração - amplia-se ainda o círculo dos fatos que são considerados pressupostos de atos coercitivos, na medida em que se classificam como tais não somente atos e omissões humanos socialmente indesejáveis, mas também outros fatos que não têm o caráter de fatos ilícitos"
  500. -> "A este propósito importa referir desde logo aquelas normas que dão competência a determinados órgãos da comunidade, qualificados como órgãos de polícia, para privar da liberdade indivíduos suspeitos de terem praticado um delito, a fim de se garantir o processo judicial contra eles dirigido e no qual então se verifica se praticaram o delito de que são suspeitos"
  501. - "O pressuposto da privação da liberdade não é uma determinada conduta do indivíduo que essa medida atinge, mas a suspeita de uma tal conduta"
  502. - "As ordens jurídicas modernas prescrevem o internamento compulsivo de doentes mentais perigosos em asilos e dos portadores de doenças contagiosas em hospitais"
  503. - "Segundo o Direito dos Estados totalitários, o governo tem poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável"
  504. - ***"Podemos condenar com a maior veemência tais medidas, mas o que não podemos é considerá-las como situando-se fora da ordem jurídica desses Estados"***
  505.  
  506. -> "De conformidade com os respectivos fatos extrínsecos, todos estes atos representam privação compulsória da vida, da liberdade, da propriedade, tal como as sanções da pena de morte, pena de prisão e execução civil"
  507. - "Distinguem-se destas sanções, como já notamos, apenas na medida em que estes atos de coerção não são ligados, como conseqüências, a uma determinada ação ou omissão de certo indivíduo, ação ou omissão socialmente indesejável e juridicamente fixada, porquanto o seu pressuposto não é um ato ilícito ou um delito juridicamente prefixado e cometido por um determinado indivíduo"
  508. ~ "O ato ilícito ou o delito é uma determinada ação ou omissão humana que, por ser socialmente indesejável, é proibida pelo fato de a ela ou, mais corretamente, à sua verificação num processo juridicamente regulado se ligar um ato de coerção, pelo fato de a ordem jurídica a tornar pressuposto de um ato de coerção por ela estatuído"
  509. ~> "E este ato de coerção apenas pode, como sanção (no sentido de conseqüência de um ato ilícito), distinguir-se de outros atos de coerção estatuídos pela ordem jurídica na medida em que o fato condicionante ou pressuposto deste ato de coerção ***é uma determinada ação ou omissão socialmente indesejável e juridicamente prefixada***"...
  510. ~> ... "ao passo que os atos de coerção não qualificados como sanções, no sentido de conseqüências do ilícito, são condicionados por outros fatos"
  511.  
  512. -> "Certos destes atos de coerção podem ser interpretados como sanções desde que se não limite este conceito à hipótese da reação contra uma determinada conduta humana cuja existência seja juridicamente averiguada"...
  513. - ... "mas se estenda a casos em que o ato de coerção seja executado, na verdade, como reação contra uma determinada conduta humana, contra um delito, mas contra um delito cuja comissão por um determinado indivíduo ainda não foi juridicamente averiguada [...], e nos casos em que o ato de coerção se processa contra um delito ainda não cometido mas que é de esperar como possível no futuro"
  514. ~ "Este motivo está claramente na base das limitações à liberdade a que são sujeitos, ao eclodir uma guerra, os cidadãos de um dos Estados contendores que vivem no território do outro"
  515.  
  516. - "Se o conceito de sanção é alargado nestes termos, já não coincidirá com o de conseqüência do ilícito"
  517. ~ "A sanção, neste sentido amplo, não tem necessariamente de seguir-se ao ato ilícito: pode precedê-lo"
  518.  
  519. -> "Finalmente, o conceito de sanção pode ser estendido a todos os atos de coerção estatuídos pela ordem jurídica, desde que com ele outra coisa não se queira exprimir se não que a ordem jurídica, através desses atos, reage contra uma situação de fato socialmente indesejável e, através desta reação, define a indesejabilidade dessa situação de fato"
  520. -> "Se tomarmos o conceito de sanção neste sentido amplíssimo, então o monopólio da coerção por parte da comunidade jurídica pode ser expresso na seguinte alternativa: a coação exercida por um indivíduo contra outro ou é um delito, ou uma sanção (entendendo, porém, como sanção, não só a reação contra um delito, isto é, contra uma determinada conduta humana, mas também a reação contra outras situações de fato socialmente indesejáveis)"
  521.  
