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Oct 26th, 2016
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  1. Ficha Técnica
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  4. Título: Afirma Pereira
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  6. Título original: Sostiene Pereira
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  8. Autor: Antonio Tabucchi
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  10. Tradução: José Lima
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  12. Revisão: Leya, SA
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  14. ISBN: 9789896603243
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  20. Leya, SA
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  22. Rua Cidade de Córdova, n.º 2
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  24. 2610-038 Alfragide – Portugal
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  26. Tel. (+351) 21 427 22 00
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  28. Fax. (+351) 21 427 22 01
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  34. © Giangiacomo Feltrinelli Editore, Milano, 1974
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  36. Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
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  38. http://bisleya.blogs.sapo.pt
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  40. www.leya.pt
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  52. Afirma Pereira tê-lo conhecido num dia de Verão. Um magnífico dia de Verão, cheio de sol e de vento, e Lisboa resplandecia. Ao que parece, Pereira estava na redacção, não sabia que fazer, o director estava de férias, e ele via-se com o problema de preparar a página cultural, pois o Lisboa passara a ter uma página cultural, e tinham-lha confiado. E ele, Pereira, reflectia sobre a morte. Naquele belo dia de Verão, com a brisa atlântica acariciando as copas das árvores e o Sol a brilhar, com uma cidade que cintilava sob a sua janela, e um azul, um azul incrível, afirma Pereira, de uma limpidez que quase feria os olhos, ele pôs-se a pensar na morte. Porquê? Isso, Pereira não sabe dizer. Fosse porque o pai, quando ele era miúdo, tinha uma agência funerária que se chamava Pereira A Dolorosa; fosse porque a sua mulher morrera tísica uns anos antes; fosse porque era gordo, sofria do coração, tinha a tensão alta e o médico lhe dissera que se continuasse assim não durava muito, o facto é que Pereira se pôs a pensar na morte, afirma. E por acaso, por mero acaso, pôs-se a folhear uma revista. Era uma revista literária, que no entanto tinha também uma secção de filosofia. Uma revista de vanguarda, talvez, disto Pereira não tem a certeza, mas que tinha muitos colaboradores católicos. E Pereira era católico, ou pelo menos naquele momento sentia-se católico, um bom católico, mas havia uma coisa em que não conseguia acreditar: na ressurreição da carne. Na alma sim, claro, porque tinha a certeza de possuir uma alma; mas toda a sua carne, aquelas banhas que envolviam a sua alma, pois bem, essa não, essa não voltaria a reviver, e também porquê?, interrogava-se Pereira. Toda aquela banha que o acompanhava quotidianamente, o suor, a fadiga ao subir as escadas, porque deveriam ressuscitar? Não, Pereira não queria mais nada daquilo, noutra vida, pela eternidade, e não queria acreditar na ressurreição da carne. Assim, pôs-se a folhear aquela revista, despreocupadamente, porque se sentia aborrecido, afirma, e deparou com um artigo que dizia: «De uma tese discutida o mês passado na Universidade de Lisboa, publicamos uma reflexão sobre a morte. O autor, Francisco Monteiro Rossi, licenciou-se em Filosofia com distinção, e o presente texto é apenas parte do seu ensaio, pois talvez futuramente contemos de novo com a sua colaboração.»
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  54. Afirma Pereira que a princípio se pôs a ler distraidamente o artigo, que não tinha título, depois maquinalmente voltou atrás e copiou um fragmento. Porque o fez? Pereira não é capaz de responder a isto. Talvez por aquela revista de vanguarda católica o enfadar, talvez por naquele dia estar farto de vanguardas e de catolicismos, mesmo sendo profundamente católico, ou talvez por naquele momento, naquele Verão fulgurante sobre Lisboa, com toda aquela gordura a pesar-lhe em cima, detestar a ideia da ressurreição da carne, mas o facto é que se pôs a copiar o artigo, talvez para poder deitar a revista para o cesto dos papéis.
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  56. Afirma que não o copiou todo, copiou só algumas linhas que são as seguintes e que pode juntar como testemunho: «A relação que caracteriza de maneira mais profunda e geral o sentido do nosso ser é a da vida com a morte, pois a limitação da nossa existência através da morte é decisiva para a compreensão e a avaliação da vida.» Depois pegou na lista telefónica e disse para consigo: Rossi, que nome estranho, não deve haver mais do que um Rossi na lista, afirma que marcou um número, pois recorda-se bem desse número, e do outro lado ouviu uma voz que disse: Está. Está, disse Pereira, aqui é do Lisboa. E a voz disse: Sim? Bom, afirma ter dito Pereira, o Lisboa é um jornal de Lisboa, começou há poucos meses, não sei se o conhece, somos apolíticos e independentes, mas acreditamos na alma, quer dizer, temos tendência católica, e queria falar com o senhor Monteiro Rossi. Pereira afirma que do outro lado houve um momento de silêncio e depois a voz disse que era Monteiro Rossi que falava e que, no que lhe dizia respeito, não pensava lá muito na alma. Pereira, por seu turno, manteve uns segundos de silêncio por lhe parecer estranho, afirma, que uma pessoa que tinha assinado reflexões tão profundas sobre a morte não pensasse na alma. E por isso pensou que houvesse um engano, e logo a seguir o pensamento fugiu-lhe para a ressurreição da carne, que era uma ideia fixa, e disse que tinha lido um artigo de Monteiro Rossi sobre a morte, e depois disse que ele, Pereira, também não acreditava na ressurreição da carne, se era isso que o senhor Monteiro Rossi tinha querido dizer. Em resumo, Pereira embrulhou-se, afirma, o que o irritou, o irritou sobretudo consigo próprio, por ter tomado a iniciativa de telefonar a um desconhecido e de lhe falar daquelas coisas delicadas, ou antes, tão íntimas como a alma e a ressurreição da carne. Pereira arrependeu-se, afirma, e naquele momento pensou mesmo em pousar o auscultador, mas depois, sabe-se lá porquê, encontrou a energia para continuar e disse então que se chamava Pereira, doutor Pereira, que dirigia a página cultural do Lisboa e que, bem, para já o Lisboa era um jornal da tarde, enfim um jornal que, claro, não podia competir com os outros jornais da capital, mas que estava seguro que havia de se impor, mais tarde ou mais cedo, e era verdade que por agora o Lisboa dava espaço sobretudo à vida social, mas enfim, agora tinham decidido publicar uma página cultural que saía aos sábados e que a redacção ainda não estava completa e por isso precisava de pessoal, de um colaborador externo que fizesse uma rubrica fixa.
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  58. Afirma Pereira que o senhor Monteiro Rossi balbuciou imediatamente que podia passar na redacção no próprio dia, disse também que o trabalho o interessava, que qualquer trabalho o interessava, porque, pois, bem, tinha mesmo necessidade de trabalhar, agora que acabara a universidade e tinha de se manter, mas Pereira prudentemente disse-lhe que na redacção não, para já era melhor que não, podiam talvez encontrar-se fora, na Baixa, e que era melhor marcar um encontro. Disse isso, afirma, porque não queria convidar uma pessoa desconhecida para aquele cubículo miserável da Rua Rodrigo da Fonseca, onde zumbia uma ventoinha asmática e onde havia sempre um cheirete a fritos por causa da porteira, uma megera que olhava para toda a gente com um ar suspeitoso e passava a vida a fazer fritos. E depois não queria que um desconhecido se apercebesse de que a redacção cultural do Lisboa era só ele, Pereira, um homem que suava de calor e de constrangimento naquela toca, e finalmente, afirma Pereira, perguntou-lhe se podiam encontrar-se fora, e ele, Monteiro Rossi, disse-lhe: Esta noite, na Praça da Alegria, há uma festa popular com canções e guitarradas, convidaram-me para cantar uma canção napolitana, sabe, eu sou meio italiano mas não sei napolitano, de qualquer modo o dono da casa reservou-me uma mesa ao ar livre, na minha mesa há um cartão com o nome Monteiro Rossi escrito, que acha se nos víssemos lá? E Pereira disse que sim, afirma, pousou o auscultador, limpou o suor, e a seguir veio-lhe uma ideia magnífica, fazer uma breve rubrica intitulada «Efemérides», e pensou em publicá-la já no sábado seguinte, e assim, quase maquinalmente, talvez por estar a pensar na Itália, escreveu o título Há dois anos desaparecia Luigi Pirandello. E depois, por baixo, escreveu a cabeça do artigo: «O grande dramaturgo tinha apresentado em Lisboa o seu Sonho ou talvez não.»
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  60. Era o dia vinte e cinco de Julho de mil novecentos e trinta e oito, e Lisboa cintilava no azul de uma brisa atlântica, afirma Pereira.
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  72. Pereira afirma que nessa tarde o tempo mudou. De repente a brisa atlântica cessou, do mar veio uma espessa cortina de névoa e a cidade viu-se envolvida num sudário de calor abafado. Antes de sair do escritório, Pereira olhou para o termómetro que comprara do seu bolso e que tinha pendurado por detrás da porta. Marcava trinta e oito graus. Pereira desligou a ventoinha, encontrou a porteira nas escadas que lhe disse até amanhã doutor Pereira, sentiu de novo o cheiro a fritos que pairava no átrio e saiu finalmente para a rua. O mercado do bairro ficava do outro lado da rua e a Guarda Nacional Republicana estava lá parada com duas camionetas. Pereira sabia que os mercados andavam agitados, porque no dia anterior, no Alentejo, a polícia matara um carroceiro que abastecia os mercados e era socialista. Por isso a Guarda Nacional Republicana estava estacionada diante dos portões do mercado. Mas o Lisboa não tivera coragem de dar a notícia, ou antes o subdirector, porque o director estava de férias, no Buçaco, a gozar o fresco e as termas, e quem teria coragem de dar uma notícia do género, que um carroceiro socialista fora assassinado no Alentejo na sua carroça e tinha salpicado de sangue todos os seus melões? Ninguém, porque o país calava-se, não podia fazer mais nada senão calar-se, e entretanto as pessoas morriam e a polícia fazia o que queria. Pereira começou a suar, porque pensou novamente na morte. E pensou: Esta cidade tresanda a morte, toda a Europa tresanda a morte.
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  74. Dirigiu-se ao Café Orquídea, que ficava ali a dois passos, depois do talho judeu, e sentou-se a uma mesa, mas lá dentro, porque pelo menos havia ventoinhas, já que fora não se podia estar com o calor. Pediu uma limonada, foi à casa de banho, enxaguou as mãos e a cara, mandou vir um charuto, pediu o jornal da tarde e Manuel, o empregado, trouxe-lhe exactamente o Lisboa. Não tinha visto as provas nesse dia, por isso folheou-o como se fosse um jornal desconhecido. A primeira página dizia: «Partiu hoje de Nova Iorque o iate mais luxuoso do mundo.» Pereira olhou longamente o título, depois olhou para a fotografia. Era uma imagem que representava um grupo de pessoas de chapéu de palhinha e em camisa que abriam garrafas de champanhe. Pereira começou a suar, afirma, e pensou de novo na ressurreição da carne. Então, pensou, se ressuscito terei de me ver entre esta gente de palhinhas? Pensou realmente encontrar-se com aquelas pessoas do iate num porto indeterminado da eternidade. E a eternidade pareceu-lhe um sítio insuportável, abafado por uma cortina de névoa de calor, com pessoas que falavam inglês e faziam brindes exclamando: Oh oh! Pereira mandou vir outra limonada. Pensou no que seria melhor, se voltar para casa e tomar um banho frio ou ir ter com o seu amigo prior, o padre António da Igreja das Mercês, a quem se tinha confessado alguns anos antes, quando lhe morrera a mulher, e que continuava a ver uma vez por mês. Pensou que mais valia ir ter com o padre António, talvez lhe fizesse bem.
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  76. E assim fez. Afirma Pereira que daquela vez se esqueceu de pagar. Levantou-se distraído, ou antes, maquinalmente, e foi-se embora, simplesmente, e deixou na mesa o jornal e o chapéu, talvez porque com aquele calor não lhe apetecesse andar de chapéu, ou porque era mesmo assim, esquecia-se das coisas.
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  78. O padre António estava abatido, afirma Pereira. Tinha umas olheiras enormes e um ar extenuado, como de quem não dormiu. Pereira perguntou-lhe o que se passava e o padre António disse-lhe: Mas então não sabes?, mataram um alentejano que ia na sua carroça, há greves, aqui na cidade e noutros lados, mas em que mundo vives, tu que trabalhas num jornal?, olha, Pereira, vê se te informas melhor.
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  80. Pereira afirma que saiu inquieto com esta breve conversa e com a maneira como fora despachado. Perguntou a si mesmo: em que mundo vivo? E veio-lhe à mente a ideia bizarra de que talvez não vivesse, e era como se já tivesse morrido. Desde a morte da mulher que vivia como se estivesse morto. Ou antes: não fazia mais nada senão pensar na morte, na ressurreição da carne em que não acreditava e em tolices do género, limitava-se a sobreviver, limitava-se a uma ficção de vida. E sentiu-se exausto, afirma Pereira. Conseguiu arrastar-se até à paragem de eléctrico mais próxima e apanhou um eléctrico que ia até ao Terreiro do Paço. E entretanto, da janela, via desfilar lentamente a sua Lisboa, olhava a Avenida da Liberdade com os seus belos edifícios, e depois o Rossio, de estilo inglês; e no Terreiro do Paço desceu e apanhou o eléctrico que subia para o Castelo. Desceu junto da Sé, pois morava ali perto, na Rua da Saudade. Subiu a custo a rampa que levava a sua casa. Tocou para a porteira porque não lhe apetecia procurar a chave da entrada, e a porteira, que também lhe servia de mulher da limpeza, veio abrir. Senhor doutor Pereira, disse a porteira, deixei-lhe uma costeleta frita para o jantar. Pereira agradeceu e subiu vagarosamente as escadas, tirou a chave de casa de debaixo do tapete, onde a punha sempre, e entrou. À entrada deteve-se diante da estante, onde estava o retrato da mulher. Aquela fotografia fora tirada por ele, em mil novecentos e vinte e sete, tinha sido durante um passeio a Madrid, e em fundo via-se a silhueta maciça do Escorial. Desculpa ter chegado um bocado atrasado, disse Pereira.
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  82. Afirma Pereira que de há uns tempos a essa parte adquirira o hábito de falar com o retrato da mulher. Contava-lhe o que tinha feito durante o dia, confiava-lhe os seus pensamentos, pedia-lhe conselhos. Não sei em que mundo vivo, disse Pereira ao retrato, até o padre António mo disse, o problema é que não faço outra coisa senão pensar na morte, parece-me que toda a gente está morta ou em vias de morrer. E depois Pereira pensou no filho que não tinham tido. Ele sim, teria querido, mas não era justo pedi-lo àquela mulher frágil e adoentada que passava noites insones e longos períodos no sanatório. E sentiu pena. Porque se tivesse tido um filho, um filho crescido com quem pudesse estar à mesa a conversar, agora não sentiria a necessidade de falar com aquele retrato que tinha a ver com uma remota viagem de que já mal se lembrava. E disse: Bom, paciência, que era a sua fórmula de despedida do retrato da mulher. Depois entrou na cozinha, sentou-se à mesa e tirou a tampa que cobria a frigideira com a costeleta frita. Estava fria, mas não lhe apetecia aquecê-la. Comia-a sempre assim, como a porteira a deixava: fria. Comeu rapidamente, foi à casa de banho, lavou os sovacos, mudou de camisa, pôs uma gravata preta e um pouco do perfume espanhol que tinha sobrado num frasco que comprara em mil novecentos e vinte e sete em Madrid. Seguidamente vestiu um casaco cinzento e saiu para ir à Praça da Alegria, pois já eram nove da noite, afirma Pereira.
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  94. Pereira afirma que naquela noite a cidade parecia nas mãos da polícia. Estavam em todo o lado. Tomou um taxi até ao Terreiro do Paço e debaixo das arcadas viam-se camionetas e guardas com espingardas. Talvez temessem manifestações ou concentrações de rua, e por isso controlavam os pontos estratégicos da cidade. Gostaria de ter continuado a pé, porque o cardiologista lhe tinha dito que precisava de andar, mas não teve coragem de passar diante daqueles militares sinistros, e por isso apanhou o eléctrico que seguia pela Rua da Prata e que parava na Praça da Figueira. Aqui desceu, afirma, e encontrou mais polícia. Desta vez teve de passar diante do pelotão, o que lhe provocou um ligeiro mal-estar. Ao passar ouviu um oficial dizer aos soldados: E lembrem-se rapazes que os subversivos estão sempre emboscados, é melhor estar de olhos abertos.
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  96. Pereira olhou à sua volta, como se aquele conselho lhe fosse dirigido, e não lhe pareceu que fosse preciso estar de olhos abertos. A Avenida da Liberdade estava tranquila, o quiosque dos gelados estava aberto e havia pessoas nas mesas a tomar o fresco. Seguiu num passo tranquilo pelo passeio do meio e nessa altura, afirma, começou a ouvir a música. Era uma música suave e melancólica, de guitarras de Coimbra, e achou estranha aquela combinação de música e polícia. Pensou que vinha da Praça da Alegria e realmente assim era, pois à medida que se aproximava a música aumentava de intensidade.
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  98. Não parecia nada uma praça de uma cidade em estado de sítio, afirma Pereira, pois não se viam polícias, ou antes, viu apenas um guarda-nocturno que lhe pareceu ébrio e que dormitava num banco. A praça estava enfeitada com grinaldas de papel, com lâmpadas coloridas amarelas e verdes que pendiam de fios estendidos de umas janelas para outras. Havia umas quantas mesas ao ar livre e alguns pares dançavam. Reparou então numa larga tira de pano esticada entre duas árvores da praça com uma enorme inscrição: Viva Francisco Franco. E por baixo, em letras mais pequenas: Vivam os militares portugueses em Espanha.
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  100. Afirma Pereira que só nesse momento compreendeu que se tratava de uma festa salazarista, e por isso não precisava de ser vigiada pela polícia. Mas só então reparou que muitas pessoas vestiam a camisa verde e traziam um lenço ao pescoço. Deteve-se apavorado, e num segundo pensou em várias coisas diferentes. Pensou que talvez Monteiro Rossi fosse um deles, pensou no carroceiro alentejano que tinha manchado de sangue os seus melões, pensou no que diria o padre António se o visse naquele sítio. Pensou em tudo isto e sentou-se no banco onde o guarda-nocturno dormitava, e deixou-se embalar pelos seus pensamentos. Ou antes, deixou-se embalar pela música, porque a música, apesar de tudo, lhe agradava. Estavam dois velhotes a tocar, um viola e outro guitarra, e tocavam músicas sentidas da Coimbra da sua juventude, de quando era estudante universitário e imaginava a vida como um futuro radioso. E também ele nesse tempo tocava viola nas festas de estudantes, e era um moço magro e desenvolto, de quem as raparigas se enamoravam. Tantas raparigas bonitas que andavam loucas por ele. E ele afinal tinha-se apaixonado por uma rapariguinha frágil e pálida, que escrevia poesia e tinha frequentes dores de cabeça. E depois pensou noutras coisas da sua vida, mas estas Pereira não as quer referir, pois afirma que são exclusivamente suas e nada adiantam àquela noite e àquela festa onde contra a sua vontade tinha ido parar. E então, afirma Pereira, a certa altura viu levantar-se de uma mesa um rapaz magro e desenvolto com uma camisa clara que se foi colocar entre os dois velhotes que tocavam. E sem saber porquê, sentiu um aperto no coração, talvez porque lhe pareceu reconhecer-se naquele moço, pareceu-lhe reconhecer-se tal como era nos seus tempos de Coimbra, porque de certa maneira eram parecidos, não nos traços, mas nos gestos, e um pouco no cabelo, que lhe caía sobre a testa. E o rapaz começou a cantar uma canção italiana, O sole mio, de que Pereira não compreendia as palavras, mas era uma canção cheia de força e de vida, bela e límpida, e ele só compreendia as palavras «o sole mio» e não compreendia mais nada, mas enquanto o moço cantava, tinha-se levantado de novo uma ligeira brisa atlântica e a noite estava fresca, e tudo lhe pareceu belo, a sua vida passada de que não deseja falar, Lisboa, a abóbada do céu que se via por cima das lâmpadas coloridas, e sentiu uma grande saudade, mas de quê, Pereira prefere não dizer. No entanto percebeu que o moço que cantava era a pessoa com quem falara ao telefone nessa tarde, e assim, quando ele acabou de cantar, Pereira levantou-se do banco, porque a curiosidade era mais forte do que as suas reservas, dirigiu-se à mesa e disse ao moço: É o senhor Monteiro Rossi, imagino. Monteiro Rossi fez um movimento para se levantar, embateu na mesa, a caneca de cerveja que estava diante dele caiu e sujou-lhe completamente as elegantes calças brancas. Desculpe, balbuciou Pereira. Eu é que sou um desastrado, disse o jovem, acontece-me muitas vezes isto, o senhor é o doutor Pereira do Lisboa, suponho, faça o favor de se sentar. E estendeu-lhe a mão.
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  102. Afirma Pereira que se sentou à mesa com uma sensação de constrangimento. Pensou para si mesmo que não era ali o seu lugar, que era absurdo encontrar-se com um desconhecido naquela festa nacionalista, que o padre António não aprovaria a sua conduta; e desejou estar já de volta a casa e falar com o retrato da mulher para lhe pedir desculpa. E foi tudo isto que pensava que lhe deu coragem para fazer uma pergunta directa, quanto mais não fosse para começar a conversa, e sem reflectir mais perguntou a Monteiro Rossi: Isto é uma festa da mocidade salazarista, o senhor é da Mocidade Portuguesa?
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  104. Monteiro Rossi afastou a madeixa de cabelo que lhe caía para a testa e respondeu: Eu sou licenciado em filosofia, interesso-me por filosofia e literatura, mas o que é que isto tem que ver com o Lisboa? Tem que ver, afirma ter dito Pereira, que nós fazemos um jornal livre e independente, e não queremos meter-nos em política.
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  106. Entretanto os dois velhotes recomeçaram a tocar, das suas cordas melancólicas arrancavam uma canção franquista, mas Pereira, apesar do seu constrangimento, compreendeu nessa altura que, já que se metera naquilo, tinha de continuar. E estranhamente compreendeu que se sentia à altura, que tinha a situação na mão, pois ele era o doutor Pereira do Lisboa e o moço que tinha à sua frente estava suspenso dos seus lábios. E assim disse: Li o seu artigo sobre a morte, pareceu-me muito interessante. Fiz uma tese sobre a morte, respondeu Monteiro Rossi, mas deixe que lhe diga que nem tudo é farinha do meu moinho, aquele excerto que a revista publicou foi copiado, confesso-lhe, parte de Feuerbach e parte de um espiritualista francês, e nem o meu professor se apercebeu, sabe, os professores são mais ignorantes do que se pensa. Pereira afirma que reflectiu duas vezes antes de fazer a pergunta em que tinha pensado toda a tarde, mas que finalmente se decidiu, mas antes pediu uma bebida ao jovem criado de camisa verde que os atendia. Desculpe, disse a Monteiro Rossi, mas não bebo álcool, só bebo limonada, tomo uma limonada. E enquanto bebericava a sua limonada perguntou em voz baixa, como se alguém pudesse ouvir e censurá-lo: Mas o senhor, desculpe, bom, queria fazer-lhe uma pergunta, o senhor interessa-se pela morte?
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  108. Monteiro Rossi sorriu abertamente, e isso deixou-o embaraçado, afirma Pereira. Antes pelo contrário, doutor Pereira, exclamou Monteiro Rossi em voz alta, a mim interessa-me é a vida. E depois continuou em voz mais baixa: Oiça, doutor Pereira, farto de morte estou eu, há dois anos morreu a minha mãe, que era portuguesa e era professora, morreu de um dia para o outro, com um aneurisma cerebral, uma palavra complicada para dizer que rebentou uma veia, enfim, um ataque, o ano passado morreu o meu pai, que era italiano e trabalhava como engenheiro naval nos estaleiros do porto de Lisboa, deixou-me alguma coisa, mas essa alguma coisa já se acabou, tenho ainda uma avó que vive em Itália, mas não a vejo desde os meus doze anos e não me apetece ir para Itália, tenho a impressão de que a situação lá ainda é pior do que a nossa, estou farto de morte, doutor Pereira, desculpe-me estar a ser franco consigo, mas já agora porquê essa pergunta?
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  110. Pereira bebeu um gole de limonada, limpou a boca com as costas da mão e disse: Simplesmente porque num jornal tem de se fazer os elogios fúnebres dos escritores ou um necrológio sempre que morre um escritor importante, e um necrológio não se pode fazer de um momento para o outro, tem de estar já preparado, e ando à procura de alguém que escreva necrológios antecipados para os grandes escritores da nossa época, imagine se amanhã morresse Mauriac, como é que eu me safava?