  522. b.5) O mínimo de liberdade
  523. -> "Como ordem social que estatui sanções, o Direito regula a conduta humana não apenas num sentido positivo – enquanto prescreve uma tal conduta ao ligar um ato de coerção, como sanção, à conduta oposta e, assim, proíbe esta conduta - mas também por uma forma negativa - na medida em que não liga um ato de coerção a determinada conduta, e, assim, não proíbe esta conduta nem prescreve a conduta oposta"
  524. - "Uma conduta que não é juridicamente proibida é - neste sentido negativo - juridicamente permitida"
  525. - "Visto que uma determinada conduta humana ou é proibida ou não o é, e que, se não é proibida, deve ser considerada como permitida pela ordem jurídica, toda e qualquer conduta de um indivíduo submetido à ordem jurídica pode considerar-se como regulada - num sentido positivo ou negativo - pela mesma ordem jurídica"
  526. ~ "Na medida em que a conduta de um indivíduo é permitida - no sentido negativo - pela ordem jurídica, porque esta não a proíbe, o indivíduo é juridicamente livre"
  527.  
  528. -> "A liberdade que, pela ordem jurídica, é negativamente deixada aos indivíduos pelo simples fato de aquela não lhes proibir uma determinada conduta, deve ser distinguida da liberdade que a ordem jurídica positivamente lhes garante"
  529. - "A liberdade de uma pessoa que assenta no fato de uma determinada conduta lhe ser permitida, por não ser proibida, é garantida pela ordem jurídica apenas na medida em que esta prescreve às outras pessoas o respeito desta liberdade e lhes proíbe a ingerência nesta esfera de liberdade, isto é, proíbe a conduta pela qual alguém é impedido de realizar uma conduta que não é interdita e, neste sentido, lhe é permitida"
  530. ~ "Somente então pode a conduta não proibida - e, neste sentido negativo, permitida - valer como um direito, isto é, como conteúdo de um direito que é o reflexo de uma obrigação que lhe corresponde"
  531.  
  532. - Observação: Art. 5o, II da Constituição Federal de 1988 é manifesta norma que se amolda ao que preceituou Kelsen
  533.  
  534. -> "Simplesmente, nem toda a conduta permitida - no sentido do não-ser-proibida - é garantia pela proibição da conduta de outrem que impeça aquela ou se lhe oponha" (caso de constrangimento ilegal, art. 146 do Código Penal); "nem a toda conduta de uma pessoa por este motivo permitida corresponde uma obrigação correlativa de outra pessoa"
  535. -> ***"Se não é proibida (e, neste sentido, é permitida) a conduta de um indivíduo que é contrária à conduta de um outro indivíduo também não proibida (e, neste sentido, permitida), é possível um conflito face ao qual a ordem jurídica não toma qualquer disposição"***
  536. - "Esta [ordem jurídica] não procura evitá-lo, como o faz relativamente a outros conflitos, proibindo a conduta de um indivíduo que é contrária à do outro - ou, por outras palavras, proibindo a realização do interesse de um que é contrário ao interesse de um outro"
  537.  
  538. -> "A ordem jurídica não pode, de forma alguma, procurar impedir todos os conflitos possíveis"
  539. - "O que pelas modernas ordens jurídicas é - pode afirmar-se - proibido sem exceção é o obstar à conduta não proibida de outrem pelo recurso à força física"
  540. ~ Novamente, art. 146 do Código Penal Brasileiro
  541.  
  542. -> Visto que uma ordem jurídica - como toda a ordem social normativa - apenas pode prescrever ações e omissões inteiramente determinadas, nunca o indivíduo pode, na sua existência total, na totalidade da sua conduta externa e interna, do seu agir, do seu querer, do seu pensar e do seu sentir, ver a sua liberdade limitada através de uma ordem jurídica"
  543. - "A ordem jurídica pode limitar mais ou menos a liberdade do indivíduo enquanto lhe dirige prescrições mais ou menos numerosas"
  544. - "Fica sempre garantido, porém, um ***mínimo de liberdade***, isto é, de ausência de vinculação jurídica, uma esfera de existência humana na qual não penetra qualquer comando ou proibição"
  545.  