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  112. Pereira afirma que Monteiro Rossi pediu outra cerveja. Desde que chegara, o jovem já tinha bebido pelo menos três e nesse momento, na sua opinião, devia estar já um pouco bebido ou pelo menos um pouco toldado. Monteiro Rossi afastou o cabelo que lhe caía para a testa e disse: Meu caro doutor Pereira, eu falo bem línguas, e conheço os escritores do nosso tempo; eu gosto é da vida, mas se o senhor quer que fale da morte e me paga, tal como hoje me pagaram para cantar uma canção napolitana, eu posso fazê-lo, e para depois de amanhã escrevo-lhe um elogio fúnebre de García Lorca, o que acha de García Lorca?, no fundo inventou a Vanguarda espanhola, como o nosso Pessoa inventou o Modernismo, e depois é um artista completo, ocupou-se de poesia, de música e de pintura.
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  114. Pereira afirma ter dito que García Lorca não lhe parecia a personagem ideal, mas que se podia experimentar, desde que se usasse de discrição e cautela, falando exclusivamente da sua figura de artista e sem tocar outros aspectos que podiam ser delicados, dada a situação. Então, com a maior naturalidade, Monteiro Rossi disse-lhe: Oiça, desculpe-me falar nisto, eu faço o elogio fúnebre de García Lorca, mas o senhor não me poderia adiantar qualquer coisa?, preciso de comprar umas calças novas, estas estão todas sujas, e amanhã tenho de sair com uma rapariga que vem daqui a pouco ter comigo e que conheci na universidade, é uma colega minha e gosto muito dela, queria levá-la ao cinema.
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  126. A rapariga que chegou, afirma Pereira, trazia um chapéu de palha. Era muito bonita, de pele clara, olhos verdes e braços bem torneados. Trazia um vestido de alças que se cruzavam nas costas e faziam realçar os seus ombros redondos e bem desenhados.
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  128. Esta é a Marta, disse Monteiro Rossi, Marta apresento-te o doutor Pereira do Lisboa, acaba de me propor um emprego, agora sou jornalista, como vês arranjei trabalho. E ela disse: Muito prazer, Marta. E depois, voltando-se para Monteiro Rossi, disse-lhe: Não sei porque vim parar a um sítio destes, mas já que aqui estou porque não me convidas para dançar, meu tonto, que me está a apetecer com esta música e com esta noite magnífica?
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  130. Pereira ficou só à mesa, afirma, enquanto os dois jovens dançavam. Pediu outra limonada e bebeu-a em goles pequenos, olhando-os enquanto dançavam lentamente com a cara encostada. Afirma Pereira que nesse momento pensou de novo na sua vida passada, nos filhos que não tivera, mas sobre este assunto não quer fazer outras declarações. Quando acabaram de dançar os jovens voltaram a sentar-se à mesa e Marta, como por acaso, disse: Comprei hoje o Lisboa, é pena não falar do alentejano que a guarda matou, fala de um iate americano, não é uma notícia interessante, parece-me. E Pereira, que sentiu um injustificado sentimento de culpa, respondeu: O director está de férias, está nas termas, eu apenas trato da página cultural, porque, não sei se sabe, o Lisboa a partir da próxima semana tem uma página cultural, dirigida por mim.
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  132. Marta tirou o chapéu e pô-lo em cima da mesa. Soltou-se uma cascata de cabelo castanho com reflexos arruivados, afirma Pereira, parecia uns anos mais velha do que o seu companheiro, teria uns vinte e seis ou vinte e sete anos, e então ele perguntou-lhe: E você o que faz na vida? Ocupo-me da correspondência comercial de uma firma de import-export, respondeu Marta, trabalho só de manhã, assim à tarde posso ler, passear e ver o Monteiro Rossi de vez em quando. Pereira afirma que achou estranho que ela tratasse o jovem Monteiro Rossi pelo apelido, como se fossem só colegas, mas não disse nada e mudou de conversa e disse, para não estar calado: Pensei que fosse da Mocidade Portuguesa. E o senhor?, replicou Marta. Oh, exclamou Pereira, a minha mocidade já passou há um bom bocado, quanto à política, à parte não me interessar grande coisa, não me agradam as pessoas fanáticas, tenho a impressão de que o mundo está cheio de fanáticos. É preciso distinguir entre fanatismo e fé, respondeu Marta, porque se pode ter ideais, por exemplo que os homens são livres e iguais, e até irmãos, desculpe, no fundo estou a recitar a Revolução Francesa, o senhor acredita na Revolução Francesa? Teoricamente sim, respondeu Pereira; mas arrependeu-se daquele teoricamente, porque gostaria de ter dito: praticamente sim; mas no fundo dissera aquilo que pensava. E nessa altura os dois velhotes da viola e da guitarra desataram a tocar uma valsa em Fá, e Marta disse: Doutor Pereira, gostaria de dançar esta valsa consigo. Pereira levantou-se, afirma, deu-lhe o braço e conduziu-a até à pista de dança. E dançou aquela valsa quase com arrebatamento, como se a sua pança e toda a sua carne tivessem desaparecido por encanto. E ao mesmo tempo olhava o céu acima das luzinhas coloridas da Praça da Alegria, e sentiu-se minúsculo, confundido com o Universo. Há um homem gordo e de certa idade que dança com uma rapariga nova numa pracinha qualquer do Universo, pensou, e entretanto os astros giram, o Universo está em movimento, e talvez alguém nos observe de um observatório infinito. Depois regressaram à mesa e Pereira, afirma, pensava: Porque não tive filhos? Pediu outra limonada, pensando que lhe faria bem porque nessa tarde, com aquele calor atroz, tivera problemas de intestinos. E entretanto Marta conversava como quem se sente completamente à vontade, e disse: Monteiro Rossi falou-me do seu projecto jornalístico, parece-me uma boa ideia, há uma data de escritores que já era tempo de baterem a bota, felizmente aquele insuportável Rapagnetta que mudou o nome para D’Annunzio já se foi há uns meses, mas mesmo aquele beato do Claudel, mesmo esse já era tempo, não lhe parece?, e certamente que o seu jornal, que me parece de tendência católica, de boa vontade falaria dele, e também aquele canalha do Marinetti, aquele tipo asqueroso, que depois de ter cantado a guerra e os canhões alinhou com os camisas negras de Mussolini, era bom que ele também batesse a bota. Pereira começou a suar ligeiramente, afirma, e sussurrou: Menina, fale mais baixo, não sei até que ponto se apercebe do sítio onde estamos. E então Marta pôs o chapéu e disse: Bem, estou farta deste sítio, estou a ficar nervosa, vai ver que daqui a pouco desatam a entoar marchas militares, é melhor deixá-lo com o Monteiro Rossi, de certeza que têm coisas a discutir, cá por mim vou até ao Tejo, preciso de respirar ar fresco, boa noite e até à vista.
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  134. Afirma Pereira que se sentiu mais aliviado, acabou a limonada e sentiu-se tentado a beber outra, mas estava indeciso, porque não sabia quanto tempo Monteiro Rossi contava ficar ainda. Por isso perguntou: Que acha se tomássemos outra bebida? Monteiro Rossi concordou, disse que tinha a noite toda por sua conta e que gostaria de falar de literatura, já que não tinha assim tantas ocasiões de o fazer, normalmente falava de filosofia, só conhecia pessoas que se ocupavam de filosofia. Nesse momento, Pereira lembrou-se de uma frase que o seu tio, que era um literato falhado, lhe repetia sempre, e pronunciou-a. Disse: A filosofia parece ocupar-se só da verdade, mas talvez diga só fantasias, e a literatura parece ocupar-se só de fantasias, mas talvez diga a verdade. Monteiro Rossi sorriu e disse que lhe parecia uma boa definição das duas disciplinas. Então, Pereira perguntou-lhe: E o que pensa de Bernanos? Monteiro Rossi pareceu-lhe um pouco desorientado, a princípio, e perguntou: O escritor católico? Pereira assentiu com um aceno da cabeça e Monteiro Rossi disse em voz baixa: Oiça, doutor Pereira, eu, como lhe disse hoje ao telefone, não penso lá muito na morte, e também não penso muito no catolicismo, sabe, o meu pai era engenheiro naval, era um homem prático, que acreditava no progresso e na técnica, deu-me uma educação deste tipo, era italiano, é verdade, mas talvez me tenha educado um pouco à inglesa, com uma visão pragmática da realidade; gosto de literatura, mas talvez os nossos gostos não coincidam, pelo menos no que respeita a certos escritores, mas preciso muito de trabalhar e estou disposto a fazer os necrológios antecipados de todos os escritores que o senhor quiser, ou melhor, que a direcção do seu jornal quiser. Foi então que Pereira, afirma Pereira, teve um assomo de orgulho. Achou impertinente aquele rapazote estar a dar-lhe lições de ética profissional, enfim, achou-o arrogante. E resolveu então adoptar também ele um tom arrogante e respondeu: Eu não dependo do meu director nas minhas opções literárias, a página cultural sou eu que a dirijo e sou eu que escolho os autores que me interessam, por isso vou entregar-lhe a tarefa e dou-lhe carta branca, gostaria de lhe sugerir Bernanos e Mauriac, porque gosto deles, mas não me meto nisso, a decisão é sua, faça como entender. Afirma Pereira que nesse mesmo momento se arrependeu de se expor tanto, de correr um risco perante o director e dar tanta liberdade àquele rapaz que não conhecia e que candidamente lhe confessara ter copiado a sua tese de licenciatura. Por um momento sentiu-se numa ratoeira, compreendeu que se tinha metido numa situação estúpida pelas suas próprias mãos. Mas felizmente Monteiro Rossi retomou a conversa e começou a falar de Bernanos, que aparentemente conhecia bastante bem. E então disse: Bernanos é um homem corajoso, não tem medo de falar dos subterrâneos da sua alma. E àquela palavra, alma, Pereira sentiu-se reanimar, afirma, foi como se um bálsamo o tivesse aliviado de uma doença e então perguntou um pouco estupidamente: Acredita na ressurreição da carne? Nunca pensei nisso, respondeu Monteiro Rossi, não é um problema que me interesse, pode crer que não é um problema que me interesse, poderia passar amanhã na redacção, poderia também fazer um necrológio antecipado de Bernanos, mas sinceramente gostaria mais de um elogio fúnebre de García Lorca. Está bem, disse Pereira, a redacção sou eu, estou na Rua Rodrigo da Fonseca número sessenta e seis, perto da Alexandre Herculano, a dois passos do talho judeu, se encontrar a porteira nas escadas não ligue, é uma megera, diga-lhe que tem uma entrevista com o doutor Pereira, e não lhe dê confiança, deve ser uma informadora da polícia.
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  136. Pereira afirma que não sabe porque disse aquilo, talvez simplesmente porque detestava a porteira e a polícia salazarista, o facto é que lhe apeteceu dizê-lo, mas não foi para criar uma cumplicidade fictícia com aquele rapazote que ainda nem conhecia: não foi por isso, o motivo exacto não o sabe, afirma Pereira.
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  148. Na manhã seguinte, quando Pereira se levantou, afirma, encontrou uma tortilha de queijo metida em duas fatias de pão. Eram dez horas, e a mulher da limpeza vinha às oito. Era evidente que lha tinha deixado para ele a levar para a redacção para a hora do almoço, a Piedade conhecia perfeitamente os seus gostos, e Pereira adorava tortilhas de queijo. Bebeu uma chávena de café, tomou um banho, vestiu o casaco e decidiu não pôr gravata. Mas enfiou-a no bolso. Antes de sair deteve-se diante do retrato da mulher e disse-lhe: Conheci um rapaz que se chama Monteiro Rossi e decidi empregá-lo como colaborador externo para fazer os necrológios antecipados, julgava que era muito esperto, mas parece-me pelo contrário um pouco atado, podia ter a idade do nosso filho, se tivéssemos tido um filho, parece-se um pouco comigo, tem uma madeixa de cabelo a cair para a testa, lembras-te de que eu também tinha uma madeixa caída para a testa?, era no tempo de Coimbra, bom, não sei que te diga, veremos, vai hoje ter comigo à redacção, disse que me leva um necrológio, tem uma namorada bonita que se chama Marta e que tem o cabelo arruivado, mas é um bocado espevitada de mais e fala de política, a ver vamos.
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  150. Apanhou o eléctrico até à Alexandre Herculano e depois subiu a custo até à Rodrigo da Fonseca. Quando chegou junto da entrada estava ensopado em suor, pois estava um dia tórrido. No átrio, como de costume, encontrou a porteira que lhe disse: Bom dia, doutor Pereira. Pereira saudou-a com um aceno de cabeça e subiu as escadas. Mal entrou na redacção pôs-se em mangas de camisa e ligou a ventoinha. Não sabia que fazer e era quase meio-dia. Pensou comer o pão com a tortilha, mas ainda era cedo. Então lembrou-se da rubrica de «Efemérides» e começou a escrever. «Faz agora três anos que morreu o grande poeta Fernando Pessoa. Era de cultura inglesa, mas decidira escrever em português porque dizia que a sua pátria era a língua portuguesa. Deixou-nos belíssimas poesias dispersas em revistas e um poema, “Mensagem”, que é a história de Portugal vista por um grande artista que amava a sua pátria.» Releu o que tinha escrito e achou-o detestável, a palavra é detestável, afirma Pereira. Então atirou a folha para o cesto dos papéis e escreveu: «Fernando Pessoa deixou-nos há três anos. Poucos deram por ele, quase ninguém. Viveu em Portugal como estrangeiro, talvez porque fosse estrangeiro em toda a parte. Vivia só, em pensões modestas ou em quartos alugados. Recordam-no os amigos, os admiradores, os que amam a poesia.»
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  152. Depois pegou no pão com tortilha e deu-lhe uma dentada. Nesse momento ouviu bater à porta, escondeu o pão numa gaveta, limpou a boca com uma folha de papel de máquina e disse: Entre. Era Monteiro Rossi. Bom dia, doutor Pereira, disse Monteiro Rossi, desculpe, se calhar chego adiantado, mas trouxe-lhe qualquer coisa, olhe, ontem à noite, quando cheguei a casa, tive uma inspiração, e depois pensei que talvez aqui no jornal se pudesse comer alguma coisa. Pereira explicou-lhe pacientemente que aquela sala não era o jornal, era apenas uma redacção cultural separada, e que ele, Pereira, era a redacção cultural, pensava que já lho tinha dito, era apenas uma divisão com uma secretária e uma ventoinha, porque o Lisboa era um pequeno jornal da tarde. Monteiro Rossi sentou-se e puxou de uma folha dobrada em quatro. Pereira pegou nela e leu-a. Impublicável, afirma Pereira, era um artigo absolutamente impublicável. Descrevia a morte de García Lorca, e começava assim: «Há dois anos, em circunstâncias misteriosas, deixou-nos o grande poeta espanhol Federico García Lorca. Desconfia-se dos seus adversários políticos, porque foi assassinado. O mundo inteiro continua a interrogar-se sobre as razões de uma acção tão bárbara.»
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  154. Pereira levantou a cabeça do papel e disse: Meu caro Monteiro Rossi, você é um perfeito romancista, mas o meu jornal não é o lugar indicado para escrever romances, nos jornais escrevem-se coisas que correspondam à verdade ou que se assemelhem à verdade, você não deve dizer de um escritor como morreu, em que circunstâncias e porquê, deve simplesmente dizer que morreu e depois falar da sua obra, dos romances e da poesia, deve fazer um necrológio, sim, mas no fundo deve fazer uma crítica, um retrato do homem e da obra, o que você escreveu é perfeitamente inutilizável, a morte de García Lorca é ainda misteriosa, e se as coisas não se tivessem passado assim?
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  156. Monteiro Rossi objectou que Pereira não tinha acabado de ler o artigo, mais à frente falava da obra, da figura, da estatura do homem e do artista. Pereira, pacientemente, prosseguiu a leitura. Perigoso, afirma, o artigo era perigoso. Falava da Espanha profunda, da catolicíssima Espanha que García Lorca tinha tomado como alvo das suas flechas em A Casa de Bernarda Alba, falava d’«A Barraca», o teatro ambulante que García Lorca tinha levado ao povo. E aqui havia todo um elogio do povo espanhol, que tinha fome de cultura e de teatro, que García Lorca tinha saciado. Pereira levantou a cabeça do artigo, afirma, afastou o cabelo, arregaçou as mangas da camisa e disse: Meu caro Monteiro Rossi, deixe-me ser franco consigo, o seu artigo é impublicável, absolutamente impublicável. Eu não posso publicá-lo, mas aliás nenhum jornal português poderia, nem sequer um jornal italiano, visto que a Itália é o seu país de origem. Há duas hipóteses: ou você é um inconsciente ou é um provocador, e o jornalismo que se faz hoje em Portugal não prevê nem inconscientes nem provocadores, e é tudo.
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  158. Afirma Pereira que enquanto dizia isto sentia um fio de suor a escorrer pelas costas. Porque teria começado a suar? Não sabe. Não é capaz de o afirmar com segurança. Talvez por estar tanto calor, quanto a isto não há dúvidas, e a ventoinha não ser suficiente para refrescar aquela sala acanhada. Mas também porque talvez lhe fizesse pena aquele rapaz que o olhava com um ar atordoado e decepcionado e que se pusera a roer uma unha enquanto falava. De tal modo que não teve coragem de dizer: Paciência, era uma tentativa mas não resultou, passe bem. Em vez disso ficou a olhar para Monteiro Rossi com os braços cruzados e Monteiro Rossi disse: Eu volto a escrevê-lo, volto a escrevê-lo para amanhã. Isso não, conseguiu objectar Pereira, nada de García Lorca, tenha paciência, há demasiados aspectos da vida e da morte dele que não condizem com um jornal como o Lisboa, não sei se você se apercebe, meu caro Monteiro Rossi, de que neste momento em Espanha há uma guerra civil, que as autoridades portuguesas pensam do mesmo modo que o general Francisco Franco e que García Lorca era um subversivo, é essa a palavra: subversivo.
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  160. Monteiro Rossi ergueu-se como se tivesse ficado assustado com aquela palavra, recuou até à porta, deteve-se, avançou um passo e então disse: Mas eu julgava que tinha arranjado um emprego. Pereira não respondeu e sentiu outro fio de suor a descer-lhe pelas costas. Mas então que devo fazer?, murmurou Monteiro Rossi com uma voz que parecia implorar. Pereira por sua vez levantou-se, afirma, e foi colocar-se diante da ventoinha. Ficou em silêncio durante uns minutos deixando que o ar fresco lhe secasse a camisa. Deve fazer-me um necrológio de Mauriac, respondeu, ou de Bernanos, à sua escolha, não sei se me faço entender. Mas trabalhei a noite inteira, balbuciou Monteiro Rossi, pensava que me ia pagar, no fundo não é que peça muito, era só para poder almoçar hoje. Pereira teria gostado de lhe dizer que na noite anterior já lhe adiantara o dinheiro para comprar um par de calças novas, e que evidentemente não podia passar o tempo a dar-lhe dinheiro, não era pai dele. Teria gostado de ser firme e duro. Mas disse: Se o problema é o almoço de hoje, pois bem, posso convidá-lo para almoçar, também não almocei e estou com um certo apetite, gostaria de comer um belo peixe grelhado ou um escalope panado. O que é que acha?
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  162. Porque é que Pereira disse isto? Porque estava só e aquela sala o angustiava, porque estava realmente com fome, porque pensou no retrato da mulher, ou por qualquer outra razão? É coisa a que não saberia responder, afirma Pereira.
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  174. E no entanto Pereira convidou-o para almoçar, afirma, e escolheu um restaurante do Rossio. Parecia-lhe uma escolha adequada para eles, pois no fundo eram ambos intelectuais, e aquele era o café e o restaurante dos escritores; nos anos vinte fora famoso, às suas mesas tinham-se feito as revistas de vanguarda, enfim, todos eles lá iam, e talvez ainda lá fosse algum.
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  176. Desceram em silêncio a Avenida da Liberdade e chegaram ao Rossio. Pereira escolheu uma mesa no interior, porque fora, debaixo do toldo, estava demasiado calor. Olhou em volta, mas não viu nenhum escritor, afirma. Os escritores estão todos de férias, disse para romper o silêncio, talvez estejam a veranear, uns na praia, outros no campo, ficámos só nós na cidade. Talvez estejam simplesmente em casa, respondeu Monteiro Rossi, não devem ter muita vontade de andar na rua, nos tempos que correm. Pereira sentiu uma certa melancolia, afirma, pensando naquela frase. Compreendeu que estavam sós, que não havia por perto ninguém com quem pudessem partilhar a sua angústia, no restaurante estavam duas senhoras de chapelinho e quatro homens com ar sinistro a um canto. Pereira escolheu uma mesa isolada, prendeu o guardanapo no colarinho da camisa, como sempre fazia, e mandou vir vinho branco. Está-me a apetecer tomar um aperitivo, explicou a Monteiro Rossi, habitualmente não bebo bebidas alcoólicas, mas agora preciso de um aperitivo. Monteiro Rossi mandou vir uma imperial e Pereira perguntou-lhe se não gostava de vinho branco. Prefiro a cerveja, respondeu Monteiro Rossi, é mais fresca e mais leve, e depois não percebo de vinhos. É pena, disse Pereira, se quer vir a ser um bom crítico deve refinar os seus gostos, deve cultivar-se, deve aprender a conhecer os vinhos, os pratos, o mundo. E depois acrescentou: E a literatura. E nessa altura Monteiro Rossi murmurou: Tenho uma coisa a confessar-lhe mas falta-me a coragem. Diga lá, disse Pereira, eu faço de conta que não ouvi. No fim do almoço, disse Monteiro Rossi.
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  178. Pereira encomendou uma dourada grelhada, afirma, e Monteiro Rossi um gaspacho e a seguir arroz de marisco. O arroz veio numa enorme terrina de barro e Monteiro Rossi serviu-se por três vezes, afirma Pereira, comeu-o todo, e era uma dose enorme. E depois afastou a madeixa da testa e disse: Agora apetecia-me um gelado ou mesmo só um sorvete de limão. Pereira calculou mentalmente por quanto lhe ficaria aquele almoço e chegou à conclusão de que uma boa parte do seu ordenado da semana ia para aquele restaurante onde pensara encontrar os escritores de Lisboa e onde, em vez disso, estavam duas velhotas enchapeladas e quatro criaturas sinistras a uma mesa do canto. Recomeçou a suar e tirou o guardanapo do colarinho da camisa, pediu uma água mineral gelada e um café, depois fixou Monteiro Rossi nos olhos e disse: E agora confesse lá o que queria confessar-me antes de comer. Afirma Pereira que Monteiro Rossi se pôs a olhar para o tecto, depois olhou-o e esquivou-se ao seu olhar, a seguir tossicou e corou como uma criança e respondeu: Sinto-me um pouco embaraçado, desculpe. Não há nada de que ter vergonha, disse Pereira, se não se roubou nem se desonrou pai e mãe. Monteiro Rossi limpou a boca ao guardanapo como se quisesse impedir as palavras de sair, afastou a madeixa de cabelo da testa e disse: Não sei como lhe dizer, bem sei que o senhor exige profissionalismo, que devo pensar com a cabeça, mas a verdade é que preferi obedecer a outras razões. Explique-se melhor, insistiu Pereira. Bem, balbuciou Monteiro Rossi, bem, a verdade é que, a verdade é que obedeci às razões do coração, se calhar não devia, se calhar nem sequer queria, mas foi mais forte do que eu, juro-lhe que teria sido capaz de escrever um necrológio de García Lorca com as razões da inteligência, mas foi mais forte do que eu. Limpou novamente a boca ao guardanapo e acrescentou: E depois estou apaixonado pela Marta. Mas que tem a ver uma coisa com a outra?, objectou Pereira. Não sei, respondeu Monteiro Rossi, talvez não tenha, mas isto também é uma razão do coração, não lhe parece?, de certo modo isso também é um problema. O problema é que você não deveria meter-se em problemas maiores do que você, gostaria de ter respondido Pereira. O problema é que o mundo é um problema e certamente não seremos nós a resolvê-lo, gostaria de ter dito Pereira. O problema é que você é novo, demasiado novo, poderia ser meu filho, gostaria de ter dito Pereira, mas não me agrada que você me tome por seu pai, não estou aqui para resolver as suas contradições. O problema é que entre nós deve haver relações correctas e profissionais, gostaria de ter dito Pereira, e você deve aprender a escrever, se não, se escreve com as razões do coração, vai defrontar-se com grandes complicações, posso garantir-lhe.
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  180. Mas não disse nada disso. Acendeu um charuto, limpou com o guardanapo o suor que lhe escorria da testa, desabotoou o primeiro botão da camisa e disse: As razões do coração são as mais importantes, é preciso seguir sempre as razões do coração, os dez mandamentos não dizem isto, mas digo-lho eu, mas é preciso ter os olhos abertos, apesar de tudo, coração sim, de acordo, mas também olhos bem abertos, meu caro Monteiro Rossi, e com isto acabou-se o nosso almoço, nos próximos três ou quatro dias não me telefone, deixo-lhe todo o tempo para reflectir e para fazer uma coisa bem feita, mas mesmo bem feita, ligue-me no próximo sábado para a redacção, por volta do meio-dia.
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  182. Pereira levantou-se e estendeu-lhe a mão dizendo-lhe até à vista. Porque lhe disse aquelas coisas quando o que teria querido dizer-lhe era muito diferente, quando o que teria querido era manifestar-lhe o seu desagrado, talvez despedi-lo? Pereira não saberia dizê-lo. Talvez por o restaurante estar deserto, por não ter visto nenhum escritor, por se sentir só naquela cidade e ter necessidade de um cúmplice e de um amigo. Talvez por estas razões e por outras mais que não saberia explicar. É difícil ter certezas quando se fala das razões do coração, afirma Pereira.
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  194. Na sexta-feira seguinte, quando chegou à redacção com o seu embrulho de pão com tortilha, Pereira viu, afirma, que havia um envelope com uma ponta à mostra na caixa do correio do Lisboa. Tirou-o e meteu-o no bolso. No patamar do primeiro andar encontrou a porteira que lhe disse: Bom dia, senhor doutor Pereira, há uma carta para si, é uma carta registada, trouxe-a o carteiro às nove, tive de assinar eu. Pereira resmungou um obrigado entre dentes e continuou a subir a escada. Tomei essa responsabilidade, continuou a porteira, mas não quero ter maçadas, porque não tem remetente. Pereira desceu três degraus, afirma, e olhou-a na cara. Oiça, Celeste, disse Pereira, a senhora é a porteira e até aqui tudo bem, a senhora é paga para fazer o serviço de porteira e recebe um ordenado dos inquilinos do prédio, e o meu jornal é um desses inquilinos, mas a senhora tem o defeito de meter o nariz nas coisas que não lhe dizem respeito, por isso, a próxima vez que chegar uma carta registada para mim, a senhora não tem nada que assinar, nem tem nada que ver, diga ao carteiro que passe mais tarde e que ma entregue pessoalmente. A porteira encostou à parede a vassoura com que estava a varrer o patamar e pôs as mãos nas ancas. Senhor doutor Pereira, disse, o senhor pensa que me pode falar assim por eu ser uma simples porteira, mas fique sabendo que tenho amigos bem colocados, pessoas que me podem defender da sua má educação. Imagino, ou antes, bem sei, afirma ter dito Pereira, é isso mesmo que não me agrada, e agora adeus.
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  196. Quando abriu a porta do escritório, Pereira sentia-se exausto e estava alagado em suor. Ligou a ventoinha e sentou-se à secretária. Pôs o pão com tortilha em cima de uma folha de papel de máquina e tirou a carta do bolso. No envelope estava escrito: Doutor Pereira, Lisboa, Rua Rodrigo da Fonseca, 66, Lisboa. Era uma caligrafia elegante a tinta azul. Pereira pôs a carta ao lado da tortilha e acendeu um charuto. O cardiologista tinha-o proibido de fumar, mas naquele momento apetecia-lhe um charuto, talvez o apagasse a seguir. Pensou em abrir a carta mais tarde, porque para já tinha de planear a página cultural para o dia seguinte. Pensou em rever o artigo que tinha escrito sobre Pessoa para a rubrica «Efemérides», mas depois decidiu que estava bem assim. Pôs-se então a ler o conto de Maupassant que ele próprio tinha traduzido, para ver se havia correcções a fazer. Não havia. O conto estava perfeito e Pereira regozijou-se consigo mesmo. Aquilo fê-lo sentir-se um pouco melhor, afirma. Depois tirou do bolso do casaco um retrato de Maupassant que tinha encontrado numa revista da biblioteca municipal. Era um retrato a lápis, feito por um pintor francês desconhecido. Maupassant tinha um ar desesperado, com a barba descuidada e os olhos perdidos no vazio, e Pereira pensou que era perfeito para acompanhar o conto. De resto era um conto de amor e morte, pedia um retrato que tendesse para o trágico. Era preciso fazer uma caixa no meio do artigo, com os elementos biográficos básicos sobre Maupassant. Pereira abriu o Larousse que tinha sobre a secretária e começou a copiar. Escreveu: «Guy de Maupassant, 1850-1893. Tal como o seu irmão Hervé, herdou do pai uma doença de origem venérea, que o conduziu primeiro à loucura e depois, ainda jovem, à morte. Aos vinte anos participou na guerra franco-prussiana, trabalhou no Ministério da Marinha. Escritor de talento, de tendência satírica, descreveu nas suas novelas os fracos e a cobardia de uma certa sociedade francesa. Escreveu igualmente romances de grande sucesso como Bel-Ami e o romance fantástico Le Horla. Acometido de crises de loucura, foi internado na clínica do Doutor Blanche, onde morreu pobre e abandonado.»
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  198. Depois pegou no pão com tortilha e deu-lhe três ou quatro dentadas. O resto deitou-o para o cesto dos papéis porque não tinha fome, estava calor de mais, afirma. Nessa altura abriu a carta. Era um artigo escrito à máquina, em papel de velino, e o título dizia: Faleceu Filippo Tommaso Marinetti. Pereira sentiu o coração dar-lhe um salto porque antes de olhar para a outra página já sabia que quem escrevia era Monteiro Rossi e porque compreendeu imediatamente que aquele artigo não lhe servia para nada, era um artigo inútil, o que ele teria querido era um necrológio de Bernanos ou de Mauriac, que provavelmente acreditavam na ressurreição da carne, mas o que ali tinha era um necrológio de Filippo Tommaso Marinetti, que acreditava na guerra, e Pereira pôs-se a lê-lo. Era realmente um artigo para deitar fora, mas Pereira não o deitou. Guardou-o, não sabe porquê, e é por isso que o pode apresentar como documento. Começava assim: «Com Marinetti desaparece um homem violento, porque a violência era a sua musa. Estreou-se em 1909 com a publicação de um Manifesto Futurista num jornal de Paris, manifesto esse em que celebrava os mitos da guerra e da violência. Inimigo da democracia, belicoso e belicista, exaltou depois a guerra num bizarro poema intitulado Zang Tumb Tumb, uma descrição fónica da guerra de África do colonialismo italiano. E a sua fé colonialista levou-o a aplaudir a invasão italiana da Líbia. Escreveu entre outras coisas um manifesto repugnante: A Guerra, única higiene do mundo. As fotografias mostram-nos um homem em pose arrogante, de bigodes frisados e casaca de académico cheia de medalhas. O fascismo italiano atribuiu-lhe muitas, pois Marinetti foi um seu apoiante ferrenho. Desaparece assim um personagem duvidoso, um belicista...»
  199.  
  200. Pereira interrompeu a leitura da parte passada à máquina e começou a ler a carta, pois o artigo era acompanhado por uma carta escrita à mão. Dizia: «Excelentíssimo doutor Pereira, segui as razões do coração, mas a culpa não é minha. De resto, como o senhor mesmo me disse, as razões do coração são as mais importantes. Não sei se é um necrológio publicável, e depois talvez Marinetti aguente mais vinte anos, sabe-se lá. De qualquer modo, se pudesse mandar-me alguma coisa agradecia-lhe. De momento não posso passar pela redacção, por razões que não adianta agora explicar-lhe. Se quiser mandar-me uma pequena importância ao seu critério pode metê-la num envelope e enviá-la para a Caixa Postal n.º 202, Estação Central dos Correios, Lisboa. Darei notícias por telefone. Os melhores cumprimentos e desejos de felicidades do seu Monteiro Rossi.»
  201.  
  202. Pereira meteu o necrológio e a carta numa pasta onde escreveu: Necrológios. Depois vestiu o casaco, numerou as páginas do conto de Maupassant, recolheu as folhas da mesa e saiu para levar o material à tipografia. Suava, sentia-se constrangido e esperava não encontrar a porteira nas escadas, afirma.
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  213.  
  214. Naquele sábado de manhã, ao meio-dia em ponto, afirma Pereira, o telefone tocou. Nesse dia, Pereira não tinha levado para a redacção o seu pão com tortilha, por um lado porque tentava saltar uma refeição de vez em quando como o cardiologista lhe tinha aconselhado, por outro lado porque, se não resistisse à fome, podia sempre comer uma omelete no Café Orquídea.
  215.  
  216. Bom dia, doutor Pereira, disse a voz de Monteiro Rossi. Daqui é o Monteiro Rossi. Estava à espera da sua chamada, disse Pereira, onde está? Estou fora de Lisboa, disse Monteiro Rossi. Desculpe, insistiu Pereira, fora de Lisboa mas onde? Fora de Lisboa, respondeu Monteiro Rossi. Pereira sentiu uma ligeira irritação, afirma, com aquela maneira de falar tão cautelosa e formal. Teria gostado de sentir da parte de Monteiro Rossi uma maior cordialidade e até uma maior gratidão, mas conteve a sua irritação e disse: Mandei-lhe dinheiro para a sua caixa postal. Obrigado, disse Monteiro Rossi, vou passar a buscá-lo. E não disse mais nada. Então, Pereira perguntou-lhe: Quando tenciona passar pela redacção?, talvez fosse oportuno falarmos directamente. Não sei quando me será possível ir vê-lo, replicou Monteiro Rossi, para dizer a verdade estava agora mesmo a escrever-lhe um recado para marcar um encontro num lugar qualquer, mas não na redacção, se possível. Foi então que Pereira pareceu compreender que havia qualquer coisa que não corria bem, afirma, e baixando a voz, como se além de Monteiro Rossi alguém o pudesse ouvir, perguntou: Tem algum problema? Monteiro Rossi não respondeu e Pereira pensou que ele não tivesse percebido. Tem algum problema?, repetiu. De certo modo tenho, disse a voz de Monteiro Rossi, mas não é coisa para se falar ao telefone, vou escrever-lhe um bilhete a marcar um encontro a meio da semana, realmente preciso de si, doutor Pereira, da sua ajuda, mas depois digo-lho de viva voz, e agora desculpe-me, mas estou a telefonar de um lugar incómodo e tenho de desligar, desculpe, doutor Pereira, falamos disso pessoalmente, até à vista.
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  218. O telefone fez clique e Pereira desligou por sua vez. Sentia-se inquieto, afirma. Meditou sobre o que devia fazer e tomou as suas decisões. Entretanto iria tomar uma limonada ao Café Orquídea e ficaria para comer uma omelete. Depois, à tarde, tomaria um comboio para Coimbra para ir até às termas do Buçaco. Lá, ia certamente encontrar o seu director, era inevitável, e Pereira não tinha vontade nenhuma de o ver, mas tinha uma boa desculpa para não lhe fazer companhia, pois nas termas também estava a passar férias o seu amigo Silva, que várias vezes o convidara. Silva era um seu antigo colega de curso em Coimbra, e agora ensinava literatura na universidade, era um homem culto, sensato, tranquilo e solteirão, seria agradável passar dois ou três dias com ele. E depois beberia daquela benéfica água das termas, passearia no parque e talvez fizesse umas inalações, porque a sua respiração estava cada vez pior, especialmente quando subia as escadas tinha de respirar com a boca aberta.
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  220. Deixou um bilhete na porta: «Volto a meio da semana, Pereira.» Felizmente não encontrou a porteira nas escadas e isto animou-o. Saiu para a luz deslumbrante do meio-dia e dirigiu-se ao Café Orquídea. Quando passou em frente do talho judeu viu um ajuntamento de pessoas e deteve-se. Reparou que a montra estava estilhaçada e que na fachada tinham pintado palavras que o homem do talho estava a cobrir com tinta branca. Furou o ajuntamento e aproximou-se dele, conhecia-o bem, o jovem Mayer, conhecera bem o pai dele, com quem ia muitas vezes beber uma limonada aos cafés da beira-rio. Depois o velho Mayer tinha morrido e deixara o talho ao filho David, um rapagão corpulento, com uma barriga proeminente apesar da pouca idade, e ar jovial. David, perguntou Pereira aproximando-se, o que é que se passa? É o que o senhor vê, doutor Pereira, respondeu David limpando as mãos sujas de tinta ao avental, vivemos num mundo de patifes, isto é obra de patifes. Chamou a polícia?, perguntou Pereira. Está claro que não, exclamou David, para quê? E recomeçou a tapar as palavras escritas com a tinta branca. Pereira dirigiu-se ao Café Orquídea e sentou-se na parte de dentro, em frente da ventoinha. Pediu uma limonada e despiu o casaco. Já viu o que se passa, senhor doutor Pereira?, disse o Manuel. Pereira olhou-o espantado e perguntou: O talho judeu? Qual talho judeu, respondeu Manuel afastando-se, o pior não é isso.
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  222. Pereira mandou vir uma omelete com salsa e comeu-a vagarosamente. O Lisboa só saía às cinco, mas ele não ia ter tempo de o ler porque estaria já no comboio para Coimbra. Talvez pudesse mandar vir um jornal da manhã, mas duvidava que os jornais portugueses falassem no acontecimento a que se referia o empregado. Só havia boatos, andavam de boca em boca, para se saber alguma coisa era preciso perguntar nos cafés, ouvir as conversas, era a única maneira de estar ao corrente, ou então comprar um jornal estrangeiro numa loja da Rua do Ouro, mas os jornais estrangeiros quando chegavam, chegavam com três ou quatro dias de atraso, era escusado procurar um jornal estrangeiro, o melhor era perguntar. Mas Pereira não tinha vontade de perguntar nada a ninguém, queria simplesmente ir-se embora para as termas, gozar uns dias de tranquilidade, falar com o professor Silva seu amigo e não pensar nos males do mundo. Mandou vir outra limonada, pediu a conta, saiu, dirigiu-se à estação central dos correios e mandou dois telegramas, um para o hotel das termas a reservar um quarto e outro ao seu amigo Silva. «Chego a Coimbra no comboio da noite. Stop. Se puderes vir esperar-me com o carro, agradecia. Stop. Um abraço, Pereira.»
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  224. Depois dirigiu-se a casa para fazer a mala. Pensou que podia comprar o bilhete directamente na estação, tinha mais que tempo, afirma.
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  236. Quando Pereira chegou à estação de Coimbra estava um pôr do Sol magnífico sobre a cidade, afirma. Olhou à sua volta o cais de chegada mas não viu o seu amigo Silva. Pensou que o telegrama não tivesse chegado ou que o Silva já tivesse deixado as termas. Mas, ao entrar no átrio da estação, viu Silva sentado num banco a fumar um cigarro. Sentiu-se emocionado e foi ao seu encontro. Havia já algum tempo que não o via. Silva abraçou-o e pegou-lhe na mala. Saíram e dirigiram-se ao carro. Silva tinha um Chevrolet preto de cromados cintilantes, cómodo e espaçoso.
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  238. A estrada para as termas atravessava uma enfiada de colinas cobertas de vegetação e era toda às curvas. Pereira abriu a janela porque começou a sentir-se um pouco enjoado, e o ar fresco fez-lhe bem, afirma. Durante o trajecto falaram pouco. Como vai isso?, perguntou Silva. Assim, assim, respondeu Pereira. Vives só?, perguntou Silva. Vivo só, respondeu Pereira. Na minha opinião isso faz-te mal, disse Silva, devias arranjar uma mulher que te fizesse companhia e que te alegrasse a vida, compreendo que estejas muito ligado à recordação da tua mulher, mas não podes passar o resto da tua vida a venerar memórias. Estou velho, respondeu Pereira, estou gordo de mais e sofro do coração. Não estás assim tão velho, disse Silva, tens a minha idade, e quanto ao resto podes fazer uma dieta, tirar umas férias, pensar mais na tua saúde. Ora, disse Pereira.
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  240. Pereira afirma que o hotel das termas era esplêndido, um edifício branco, um palacete imerso num grande parque. Subiu para o seu quarto e mudou de roupa. Pôs um fato claro e uma gravata preta. Silva estava à espera dele no vestíbulo bebericando um aperitivo. Pereira perguntou-lhe se tinha visto o seu director. Silva piscou-lhe o olho. Janta sempre com uma senhora loira de meia-idade, respondeu, uma cliente do hotel, parece que encontrou companhia. Antes isso, disse Pereira, assim estou dispensado de conversas formais.
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  242. Entraram no restaurante. Era uma sala do século dezanove, com frescos de grinaldas de flores no tecto. O director estava a jantar numa mesa central acompanhado por uma senhora de vestido de noite. O director ergueu a cabeça e viu-o, no seu rosto desenhou-se uma expressão de surpresa e fez-lhe sinal com a mão para se aproximar. Pereira aproximou-se enquanto Silva se dirigia a outra mesa. Boa noite, doutor Pereira, disse o director, não esperava vê-lo por aqui, abandonou a redacção? A página cultural saiu hoje, disse Pereira, talvez ainda não tenha podido vê-la porque o jornal se calhar ainda não chegou a Coimbra, há um conto de Maupassant e uma rubrica que criei, intitulada «Efemérides», de qualquer modo só fico cá uns dois dias, quarta-feira estou de novo em Lisboa para preparar a página cultural do próximo sábado. Minha senhora, desculpe, disse o director dirigindo-se à sua acompanhante, apresento-lhe o doutor Pereira, um colaborador meu. E depois acrescentou: A Senhora Dona Maria do Vale Santares. Pereira fez uma inclinação com a cabeça. Senhor director, disse, queria comunicar-lhe uma coisa, se não visse nada em contrário contratava um ajudante para me dar uma mão, só para fazer os necrológios antecipados dos grandes escritores que podem morrer de um momento para o outro. Doutor Pereira, exclamou o director, estou aqui a jantar em companhia de uma senhora gentil e sensível com quem estava a ter uma conversa de coisas amusantes e o senhor vem-me falar de pessoas em risco de morrer, parece-me pouco elegante da sua parte. Desculpe, senhor director, afirma ter dito Pereira, não queria estar com conversas profissionais, mas nas páginas culturais é preciso também prever que qualquer grande artista pode desaparecer, e se um destes artistas desaparece de repente é um problema fazer um necrológio de um dia para o outro. De resto o senhor recorda-se que, há três anos, quando morreu T. E. Lawrence, nenhum jornal português falou a tempo no caso, todos fizeram o necrológio uma semana depois, e se queremos ser um jornal moderno temos de estar actualizados. O director mastigou lentamente a garfada que tinha na boca e disse: Está bem, está bem, doutor Pereira, de resto dei-lhe carta branca para a página cultural, só quero saber se esse ajudante nos fica caro e se é pessoa de confiança. Quanto a isso, respondeu Pereira, parece-me uma pessoa que se contenta com pouco, é um jovem modesto, e depois licenciou-se com uma tese sobre a morte na Universidade de Lisboa, de morte percebe ele. O director fez um gesto categórico com a mão, bebeu um gole de vinho e disse: Oiça, doutor Pereira, não se fala mais de morte, por favor, senão ainda nos estraga o jantar, quanto à página cultural faça o que lhe parecer melhor, confio em si, foi repórter durante trinta anos, e agora boa noite e bom apetite.
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  244. Pereira dirigiu-se à sua mesa e sentou-se em frente ao amigo. Silva perguntou-lhe se queria um copo de vinho branco e ele acenou que não com a cabeça. Chamou o empregado e pediu uma limonada. O vinho não me faz bem, explicou, disse-me o cardiologista. Silva pediu uma truta com amêndoas e Pereira bife Strogonoff com um ovo a cavalo. Começaram a comer em silêncio, depois, a certa altura, Pereira perguntou a Silva o que é que ele pensava de tudo isto. Tudo isto o quê?, perguntou Silva. Tudo, disse Pereira, o que se está a passar na Europa. Oh, não te preocupes, replicou Silva, aqui não estamos na Europa, estamos em Portugal. Pereira afirma ter insistido. Sim, continuou, mas tu lês os jornais e ouves a rádio, sabes o que se está a passar na Alemanha e na Itália, são fanáticos, querem pôr o mundo a ferro e fogo. Não te preocupes, respondeu Silva, estão longe. Está bem, prosseguiu Pereira, mas a Espanha não fica longe, fica a dois passos, e tu sabes o que se passa em Espanha, é uma carnificina, e no entanto era um governo constitucional, tudo por culpa de um general traidor. A Espanha também fica longe, disse Silva, nós estamos em Portugal. Pode ser, disse Pereira, mas as coisas também não correm bem aqui, a polícia faz o que quer, mata pessoas, há buscas, censura, isto é um Estado autoritário, as pessoas não contam para nada, a opinião pública não conta para nada. Silva olhou-o e pousou o garfo. Ouve lá, Pereira, disse Silva, tu ainda acreditas na opinião pública?, pois olha, a opinião pública é um truque inventado pelos anglo-saxões, os ingleses e americanos, eles é que nos vieram com essa merda, desculpa a palavra, dessa ideia de opinião pública, nós nunca tivemos o sistema político deles, não temos a mesma tradição, não sabemos o que são trade unions, somos gente do Sul, Pereira, e obedecemos a quem grita mais, a quem manda. Nós não somos gente do Sul, objectou Pereira, temos sangue celta. Mas vivemos no Sul, disse Pereira, o clima não favorece as nossas ideias políticas, laissez faire, laissez passer, nós somos assim, e depois ouve, deixa-me dizer-te uma coisa, eu ensino literatura e de literatura sei alguma coisa, estou a fazer uma edição crítica dos nossos trovadores, as cantigas de amigo, não sei se te lembras da universidade, pois bem, os homens partiam para a guerra e as mulheres ficavam em casa a chorar, e os trovadores faziam recolhas desses lamentos, e o rei era quem mandava, compreendes?, o chefe era quem mandava, e nós sempre tivemos necessidade de um chefe, ainda hoje precisamos de um chefe. Mas eu sou um jornalista, replicou Pereira. E daí?, disse Silva. Daí tenho de ser livre, disse Pereira, e informar as pessoas de maneira correcta. Não estou a ver a relação, disse Silva, tu não escreves artigos de política, ocupas-te da página cultural. Pereira por sua vez pousou o garfo e apoiou os cotovelos em cima da mesa. Tu é que deves ouvir bem o que te digo, replicou, imagina que amanhã morre Marinetti, sabes quem é Marinetti? Vagamente, disse Silva. Pois bem, disse Pereira, Marinetti é um canalha, começou por cantar a guerra, fez a apologia das carnificinas, é um terrorista, aclamou a marcha sobre Roma, Marinetti é um canalha e eu tenho que o dizer. Vai para Inglaterra, disse Silva, lá podes dizer tudo o que quiseres, terás uma data de leitores. Pereira terminou a última garfada de bife. Vou para a cama, disse, a Inglaterra fica longe de mais. Não queres uma sobremesa?, perguntou Silva, está-me a apetecer uma fatia de bolo. Os doces fazem-me mal, respondeu Pereira, disse-me o cardiologista, e depois estou cansado da viagem, obrigado por me teres ido buscar à estação, boa noite e até amanhã.
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  246. Pereira levantou-se e foi-se embora sem dizer mais nada. Sentia-se muito cansado, afirma.
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  258. No dia seguinte, Pereira acordou às seis. Afirma que tomou um café simples, tendo de insistir para que lho levassem pois o serviço de quartos só começava às sete, e deu um passeio no parque. As termas também abriam às sete, e às sete em ponto Pereira estava diante do portão das termas. Não viu Silva, o director também não estava, não estava praticamente ninguém e Pereira sentiu um alívio, afirma. Em primeiro lugar, bebeu dois copos de água que sabia a ovos podres e sentiu uma ligeira náusea e os intestinos revolvidos. Teria gostado de beber uma boa limonada fresca, porque apesar da hora matutina estava um certo calor, mas pensou que não devia misturar água termal com limonada. Dirigiu-se então às instalações termais onde o mandaram despir e pôr um roupão branco. Deseja banhos de lama ou inalações?, perguntou-lhe a empregada. Uma coisa e outra, respondeu Pereira. Mandaram-no entrar para um quarto onde havia uma banheira de mármore cheia de um líquido castanho. Pereira tirou o roupão e entrou na banheira. A lama era tépida e dava-lhe uma sensação de bem-estar. A certa altura entrou um empregado e perguntou-lhe onde o devia massajar. Pereira respondeu que não queria massagens, queria só o banho e que o deixassem tranquilo. Saiu da banheira, tomou um duche frio, enfiou de novo o roupão e passou à sala vizinha, onde havia os jactos de vapor para as inalações. Diante de cada jacto de vapor havia pessoas sentadas, com os cotovelos apoiados sobre o mármore, respirando as emanações de ar quente. Pereira encontrou um lugar livre e instalou-se. Respirou fundo durante alguns minutos e mergulhou nos seus pensamentos. Veio-lhe à ideia Monteiro Rossi e, sabe-se lá porquê, também o retrato da mulher. Há quase dois dias que não falava com o retrato da mulher, e Pereira arrependeu-se de o não ter trazido consigo, afirma. Depois levantou-se, entrou nos vestiários, vestiu-se, fez o nó da gravata preta, saiu do estabelecimento termal e voltou para o hotel. Na sala do restaurante viu o seu amigo Silva que tomava um farto pequeno-almoço com brioches e café com leite. O director felizmente não estava. Pereira aproximou-se de Silva, saudou-o, disse-lhe que tinha ido às termas e acrescentou: Há um comboio para Lisboa por volta do meio-dia, agradecia-te que me acompanhasses à estação, se não puderes apanho o táxi do hotel. Mas o quê, já te vais embora?, perguntou Silva, e eu que contava passar dois ou três dias contigo. Desculpa, mentiu Pereira, mas tenho de estar em Lisboa hoje à noite, amanhã tenho de escrever um artigo importante, e depois sabes, estou arrependido de ter deixado a redacção à porteira do prédio, é melhor ir. Como queiras, respondeu Silva, eu acompanho-te.