  546. -> "Mesmo sob a ordem jurídica mais totalitária existe algo como uma liberdade inalienável - não enquanto direito inato do homem, enquanto direito natural, mas como uma conseqüência da limitação técnica que afeta a disciplina positiva da conduta humana"
  547. - Deve a ordem jurídica proibir intrusões nesse âmbito de liberdade
  548. - "Sob este aspecto, têm uma especial importância política as chamadas liberdades constitucionalmente garantidas"
  549. ~ "Trata-se de preceitos de Direito constitucional através dos quais a competência do órgão legislativo é limitada por forma a não lhe ser permitido - ou apenas o ser sob condições muito especiais - editar normas que prescrevam ou proíbam aos indivíduos uma conduta de determinada espécie, como a prática da religião, a expressão de opiniões e outras condutas análogas"
  550.  
  551. c) O Direito como ordem normativa de coação. Comunidade Jurídica e "bando de salteadores"
  552. -> "Costuma caracterizar-se o Direito como ordem coativa, dizendo que o Direito prescreve uma determinada conduta humana sob ***'cominação'*** de atos coercitivos, isto é, de determinados males [...]"
  553. - Dentre eles: privação da vida, da liberdade, da propriedade e outros
  554. - Formulação que "ignora o sentido normativo com que os atos de coerção em geral e sanções em particular são estatuídas pela ordem jurídica"
  555.  
  556. -> "O sentido de uma ***cominação*** é que um mal será aplicado sob determinados pressupostos"
  557. - Por sua vezes, "o sentido da ordem jurídica é que certos males ***devem***, sob certos pressupostos, ser aplicados, que - numa fórmula mais genérica - determinados atos de coação devem, sob determinadas condições, ser executados"
  558. ~ Sentido subjetivo e objetivo dos atos através os quais o Direito é legislado
  559.  
  560. -> Uma ordem de um salteador (ladrão) de estradas guarda semelhanças com uma ordem jurídica (por ser uma ordem que impõe um dever-ser futuro a ser adotado - ou não - pelo dirigido, caso observado tão somente o sentido subjetivo
  561. - Sentido objetivo advém de uma norma vinculadora ao destinatário
  562.  
  563. -> "Mas por que é que, num dos casos, consideramos o sentido subjetivo do ato como sendo também o seu sentido objetivo, e já não no outro?"
  564. - "Encarados sem qualquer pressuposição, também os atos criadores do Direito têm apenas o sentido subjetivo de dever-ser"
  565.  
  566. -> "Qual é o fundamento de validade da norma que nós consideramos como sendo o sentido objetivo deste ato [de coerção]?"
  567. - "Uma análise dos juízos pelos quais interpretamos certos atos como atos jurídicos, quer dizer, como atos cujo sentido objetivo é norma, fornece-nos a resposta"
  568. - "Essa análise mostra o pressuposto sob o qual é possível esta interpretação"
  569.  
  570. -> Kelsen adota interpretação na qual é Constituição as normas que conferem competência ao órgão legislativo como constituindo o sentido, não ó subjetivo mas também objetivo, de um ato posto por certos determinados
  571. - "Tratando-se de uma Constituição que é historicamente a primeira, tal só e possível se pressupusermos que os indivíduos se devem conduzir de acordo com o sentido subjetivo deste ato, que devem ser executados atos de coerção sob os pressupostos fixados e pela forma estabelecida nas normas que caracterizamos como Constituição [...]"
  572. ~ "[...] quer dizer, desde que pressuponhamos uma norma por força da qual o ato a interpretar como ato constituinte seja de considerar como um ato criador de normas objetivamente válidas e os indivíduos que põem este ato como autoridade constitucional"
  573. ~ "Esta norma [a 'constituição que é historicamente a primeira'] é - como mais tarde se verá melhor - a norma fundamental de uma ordem jurídica estadual"
  574. ~> "Esta não é uma norma posta através de um ato jurídico positivo, mas - como o revela uma análise dos nossos juízos jurídicos - uma norma ***pressuposta*** sempre que o ato em questão se de entender como ato constituinte, como ato criador da Constituição, e os atos postos com fundamento nesta Constituição como ***atos jurídicos***"
  575. ~> "Constatar esta pressuposição é uma função essencial da ciência jurídica"
  576. ~> "Em tal pressuposição reside o último fundamento de validade da ordem jurídica, fundamento esse que, no entanto, pela sua mesma essência, é um fundamento tão-somente condicional e, neste sentido, hipotético"
  577.  
  578. -> O contexto supramencionada diz respeito tão somente a uma ordem jurídica estadual ou nacional
  579. - "[...] isto é, uma ordem jurídica limitada no seu domínio territorial de validade a um determinado espaço - o chamado território do Estado"
  580. ~> Ideia de domínio da vigência da norma
  581.  
  582. - "O fundamento de validade [ideia de existência específica da norma] da ordem jurídica internacional, cujo domínio de validade territorial não é assim limitado, bem como a relação da ordem jurídica internacional com as ordens jurídicas estaduais, não nos preocupam de momento"
  583.  
  584. -> Eficácia da norma não se confunde com a sua vigência - e vice-versa
  585. - Porém, "[...] pode existir uma relação essencial entre estas duas coisas - que uma ordem coercitiva que se apresenta como Direito só será considerada válida quando for globalmente eficaz"
  586. ~ "Quer dizer: a norma fundamental que representa o fundamento de validade de uma ordem jurídica refere-se apenas a uma Constituição que é base de uma ordem de coerção eficaz"
  587. ~> "Somente quando a conduta real (efetiva) dos indivíduos corresponda, globalmente considerada, ao sentido subjetivo dos atos dirigidos a essa conduta é que este sentido subjetivo é reconhecido como sendo também o seu sentido objetivo, e esses atos são considerados ou interpretados como atos jurídicos"
  588.  
  589. -> "Agora podemos dar resposta à questão de saber:[...]"
  590. - "[...] por que é que não conferimos ao comando de um salteador de estradas,
  591. proferido sob ameaça de morte, o sentido objetivo de uma norma vinculadora do destinatário [...]"
  592. ~ "[...] isto é, de uma norma válida [...]"
  593.  
  594. - "[...] por que é que não interpretamos este ato [do salteador] como um ato jurídico [...]"
  595. - "[...] por que interpretamos a realização da ameaça [pelo salteador] como um delito e não como a execução de uma sanção"
  596.  
  597. - "Se se trata do ato isolado de um só indivíduo, tal ato não pode ser considerado como um ato jurídico e o seu sentido não pode ser considerado como uma norma jurídica [...]"
  598. ~ "[...] já mesmo pelo fato de o Direito - conforme já acentuamos - não ser uma norma isolada, mas um sistema de normas, um ordenamento social, e uma norma particular
  599. apenas pode ser considerada como norma jurídica na medida em que pertença a um tal ordenamento"
  600. ~ Só teria o condão de criar um efetivo confronto com a ordem jurídica se fosse o caso de um bando que agisse sistematicamente vinculando certa parcela de indivíduos que ali vivessem
  601. ~> Ainda assim não se pressupõe, in casu, uma norma fundamental porque não goza de eficácia duradoura sem a qual não é pressuposta qualquer norma fundamental que se lhe refira e fundamente a sua validade
  602. ~> Porem, "se esta ordem de coação é limitada no seu domínio territorial de validade a um determinado território e, dentro desse território, é por tal forma eficaz que exclui toda e qualquer outra ordem de coação, pode ela ser considerada como
  603. ordem jurídica e a comunidade através dela constituída como “Estado”, mesmo quando este desenvolva externamente - segundo o Direito internacional positivo - uma atividade criminosa"
  604.  
  605. -> "A segurança coletiva ou a paz é função que - como já notamos - tem de fato, se bem que em grau diferente, as ordens coercitivas designadas como Direito que tenham atingido uma determinada fase de evolução. Esta função é um fato objetivamente determinável"
  606. - "A verificação, por parte da ciência jurídica, de que uma ordem jurídica estabelece a paz na comunidade jurídica por ela constituída não implica qualquer espécie de juízo de valor e, especialmente, não significa o reconhecimento de um valor
  607. de Justiça, que, destarte, não é por forma alguma elevado à categoria de um elemento do conceito de Direito e, por isso, também não pode servir como critério para a distinção entre comunidade jurídica e bando de salteadores, contra o que sucede na teologia de Agostinho"
  608. - Kelsen vira retirar do âmbito da "Justiça" o marco separador entre uma ordem de um bando de salteadores e a ordem jurídica que goza de sentido objetivo
  609. ~ E, para tanto, escolhe a paz jurídica como marco individualizador
  610.  