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  260. Durante o trajecto não trocaram palavra. Afirma Pereira que Silva parecia estar aborrecido com ele, mas não fez nada para compor a situação. Paciência, pensou, paciência. Chegaram à estação por volta das onze e um quarto e o comboio estava já na linha. Pereira subiu para a carruagem e da janela disse adeus com a mão. Silva despediu-se com um grande aceno do braço e foi-se embora. Pereira instalou-se num compartimento onde estava uma senhora a ler um livro.
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  262. Era uma senhora bonita, loira, elegante, com uma perna postiça. Pereira sentou-se do lado que dava para o corredor, visto que ela estava junto à janela, para a não incomodar, e reparou que estava a ler um livro de Thomas Mann em alemão. Isto despertou a sua curiosidade, mas de momento Pereira não disse nada, disse apenas: Bom dia, minha senhora. O comboio pôs-se em movimento às onze e trinta, e poucos minutos depois passou o empregado que fazia as reservas para o vagão-restaurante. Pereira fez uma reserva, afirma, porque sentia o estômago em sobressalto e precisava de comer qualquer coisa. O trajecto não era longo, é certo, mas ia chegar tarde a Lisboa e não lhe apetecia andar à procura de um restaurante, com aquele calor.
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  264. A senhora da perna postiça também fez uma reserva para o vagão-restaurante. Pereira notou que falava um português correcto, com um leve sotaque estrangeiro. Isto aumentou a sua curiosidade, afirma, e deu-lhe coragem para fazer o seu convite. A senhora desculpe, disse, não queria parecer inconveniente, mas visto que somos companheiros de viagem e que ambos fizemos uma reserva para o restaurante gostaria de lhe propor comermos à mesma mesa, podíamos conversar um pouco e talvez sentirmo-nos menos sós, é triste comer sozinho, especialmente no comboio, permita que me apresente, doutor Pereira, director da página cultural do Lisboa, um jornal da tarde da capital. A senhora da perna postiça fez um grande sorriso e estendeu-lhe a mão. Muito prazer, disse, chamo-me Ingeborg Delgado, sou alemã, mas de origem portuguesa, voltei a Portugal para reencontrar as minhas raízes.
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  266. O empregado passou agitando a sineta a chamar para o almoço. Pereira levantou-se e cedeu a passagem à senhora Delgado. Não teve coragem de lhe oferecer o braço, afirma, por pensar que esse gesto podia melindrar uma senhora que tinha uma perna postiça. Mas a senhora Delgado caminhava com grande agilidade apesar da sua perna artificial e precedeu-o no corredor. O vagão-restaurante ficava perto do compartimento deles, e assim não tiveram de andar muito. Sentaram-se a uma mesa do lado esquerdo da carruagem. Pereira enfiou o guardanapo no colarinho da camisa e sentiu que devia pedir desculpa do seu comportamento. Desculpe, disse, mas quando como sujo sempre a camisa, a minha mulher-a-dias diz que sou pior que uma criança, espero não parecer um provinciano. Fora da janela deslizava a suave paisagem do centro de Portugal: colinas verdes de pinheiros e aldeias brancas. De vez em quando algumas vinhas e um camponês, como uma mancha escura, pontuando a paisagem. Gosta de Portugal?, perguntou Pereira. Gosto, respondeu a senhora Delgado, mas não penso ficar cá muito tempo, visitei os meus parentes de Coimbra, reencontrei as minhas raízes, mas isto não é um país que me convenha, nem a mim nem ao meu povo, estou à espera de um visto da embaixada americana, dentro de pouco tempo, pelo menos assim o espero, sigo para os Estados Unidos. Pereira julgou compreender e perguntou: A senhora é judia? Sou judia, confirmou a senhora Delgado, e a Europa dos nossos dias não é o lugar indicado para as pessoas do meu povo, especialmente a Alemanha, mas também aqui não há muita simpatia, vejo-o pelos jornais, talvez o jornal onde o senhor trabalha seja uma excepção, mesmo sendo tão católico, demasiado católico para quem não é católico. Este país é católico, afirma ter dito Pereira, e eu também sou católico, confesso-o, ainda que a meu modo, desgraçadamente tivemos a Inquisição, o que não é nada de que nos possamos orgulhar, mas eu, por exemplo, não creio na ressurreição da carne, não sei se isto significa alguma coisa para a senhora. Não faço ideia do que significa, respondeu a senhora Delgado, mas penso que não me diz respeito. Reparei que estava a ler um livro de Thomas Mann, disse Pereira, é um escritor de que gosto muito. Também ele não está satisfeito com o que se passa na Alemanha, disse a senhora Delgado, não se pode dizer que esteja satisfeito. Também eu não estou satisfeito com o que se passa em Portugal, confessou Pereira. A senhora Delgado bebeu um gole de água mineral e disse: Então faça alguma coisa. Alguma coisa como?, perguntou Pereira. Bem, disse a senhora Delgado, o senhor é um intelectual, diga o que se está a passar na Europa, exprima livremente o seu pensamento, enfim, faça alguma coisa. Afirma Pereira que teria gostado de dizer muitas coisas. Teria gostado de responder que acima dele tinha o director, que era uma personagem do regime, e que além disso havia o regime, com a sua polícia e a sua censura, e que em Portugal viviam todos amordaçados, em resumo, que ninguém podia exprimir livremente a sua opinião, e que ele passava os seus dias num mísero cubículo da Rua Rodrigo da Fonseca, na companhia de uma ventoinha asmática e vigiado por uma porteira que era provavelmente informadora da polícia. Mas Pereira não disse nada disto, disse apenas: Farei o que puder, senhora Delgado, mas não é fácil a pessoas como eu fazer alguma coisa neste país, sabe, eu não sou Thomas Mann, não passo de um obscuro director da página cultural de um modesto jornal da tarde, escrevo umas efemérides sobre escritores famosos e traduzo contos franceses do século dezanove, e mais não é possível fazer. Compreendo, replicou a senhora Delgado, mas talvez se possa fazer tudo, basta querer. Pereira olhou para fora da janela e suspirou. Estavam nos arredores de Vila Franca, via-se já a longa serpente do Tejo. Era belo, aquele pequeno Portugal beijado pelo mar e pelo sol, mas era tudo tão difícil, pensou Pereira. Senhora Delgado, disse, parece que estamos a chegar a Lisboa, estamos em Vila Franca, é uma cidade de trabalhadores honrados, de operários, também nós neste pequeno país temos a nossa oposição, é uma oposição silenciosa, talvez por não termos um Thomas Mann, mas é o que se pode fazer, e agora talvez seja melhor voltarmos para os nossos lugares para preparar as bagagens, estou muito contente por a ter conhecido e por ter passado este bocado com a senhora, permita-me que lhe ofereça o meu braço, mas não interprete este gesto como de ajuda, é apenas um gesto de cavalheirismo, porque, sabe, em Portugal somos muito cavalheiros.
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  268. Pereira levantou-se e ofereceu o braço à senhora Delgado. Ela aceitou com um ligeiro sorriso e levantou-se com uma certa dificuldade devido ao estreito espaço deixado pela mesa. Pereira pagou a conta e deixou umas moedas de gorjeta. Saiu do vagão-restaurante dando o braço à senhora Delgado, e sentia-se orgulhoso e perturbado ao mesmo tempo, mas não sabia porquê, afirma Pereira.
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  280. Afirma Pereira que na terça-feira seguinte, quando chegou à redacção, encontrou a porteira que lhe entregou uma carta registada. Celeste entregou-lha com ar irónico e disse-lhe: Dei o seu recado ao carteiro, mas ele não pode passar duas vezes porque tem de fazer todo o bairro, e por isso deixou-me a carta registada a mim. Pereira pegou na carta, agradeceu com um aceno de cabeça e verificou se havia remetente. Felizmente não havia nenhum remetente, portanto Celeste tinha ficado a fazer cruzes na boca. Mas reconheceu imediatamente a tinta azul de Monteiro Rossi e a sua caligrafia esvoaçante. Entrou na redacção e ligou a ventoinha. Depois abriu a carta. Dizia: «Excelentíssimo doutor Pereira, infelizmente estou a atravessar um período difícil. Precisava de falar com o senhor, é urgente, mas preferia não passar na redacção. Espero-o na terça-feira ao fim da tarde, às oito e trinta, no Café Orquídea, gostaria de jantar com o senhor e de lhe contar os meus problemas. Na expectativa, seu Monteiro Rossi.»
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  282. Afirma Pereira que tinha pensado escrever um pequeno artigo para a rubrica «Efemérides» dedicado a Rilke, que tinha morrido em vinte e seis, e portanto fazia doze anos que desaparecera. E depois pusera-se a traduzir um conto de Balzac. Tinha escolhido Honorine, que era um conto sobre o arrependimento e que seria publicado em três ou quatro episódios. Pereira não sabe porquê, mas pensava que aquele conto sobre o arrependimento seria como uma mensagem numa garrafa que alguém poderia recolher. Porque havia muito de que nos arrependermos, e um conto sobre o arrependimento vinha a propósito, e este era o único meio para transmitir uma mensagem a alguém que a quisesse ouvir. Assim, pegou no seu Larousse, desligou a ventoinha e encaminhou-se para casa.
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  284. Quando desceu do táxi em frente à Sé, estava um calor tremendo. Pereira tirou a gravata e meteu-a no bolso. Subiu a custo a rampa que levava a sua casa, abriu a porta da rua e sentou-se num degrau. Estava sem fôlego. Procurou no bolso uma pastilha para o coração que o cardiologista lhe tinha receitado e engoliu-a a seco. Limpou o suor, ficou a descansar no fresco da entrada escura e depois entrou em casa. A porteira não lhe deixara nada preparado, tinha partido para Setúbal, para casa da família, e só voltava em Setembro, como fazia todos os anos. Isto no fundo desanimou-o. Não lhe agradava ficar só, completamente só, sem ninguém que se ocupasse dele. Passou diante do retrato da mulher e disse-lhe: Volto daqui a dez minutos. Entrou no quarto, despiu-se e preparou-se para tomar um banho. O cardiologista recomendara-lhe que não tomasse banhos demasiado frios, mas estava a precisar de um banho frio, deixou correr a água fria até encher a banheira e meteu-se nela. Imerso na água, acariciou longamente o ventre. Pereira, disse de si para si, a tua vida já foi diferente. Enxugou-se e vestiu o pijama. Foi até à entrada, deteve-se diante do retrato da mulher e disse-lhe: Hoje à noite vou ter com o Monteiro Rossi, não sei porque não o despeço ou não o mando àquela parte, tem problemas e quer descarregá-los para cima de mim, isso já eu percebi, tu que dizes, que devo fazer? O retrato da mulher sorriu-lhe com um sorriso distante. Bem, disse Pereira, agora vou dormir uma sesta, depois logo vejo o que quer o rapaz. E foi-se deitar.
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  286. Nessa tarde, afirma Pereira, teve um sonho. Um sonho lindíssimo, com a sua juventude. Mas prefere não o revelar, porque os sonhos não se devem revelar, afirma. Reconhece apenas que era feliz e que era Inverno e estava numa praia a norte de Coimbra, na Granja, talvez, com ele estava uma pessoa cuja identidade prefere não revelar. A verdade é que acordou de bom humor, vestiu uma camisa de manga curta, não pôs gravata, pegou num casaco leve de algodão mas não o vestiu, levou-o no braço. A noite estava quente, mas felizmente corria uma brisa ligeira. Por instantes pensou em ir a pé até ao Café Orquídea, mas depois pareceu-lhe uma loucura. Desceu porém até ao Terreiro do Paço e o passeio fez-lhe bem. Aí apanhou um eléctrico até à Alexandre Herculano. O Café Orquídea estava praticamente deserto, Monteiro Rossi não estava, mas na verdade ele é que tinha chegado adiantado. Pereira sentou-se a uma mesa lá dentro, perto da ventoinha, e pediu uma limonada. Quando o empregado se aproximou, perguntou-lhe: Que novidades há, Manuel? Se o senhor que está nos jornais não sabe, doutor Pereira..., respondeu o empregado. Estive nas termas, respondeu Pereira, e não li os jornais, aliás pelos jornais nunca se sabe nada, o melhor é perguntar as notícias que correm por aí, por isso é que lhe pergunto, Manuel. Coisas do arco-da-velha, doutor Pereira, respondeu o empregado, do arco-da-velha. E foi-se embora.
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  288. Nesse momento entrou Monteiro Rossi. Caminhava com o seu ar embaraçado, olhando em torno com circunspecção. Pereira reparou que trazia uma bela camisa azul de colarinho branco. Comprou-a com o meu dinheiro, pensou por instantes Pereira, mas não teve tempo de reflectir no caso porque Monteiro Rossi avistou-o e avançou na sua direcção. Apertaram as mãos. Sente-se, disse Pereira. Monteiro Rossi sentou-se e ficou calado. Bem, disse Pereira, o que quer comer?, aqui só servem omeletes com salsa e saladas de peixe. Comia duas omeletes com salsa, disse Monteiro Rossi, desculpe se lhe pareço descarado, mas hoje não almocei. Pereira mandou vir três omeletes e depois disse: E agora conte-me lá os seus problemas, já que foi essa a palavra que usou na sua carta. Monteiro Rossi afastou a madeixa da testa e aquele gesto causou a Pereira um efeito estranho, afirma. Bem, disse Monteiro Rossi baixando a voz, a verdade é que estou metido num sarilho, doutor Pereira. O empregado chegou com as omeletes e Monteiro Rossi mudou de conversa. Disse: Isto é que está um calor. Enquanto o empregado os servia falaram do tempo e Pereira contou que estivera nas termas do Buçaco e ali o clima era realmente magnífico, na serra, com todo aquele verde do parque. Depois o empregado deixou-os tranquilos e Pereira perguntou: E então? E então, não sei por onde começar, disse Monteiro Rossi, estou metido em sarilhos, essa é que é essa. Pereira cortou um pedaço da sua omelete e perguntou: É por causa da Marta?
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  290. Porque terá Pereira feito esta pergunta? Porque pensava realmente que Marta pudesse causar problemas àquele rapaz, porque a tinha achado demasiado desenvolta e espevitada, porque gostaria que tudo fosse diferente, que estivessem em França ou em Inglaterra onde as raparigas desenvoltas e espevitadas podiam dizer tudo o que queriam? Isso, Pereira não o sabe explicar, mas o facto é que perguntou: É por causa da Marta? Em parte é, respondeu Monteiro Rossi em voz baixa, mas não posso atirar as culpas para cima dela, ela tem as suas ideias e são ideias muito sólidas. E daí?, perguntou Pereira. E daí é que chegou o meu primo, respondeu Monteiro Rossi. Não me parece muito grave, respondeu Pereira, toda a gente tem primos. Pois, disse Monteiro Rossi quase num sussurro, mas o meu primo vem de Espanha, está numa brigada, a combater no lado republicano, veio a Portugal recrutar voluntários portugueses que queiram fazer parte de uma brigada internacional, em minha casa não o posso ter, ele tem um passaporte argentino e vê-se a milhas de distância que é falso, não sei onde o hei-de meter, não sei onde o hei-de esconder. Pereira começou a sentir um fio de suor correr-lhe ao longo da espinha, mas manteve-se calmo. E daí?, perguntou, continuando a comer a omelete. E daí precisava que o senhor, disse Monteiro Rossi, precisava que o senhor me ajudasse, doutor Pereira, que lhe arranjasse um alojamento discreto, mesmo que seja clandestino, desde que o arranje, eu não o posso ter em casa porque a polícia pode andar com suspeitas por causa da Marta, posso até andar vigiado. E daí?, perguntou de novo Pereira. E daí do senhor ninguém suspeita, disse Monteiro Rossi, ele fica cá uns dias, o tempo de entrar em contacto com a resistência, e depois volta para Espanha, tem de me ajudar, doutor Pereira, tem de lhe arranjar um alojamento.
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  292. Pereira acabou de comer a sua omelete, fez um sinal ao empregado e mandou vir outra limonada. Estou espantado com o seu descaramento, disse, não sei se se apercebe do que me está a pedir, e para mais o que é que eu poderia arranjar? Um quarto alugado, disse Monteiro Rossi, uma pensão, um sítio onde não liguem muito aos papéis, o senhor deve conhecer sítios desse género, com todos os seus conhecimentos.
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  294. Todos os seus conhecimentos, pensou Pereira. Mas se ele, de toda a gente que conhecia, não conhecia ninguém. Conhecia o padre António a quem não podia impingir um problema daqueles, conhecia o seu amigo Silva, que estava em Coimbra e com quem não podia contar, além da porteira da Rua Rodrigo da Fonseca que se calhar era uma informadora da polícia. Mas de repente veio-lhe à ideia uma pensãozeca da Graça, acima do Castelo, onde iam os pares clandestinos e onde não pediam os documentos a ninguém. Pereira conhecia-a porque uma vez o seu amigo Silva lhe pedira que lhe reservasse um quarto num sítio discreto para passar uma noite com uma senhora de Lisboa que não se podia arriscar a um escândalo. E então disse: Amanhã trato disso, mas não me mande o seu primo nem me apareça com ele na redacção, por causa da porteira, leve-o amanhã às onze a minha casa, já lhe dou a morada, mas nada de telefonemas, por favor, e veja se também pode ir, talvez seja melhor.
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  296. Porque terá Pereira dito aquilo? Por ter pena de Monteiro Rossi? Por ter estado nas termas e ter ficado tão desiludido com o seu amigo Silva? Por ter conhecido no comboio a senhora Delgado que lhe tinha dito que apesar de tudo era preciso fazer alguma coisa? Pereira não sabe dizer, afirma. Sabe apenas que compreendeu que se metera numa alhada e que tinha de falar disso com alguém. Mas esse alguém era difícil encontrá-lo e então pensou que falaria com o retrato da mulher quando chegasse a casa. E de facto assim fez, afirma.
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  308. Às onze em ponto, afirma Pereira, tocou a campainha. Pereira já tinha tomado o pequeno-almoço, levantara-se cedo e pusera um jarro de limonada com cubos de gelo em cima da mesa da sala. Primeiro entrou Monteiro Rossi com ar furtivo e sussurrou bom-dia. Pereira fechou a porta um pouco perplexo e perguntou-lhe se o primo dele não vinha. Vem, vem, respondeu Monteiro Rossi, mas não quer entrar assim de repente, mandou-me à frente para ver. Para ver o quê?, perguntou Pereira com irritação, andam a brincar aos polícias e ladrões, pensavam que estava aqui a polícia à vossa espera ou quê? Oh, não é isso, doutor Pereira, desculpou-se Monteiro Rossi, é só porque o meu primo é desconfiado, sabe, está numa situação que não é fácil, está cá com uma missão delicada, tem um passaporte argentino e não sabe para que lado se virar. Já me tinha dito isso ontem, replicou Pereira, e agora chame-o lá, por favor, basta de tolices. Monteiro Rossi abriu a porta e fez um gesto a dizer para entrar. Anda, Bruno, disse em italiano, está tudo em ordem.
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  310. Entrou um homem pequeno e magro. Tinha os cabelos cortados à escovinha, um bigodito loiro e vestia um casaco azul. Doutor Pereira, disse Monteiro Rossi, apresento-lhe o meu primo Bruno Rossi, mas pelo passaporte chama-se Bruno Lugones, é melhor tratá-lo sempre por Lugones. Em que língua devemos falar?, perguntou Pereira, o seu primo sabe português? Não, disse Monteiro Rossi, mas sabe espanhol.
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  312. Pereira mandou-os sentar na sala e serviu a limonada. O senhor Bruno Rossi não disse nada, limitou-se a olhar à sua volta com ar desconfiado. Ao longe ouviu-se o silvo de uma ambulância e o senhor Bruno Rossi inteiriçou-se e foi à janela. Diga-lhe que esteja sossegado, disse Pereira a Monteiro Rossi, não estamos em Espanha, aqui não há guerra civil. O senhor Bruno Rossi voltou a sentar-se e disse: Perdone la molestia, pero estoy aquí por la causa republicana. Oiça senhor Lugones, disse Pereira em português, vou falar devagar para que me compreenda, a mim não me interessam nem a causa republicana nem a causa monárquica, eu dirijo a página cultural de um jornal da tarde e estas coisas não fazem parte do meu panorama, vou-lhe arranjar um alojamento tranquilo, e mais não posso fazer, e veja se tem cuidado e não me vem procurar, porque eu não quero ter nada que ver nem consigo nem com a sua causa. O senhor Bruno Rossi voltou-se para o primo e disse-lhe em italiano: Não era assim que mo tinhas descrito, estava à espera de um camarada. Pereira compreendeu e replicou: Eu não sou camarada de ninguém, vivo só e gosto de estar só, o meu único camarada sou eu próprio, não sei se me faço entender, senhor Lugones, visto que é esse o nome do seu passaporte. Sim, sim, disse quase balbuciando Monteiro Rossi, mas o facto é que, bem, precisamos da sua ajuda e da sua compreensão, porque estamos sem dinheiro. Explique-se melhor, disse Pereira. Bom, disse Monteiro Rossi, ele está sem dinheiro e se na pensão nos pedem pagamento adiantado nós não temos com quê, de momento, mas depois trato eu disso, ou antes a Marta trata disso, era só um empréstimo.
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  314. Nesse momento Pereira levantou-se, afirma. Pediu desculpa e disse: Tenham paciência, mas preciso de uns momentos de reflexão, esperem uns minutos. Deixou-os sozinhos na sala e dirigiu-se à entrada. Deteve-se junto do retrato da mulher e disse-lhe: Ouve, não é tanto aquele Lugones que me preocupa, mas a Marta, na minha opinião é ela a responsável por esta história, a Marta é a namorada do Monteiro Rossi, aquela de cabelos arruivados, creio que te falei nela, pois bem, é ela quem anda a meter o Monteiro Rossi em sarilhos, tenho a certeza disso, e ele deixa-se meter em sarilhos porque está apaixonado, tenho de lhe dizer para ter cuidado, não te parece? O retrato da mulher sorriu-lhe com um sorriso distante e Pereira achou que tinha percebido. Regressou à sala e perguntou a Monteiro Rossi: Porquê a Marta, a que propósito vem a Marta? Oh, bem, balbuciou Monteiro Rossi corando ligeiramente, porque a Marta tem muitos recursos, só por isso. Oiça bem o que lhe digo, caro Monteiro Rossi, disse Pereira, parece-me que você se está a meter em sarilhos por causa de uma bela rapariga, mas olhe, eu não sou seu pai nem queria ter um ar paternal consigo que se calhar você podia interpretar como paternalismo, só lhe queria dizer uma coisa: tenha cuidado. Está bem, disse Monteiro Rossi, eu tenho cuidado, mas e quanto ao empréstimo? Isso resolve-se, respondeu Pereira, mas porque hei-se ser eu a adiantar o dinheiro? Olhe, doutor Pereira, disse Monteiro Rossi tirando do bolso uma folha de papel que lhe estendeu, escrevi um artigo e vou escrever mais dois na semana que vem, tomei a liberdade de fazer uma efeméride, é sobre D’Annunzio, fi-la com o coração mas também com a inteligência, como o senhor me aconselhou, e prometo-lhe que os próximos serão sobre dois escritores católicos como o senhor queria.
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  316. Afirma Pereira que sentiu novamente uma ligeira irritação. Oiça, respondeu, não é que eu queira escritores católicos a todo o custo, mas você que escreveu uma tese sobre a morte podia pensar um pouco mais nos escritores que se interessaram por esse problema, que se interessaram pela alma, em suma, e em vez disso traz-me uma efeméride sobre um vitalista como D’Annunzio, que talvez tenha sido um bom poeta, mas que desperdiçou a vida em frivolidades, não sei se me faço entender, e as pessoas frívolas não interessam ao meu jornal, ou pelo menos a mim não me interessam. Perfeito, disse Monteiro Rossi, cá me fica o recado. Bom, acrescentou Pereira, agora vamos lá à pensão, encontrei uma pensãozeca na Graça onde não fazem grandes histórias, eu pago o adiantamento se o pedirem, mas conto com mais dois necrológios pelo menos, caro Monteiro Rossi, isto é o seu pagamento da quinzena. Oiça, doutor Pereira, disse Monteiro Rossi, a efeméride sobre D’Annunzio fi-la porque este último sábado comprei o Lisboa e vi que havia uma rubrica chamada «Efemérides», a rubrica não está assinada mas penso que é o senhor quem a faz, mas se quisesse uma ajuda eu dava-lha de boa vontade, gostava de fazer uma rubrica desse género, há uma série de escritores de quem podia falar e depois, como é uma rubrica anónima, não há o risco de o meter em encrencas. Porquê, você está metido em encrencas?, afirma ter dito Pereira. Bom, em algumas, como vê, respondeu Monteiro Rossi, mas se quisesse um nome diferente já pensei num pseudónimo, que acha de Roxy? Parece-me uma boa escolha, disse Pereira. Pegou no jarro da limonada e pô-lo no frigorífico, depois vestiu o casaco e disse: Então, vamos.