  611. - Agostinho, a quem Kelsen contraria, diz: "Justiça é a virtude que dá a cada um o que é seu (Justitia porro ea virtus est, quae sua cuique distribuit)"
  612. ~ "Segundo a concepção que está na base deste raciocínio, o Direito é uma ordem de coerção justa e distingue-se, assim, através da Justiça do seu conteúdo, da ordem coercitiva de um bando de salteadores"
  613. ~ Kelsen quer ver uma interpretação daquilo que é Direito escoimada de juízos de valor
  614. ~> "Se a Justiça é tomada como o critério da ordem normativa a designar como Direito, então as ordens coercitivas capitalistas do mundo ocidental não são de forma alguma Direito do ponto de vista do ideal comunista do Direito, e a ordem coercitiva comunista da União Soviética não é também de forma alguma Direito do ponto de vista do
  615. ideal de Justiça capitalista"
  616. ~> "Um conceito de Direito que conduz a uma tal conseqüência não pode ser aceito por uma ciência jurídica positiva"
  617.  
  618. d) Deveres jurídicos sem sanção?
  619. -> "Se se concebe o Direito como uma ordem de coerção, a fórmula com a qual traduzimos a norma fundamental de uma ordem jurídica estadual significa: a coação de um indivíduo por outro deve ser praticada pela forma e sob os pressupostos fixados pela primeira Constituição histórica [Grundnorm]"
  620. - "A norma fundamental delega na primeira Constituição histórica a determinação do processo pelo qual se devem estabelecer as normas estatuidoras de atos de coação"
  621. ~ Observação: Constituição Real de Ferdinand Lassalle
  622.  
  623. - "Uma norma, para ser interpretada objetivamente como norma jurídica, tem de ser o sentido subjetivo de um ato posto por este processo - pelo processo conforme à norma fundamental - e tem de estatuir um ato de coação ou estar em essencial ligação com uma norma que o estatua"
  624. ~ "Com a norma fundamental, portanto, pressupõe-se a definição nela contida do Direito como norma coercitiva"
  625.  
  626. -> "A definição do Direito pressuposta na norma fundamental tem como consequência que apenas se deve considerar como juridicamente prescrita - ou, o que é o mesmo, como conteúdo de um dever jurídico - uma certa conduta, quando a conduta oposta seja normada como pressuposto de um ato coercitivo que é dirigido contra os indivíduos que por tal forma se conduzam"
  627. - Kelsen fala não só dos indivíduos, como também "seus familiares"
  628. - "Deve notar-se, no entanto, que o próprio ato de coação não precisa ser prescrito com este sentido, que a sua decretação e a sua execução podem ser apenas autorizadas"
  629.  
  630. -> "Ora, faz-se valer contra a definição do Direito como ordem de coerção, isto é, contra assunção do momento coação no conceito de Direito, que as ordens jurídicas que a história nos apresenta contêm de fato: [...]"
  631. - Normas que não estatuem qualquer ato de coação
  632. - Normas que permitem uma conduta, ou
  633. - Normas que conferem o poder de realizar uma conduta
  634. - Normas que exigem uma conduta sem a previsão de atos de coação na prática da conduta contrária
  635. - A não-aplicação das normas que estatuem atos de coação não é muitas vezes transformada em pressuposto de atos coercitivos que funcionem como sanções
  636. ~ "A objeção referida [...] não colhe, pois a definição do Direito como ordem de coerção pode subsistir mesmo quando a norma estatuidora de um ato de coação não esteja ela própria em ligação essencial com uma norma que ligue uma sanção à não-aplicação ou à não-execução da coação num caso concreto [...]"
  637. ~ "[...] quando, portanto, a estatuição geral do ato de coação é de interpretar juridicamente, isto é, objetivamente, não como prescrita, mas apenas como autorizada (facultada) ou positivamente permitida"
  638. ~> "[...] muito embora o sentido subjetivo do ato pelo qual o ato de coação é estatuído em forma geral seja o de uma prescrição"
  639.  