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  318. Saíram. Na praceta em frente ao prédio estava um soldado a dormir estendido num banco. Pereira confessou que não ia conseguir fazer a subida a pé, por isso ficaram à espera de um táxi. O sol estava implacável, afirma Pereira, e a brisa tinha cessado. Passou um táxi vagaroso e Pereira fez-lhe sinal para parar. Durante o trajecto não falaram. Saíram em frente de uma cruz de granito que vigiava uma capela minúscula. Pereira entrou na pensão mas aconselhou Monteiro Rossi a esperar lá fora, levou consigo o senhor Bruno Rossi e apresentou-o ao empregado. Era um velhote de óculos espessos que dormitava atrás do balcão. Trago aqui um amigo argentino, disse Pereira, o senhor Bruno Lugones, aqui tem o passaporte dele, mas queria manter o anonimato, veio cá por razões sentimentais. O velhote tirou os óculos e folheou o registo. Telefonaram hoje de manhã a fazer uma reserva, disse, foi o senhor? Fui eu, fui, confirmou Pereira. Temos um quarto de casal sem casa de banho, disse o velhote, mas não sei se está bem para o senhor. Está muito bem, disse Pereira. Pagamento adiantado, disse o velhote, sabe como é. Pereira abriu a carteira e tirou duas notas. Deixo-lhe três dias adiantados, disse, e agora tenho de ir. Despediu-se do senhor Bruno Rossi mas preferiu não lhe apertar a mão, parecia-lhe um gesto de excessiva intimidade. Boa estada, disse-lhe.
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  320. Saiu e deteve-se junto de Monteiro Rossi que estava à espera sentado na borda do chafariz. Passe amanhã de manhã na redacção, disse-lhe, vou ler hoje o seu artigo, temos umas coisas para falar. Mas eu, para dizer a verdade..., disse Monteiro Rossi. Para dizer a verdade o quê?, perguntou Pereira. Desculpe, disse Monteiro Rossi, mas acho que nesta altura era melhor que nos víssemos num lugar tranquilo, talvez em sua casa. Está bem, disse Pereira, mas não em minha casa, em minha casa basta, vemo-nos amanhã à uma da tarde no Café Orquídea, pode ser? Está bem, disse Monteiro Rossi, à uma no Café Orquídea. Pereira apertou-lhe a mão e disse-lhe até à vista. Pensou em voltar a pé para casa, até porque era sempre a descer. O dia estava magnífico, e por sorte tinha começado a soprar uma bela brisa atlântica. Mas não se sentia com disposição para apreciar o dia. Sentia-se inquieto e apetecia-lhe falar com alguém, talvez com o padre António, mas o padre António passava o dia à cabeceira dos seus doentes. E então pensou que podia ir conversar com o retrato da mulher. Assim, tirou o casaco e dirigiu-se lentamente para casa, afirma.
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  332. Pereira passou a noite a acabar de traduzir e de adaptar Honorine de Balzac, afirma. Foi uma tradução trabalhosa mas que, na sua opinião, ficou bastante fluente. Dormiu três horas, das seis às nove da manhã, depois levantou-se, tomou um banho refrescante, bebeu um café e dirigiu-se à redacção. A porteira, que encontrou nas escadas, mostrou-se amuada e cumprimentou-o com um aceno de cabeça. Ele murmurou um bom-dia a meia voz. Entrou no escritório, sentou-se à secretária e marcou o número do doutor Costa, o seu médico. Está, senhor doutor, disse Pereira, fala Pereira. Então como vai isso?, perguntou o doutor Costa. Ando com falta de fôlego, não consigo subir as escadas e acho que engordei uns quilos, mal dou uns passos fico com o coração aos pulos. Olhe, Pereira, disse o doutor Costa, eu dou consultas uma vez por semana na Clínica Talassoterápica da Parede, porque não fica lá uns dias? Internado, porquê?, perguntou Pereira. Porque a Clínica Talassoterápica da Parede tem uma boa assistência médica, além disso tratam o reumatismo e as doenças do coração por métodos naturais, fazem banhos de algas, massagens, curas de emagrecimento, e depois são médicos muito bons que estudaram em França, a si fazia-lhe bem algum repouso e alguma assistência, Pereira, e a clínica da Parede era o que estava a calhar para si, se quiser posso reservar-lhe um quarto já para amanhã, um bom quartinho limpo com vista para o mar, vida sã, banhos de algas, talassoterapia, e irei vê-lo pelo menos uma vez, estão lá internados também alguns tuberculosos, mas os tuberculosos têm um pavilhão à parte, não há perigo de contágio. Oh, quanto a isso não tenho medo da tuberculose, afirma Pereira ter dito, passei a minha vida com uma tuberculosa e a doença nunca me atingiu, mas o problema não é esse, o problema é que me confiaram a página cultural de sábado, não posso abandonar a redacção. Oiça, Pereira, disse o doutor Costa, oiça bem o que lhe digo, a Parede fica a meio caminho de Lisboa e Cascais, fica a uns dez quilómetros daqui, se quiser escrever os seus artigos na Parede e mandá-los para Lisboa, há um funcionário da clínica que os pode trazer todos os dias para Lisboa, mas a sua página sai uma vez por semana, e se você deixar prontos uns quantos artigalhaços a página fica feita para dois sábados, e depois deixe que lhe diga que a saúde é mais importante do que a cultura. De acordo, disse Pereira, mas duas semanas é de mais, bastava-me uma semana de repouso. É melhor do que nada, concluiu o doutor Costa. Pereira afirma que se resignou a passar uma semana na Clínica Talassoterápica da Parede, e autorizou o doutor Costa a reservar-lhe um quarto para o dia seguinte, mas fez questão de explicar que primeiro, por uma questão de cortesia, tinha de avisar o seu director. Desligou e marcou o número da tipografia. Disse que havia um conto de Balzac para publicar em dois ou três episódios, e que portanto a página cultural ficava feita por algumas semanas. E a rubrica das «Efemérides»?, perguntou o tipógrafo. Não há efemérides, por agora, disse Pereira, e não venham buscar o material à redacção, porque à tarde não estou, deixo-o num envelope fechado no Café Orquídea, perto do talho judeu. Depois marcou o número da central e pediu ao telefonista que lhe ligasse para as termas do Buçaco. Pediu para falar com o director do Lisboa. O director está no parque a apanhar sol, disse o empregado, não sei se o deva incomodar. Pode incomodá-lo, disse Pereira, diga-lhe que é da redacção cultural. O director veio ao telefone e disse: Está, daqui é o director. Senhor director, disse Pereira, traduzi e adaptei um conto de Balzac, o que dá para dois ou três números, telefono-lhe porque tenciono ficar internado na Clínica Talassoterápica da Parede, o meu coração não anda lá muito bem e o meu médico aconselhou-me a fazer um tratamento, se o senhor me der licença. E o jornal?, perguntou o director. Como lhe disse fica assegurado para duas ou três semanas pelo menos, afirma ter dito Pereira, e depois estou a dois passos de Lisboa, de qualquer modo deixo-lhe o número de telefone da clínica, além disso já sabe, se acontecer alguma coisa corro logo para a redacção. E o ajudante?, perguntou o director, não podia deixar o ajudante no seu lugar? Prefiro não deixar, respondeu Pereira, fez-me uns necrológios mas não sei até que ponto serão artigos utilizáveis, se morrer algum escritor importante trato eu do caso. Está bem, disse o director, faça lá a sua semana de tratamento, doutor Pereira, ao fim e ao cabo há um subdirector no jornal que se for preciso poderá tratar de qualquer problema. Pereira despediu-se e disse que mandava os seus cumprimentos à simpática senhora que tinha conhecido. Desligou e consultou o relógio. Eram quase horas de ir ter ao Café Orquídea, mas primeiro queria ler a efeméride sobre D’Annunzio que não tinha tido tempo de ler na noite anterior. Pereira pode apresentá-la como testemunho, porque a guardou. Dizia: «Exactamente há cinco meses, às oito da noite do dia l de Março de 1938, morria Gabriele D’Annunzio. À data, o nosso jornal não tinha ainda a sua página cultural, mas parece-nos ter chegado agora o momento de falar nele. Gabriele D’Annunzio, cujo verdadeiro nome, diga-se de passagem, era Rapagnetta, terá sido um grande poeta? É difícil dizê-lo, porque as suas obras estão ainda demasiado perto de nós, que somos seus contemporâneos. Convirá talvez falar antes da sua figura como homem que se confunde com a figura do artista. Acima de tudo foi um vate. Amou o luxo, a mundanidade, a grandiloquência, a acção. Foi um grande decadente, que desprezava as regras morais, um amante da morbidez e do erotismo. Do filósofo alemão Nietzsche aproveitou o mito do super-homem, mas reduziu-o a uma visão da vontade de poder, de ideais estetizantes destinados a compor o caleidoscópio colorido de uma vida inimitável. Foi intervencionista durante a Grande Guerra, inimigo convicto da paz entre os povos. Protagonizou feitos belicosos e provocatórios como o voo sobre Viena, em 1918, quando lançou panfletos italianos sobre essa cidade. Depois da guerra organizou uma ocupação da cidade de Fiume, de onde foi a seguir desalojado pelas tropas italianas. Retirando-se para Gardone, num palacete a que pôs o nome de Vittoriale degli Italiani, levou aí uma vida dissoluta e decadente, assinalada por amores fúteis e aventuras eróticas. Via com bons olhos o fascismo e as aventuras bélicas. Fernando Pessoa tinha-o cognominado de «solo de trombone», e talvez não estivesse enganado de todo. A voz que dele nos chega não é realmente o som de um delicado violino, mas a voz tonitruante de um instrumento de sopro, de uma trompa aguda e prepotente. Uma vida pouco exemplar, um poeta altissonante, um homem cheio de sombras e de compromissos. Uma figura a não imitar, é assim que o recordamos. Assinado Roxy.»
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  334. Pereira pensou: Inutilizável, absolutamente inutilizável. Pegou na pasta dos «Necrológios» e meteu a folha lá dentro. Não sabe porque o fez, podia tê-la deitado fora, mas guardou-a. Depois, para acalmar a irritação que se tinha apoderado dele, pensou em sair da redacção e ir até ao Café Orquídea.
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  336. Quando chegou ao café a primeira coisa que viu, afirma Pereira, foram os cabelos ruivos de Marta. Estava sentada a uma mesa do canto, perto da ventoinha, de costas voltadas para a porta. Trazia o mesmo vestido da noite da festa na Praça da Alegria, com as alças cruzadas nas costas. Afirma Pereira ter pensado que Marta tinha uns ombros lindíssimos, suaves, bem proporcionados, perfeitos. Aproximou-se e parou em frente dela. Oh, doutor Pereira, disse Marta com naturalidade, vim em vez do Monteiro Rossi, ele hoje não podia vir.
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  338. Pereira sentou-se à mesa e perguntou a Marta se tomava um aperitivo. Marta respondeu que aceitava com prazer um porto seco. Pereira chamou o empregado e pediu dois portos secos. Não devia beber álcool, mas de qualquer modo no dia seguinte ia para a clínica talassoterápica fazer dieta durante uma semana. E então?, perguntou Pereira depois de o empregado os ter servido. Então, respondeu Marta, creio que é um período difícil para todos, ele partiu para o Alentejo, e por agora fica por lá, é bom que fique uns dias fora de Lisboa. E o primo dele?, perguntou Pereira imprudentemente. Marta olhou-o e sorriu. Já sei que o senhor prestou uma grande ajuda ao Monteiro Rossi e ao primo, disse Marta, doutor Pereira, o senhor foi realmente formidável, deveria ser dos nossos. Pereira sentiu uma ligeira irritação, afirma, e tirou o casaco. Oiça, menina, replicou, eu não sou dos vossos nem dos deles, prefiro guiar-me pela minha cabeça, de resto não sei quem são os vossos nem quero sabê-lo, sou um jornalista e ocupo-me de cultura, acabei há pouco de traduzir um conto de Balzac, quanto às vossas histórias prefiro não estar ao corrente, não me ocupo dos casos do dia. Marta bebeu um gole de vinho do Porto e disse: Nós não fazemos os casos do dia, doutor Pereira, era isso que gostava que percebesse, nós vivemos a História. Pereira bebeu por seu turno o seu copo de porto e replicou: Olhe, menina, História é uma palavra grande de mais, também li Vico e Hegel na devida altura, não é um animal que se possa domesticar. Mas talvez não tenha lido Marx, objectou Marta. Não o li, disse Pereira, e não estou interessado, estou farto de escolas hegelianas, aliás deixe-me que lhe repita uma coisa que já lhe disse antes, eu apenas penso em mim e na cultura, é esse o meu mundo. Anarco-individualista?, perguntou Marta, era isso que gostava de saber. O que entende por isso?, perguntou Pereira. Oh, disse Marta, não me diga que não sabe o que quer dizer anarco-individualista, a Espanha está cheia deles, os anarco-individualistas dão muito que falar nos tempos que correm e até se portaram heroicamente, ainda que não fosse mau um pouco mais de disciplina, pelo menos é a minha opinião. Oiça, Marta, disse Pereira, não vim a este café para falar de política, como já lhe disse a política não me interessa porque me ocupo principalmente de cultura, tinha um encontro com Monteiro Rossi e você vem-me dizer que ele está no Alentejo, que é que ele foi fazer para o Alentejo?
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  340. Marta olhou em redor como se procurasse o empregado. Mandamos vir qualquer coisa para comer?, perguntou, tenho um encontro às três. Pereira chamou Manuel. Pediram duas omeletes com salsa, e depois Pereira repetiu: E então, o que é que o Monteiro Rossi foi fazer para o Alentejo? Acompanhar o primo, respondeu Marta, que recebeu ordens à última hora, os que querem ir combater para Espanha são sobretudo alentejanos, há uma grande tradição democrática no Alentejo, e há lá também muitos anarco-individualistas, como o senhor, doutor Pereira, trabalho não falta, enfim, o facto é que o Monteiro Rossi teve de acompanhar o primo ao Alentejo, porque é lá que se recrutam pessoas. Bem, respondeu Pereira, diga-lhes que lhes desejo um bom recrutamento. O empregado trouxe as omeletes e começaram a comer. Pereira atou o guardanapo à volta do pescoço, serviu-se de um pedaço de omelete e disse: Oiça Marta, parto amanhã para uma clínica talassoterápica perto de Cascais, tenho problemas de saúde, diga a Monteiro Rossi que o artigo dele sobre o D’Annunzio é totalmente inutilizável, de qualquer modo deixo-lhe o telefone da clínica onde vou estar durante uma semana, o melhor momento para me telefonar é à hora das refeições, mas agora diga-me onde está o Monteiro Rossi. Marta baixou a voz e disse: Hoje à noite deve estar em Portalegre, em casa de amigos, mas preferia não lhe dar a morada, de resto é uma morada precária, porque ele dorme uma noite num sítio e outra noutro, tem de andar um pouco por todo o Alentejo, provavelmente será ele a entrar em contacto com o senhor. Está bem, disse Pereira passando-lhe um bilhetinho, tem aqui o meu número de telefone na Clínica Talassoterápica da Parede. Tenho de ir, doutor Pereira, disse Marta, desculpe mas tenho um encontro e tenho de atravessar a cidade toda.
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  342. Pereira levantou-se e despediu-se. Marta levantou-se e pôs o chapéu de palha. Pereira ficou a vê-la retirar-se, fascinado com aquela bela silhueta que se recortava no sol. Sentiu-se leve e quase alegre, mas não sabe porquê. Então fez sinal a Manuel, que veio solícito e lhe perguntou se desejava um digestivo. Mas ele tinha sede, porque a tarde estava quentíssima. Reflectiu por instantes e depois disse que só queria uma limonada. E pediu-a bem gelada, com muito gelo, afirma Pereira.
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  354. No dia seguinte, Pereira levantou-se cedo, afirma. Tomou o café, preparou uma maleta, onde enfiou os Contes du lundi de Alphonse Daudet. Talvez ficasse mais uns dias, pensou, e Daudet era um autor que podia figurar perfeitamente nos contos do Lisboa.
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  356. Dirigiu-se para a entrada, deteve-se junto do retrato da mulher e disse-lhe: Vi ontem a Marta, a namorada do Monteiro Rossi, tenho a impressão de que aqueles moços estão a meter-se em grandes sarilhos, ou antes, já se meteram, de qualquer modo são coisas que não me dizem respeito, estou a precisar de uma semana de talassoterapia, foi-me receitada pelo doutor Costa, e depois em Lisboa sufoca-se e eu traduzi toda a Honorine de Balzac, parto esta manhã, vou apanhar o comboio ao Cais do Sodré, levo-te comigo, se me dás licença. Pegou no retrato e pô-lo na mala, mas de cabeça para cima, porque a mulher toda a vida tinha precisado de ar e pensou que o retrato também devia precisar de respirar bem. Depois desceu até ao Largo da Sé, esperou por um táxi e mandou seguir para a estação. Desceu na praça e pensou em tomar qualquer coisa no British Bar do Cais do Sodré. Sabia que era um lugar frequentado por artistas e contava encontrar lá algum. Entrou e sentou-se numa mesa do canto. Na mesa vizinha, realmente, estava o romancista Aquilino Ribeiro a almoçar com Bernardo Marques, o desenhador de vanguarda, que tinha ilustrado as melhores revistas do Modernismo português. Pereira deu-lhes os bons-dias e os artistas responderam com um aceno de cabeça. Seria bom almoçar à mesa deles, pensou Pereira, e contar-lhes que no dia anterior tinha recebido um artigo muito negativo sobre D’Annunzio, e saber o que pensavam eles disso. Mas os dois artistas estavam absorvidos numa conversa animada e Pereira não teve coragem de os importunar. Percebeu que Bernardo Marques queria deixar de desenhar e que o romancista queria partir para o estrangeiro. Isto causou-lhe um sentimento de desânimo, afirma Pereira, porque não esperava que um escritor como aquele abandonasse o seu país. Enquanto bebia a sua limonada e saboreava os búzios, Pereira ouviu algumas frases. Para Paris, dizia Aquilino Ribeiro, o único sítio possível é Paris. E Bernardo Marques concordava dizendo: Propuseram-me desenhar para várias revistas, mas já não tenho vontade de desenhar, isto é um país horroroso, é melhor não colaborar com ninguém. Pereira acabou os búzios e a limonada, levantou-se e deteve-se junto da mesa dos dois artistas. Desejo-lhes uma boa continuação, disse, permitam que me apresente, doutor Pereira, da página cultural do Lisboa, Portugal inteiro tem orgulho em contar com dois artistas como os senhores, precisamos de vocês.
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  358. Depois saiu para a luz ofuscante do meio-dia e encaminhou-se para o comboio. Comprou um bilhete para a Parede e perguntou quanto tempo demorava. O empregado respondeu que demorava pouco e ele sentiu-se satisfeito. Era o comboio da linha do Estoril, e levava sobretudo pessoas em férias. Pereira sentou-se do lado esquerdo do comboio porque tinha vontade de ver o mar. A carruagem estava praticamente deserta, devido à hora, e Pereira escolheu um lugar à sua vontade, baixou um pouco o estore para que o sol não lhe batesse nos olhos, dado que o seu lado ficava exposto ao Sul, e olhou o mar. Pôs-se a pensar na sua vida, mas disto não quer falar, afirma. Prefere dizer que o mar estava calmo e que havia banhistas na praia. Pereira pensou há quanto tempo não tomava um banho de mar, e pareceu-lhe que tinha sido há séculos. Vieram-lhe à ideia os tempos de Coimbra, quando ia às praias perto do Porto, à Granja ou a Espinho, por exemplo, onde havia um casino e um clube. O mar era muito frio, naquelas praias do Norte, mas ele era capaz de nadar manhãs inteiras, enquanto os colegas da universidade, a tiritar, o esperavam na praia. Depois vestiam-se, punham um casaco elegante e iam para o clube jogar bilhar. As pessoas admiravam-nos e o maître acolhia-os dizendo: Cá estão os estudantes de Coimbra! E dava-lhes o melhor bilhar.
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  360. Pereira voltou à realidade quando passou em frente a Santo Amaro. Era uma bela praia em meia-lua e viam-se as barracas de lona às riscas brancas e azuis. O comboio parou e Pereira pensou em descer e ir tomar um banho, até porque podia apanhar o comboio seguinte. Foi mais forte do que ele. Pereira não saberia explicar porque sentiu aquele impulso, talvez por ter estado a pensar nos seus tempos de Coimbra e nos banhos na Granja. Desceu com a maleta e atravessou a passagem que dava para a praia. Quando chegou à areia tirou os sapatos e as peúgas e seguiu assim, com a mala numa mão e os sapatos noutra. Avistou logo o banheiro, um rapagão bronzeado que vigiava os banhistas estendido numa cadeira de praia. Pereira aproximou-se e disse-lhe que queria alugar um fato de banho e um vestiário. O banheiro examinou-o dos pés à cabeça com um ar sonso e disse: Não sei se teremos um fato de banho para o seu tamanho, mas tome lá a chave do depósito, é a cabina maior, a número um. E depois perguntou com um ar que Pereira achou irónico: Também precisa de uma bóia? Sei nadar muito bem, respondeu Pereira, talvez muito melhor do que você, não se preocupe. Pegou na chave do depósito e na chave do vestiário e retirou-se. No depósito havia um pouco de tudo: flutuadores, bóias insufláveis, uma rede de pesca cheia de bóias de cortiça, fatos de banho. Rebuscou entre os fatos de banho para ver se encontrava um que lhe servisse, que lhe tapasse também a barriga. Conseguiu encontrar um e vestiu-o. Ficava-lhe um bocado apertado e era de lã, mas não encontrou melhor. Levou a mala e as roupas para o vestiário e atravessou a praia. Junto à água estava um grupo de rapazes a jogar à bola e Pereira desviou-se deles. Entrou na água devagar, a pouco e pouco, deixando que a frescura o envolvesse lentamente. Depois, quando a água lhe chegou ao umbigo, mergulhou e começou a nadar um crawl lento e compassado. Nadou durante bastante tempo, até aos flutuadores. Quando se abraçou à bóia de salvação sentiu que lhe faltava o fôlego e que o seu coração batia como louco. Sou doido, pensou, não nado há séculos e atiro-me assim à água, como um desportista. Descansou agarrado ao flutuador, depois deitou-se de costas a boiar. O céu por cima dos seus olhos era de um azul feroz. Pereira recobrou o fôlego e regressou devagar, com braçadas lentas. Passou diante do banheiro e apeteceu-lhe gozar uma pequena satisfação. Como viu não precisei de bóia, disse, quando passa o próximo comboio para o Estoril? O banheiro consultou o relógio. Daqui a um quarto de hora, respondeu. Óptimo, disse Pereira, então venha daí que me vou vestir e pago-lhe já porque não tenho muito tempo. Vestiu-se na cabina, saiu, pagou ao banheiro, deu uma penteadela nos seus poucos cabelos com um pentezito que trazia na carteira e despediu-se. Até à vista, disse, e veja lá aqueles rapazes que andam a jogar à bola, na minha opinião não sabem nadar e além disso incomodam os banhistas.
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  362. Atravessou a passagem e sentou-se num banco de pedra, debaixo da cobertura da estação. Ouviu chegar o comboio e olhou para o relógio. Era tarde, pensou, provavelmente na clínica esperavam-no para almoçar, porque nas clínicas come-se cedo. Pensou: Paciência. Mas sentia-se bem, sentia-se descontraído e fresco, ao mesmo tempo que o comboio chegava à estação, e depois tinha todo o tempo para a clínica talassoterápica, ia ficar lá pelo menos uma semana, afirma Pereira.
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  364. Quando chegou à Parede eram quase duas e meia. Apanhou um táxi e pediu ao motorista que o conduzisse à clínica talassoterápica. À dos tuberculosos?, perguntou o taxista. Não sei, respondeu Pereira, fica à beira-mar. Mas então é aqui a dois passos, disse o taxista, até se pode ir a pé. Olhe, disse Pereira, estou cansado e está muito calor, depois dou-lhe uma gorjeta.
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  366. A clínica talassoterápica era um edifício cor-de-rosa com um grande jardim cheio de palmeiras. Ficava num alto, sobre as rochas, e havia uma escadaria que dava para a estrada e a seguir para a praia. Pereira subiu a custo a escadaria e entrou no vestíbulo. Recebeu-o uma senhora gorda de faces coradas, com uma bata branca. Sou o doutor Pereira, disse Pereira, o meu médico, o doutor Costa, deve ter telefonado a reservar um quarto para mim. Oh, doutor Pereira, disse a senhora da bata branca, estávamos à sua espera para o almoço, porque chegou tão atrasado, já almoçou? Para dizer a verdade comi só uns búzios na estação, confessou Pereira, e estou com um certo apetite. Então venha comigo, disse a senhora da bata branca, a sala de jantar está fechada mas está lá a Maria das Dores que lhe pode arranjar qualquer coisinha. Guiou-o até à sala, um vasto espaço com grandes janelas que davam para o mar. A sala de jantar estava completamente deserta. Pereira sentou-se a uma mesa e chegou uma senhora de avental com um buço bem evidente. Sou a Maria das Dores, disse ela, sou a cozinheira, posso fazer-lhe uma coisinha grelhada. Um linguado, disse Pereira, obrigado. Pediu também uma limonada e ficou a sorvê-la com gosto. Tirou o casaco e atou o guardanapo sobre a camisa. Maria das Dores chegou com um peixe grelhado. Já não tínhamos linguado, disse, preparei-lhe uma dourada. Pereira começou a comê-la com gosto. Os banhos de algas são às cinco, disse a cozinheira, mas se o senhor não está com coragem e quer passar pelas brasas pode começar amanhã, o seu médico é o doutor Cardoso, irá vê-lo ao seu quarto às seis da tarde. Óptimo, disse Pereira, acho que vou descansar um bocado.
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  368. Subiu para o seu quarto, que era o vinte e dois, e reparou que a mala já lá estava. Fechou as persianas, lavou os dentes e estendeu-se na cama sem pijama. Havia uma bela brisa atlântica que se infiltrava através das persianas e agitava as cortinas. Pereira adormeceu quase de imediato. Teve um lindo sonho, sonhou com a sua juventude, estava na praia da Granja e nadava num mar que parecia uma piscina, e na beira dessa piscina estava uma rapariga pálida que o esperava com uma toalha nos braços. E depois ele voltava de nadar e o sonho continuava, era mesmo um lindo sonho, mas Pereira prefere não dizer como continuava, porque o seu sonho não tem nada que ver com esta história, afirma.
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  380. Às seis e meia Pereira ouviu bater à porta, mas já estava acordado, afirma. Observava as estrias de luz e de sombra das persianas no tecto, pensava na Honorine de Balzac, no arrependimento, e parecia-lhe que também ele devia arrepender-se de alguma coisa, mas não sabia de quê. De repente sentiu vontade de falar com o padre António, porque a ele poderia confiar que queria arrepender-se, mas não sabia de que é que se devia arrepender, sentia só uma espécie de saudade do arrependimento, era isto que queria dizer, ou talvez lhe agradasse só a ideia do arrependimento, quem sabe.
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  382. Quem é?, perguntou Pereira. É a hora do passeio, respondeu a voz de uma enfermeira do outro lado da porta, o doutor Cardoso está na entrada à sua espera. Pereira não tinha nenhuma vontade de ir passear, afirma, mas levantou-se na mesma, desfez a mala, calçou uns sapatos de corda, vestiu umas calças de algodão e uma camisa larga cor de caqui. Colocou o retrato da mulher em cima da mesa e disse-lhe: E pronto, cá estou eu na clínica talassoterápica, mas se me aborrecer vou-me embora, felizmente trouxe um livro de Alphonse Daudet, e assim posso fazer umas traduções para o jornal, de Daudet gostámos sobretudo de Le petit chose, lembras-te?, lemo-lo em Coimbra e ambos ficámos comovidos, era a história de uma infância e talvez pensássemos num filho que depois não veio, paciência, mas trouxe os Contes du lundi e acho que uma novela vinha mesmo a calhar para o Lisboa, bom, agora desculpa, tenho de ir, parece que está um médico à minha espera, vamos lá ver quais são os métodos da talassoterapia, vemo-nos depois.
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  384. Quando chegou à entrada viu um homem de bata branca que olhava o mar pela janela. Pereira aproximou-se dele. Era um homem entre os trinta e cinco e os quarenta anos, com uma barbicha alourada e olhos azuis. Boa tarde, disse o médico com um sorriso tímido, sou o doutor Cardoso, o senhor é o doutor Pereira, suponho, estava à sua espera, é a hora do passeio dos pacientes na praia, mas se o senhor prefere podemos ficar a conversar aqui ou ir até ao jardim. Pereira respondeu que realmente não lhe apetecia muito o passeio na praia, disse que nesse dia já tinha estado na praia e contou o banho que tinha tomado em Santo Amaro. Oh, magnífico, exclamou o doutor Cardoso, pensava que tinha pela frente um paciente mais difícil, mas parece que a natureza ainda o atrai. Talvez me atraiam sobretudo as recordações, disse Pereira. Em que sentido?, perguntou o doutor Cardoso. Talvez lhe explique mais tarde, disse Pereira, mas agora não, talvez amanhã.
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  386. Saíram para o jardim. Vamos dar uma volta?, disse o doutor Cardoso, faz-lhe bem a si e faz-me bem a mim. Atrás das palmeiras do jardim, que cresciam entre rochas e areia, havia um parque. Pereira seguiu até lá o doutor Cardoso, que estava em maré de conversar. Durante estes dias está-me entregue, disse o médico, preciso de falar consigo e conhecer os seus hábitos, não deve ter segredos comigo. Pode perguntar-me tudo, disse Pereira com disponibilidade. O doutor Cardoso apanhou um talo de erva e meteu-o na boca. Comecemos pelos seus hábitos alimentares, perguntou, como são? De manhã tomo café, respondeu Pereira, e depois almoço e janto, como toda a gente, é muito simples. E o que come habitualmente, perguntou o doutor Cardoso, quer dizer, que tipo de alimentação tem? Tortilhas, ia responder Pereira, praticamente só como tortilhas, porque a minha porteira me deixa pão com tortilha e porque no Café Orquídea só servem omeletes com salsa. Mas sentiu-se envergonhado e respondeu outra coisa. Uma alimentação variada, disse, peixe, carne, verduras, sou bastante frugal a comer e como de um modo racional. E a sua obesidade quando começou a manifestar-se?, perguntou o doutor Cardoso. Há uns anos, respondeu Pereira, depois da morte da minha mulher. E quanto a doces, perguntou o doutor Cardoso, come muitos doces? Nunca, respondeu Pereira, não gosto, só bebo limonadas. Limonadas como?, perguntou o doutor Cardoso. Ao natural, de limões espremidos, disse Pereira, gosto de limonadas, é refrescante e tenho a impressão de que me fazem bem aos intestinos, porque tenho muitas vezes os intestinos desarranjados. Quantas por dia?, perguntou o doutor Cardoso. Pereira reflectiu uns instantes. Depende dos dias, respondeu, agora no Verão, por exemplo, aí umas dez. Dez limonadas por dia!, exclamou o doutor Cardoso, doutor Pereira acho isso uma loucura, e diga-me, põe-lhes açúcar? Encho-as de açúcar, disse Pereira, meio copo de limonada e meio de açúcar. O doutor Cardoso cuspiu o talo de erva que tinha na boca, fez um gesto terminante com a mão e sentenciou: A partir de hoje acabaram as limonadas, vamos substituí-las por água mineral, de preferência sem gás, mas se prefere com gás também está bem. Havia um banco debaixo dos cedros do parque, e Pereira sentou-se, obrigando o doutor Cardoso a sentar-se por seu turno. E desculpe-me, doutor Pereira, agora queria fazer-lhe uma pergunta íntima: quanto a actividade sexual? Pereira olhou as copas das árvores e disse: Explique-se melhor. Mulheres, explicou o doutor Cardoso, frequenta mulheres, tem uma actividade sexual normal? Olhe, doutor, disse Pereira, eu sou viúvo, já não sou novo e tenho um emprego absorvente, não tenho tempo nem vontade para arranjar mulheres. Nem sequer meninas?, perguntou o doutor Cardoso, sei lá, alguma aventura, alguma senhora de costumes fáceis, uma vez por outra. Nem isso, disse Pereira, e sacou de um charuto perguntando se podia fumar. O doutor Cardoso consentiu. Não lhe faz bem ao coração, disse, mas se não pode mesmo resistir. É porque as suas perguntas me embaraçam, confessou Pereira. Então tenho outra pergunta embaraçosa, disse o doutor Cardoso, tem poluções nocturnas? Não percebo a pergunta, disse Pereira. Bem, disse o doutor Cardoso, quer dizer se não tem sonhos eróticos que lhe provoquem orgasmos, tem sonhos eróticos, com que é que sonha? Olhe, doutor, respondeu Pereira, o meu pai ensinou-me que os nossos sonhos são a coisa mais privada que temos e que não devemos revelá-los a ninguém. Mas o senhor está aqui em tratamento e eu sou o seu médico, replicou o doutor Cardoso, a sua psique está em relação directa com o seu corpo, e eu tenho de saber com que é que sonha. Sonho muitas vezes com a Granja, confessou Pereira. É uma mulher?, perguntou o doutor Cardoso. É um lugar, disse Pereira, é uma praia perto do Porto, ia para lá quando era estudante de Coimbra, havia também Espinho, era uma praia elegante, com piscina e casino, ia muitas vezes nadar e jogar bilhar, porque tinha um belo salão de bilhares, era também para lá que ia a minha namorada, com quem me casei depois, era uma rapariga doente, mas nessa altura ainda não o sabia, tinha só muitas dores de cabeça, foi um belo período da minha vida, e eu sonho com ele porque se calhar gosto de sonhar com ele. Bom, disse o doutor Cardoso, por hoje é tudo, gostava de jantar à sua mesa esta noite, podíamos falar disto e daquilo, interesso-me muito por literatura e reparei que o seu jornal dedica um grande espaço aos escritores franceses do século dezanove, sabe, estudei em Paris, sou de cultura francesa, hoje à noite explico-lhe o programa para amanhã, vemo-nos no restaurante às oito.
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  388. O doutor Cardoso levantou-se e despediu-se. Pereira permaneceu sentado e pôs-se a olhar a copa das árvores. Desculpe, senhor doutor, acrescentou Pereira, prometi-lhe que apagava o charuto, mas está-me a apetecer fumá-lo até ao fim. Faça como lhe apetecer, respondeu o doutor Cardoso, a partir de amanhã começamos a dieta. Pereira ficou sozinho a fumar. Pensou que o doutor Costa, que no entanto o conhecia há tanto tempo, nunca lhe faria perguntas tão pessoais e íntimas, evidentemente os jovens médicos que tinham estudado em Paris eram bastante diferentes. Pereira estava espantado e sentiu um grande embaraço a posteriori, mas reflectiu que era melhor não pensar mais no caso, evidentemente aquela clínica era bastante especial, afirma.
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  400. Às oito, pontualíssimo, o doutor Cardoso estava sentado à mesa na sala de jantar. Pereira também chegou pontualmente, afirma, e dirigiu-se à mesa. Tinha vestido o fato cinzento e posto a gravata preta. Quando entrou no salão olhou em volta. Os presentes poderiam ser uns cinquenta, e eram todos de idade. Mais velhos do que ele, de certeza, na maior parte velhos casais que jantavam juntos à mesma mesa. Isto fê-lo sentir-se melhor, afirma, porque pensou que no fundo era um dos mais novos, e ficou contente por afinal não ser assim tão velho. O doutor Cardoso sorriu-lhe e fez menção de se levantar. Pereira fez-lhe sinal com a mão para se deixar estar. Bem, doutor Cardoso, disse Pereira, para o jantar também estou nas suas mãos. Um copo de água mineral em jejum é sempre uma boa regra higiénica, disse o doutor Cardoso. Com gás, pediu Pereira. Com gás, acedeu o doutor Cardoso, e encheu-lhe o copo. Pereira bebeu-a com uma ligeira sensação de repulsa e apeteceu-lhe uma limonada. Doutor Pereira, disse o doutor Cardoso, gostaria de saber quais são os seus projectos para a página cultural do Lisboa, apreciei muito a efeméride sobre Pessoa e o conto de Maupassant, estava muito bem traduzido. Fui eu que o traduzi, respondeu Pereira, mas não gosto de assinar. Devia fazê-lo, replicou o doutor Cardoso, especialmente os artigos mais importantes, e para o futuro o que nos reserva o seu jornal? Vou dizer-lhe, doutor Cardoso, respondeu Pereira, para os próximos três ou quatro números há um conto de Balzac, que se chama Honorine, não sei se o conhece. O doutor Cardoso fez que não com a cabeça. É um conto sobre o arrependimento, disse Pereira, um belo conto sobre o arrependimento, tanto que o li num registo autobiográfico. Um arrependimento do grande Balzac?, perguntou o doutor Cardoso. Pereira ficou uns momentos absorto. Desculpe-me a pergunta, doutor Cardoso, disse-me hoje à tarde que estudou em França, que estudos fez, se me permite? Licenciei-me em Medicina e depois tirei duas especialidades, dietética e psicologia, respondeu o doutor Cardoso. Não estou a ver a relação entre as duas especialidades, afirma ter dito Pereira, desculpe mas não vejo a relação. Talvez haja uma relação maior do que o que se pensa, disse o doutor Cardoso, não sei se o senhor pode imaginar as relações que se estabelecem entre o nosso corpo e a nossa psique, mas há muitas mais do que imagina, mas dizia-me que o conto de Balzac é um conto autobiográfico. Não, não era isso que eu queria dizer, retorquiu Pereira, queria dizer que o li num registo autobiográfico, que me reconheci nele. No arrependimento?, perguntou o doutor Cardoso. De certo modo, disse Pereira, se bem que de uma maneira transversal, ou antes, a palavra é limítrofe, digamos que me reconheci nele de um modo limítrofe.
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  402. O doutor Cardoso fez sinal à criada. Esta noite comemos peixe, disse o doutor Cardoso, preferia que escolhesse um peixe grelhado ou cozido, mas também se pode arranjar de outro modo. Peixe grelhado já comi ao almoço, justificou-se Pereira, e cozido não gosto nada, sabe-me demasiado a hospital, e não me agrada pensar que estou num hospital, prefiro pensar que estou num hotel, está-me a apetecer mais um linguado à moleira. Óptimo, disse o doutor Cardoso, linguado à moleira com cenouras em manteiga, e para mim também. E depois prosseguiu: Arrependimento de um modo limítrofe, o que quer dizer? O facto de o senhor ter estudado psicologia anima-me a falar, disse Pereira, talvez fizesse melhor em falar nisso com o meu amigo padre António, que é um sacerdote, mas talvez ele não compreendesse, porque aos sacerdotes devemos confessar as nossas culpas e eu não me sinto culpado de nada de especial, e no entanto sinto vontade de me arrepender, sinto saudades do arrependimento. Talvez devesse aprofundar a questão, doutor Pereira, disse o doutor Cardoso, e se quiser fazê-lo comigo estou à sua disposição. Pois bem, disse Pereira, é uma sensação estranha que se situa na periferia da minha personalidade, e é por isso que a chamo de limítrofe, o facto é que por um lado me sinto contente por ter feito a vida que fiz, estou contente por ter feito os meus estudos em Coimbra, por ter casado com uma doente que passou a vida nos sanatórios, por ter sido repórter durante tantos anos num grande jornal e ter agora aceitado dirigir a página cultural deste modesto jornal da tarde, mas, ao mesmo tempo, é como se tivesse vontade de me arrepender da minha vida, não sei se me faço entender.
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  404. O doutor Cardoso começou a comer o linguado à moleira e Pereira seguiu o seu exemplo. Precisava de conhecer melhor estes últimos meses da sua vida, disse o doutor Cardoso, talvez tenha havido algum evento. Algum evento em que sentido, perguntou Pereira, que quer dizer com isso? Evento é uma palavra da psicanálise, disse o doutor Cardoso, não é que eu siga muito o Freud, porque sou um sincretista, mas no que respeita ao evento acho que ele tem toda a razão, o evento é um acontecimento concreto que se verifica na nossa vida e que abala ou perturba as nossas convicções e o nosso equilíbrio, enfim o evento é um facto que se verifica na vida real e influi na vida psíquica, o senhor deveria reflectir se na sua vida houve algum evento. Conheci uma pessoa, afirma ter dito Pereira, ou antes, duas pessoas, um rapaz e uma rapariga. Fale-me lá neles, disse o doutor Cardoso. Bem, disse Pereira, o facto é que tinha necessidade para a página cultural de uns necrológios antecipados dos escritores importantes que podem morrer de um momento para o outro, e a pessoa que conheci fez uma tese sobre a morte, é verdade que em parte a copiou, mas a princípio pareceu-me que era um entendido em morte, e por isso dei-lhe um lugar como meu ajudante, para fazer os necrológios antecipados, e ele fez-me alguns, que lhe paguei do meu bolso porque não queria ser pesado ao jornal, mas são todos impublicáveis, porque aquele rapaz tem a política na cabeça e faz todos os necrológios com uma visão política, para dizer a verdade acho que é a namorada dele que lhe mete aquelas ideias na cabeça, em suma, fascismo, socialismo, guerra civil de Espanha e coisas do género, tudo artigos impublicáveis, como lhe disse, e eu até agora tenho-lhe pago. Não vejo nada de mal, respondeu o doutor Cardoso, no fundo é só o seu dinheiro que arrisca. Não é isso, afirma ter dito Pereira, o facto é que me surgiu uma dúvida: e se aqueles jovens tivessem razão? Nesse caso seriam eles a ter razão, disse tranquilamente o doutor Cardoso, mas é a História que o dirá e não o senhor, doutor Pereira. Sim, disse Pereira, mas se eles tivessem razão a minha vida não teria sentido, não teria sentido ter feito Letras em Coimbra e ter sempre acreditado que a literatura era a coisa mais importante do mundo, não teria sentido dirigir a página cultural deste jornal da tarde onde não posso exprimir a minha opinião e onde tenho de publicar contos franceses do século dezanove, nada mais teria sentido, e é disto que sinto necessidade de me arrepender, como se eu fosse outra pessoa e não o Pereira que sempre foi jornalista, como se devesse renegar qualquer coisa.
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  406. O doutor Cardoso chamou a criada e pediu duas saladas de fruta sem açúcar e sem gelado. Queria fazer-lhe uma pergunta, disse o doutor Cardoso, o senhor conhece os médecins-philosophes? Não, confessou Pereira, não conheço, quem são? Os principais são Théodule Ribot e Pierre Janet, disse o doutor Cardoso, foram os textos deles que estudei em Paris, são médicos e psicólogos, mas também filósofos, defendem uma teoria que me parece interessante, a da confederação das almas. Explique-me essa teoria, disse Pereira. Pois bem, disse o doutor Cardoso, acreditar que somos uma unidade independente, destacada da incomensurável pluralidade dos próprios eus, representa uma ilusão, aliás ingénua, de uma alma única de tradição cristã; o doutor Ribot e o doutor Janet vêem a personalidade como uma confederação de várias almas, porque a verdade é que temos várias almas dentro de nós, uma confederação que aceita o domínio de um eu hegemónico. O doutor Cardoso fez uma pequena pausa e depois continuou: O que se chama a norma, ou o nosso ser, ou a normalidade, é apenas um resultado, não uma premissa, e depende do controlo de um eu hegemónico que se impôs na confederação das nossas almas; caso surja um outro eu, mais forte e mais poderoso, ele vai destronar o eu hegemónico e tomar o seu lugar, passando a dirigir a coorte das almas, ou melhor a confederação, e essa superioridade mantém-se até ser destronado por seu turno por outro eu hegemónico, por ataque directo ou por uma paciente erosão. Talvez, concluiu o doutor Cardoso, depois de uma paciente erosão haja um eu hegemónico que está a assumir a chefia da confederação das suas almas, doutor Pereira, e o senhor não pode fazer nada, o mais que poderá fazer é apoiá-lo.
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  408. O doutor Cardoso acabou de comer a salada de fruta e limpou a boca ao guardanapo. E então o que é que eu poderei fazer?, perguntou Pereira. Nada, respondeu o doutor Cardoso, simplesmente esperar, talvez haja dentro de si um eu hegemónico que, depois de uma lenta erosão, depois de tantos anos passados no jornalismo a escrever os casos do dia crendo que a literatura fosse a coisa mais importante do mundo, talvez haja um eu hegemónico que está a tomar a direcção da confederação das suas almas, deixe-o vir à tona, até porque não pode fazer de outra maneira, não o conseguiria e entraria em conflito consigo próprio, e se quer arrepender-se da sua vida arrependa-se à vontade, e se tem mesmo vontade de o contar a um sacerdote conte-o, enfim, doutor Pereira, se começa a pensar que aqueles jovens têm razão e que a sua vida até agora foi inútil, pense-o à vontade, talvez daqui para a frente a sua vida deixe de lhe parecer inútil, deixe-se guiar pelo seu novo eu hegemónico e não compense a sua inquietação com comida e com limonadas cheias de açúcar.
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  410. Pereira acabou de comer a sua salada de fruta e tirou o guardanapo que tinha atado à volta do pescoço. A sua teoria é muito interessante, disse, vou reflectir sobre ela, apetecia-me um café, que acha? O café provoca insónias, disse o doutor Cardoso, mas se não quer dormir é lá consigo, os banhos de algas são duas vezes por dia, às nove da manhã e às cinco da tarde, gostava que fosse pontual amanhã, estou certo que um banho de algas lhe fará bem.
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  412. Boa noite, murmurou Pereira. Levantou-se e afastou-se. Deu alguns passos e depois voltou-se. O doutor Cardoso sorriu-lhe. Estarei lá às nove em ponto, afirma ter dito Pereira.