  640. -> "A definição do Direito como uma ordem coercitiva pode ainda manter-se em face daquelas normas que conferem competência ou poder para uma conduta que não tenha o caráter de um ato de coação, ou permitem positivamente tal conduta, na medida em que tais normas são ***normas não-autônomas***, por estarem em ligação essencial com normas estatuidoras de atos de coerção"
  641. - Exemplo: dentre normas que são apresentadas como argumento contra a assunção do momento coercitivo no conceito de Direito, fornecem-no-lo as normas do direito constitucional
  642. ~ "As normas da Constituição que regulam o processo legislativo não estatuem - argumenta-se quaisquer sanções para a hipótese de não serem observadas
  643. ~> "Uma análise mais detalhada mostra, porém, que se trata de normas não-autônomas que fixam apenas um dos pressupostos sob os quais são de aplicar e executar os atos de coação estatuídos por outras normas"
  644. ~> "Se as determinações da Constituição não são respeitadas, então não se produzem quaisquer normas jurídicas válidas, as normas em tais condições produzidas são nulas ou anuláveis, isto é: o sentido subjetivo dos atos postos inconstitucionalmente e que, portanto, não são postos de acordo com a norma fundamental, não será interpretado como seu sentido objetivo ou, então, essa interpretação - provisória - vem a ser repudiada"
  645.  
  646. -> Obrigação natural: chama-se assim a hipótese "mais significativa" (ou praticamente) na qual a jurisprudência tradicional presume a existência de uma norma destituída de sanção
  647. - "[...] dever de prestação cujo cumprimento não pode ser exigido através de uma ação intentada em tribunal e cujo não-cumprimento não constitui pressuposto de uma execução civil"
  648. - É dever jurídico porquanto uma vez realizada a prestação, não pode ser repetida com fundamento no enriquecimento sem causa
  649. ~ "Isso, porém, não significa senão que vigora uma norma geral que determina que, quando o que recebe uma prestação à qual o que a presta não estava juridicamente vinculado não restitui o que foi prestado, pode ser dirigida contra o seu patrimônio, através de uma ação judicial, uma execução civil, e que a validade desta norma estatuidora de um ato de coação é limitada a certos casos fixados pela ordem jurídica"
  650. ~> Trata-se, portanto, de simples limitação da validade de uma norma estatuidora
  651.  
  652. -> "Não pode evidentemente negar-se que o legislador pode pôr um ato - e isto através de um processo conforme à norma fundamental - cujo sentido subjetivo seja uma norma que prescreva uma determinada conduta humana, sem que seja posto um outro ato cujo sentido subjetivo seja uma norma que estatui, para a hipótese da conduta oposta, um ato coercitivo como sanção, e sem que, como no caso da obrigação natural, a situação possa possa ser descrita como limitação da validade de uma norma estatuidora de um ato de coação"
  653. - "Nesse caso, se a norma fundamental pressuposta é formulada como uma norma estatuidora de atos de coerção, o sentido subjetivo do ato em questão não pode ser interpretado como sendo o seu sentido objetivo, nem a norma que é o seu sentido subjetivo pode ser interpretada como norma jurídica, mas ambos têm de ser considerados como juridicamente irrelevantes"
  654. ~ "Mas ainda por outras razões, pode ser considerado como juridicamente irrelevante o sentido subjetivo de um ato posto através de um processo conforme à norma fundamental"
  655. ~ "Com efeito, o sentido subjetivo de um tal ato pode ser algo que nem sequer possua o caráter de uma norma impondo, permitindo ou autorizando uma conduta humana"
  656. ~ "Uma lei produzida de pleno acordo com a Constituição pode ter um conteúdo que não represente qualquer espécie de norma mas exprima uma teoria religiosa ou política, como talvez o princípio de que o Direito provém de Deus, ou de que a lei é justa ou que realiza o interesse de toda a coletividade"
  657.  
  658. -> "Na medida em que os atos constitucionalmente produzidos são expressos em palavras, eles podem ter qualquer sentido, isto é, podem assumir uma forma que de modo algum apenas possa ter normas por conteúdo"
  659. - "Na medida em que o Direito em geral é definido como norma, a ciência jurídica não pode dispensar o conceito de conteúdo juridicamente irrelevante"
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