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  424. Afirma Pereira que às nove da manhã desceu a escadaria que dava para a praia da clínica. Nos rochedos que orlavam a praia tinham sido escavadas duas enormes piscinas de rocha nas quais as ondas do oceano entravam livremente. As piscinas estavam cheias de algas compridas, brilhantes e grossas, que formavam uma camada compacta à tona da água, e algumas pessoas patinhavam lá dentro. Junto às piscinas erguiam-se duas barracas de madeira pintadas de azul: os vestiários. Pereira avistou o doutor Cardoso que vigiava os pacientes imersos nas piscinas e lhes dava instruções sobre os movimentos que deviam fazer. Pereira aproximou-se e deu-lhe os bons-dias. Sentia-se bem disposto, afirma, e apeteceu-lhe entrar naquelas piscinas, ainda que estivesse fresco na praia e talvez a temperatura da água não fosse ideal para tomar banho. Pediu ao doutor Cardoso um fato de banho, porque se tinha esquecido de trazer um, justificou-se, e perguntou-lhe se lhe podia arranjar um daqueles que tapam a barriga e parte do peito. O doutor Cardoso abanou a cabeça. Lamento, doutor Pereira, disse, mas tem de vencer o seu pudor, o efeito benéfico das algas deve-se sobretudo ao contacto com a epiderme, e é necessário que elas massajem a barriga e o peito, tem de vestir um fato de banho curto, uns calções. Pereira resignou-se e entrou no vestiário. Deixou as calças e a camisa cor de caqui no guarda-roupa e saiu. O ar estava verdadeiramente fresco, mas tonificante. Pereira experimentou a água com um pé, mas não a achou tão gelada como seria de esperar. Entrou na água cautelosamente, sentindo uma ligeira repugnância por todas aquelas algas que se lhe colavam ao corpo. O doutor Cardoso veio para junto da piscina e começou a dar-lhe instruções. Mexa os braços como se estivesse a fazer exercícios de ginástica, disse-lhe, e massaje a barriga e o peito com as algas. Pereira seguiu aplicadamente as instruções até se sentir sem fôlego. Então parou, com a água até ao pescoço, e começou a agitar as mãos lentamente. Que tal dormiu esta noite?, perguntou o doutor Cardoso. Bem, respondeu Pereira, mas estive a ler até tarde, trouxe um livro de Alphonse Daudet, gosta de Daudet? Conheço-o mal, confessou o doutor Cardoso. Estou a pensar traduzir um conto dos Contes du lundi, queria publicá-lo no Lisboa, disse Pereira. Conte-o lá, disse o doutor Cardoso. Bom, disse Pereira, chama-se La dernière classe, fala de um professor primário de uma aldeia francesa na Alsácia, os alunos dele são filhos de camponeses, rapazes pobres que têm de trabalhar nos campos e que faltam às aulas, e o professor sente-se desesperado. Pereira deu uns passos em frente para que a água não lhe entrasse na boca. E finalmente, continuou, chega-se ao último dia de aulas, a guerra franco-prussiana acabou, o professor aguarda sem esperança que chegue algum aluno, e em vez disso vê chegar todos os homens da região, os camponeses, os velhos da aldeia, que vêm prestar uma homenagem ao professor francês que se vai embora, porque sabem que no dia seguinte o seu solo será ocupado pelos alemães, então o professor escreve no quadro «Viva a França», e vai-se embora assim, com as lágrimas nos olhos, deixando todos comovidos. Pereira tirou duas longas algas do braço e perguntou: Que acha, doutor Cardoso? Muito bonito, respondeu o doutor Cardoso, mas não sei se hoje em Portugal, com os tempos que correm, esse «Viva a França» será apreciado, talvez o senhor esteja a deixar vir ao de cima o seu novo eu hegemónico, parece-me entrever um novo eu hegemónico. Mas que está a dizer, doutor Cardoso, disse Pereira, isto é um conto do século dezanove, são águas passadas. Pois, disse o doutor Cardoso, mas mesmo assim continua a ser um conto contra a Alemanha, e num país como o nosso não se toca na Alemanha, viu como impuseram a saudação nas cerimónias oficiais, todos fazem a saudação de braço estendido, como os nazis. Veremos, disse Pereira, mas o Lisboa é um jornal independente. E depois perguntou: Posso sair? Mais dez minutos, replicou o doutor Cardoso, já que aí está fique o tempo completo da terapia, mas desculpe, o que quer dizer um jornal independente em Portugal? Um jornal que não está ligado a nenhum movimento político, respondeu Pereira. Pode ser, disse o doutor Cardoso, mas o director do seu jornal, caro doutor Pereira, é uma personalidade do regime, aparece em todas as cerimónias oficiais, e estende sempre o braço, como um lançador de dardo. Isso é verdade, reconheceu Pereira, mas no fundo não é má pessoa, e no que diz respeito à página cultural deu-me carta branca. É cómodo, objectou o doutor Cardoso, de qualquer modo há a censura prévia, todos os dias, antes de sair, as provas do seu jornal têm de receber o imprimatur da censura prévia, e se houver alguma coisa que não agrade pode estar tranquilo que não é publicada, talvez deixem um espaço em branco, já me aconteceu ver jornais portugueses com grandes espaços em branco, dão-me uma grande raiva e uma grande tristeza. Compreendo, disse Pereira, também já vi, mas no Lisboa ainda não aconteceu. Pode acontecer, replicou em tom de brincadeira o doutor Cardoso, isso depende do eu hegemónico que tomar o poder na sua confederação de almas. E depois prosseguiu: Sabe o que lhe digo, doutor Pereira, se o senhor quiser ajudar o eu hegemónico que está a pôr a cabeça de fora, talvez tenha de sair daqui, de deixar este país, creio que terá menos conflitos consigo próprio, o senhor no fundo pode fazê-lo, é um profissional sério, fala bem francês, é viúvo, não tem filhos, o que o liga a este país? Uma vida passada, respondeu Pereira, a saudade, e o senhor, doutor Cardoso, porque não volta para França?, no fundo estudou lá e é de cultura francesa. Não está excluído, respondeu o doutor Cardoso, estou em contacto com uma clínica talassoterápica de Saint-Malo, pode ser que me decida de um momento para o outro. Posso sair agora?, perguntou Pereira, o tempo passou sem darmos conta, disse o doutor Cardoso, teve mais quinze minutos de tratamento do que era preciso, vá lá vestir-se, que diz se almoçássemos juntos? Com todo o gosto, concordou Pereira.
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  426. Nesse dia, Pereira comeu em companhia do doutor Cardoso, afirma, e seguindo o seu conselho escolheu pescada cozida. Falaram de literatura, de Maupassant e de Daudet, e da França, que era um grande país. E depois Pereira retirou-se para o seu quarto e descansou durante um quarto de hora, apenas passou pelas brasas, e depois ficou a olhar as estrias de luz e de sombra das persianas no tecto. A meio da tarde levantou-se, tomou um duche, vestiu-se, pôs a gravata preta e sentou-se em frente do retrato da mulher. Conheci um médico inteligente, disse-lhe, chama-se Cardoso, estudou em França, explicou-me uma sua teoria sobre a alma humana, ou antes, é uma teoria filosófica francesa, parece que dentro de nós existe uma confederação de almas e que de vez em quando há um eu hegemónico que toma a direcção da confederação, o doutor Cardoso afirma que eu estou a mudar o meu eu hegemónico, assim como as serpentes mudam de pele, e que este eu hegemónico mudará a minha vida, não sei até que ponto isto será verdadeiro e francamente não estou muito convencido, bom, paciência, logo se vê.
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  428. Depois sentou-se à mesa e começou a traduzir A última aula de Daudet. Tinha levado o Larousse, que lhe fez muito jeito. Mas só traduziu uma página, porque queria fazê-lo tranquilamente e porque aquele conto lhe fazia companhia. E de facto, durante toda a semana que Pereira permaneceu na clínica talassoterápica, passou todas as tardes a traduzir o conto de Daudet, afirma.
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  430. Foi uma bela semana, de dieta, de terapia e de repouso, animada pela presença do doutor Cardoso com quem teve sempre conversas vivas e interessantes, sobretudo sobre literatura. Foi uma semana que passou num ápice, no sábado saiu no Lisboa o primeiro episódio de Honorine de Balzac e o doutor Cardoso felicitou-o. O director nunca lhe telefonou, o que significava que no jornal corria tudo bem. Monteiro Rossi também não deu sinais de si, e Marta também não. Nos últimos dias, Pereira deixara quase de pensar neles. E quando abandonou a clínica, para ir apanhar o comboio para Lisboa, sentia-se tonificado e em forma, e tinha emagrecido quatro quilos, afirma Pereira.
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  442. Voltou para Lisboa e uma boa parte de Agosto passou como se nada fosse, afirma Pereira. A mulher-a-dias ainda não tinha voltado, havia um postal de Setúbal na caixa do correio que dizia: «Volto em meados de Setembro porque a minha irmã tem de ser operada às varizes, os meus melhores cumprimentos, Piedade.»
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  444. Pereira tomou novamente posse da sua casa. Felizmente o tempo tinha mudado e não estava muito calor. À tardinha levantava-se uma forte brisa atlântica que obrigava a vestir o casaco. Voltou à redacção e não havia novidades. A porteira já não se mostrava amuada e cumprimentava-o com mais cordialidade, mas pelo patamar continuava a pairar um terrível cheirete a fritos. O correio não era muito. Havia uma factura da luz que mandou para a redacção central. Havia também uma carta de Chaves, de uma senhora de cinquenta anos que escrevia contos infantis e que propunha um deles ao Lisboa. Era um conto de fadas e de elfos, que não tinha nada que ver com Portugal e que a senhora devia ter copiado de qualquer novela irlandesa. Pereira escreveu-lhe uma carta amável, sugerindo-lhe que se inspirasse no folclore português, pois, dizia-lhe, o Lisboa dirigia-se a leitores portugueses, e não a leitores anglo-saxónicos. Lá para fins do mês chegou uma carta de Espanha. Estava endereçada a Monteiro Rossi, e a direcção dizia: Señor Monteiro Rossi, c/o doutor Pereira, Rua Rodrigo da Fonseca 66, Lisboa, Portugal. Pereira sentiu-se tentado a abri-la. Quase se tinha esquecido de Monteiro Rossi, ou pelo menos assim o pensava, e achou incrível que o rapaz tivesse dado a morada da redacção cultural do Lisboa para lhe escreverem. Depois meteu-a no envelope «Necrológios» sem a abrir. Ao almoço comia no Café Orquídea, mas deixou de pedir omeletes com salsa, pois o doutor Cardoso tinha-lhas proibido, e já não bebia limonadas, comia saladas de peixe e bebia água mineral. Honorine de Balzac tinha sido inteiramente publicada, e tivera um grande sucesso junto dos leitores. Pereira afirma que recebera inclusive dois telegramas, um de Tavira e outro de Estremoz que diziam, o primeiro que o conto era extraordinário, e o outro que o arrependimento é uma coisa em que todos devíamos pensar, e ambos terminavam com a palavra obrigado. Pereira pensou que talvez alguém tivesse recolhido a mensagem na garrafa, quem sabe, e preparou-se para fazer a redacção definitiva do conto de Al-phonse Daudet. O director telefonou-lhe um dia para lhe dar os parabéns pelo conto de Balzac, porque disse que a redacção principal tinha recebido uma chuva de cartas de felicitações. Pereira pensou que o director não podia captar a mensagem na garrafa, e ficou contente consigo próprio. No fundo era mesmo uma mensagem cifrada, e só a podia receber quem a pudesse entender. O director não podia nem entendê-la nem recebê-la. E agora, doutor Pereira, perguntou o director, o que é que nos está a preparar agora? Acabei de traduzir um conto de Daudet, respondeu Pereira, parece-me uma boa ideia. Espero que não seja L’Arlésienne, replicou o director revelando com satisfação um dos seus poucos conhecimentos literários, é um conto um pouco osé, e não sei se seria adequado para os nossos leitores. Não, limitou-se a responder Pereira, é um conto dos Contes du lundi, chama-se A última aula, não sei se o conhece, é um conto patriótico. Não conheço, respondeu o director, mas se é um conto patriótico está certo, todos precisamos de patriotismo nos tempos que correm, o patriotismo faz bem. Pereira despediu-se e desligou. Tinha pegado no texto dactilografado para o levar à tipografia quando o telefone voltou a tocar. Pereira estava à porta e tinha já vestido o casaco. Está, disse uma voz feminina, bom dia doutor Pereira, é a Marta, precisava de o ver. Pereira sentiu um aperto no coração e perguntou: Marta, como está, como está o Monteiro Rossi? Depois conto-lhe, doutor Pereira, disse Marta, onde o posso encontrar esta noite? Pereira reflectiu uns instantes e esteve quase a dizer-lhe que passasse em sua casa, mas depois pensou que era melhor não ser em casa e respondeu: No Café Orquídea, às oito e meia. Está bem, disse Marta, olhe, eu cortei o cabelo e pintei-o de loiro, vemo-nos no Café Orquídea às oito e meia, mas o Monteiro Rossi está bem e manda-lhe um artigo.
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  446. Pereira saiu para ir à tipografia, e sentia-se inquieto, afirma. Pensou em voltar à redacção e esperar pela hora do jantar, mas percebeu que precisava de voltar a casa e tomar um banho frio. Apanhou um táxi e obrigou-o a subir a rampa que dava para o seu prédio, normalmente os táxis não queriam meter-se pela rampa acima porque era difícil fazer as manobras, de modo que Pereira teve de prometer uma gorjeta, porque se sentia exausto, afirma. Entrou em casa e a primeira coisa que fez foi encher a banheira com água fria. Meteu-se lá dentro e esfregou o ventre com aplicação como o doutor Cardoso lhe tinha ensinado a fazer. Depois vestiu o roupão e dirigiu-se à entrada, detendo-se diante do retrato da mulher. A Marta voltou a aparecer, disse-lhe, parece que cortou o cabelo e o pintou de loiro, sabe-se lá porquê, traz-me um artigo do Monteiro Rossi, mas o Monteiro Rossi evidentemente continua com as coisas dele, aqueles jovens preocupam-me, bem, paciência, logo te conto o que houver.
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  448. Às oito e trinta e cinco, afirma Pereira, entrou no Café Orquídea. A única razão que fez com que reconhecesse Marta naquela rapariga magra de cabelo loiro e curto que estava junto à ventoinha foi porque trazia o mesmo vestido de sempre, senão não a teria mesmo reconhecido. Marta parecia transformada, com o cabelo loiro e curto, com franja e vírgulas sobre as orelhas, que lhe davam um ar gaiato e de estrangeira, talvez francesa. E além disso devia ter emagrecido pelo menos dez quilos. As costas, que Pereira recordava suaves e arredondadas, mostravam duas omoplatas ossudas, como duas asas de frango. Pereira sentou-se em frente dela e disse-lhe: Boa noite Marta, que lhe aconteceu? Decidi mudar a minha fisionomia, respondeu Marta, em certos casos é preciso e para mim era necessário tornar-me noutra pessoa.
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  450. Sabe-se lá por que razão Pereira se terá lembrado de lhe fazer aquela pergunta. Não consegue explicar porque lha fez. Talvez por a ver tão loira e tão artificial e ele ter dificuldade em reconhecer nela a rapariga que tinha conhecido, talvez por ela de vez em quando lançar em torno uma olhadela furtiva como se esperasse alguém ou tivesse medo de alguma coisa, mas o facto é que Pereira lhe perguntou: Ainda se chama Marta? Para si sou Marta, claro, respondeu Marta, mas tenho um passaporte francês, chamo-me Lise Delaunay, sou pintora de profissão e estou em Portugal para pintar aguarelas de paisagens, mas a verdadeira razão é o turismo.
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  452. Pereira sentiu um grande desejo de encomendar uma omelete com salsa e beber uma limonada, afirma. Que acha se pedíssemos duas omeletes com salsa?, perguntou a Marta. Com todo o gosto, respondeu Marta, mas primeiro tomava um porto seco. Eu também, disse Pereira, e pediu dois portos secos. Cheira-me a sarilhos, disse Pereira, você meteu-se em encrencas, Marta, confesse lá. Digamos que sim, respondeu Marta, mas são encrencas de que eu gosto, sinto-me à vontade com elas, no fundo são a vida que escolhi. Pereira abriu os braços. Se você gosta, disse, e o Monteiro Rossi também está metido em sarilhos, imagino, porque nunca mais deu sinal de vida, o que se passa com ele? Posso falar de mim, mas do Monteiro Rossi não, disse Marta, só respondo por mim, ele não lhe deu sinais de vida até agora porque tinha problemas, por agora ainda está fora de Lisboa, anda pelo Alentejo, mas os problemas dele são talvez mais graves do que os meus, de qualquer modo também precisa de dinheiro e por isso manda-lhe um artigo, diz que é uma efeméride, o dinheiro pode-mo dar a mim se quiser, verei como o fazer chegar às mãos dele.
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  454. Essa agora, os artigos dele, gostaria de responder Pereira, necrológios ou efemérides tanto faz, não faço outra coisa senão pagar-lhe do meu bolso, ao Monteiro Rossi, ainda não percebi porque não o despeço, tinha-lhe proposto um trabalho de jornalista, tinha-lhe oferecido uma carreira. Mas não disse nada disto. Tirou do bolso a carteira e pegou em duas notas. Entregue-lhe isto da minha parte, disse, e dê cá o artigo. Marta tirou uma folha da carteira e passou-lha. Oiça, Marta, disse Pereira, se precisar de mim não hesite em vir ter comigo, embora prefira manter-me fora dos vossos problemas, como sabe, não me interesso por política, em todo o caso, e se falar com o Monteiro Rossi, diga-lhe que apareça, talvez possa ser-lhe útil também a ele, a meu modo. O senhor é uma grande ajuda para todos nós, doutor Pereira, disse Marta, a nossa causa não o esquecerá. Acabaram de comer as omeletes e Marta disse que não se podia demorar mais. Pereira despediu-se e Marta dirigiu-se para a saída com um andar gracioso. Pereira ficou sentado e pediu outra limonada. Gostava de poder falar de tudo aquilo com o padre António ou com o doutor Cardoso, mas o padre António àquela hora estava de certeza a dormir e o doutor Cardoso estava na Parede. Bebeu a limonada e pagou a conta. Quais são as novidades?, perguntou ao empregado quando ele se aproximou. Coisas do arco-da-velha, respondeu Manuel, coisas do arco-da-velha, doutor Pereira. Pereira pôs-lhe a mão no braço. Coisas do arco-da-velha em que sentido?, perguntou. Não sabe o que se passa em Espanha?, respondeu o criado. Não, disse Pereira. Parece que houve um grande escritor francês que escreveu a denunciar a repressão franquista em Espanha, disse Manuel, rebentou um escândalo com o Vaticano. E como se chama esse escritor francês?, perguntou Pereira. Bom, respondeu Manuel, agora não me lembro, é um escritor que o senhor conhece de certeza, chama-se Bernan, Bernadette, uma coisa do género. Bernanos, exclamou Pereira, chama-se Bernanos!? Exactamente, respondeu Manuel, é isso mesmo. É um grande escritor católico, disse Pereira com orgulho, bem sabia que havia de tomar posição, tem uma ética de ferro. E veio-lhe à ideia que o Lisboa podia talvez publicar alguns capítulos do Journal d’un curé de campagne, que ainda não tinha sido traduzido em português.
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  456. Despediu-se de Manuel e deixou-lhe uma boa gorjeta. Apetecia-lhe falar com o padre António, mas o padre António àquela hora estava a dormir, levantava-se todos os dias às seis para celebrar missa na igreja das Mercês, afirma Pereira.
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  468. No dia seguinte Pereira levantou-se muito cedo, afirma, e foi ter com o padre António. Encontrou-o na sacristia da igreja, onde estava a despir os paramentos. A sacristia estava fresquíssima, nas paredes havia quadros religiosos e ex-votos.
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  470. Bom dia, padre António, disse Pereira, cá estou eu. Pereira, murmurou o padre António, nunca mais apareceste, mas onde é que te enfiaste? Estive na Parede, justificou-se Pereira, passei uma semana na Parede. Na Parede!?, exclamou o padre António, e que foste tu fazer à Parede? Estive numa clínica talassoterápica, respondeu Pereira, a tomar banhos de algas e a fazer um tratamento naturista. O padre António pediu-lhe que o ajudasse a tirar a estola e disse-lhe: Passa-te cada ideia pela cabeça. Emagreci quatro quilos, acrescentou Pereira, e conheci um médico que me expôs uma teoria interessante sobre a alma. Foi por isso que vieste?, perguntou o padre António. Em parte, confessou Pereira, mas também queria falar de outras coisas. Então fala lá, disse o padre António. Bem, começou Pereira, é uma teoria de dois filósofos franceses que também são psicólogos, afirmam que não temos uma só alma mas sim uma confederação de almas que são dirigidas por um eu hegemónico, e de vez em quando este eu hegemónico muda, até atingirmos uma norma, mas não é uma norma estável, é uma norma variável. Ouve-me bem, Pereira, disse o padre António, eu sou um franciscano, sou uma pessoa simples, mas parece-me que estás a tornar-te num herético, a alma humana é una e indivisível, foi Deus que no-la deu. Está bem, replicou Pereira, mas se no lugar da alma, como pretendem os filósofos franceses, pusermos a palavra personalidade, então já não há heresia, estou convencido de que não temos uma única personalidade, temos várias personalidades que coexistem entre si sob a direcção de um eu hegemónico. Parece-me uma teoria capciosa e perigosa, objectou o padre António, a personalidade depende da alma, e a alma é una e indivisível, o teu arrazoado cheira-me a heresia. E no entanto sinto-me diferente do que era há alguns meses, confessou Pereira, penso coisas que nunca teria pensado, faço coisas que nunca teria feito. Alguma coisa te aconteceu, disse o padre António. Conheci duas pessoas, disse Pereira, um rapaz e uma rapariga, e talvez tenha mudado por os ter conhecido. Acontece, respondeu o padre António, as pessoas influenciam-nos, acontece. Não sei como poderão influenciar-me, disse Pereira, são dois pobres românticos sem futuro, só se fosse eu a influenciá-los, sou eu que os sustento, ou antes, o rapaz praticamente sou eu que o mantenho, não faço mais nada senão dar-lhe dinheiro do meu bolso, empreguei-o como ajudante, mas não me escreve um único artigo que seja publicável, oiça, padre António, acha que me fazia bem confessar-me? Cometeste algum pecado contra a carne?, perguntou o padre António. A única carne que conheço é a que trago em cima de mim, respondeu Pereira. Então olha, Pereira, concluiu o padre António, não me faças perder tempo, porque para ouvir em confissão tenho de me concentrar e não me quero cansar, daqui a pouco tenho de ir visitar os meus doentes, podemos falar disto e daquilo e das tuas coisas em geral, mas não em confissão, como amigos.
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  472. O padre António sentou-se num banco da sacristia e Pereira sentou-se ao seu lado. Oiça, padre António, disse Pereira, eu creio em Deus Pai Todo-Poderoso, recebo os sacramentos, cumpro os mandamentos e procuro não pecar, ainda que às vezes não vá à missa ao domingo, mas não é por mal, é só por preguiça, creio ser um bom católico e tomo a peito os ensinamentos da Igreja, mas agora ando um bocado confuso e além disso, apesar de ser jornalista, não estou informado sobre o que se passa no mundo, e agora estou perplexo porque me parece que há uma grande polémica sobre as posições dos escritores católicos franceses a propósito da guerra civil de Espanha, queria que o senhor me pusesse um pouco ao corrente, padre António, porque o senhor compreende essas coisas e eu queria saber como me comportar para não ser herético. Mas em que mundo vives tu, Pereira, exclamou o padre António. Bem, procurou justificar-se Pereira, a verdade é que passei uma semana na Parede e para mais este Verão não comprei nenhum jornal estrangeiro, e pelos jornais portugueses não se consegue saber grande coisa, as únicas novidades que vou sabendo é pelas conversas de café.
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  474. Afirma Pereira que o padre António se levantou e estacou diante dele com uma expressão que lhe pareceu ameaçadora. Ouve, Pereira, disse, o momento é grave e cada um tem de fazer as suas opções, eu sou um homem da Igreja e tenho de obedecer à hierarquia, mas tu és livre de tomar uma posição pessoal, mesmo sendo católico. Mas então explique-me tudo, implorou Pereira, porque gostaria de tomar posição, mas não estou informado. O padre António assoou-se, cruzou as mãos no peito e perguntou: Estás a par do problema do clero basco? Não estou, confessou Pereira. Tudo começou com o clero basco, disse o padre António, depois do bombardeamento de Guernica o clero basco, que era considerado o mais cristão de Espanha, aliou-se à República. O padre António fungou como se estivesse comovido e continuou: Na Primavera do ano passado dois grandes escritores católicos franceses, François Mauriac e Jacques Maritain, publicaram um manifesto em defesa dos bascos. Mauriac!, exclamou Pereira, bem dizia eu que era preciso preparar um necrológio do Mauriac, é um homem como deve ser, mas o Monteiro Rossi não foi capaz de mo fazer. Quem é o Monteiro Rossi?, perguntou o padre António. É o ajudante que empreguei, respondeu Pereira, mas não consegue fazer-me um necrológio sobre os escritores católicos que assumiram posições políticas correctas. Mas porque lhe queres fazer um necrológio?, perguntou o padre António, pobre Mauriac, deixa-o viver, que precisamos dele, para que o queres ver morto? Oh, quanto a isso não quero, disse Pereira, espero que dure até aos cem anos, mas suponhamos que nos deixava de um momento para o outro, em Portugal haveria pelo menos um jornal que lhe prestaria uma homenagem na devida ocasião, e esse jornal seria o Lisboa, mas queira-me desculpar, padre António, continue. Bom, disse o padre António, o problema complicou-se com o Vaticano, que declarou que os republicanos tinham assassinado milhares de religiosos espanhóis, que os católicos bascos eram «cristãos vermelhos» e deviam ser excomungados, e assim fez, e isto teve o apoio de Claudel, o famoso Paul Claudel, também ele escritor católico, que escreveu uma ode «Aux Martyrs Espagnols» como prefácio em verso a um infecto opúsculo de propaganda de um agente nacionalista de Paris. Claudel, disse Pereira, Paul Claudel? O padre António assoou-se novamente. Esse mesmo, disse, como é que o definirias, Pereira? Assim de repente não sei, respondeu Pereira, é católico também, tomou uma posição diferente, fez a sua opção. Assim de repente não sabes o quê, Pereira, exclamou o padre António, esse Claudel é um filho da puta, é o que ele é, e lamento estar num lugar sagrado a dizer estas palavras, porque preferia dizer-tas na rua. E depois?, perguntou Pereira. Depois, continuou o padre António, depois a alta hierarquia do clero espanhol, encabeçada pelo cardeal Gomá, arcebispo de Toledo, tomou a decisão de enviar uma carta aberta aos bispos de todo o mundo, percebeste Pereira, aos bispos de todo o mundo, como se os bispos de todo o mundo fossem fascistóides como eles, a dizer que milhares de cristãos em Espanha pegaram em armas sob a sua responsabilidade pessoal para salvar os valores da religião. Sim, disse Pereira, mas e os mártires espanhóis, os religiosos assassinados? O padre António ficou um momento em silêncio e depois disse: Talvez sejam mártires, mas era tudo gente que andava a conspirar contra a República, e além do mais repara, a República era constitucional, tinha sido votada pelo povo, Franco fez um golpe de Estado, é um bandido. E Bernanos, perguntou Pereira, o que é que o Bernanos tem que ver com tudo isto?, ele também é um escritor católico. Esse é o único que conhece realmente a Espanha, disse o padre António, esteve em Espanha desde trinta e quatro até ao ano passado, escreveu sobre os massacres dos franquistas, o Vaticano não o pode ver por ele ser uma verdadeira testemunha. Sabe, padre António, disse Pereira, pensei em publicar na página cultural do Lisboa um ou dois capítulos do Journal d’un curé de campagne, que me diz da ideia? Parece-me uma ideia magnífica, respondeu o padre António, mas não sei se tos deixarão publicar, Bernanos não é muito apreciado neste país, não foi nada meigo no que escreveu sobre o batalhão Viriato, o contingente militar português que foi para Espanha, para combater pelo Franco, e agora desculpa-me, Pereira, mas tenho de ir para o hospital, tenho os meus doentes à espera.
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  476. Pereira levantou-se e despediu-se. Adeus, padre António, disse, desculpe tê-lo feito perder tanto tempo, para a próxima venho-me confessar. Não precisas, replicou o padre António, vê lá se antes fazes alguns pecados, não me obrigues a perder tempo inutilmente.
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  478. Pereira saiu e subiu a custo a Rua da Imprensa Nacional. Quando chegou em frente da Igreja de São Mamede sentou-se num banco do largo. Fez o sinal da cruz ao passar diante da igreja, depois esticou as pernas e ficou a apanhar o fresco. Apetecia-lhe beber uma limonada e ali mesmo pertinho havia um café. Mas conteve-se. Limitou-se a descansar à sombra e descalçou os sapatos para apanhar um pouco de fresco nos pés. Depois a passo lento dirigiu-se para a redacção, pensando nas suas recordações. Afirma Pereira que pensou na sua infância, uma infância passada na Póvoa de Varzim, com os seus avós, uma infância feliz, ou que pelo menos ele considerava feliz, mas não quer falar da sua infância, pois afirma não ter nada que ver com esta história nem com aqueles dias de fins de Agosto, quando o Verão estava a chegar ao fim e ele se sentia tão confuso.
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  480. Encontrou nas escadas a porteira que o cumprimentou cordialmente e lhe disse: Bom dia, doutor Pereira, hoje não há correio nem chamadas para o senhor. Chamadas como?, perguntou Pereira surpreendido, entrou na redacção? Não, disse Celeste com ar triunfante, mas hoje de manhã estiveram cá os empregados dos telefones acompanhados por um comissário da polícia, fizeram uma ligação entre o seu telefone e a portaria, disseram que quando não estivesse ninguém na redacção era bom que houvesse quem recebesse as chamadas, acham que eu sou uma pessoa de confiança. Até é de confiança de mais para essa gente, gostaria de ter respondido Pereira, mas não disse nada. Perguntou apenas: E se tenho de telefonar? Tem de passar pela central, respondeu Celeste com satisfação, e agora a sua central sou eu, é a mim que tem de pedir os números, e veja lá que eu nem queria, doutor Pereira, trabalho toda a manhã e tenho de fazer o almoço para quatro pessoas, tenho de alimentar quatro bocas, eu, e além dos filhos, que se contentam com qualquer coisa, tenho um marido muito exigente, quando vem da esquadra, às duas da tarde, traz uma fome de lobo e é muito exigente. Vê-se pelo cheiro a fritos que sobe pelas escadas, respondeu Pereira, e não disse mais nada. Entrou na redacção, desligou o telefone e tirou do bolso a folha que Marta lhe tinha entregue na tarde anterior. Era um artigo manuscrito, a tinta azul, e em cima dizia: Efemérides. E depois: «Há oito anos, em 1930, morria em Moscovo o grande poeta Vladimir Maiakovski. Matou-se com um tiro de pistola, por causa de um desgosto de amor. Era filho de um guarda-florestal. Depois de ter aderido muito jovem ao partido bolchevique esteve preso por três vezes e foi torturado pela polícia czarista. Grande propagandista da Rússia revolucionária, fez parte dos futuristas russos, que se distinguem politicamente dos futuristas italianos, e empreendeu uma digressão pelo seu país a bordo de uma locomotiva, recitando nas aldeias os seus versos revolucionários. Despertou o entusiasmo do povo. Foi artista, desenhador, poeta e homem de teatro. A sua obra não está traduzida em português, mas está à venda em francês na livraria da Rua do Ouro em Lisboa. Foi amigo do grande cineasta Eisenstein com quem colaborou em vários filmes. Legou-nos uma obra imensa em prosa, poesia e teatro. Prestamos aqui homenagem ao grande democrata e ao fervoroso anticzarista.»
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  482. Pereira, apesar de não estar muito calor, sentiu como que um véu de suor envolver-lhe o pescoço. Teria querido deitar aquele artigo para o cesto dos papéis, porque era demasiado estúpido. Mas em vez disso abriu a pasta dos «Necrológios» e meteu-o lá. Depois pôs o casaco e pensou que eram horas de voltar para casa, afirma.
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  494. Naquele sábado saiu no Lisboa a tradução de A última aula de Alphonse Daudet. Na censura tinham deixado passar tranquilamente o texto, e Pereira afirma ter pensado que no fundo se podia escrever Viva a França e que o doutor Cardoso não tinha razão. Também desta vez Pereira não assinou a tradução. Afirma que o fez por não lhe parecer bem que o director de uma página cultural assinasse a tradução de um conto, todos os leitores compreenderiam que no fundo era ele quem fazia a página cultural, e isso aborrecia-o. Foi uma questão de orgulho, afirma.
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  496. Pereira leu o conto com grande satisfação, eram dez da manhã, era domingo, e ele estava já na redacção porque se tinha levantado muito cedo, tinha começado a traduzir o primeiro capítulo do Journal d’un curé de campagne de Bernanos e estava a trabalhar a bom ritmo. Nesse momento tocou o telefone. Pereira normalmente desligava-o, porque desde que estava ligado à porteira detestava que ela lhe passasse as chamadas, mas nesse dia tinha-se esquecido de o desligar. Está, doutor Pereira, disse a voz da Celeste, há uma chamada para o senhor, é da clínica talassopirica da Parede. Talassoterápica, corrigiu Pereira. Enfim, uma coisa dessas, disse a voz da Celeste, passo-lhe a chamada ou digo que não está? Passe-ma, disse Pereira. Ouviu o clique de um comutador e uma voz disse: Está, daqui é o doutor Cardoso, queria falar com o doutor Pereira. É o próprio, respondeu Pereira, bom dia, doutor Cardoso, prazer em ouvi-lo. O prazer é todo meu, disse o doutor Cardoso, como está, doutor Pereira, tem seguido a minha dieta? Faço o possível, confessou Pereira, faço o possível mas não é fácil. Oiça, doutor Pereira, disse o doutor Cardoso, estou à espera do comboio para Lisboa, li ontem o conto de Daudet, é verdadeiramente magnífico, gostava de falar consigo sobre ele, que diz se nos víssemos ao almoço? Conhece o Café Orquídea?, perguntou Pereira, fica na Rua Alexandre Herculano, a seguir ao talho judeu. Conheço, disse o doutor Cardoso, a que horas, doutor Pereira? À uma, disse Pereira, se para si está bem. Perfeito, respondeu o doutor Cardoso, à uma, até logo. Pereira tinha a certeza de que a Celeste tinha ouvido toda a conversa, mas não ligou importância, não tinha dito nada que pudesse recear. Continuou a traduzir o primeiro capítulo do romance de Bernanos mas desta vez desligou o telefone, afirma. Trabalhou até à uma menos um quarto, depois vestiu o casaco, meteu a gravata no bolso e saiu.
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  498. Quando entrou no Café Orquídea o doutor Cardoso ainda não tinha chegado. Pereira mandou pôr a mesa junto da ventoinha e sentou-se. Para aperitivo pediu uma limonada, porque tinha sede, mas sem açúcar. Quando o empregado trouxe a limonada, Pereira perguntou-lhe: Que notícias há, Manuel? Notícias contraditórias, respondeu o empregado, parece que agora em Espanha se chegou a um certo equilíbrio, os nacionalistas conquistaram o Norte, mas os republicanos levam a melhor no Centro, parece que a décima quinta brigada internacional se portou valorosamente em Saragoça, o Centro está nas mãos da República e os italianos que apoiam Franco estão a ter um comportamento ignóbil. Pereira sorriu e disse: Por quem é você, Manuel? Umas vezes por uns outras vezes pelos outros, respondeu o empregado, porque ambos são fortes, mas esta história dos nossos Viriatos que foram combater contra os republicanos não me agrada, no fundo nós também somos uma república, pusemos a andar o rei em mil novecentos e dez, não vejo motivos para combater contra uma república. Exacto, aprovou Pereira.
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  500. Nesse momento entrou o doutor Cardoso. Pereira vira-o sempre com a bata branca, e ao vê-lo assim, vestido normalmente, pareceu-lhe mais novo, afirma. O doutor Cardoso trazia uma camisa às riscas e um casaco claro e parecia um pouco encalorado. O doutor Cardoso sorriu-lhe e Pereira retribuiu o sorriso. Apertaram as mãos e o doutor Cardoso sentou-se. Formidável, doutor Pereira, disse o doutor Cardoso, formidável, é mesmo um belíssimo conto, não sabia que Daudet podia ter tanta força, vim cá para lhe dar os meus parabéns, só é pena que não tenha assinado a tradução, gostaria de ter visto o seu nome entre parênteses no fim do conto. Pereira explicou-lhe pacientemente que o tinha feito por humildade, ou antes por orgulho, porque não queria que os leitores percebessem que a página era totalmente feita por ele, que era o director, queria dar a impressão de que o jornal tinha outros colaboradores, que era um jornal como deve ser, enfim, tinha-o feito pelo Lisboa.
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  502. Pediram duas saladas de peixe. Pereira teria preferido uma omelete com salsa, mas não teve coragem de a pedir em frente do doutor Cardoso. Talvez o seu novo eu hegemónico tenha ganho alguns pontos, disse o doutor Cardoso. Em que sentido?, perguntou Pereira. No sentido que pôde escrever Viva a França, disse o doutor Cardoso, ainda que por interposta pessoa. Deu-me uma grande satisfação, reconheceu Pereira, e seguidamente, fingindo estar informado, continuou: Sabe que a décima quinta brigada internacional está a levar a melhor no Centro de Espanha?, parece que se portou heroicamente em Saragoça. Não tenha demasiadas ilusões, doutor Pereira, replicou o doutor Cardoso, Mussolini enviou a Franco uma data de submarinos e os alemães apoiam-no com a aviação, os republicanos não se safam. Mas têm os soviéticos do lado deles, objectou Pereira, as brigadas internacionais, todos os povos que se precipitaram para Espanha a dar uma ajuda aos republicanos. Eu não teria demasiadas ilusões, repetiu o doutor Cardoso, queria anunciar-lhe que cheguei a um acordo com a clínica de Saint-Malo, parto daqui a quinze dias. Não me abandone, doutor Cardoso, teria querido dizer Pereira, peço-lhe que não me abandone. Mas em vez disso disse: Não nos abandone, doutor Cardoso, não abandone a nossa gente, este país precisa de pessoas como o senhor. Infelizmente, a verdade é que não precisa, respondeu o doutor Cardoso, ou pelo menos eu não preciso dele, acho melhor ir para França antes da catástrofe. Catástrofe, perguntou Pereira, que catástrofe? Não sei, respondeu o doutor Cardoso, estou a prever uma catástrofe, uma catástrofe geral, mas não quero que fique inquieto, doutor Pereira, talvez o senhor esteja a elaborar o seu novo eu hegemónico e precise de calma, eu entretanto vou-me embora, mas olhe lá, que tal estão os seus jovens?, os jovens que conheceu e que colaboram no seu jornal. Só um deles é que é meu colaborador, respondeu Pereira, mas ainda não me fez nenhum artigo publicável, imagine que ontem me mandou um sobre Maiakovski a homenagear o revolucionário bolchevista, nem sei porque é que continuo a dar-lhe dinheiro em troca de artigos impublicáveis, talvez por ele estar metido em sarilhos, disso tenho eu a certeza, e a namorada dele também anda metida em sarilhos, e eu sou o único ponto de referência que eles têm. O senhor tem-lhes dado uma ajuda, bem vejo, mas menos do que gostaria realmente, talvez faça mais alguma coisa quando o seu novo eu hegemónico vier à tona, doutor Pereira, desculpe-me a franqueza. Mas então oiça, doutor Cardoso, disse Pereira, empreguei aquele moço para escrever necrológios antecipados e efemérides, só me mandou artigos impublicáveis e revolucionários, como se não soubesse em que país vivemos, paguei-lhe sempre do meu bolso, para não ser pesado ao jornal e por ser preferível não meter nisto o director, protegi-o, escondi o primo dele, que me parece ser um desgraçado e que combate nas brigadas internacionais em Espanha, continuo a mandar-lhe dinheiro agora que ele anda a vaguear pelo Alentejo, que mais posso fazer? Podia ir ter com ele, respondeu com toda a naturalidade o doutor Cardoso. Ir ter com ele!, exclamou Pereira, segui-lo pelo Alentejo, nas suas viagens clandestinas, e para mais como o havia de encontrar, se nem sequer sei onde está. A namorada dele sem dúvida que sabe, disse o doutor Cardoso, tenho a certeza de que a namorada sabe mas não lho diz porque não confia totalmente no senhor, doutor Pereira, talvez o senhor possa conquistar a confiança dela, mostrar-se menos cauteloso, o senhor tem um forte superego, doutor Pereira, e esse superego está em luta com o seu novo eu hegemónico, o senhor está em conflito consigo mesmo nessa batalha que se está a travar na sua alma, devia abandonar o seu superego, devia deixá-lo seguir o seu destino como se fosse um detrito. E que restaria de mim?, perguntou Pereira, eu sou o que sou, com as minhas recordações, com a minha vida passada, as lembranças de Coimbra e da minha mulher, uma vida passada como repórter num grande jornal, que restaria de mim? O trabalho do luto, disse o doutor Cardoso, é uma expressão freudiana, desculpe, eu sou um sincretista e fui buscar umas coisas aqui outras acolá, mas o senhor precisa de elaborar o seu luto, precisa de se despedir da sua vida passada, precisa de viver no presente, uma pessoa não pode viver como o senhor, doutor Pereira, a pensar só no passado. E as minhas recordações, perguntou Pereira, e tudo o que vivi? Seriam apenas recordações, respondeu o doutor Cardoso, mas não invadiriam deste modo tão prepotente o seu presente, o senhor vive projectado no passado, o senhor está aqui como se estivesse em Coimbra há trinta anos e a sua mulher ainda estivesse viva, se o senhor continua assim ainda se torna numa espécie de fetichista das recordações, ainda desata a falar com o retrato da sua mulher. Pereira limpou a boca com o guardanapo, baixou a voz e disse: Já o faço, doutor Cardoso. O doutor Cardoso sorriu. Vi o retrato da sua mulher no seu quarto na clínica, disse, e pensei: este homem fala mentalmente com o retrato da mulher, ainda não elaborou o seu luto, foi exactamente isto que pensei, doutor Pereira. Na verdade não é mentalmente que lhe falo, acrescentou Pereira, falo-lhe em voz alta, conto-lhe tudo da minha vida, e é como se o retrato me respondesse. São fantasias ditadas pelo superego, disse o doutor Cardoso, o senhor devia falar dessas coisas com alguém. Mas não tenho ninguém com quem falar, confessou Pereira, vivo só, tenho um amigo que é professor na Universidade de Coimbra, fui vê-lo às termas do Buçaco e vim-me embora no dia seguinte porque já não o suportava, os professores universitários são todos a favor da situação política e ele não é excepção, há também o meu director, mas que participa em todas as cerimónias oficiais com o braço esticado como um lançador de dardo, imagine se eu vou falar com ele, há ainda a porteira da redacção, a Celeste, que é uma informadora da polícia, e que agora também faz de minha telefonista, e poderia ser o Monteiro Rossi, mas esse anda fugido. Foi esse Monteiro Rossi que o senhor conheceu?, perguntou o doutor Cardoso. É o meu ajudante, respondeu Pereira, o tal rapaz que escreve artigos que não posso publicar. Procure-o o senhor, replicou o doutor Cardoso, como já lhe disse, vá à procura dele, doutor Pereira, ele é jovem, é o futuro, o senhor precisa de conviver com um jovem, mesmo que escreva artigos que não podem ser publicados no seu jornal, deixe de conviver com o passado, procure conviver com o futuro. Que bela expressão, disse Pereira, conviver com o futuro, bela expressão, nunca me ocorreria. Pereira pediu uma limonada sem açúcar e continuou: E poderia ser o senhor, doutor Cardoso, com quem me agrada muito falar e com quem me agradaria falar futuramente, mas o senhor deixa-nos, o senhor deixa-me, deixa-me aqui só, e não tenho mais ninguém a não ser o retrato da minha mulher, como vê. O doutor Cardoso tomou o café que Manuel lhe tinha trazido. Posso falar consigo em Saint-Malo se me for visitar, doutor Pereira, disse o doutor Cardoso, não é coisa assente que este país lhe convenha, além disso está demasiado cheio de recordações, procure deitar para a valeta o seu superego e arranjar espaço para o seu novo eu hegemónico, talvez nos possamos ver noutras ocasiões, e o senhor será um homem diferente.
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  504. O doutor Cardoso insistiu em pagar o almoço e Pereira aceitou de bom grado, afirma, porque depois de ter dado aquelas duas notas a Marta no dia anterior a sua carteira estava bastante desguarnecida. O doutor Cardoso levantou-se e despediu-se. Até breve, doutor Pereira, disse, espero voltar a vê-lo em França ou noutro país deste vasto mundo, e não se esqueça, dê espaço ao seu novo eu hegemónico, deixe-o existir, precisa de nascer, precisa de se afirmar.
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  506. Pereira levantou-se e saudou-o. Viu-o afastar-se e sentiu uma grande saudade, como se aquele adeus fosse irremediável. Pensou na semana que passara na clínica talassoterápica da Parede, nas suas conversas com o doutor Cardoso, na sua solidão. E quando o doutor Cardoso passou a porta e desapareceu na rua sentiu-se só, verdadeiramente só, e pensou que quando estamos verdadeiramente sós é o momento de nos medirmos com o nosso eu hegemónico que procura impor-se à coorte das almas. Mas apesar deste pensamento não se sentiu apaziguado, pelo contrário, sentiu uma grande saudade, não saberia dizer de quê, mas era uma grande saudade de uma vida passada e de uma vida futura, afirma Pereira.
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  518. No dia seguinte, Pereira acordou com o telefone, afirma. Estava ainda a sonhar, um sonho que lhe parecia ter durado toda a noite, um sonho longuíssimo e feliz que não lhe parece oportuno revelar porque não tem nada que ver com esta história.
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  520. Pereira reconheceu imediatamente a voz da menina Filipa, a secretária do director. Bom dia, doutor Pereira, disse Filipa com uma voz suave, vou passar-lhe o senhor director. Pereira acabou de acordar e sentou-se na borda da cama. Bom dia, doutor Pereira, disse o director, fala o director. Bom dia, senhor director, respondeu Pereira, passou umas boas férias? Óptimas, disse o director, óptimas, as termas do Buçaco são realmente um sítio magnífico, mas acho que já lho disse, se não me engano já nos falámos. Ah, sim, é verdade, disse Pereira, falámos quando saiu o conto de Balzac, desculpe, acordei agora e não tenho ainda as ideias claras. Às vezes acontece não se ter as ideias claras, disse o director com uma certa rudeza, e acho que lhe pode acontecer a si também, doutor Pereira. De facto, respondeu Pereira, acontece-me sobretudo de manhã porque sofro de mudanças de tensão. Estabilize-a com um bocadinho de sal, aconselhou o director, um bocadinho de sal debaixo da língua e os saltos de tensão estabilizam-se logo, mas não foi para isso que lhe telefonei, para falar da sua tensão, doutor Pereira, o que acontece é que o senhor nunca aparece na redacção central, o problema é esse, fica enfiado na sua toca da Rua Rodrigo da Fonseca e nunca vem falar comigo, não me expõe os seus projectos, só faz o que entende. Francamente, senhor director, disse Pereira, desculpe, mas o senhor deu-me carta branca, disse-me que a página cultural era da minha responsabilidade, enfim, disse-me que fizesse o que entendesse. O que entendesse de acordo, continuou o director, mas não lhe parece que de vez em quando o senhor deveria trocar impressões comigo? Até me seria útil, disse Pereira, porque de facto sinto-me isolado, demasiado isolado a fazer a cultura e o senhor disse-me que não queria ocupar-se da cultura. E o seu ajudante, perguntou o director, não me tinha dito que tinha arranjado um ajudante? Disse, respondeu Pereira, mas para já ainda está verde, além disso não morreu nenhum literato interessante, e depois é um rapaz novo e pediu-me umas férias, deve estar na praia, há quase um mês que não aparece. Então despeça-o, doutor Pereira, disse o director, para que lhe serve um ajudante que não sabe escrever e que vai de férias? Vamos dar-lhe mais uma oportunidade, replicou Pereira, no fundo tem de aprender o ofício, não passa de um principiante, tem de ter alguma tarimba. Nessa altura da conversa foram interrompidos pela voz suave da menina Filipa. Desculpe, senhor director, disse, tenho uma chamada do Governo Civil para o senhor, parece que é urgente. Bem, doutor Pereira, disse o director, volto a ligar daqui a vinte minutos, entretanto veja se acorda completamente e ponha uma pitada de sal a derreter debaixo da língua. Se quiser posso ligar eu, disse Pereira. Não, disse o director, preciso de estar à vontade, quando tiver acabado ligo para aí, até já.
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  522. Pereira levantou-se e foi tomar um banho rápido. Fez um café e comeu uma bolacha de água e sal. Depois vestiu-se e foi até à entrada. Tenho o director ao telefone, disse ao retrato da mulher, parece-me que anda a girar à volta do osso mas ainda não mordeu, não percebo o que quer de mim, mas tem de morder o osso, não achas? O retrato da mulher sorriu-lhe com o seu sorriso longínquo e Pereira concluiu: Bem, paciência, vamos lá ver o que quer o director, por mim não tenho nada a censurar-me, pelo menos no que diz respeito ao jornal, não faço mais que traduzir contos franceses do século dezanove.
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  524. Sentou-se à mesa da sala e pensou começar a escrever uma efeméride sobre Rilke. Mas no fundo não lhe apetecia escrever nada sobre Rilke, esse homem tão elegante e snobe que tinha frequentado a alta sociedade, que fosse para o diabo, pensou Pereira. Pôs-se a traduzir um bocado do romance de Bernanos, era mais complicado do que tinha pensado, pelo menos ao princípio, e ele ainda ia no primeiro capítulo, ainda não tinha entrado na história. Nesse momento tocou o telefone. Bom dia mais uma vez, doutor Pereira, disse a voz suave da menina Filipa, vou passar-lhe o senhor director. Pereira esperou alguns segundos e depois a voz do director, grave e pausada, disse: Bem, doutor Pereira, onde íamos nós? Estava a dizer-me que eu vivia enfiado na minha redacção da Rua Rodrigo da Fonseca, senhor director, disse Pereira, mas é lá que eu trabalho, que faço a página cultural, não sei o que iria fazer ao jornal, não conheço os jornalistas, fui repórter durante muitos anos noutro jornal, mas o senhor não me quis dar esse trabalho, decidiu confiar-me a cultura, e com os jornalistas da política não tenho contactos, não sei o que poderia ir fazer ao jornal. Já desabafou, doutor Pereira?, perguntou o director. Desculpe, senhor director, não queria desabafar, queria só explicar as minhas razões. Bem, disse o director, mas agora só lhe queria fazer uma pergunta, porque é que nunca sente a necessidade de vir falar com o seu director? Porque o senhor me disse que não tinha nada que ver com a cultura, senhor director, disse Pereira. Olhe, doutor Pereira, disse o director, não sei se o senhor é duro de ouvido ou se não quer mesmo perceber, mas isto é uma convocatória, percebe agora?, o senhor é que de vez em quando devia pedir uma reunião comigo, mas já que chegámos a este ponto, e como o senhor é de compreensão lenta, sou eu que exijo a reunião consigo. Estou à sua disposição, disse Pereira, à sua completa disposição. Bem, concluiu o director, então venha ao jornal às cinco, até logo e bom dia, doutor Pereira.
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  526. Pereira apercebeu-se de que estava a suar ligeiramente. Mudou a camisa, que estava suada nos sovacos, e pensou ir para a redacção até às cinco da tarde. Depois disse de si para si que não havia nada para fazer na redacção, teria de ver a Celeste e desligar o telefone, mais valia ficar em casa. Voltou para a mesa da sala e pôs-se a traduzir Bernanos. É verdade que era um romance difícil, e mesmo lento, quem sabe o que pensariam dele os leitores do Lisboa, quando lessem o primeiro capítulo. No entanto continuou e traduziu algumas páginas. Quando chegou a hora do almoço pensou cozinhar qualquer coisa, mas a despensa estava desguarnecida. Afirma Pereira ter pensado que talvez pudesse comer qualquer coisa no Café Orquídea, mesmo sendo tarde, e ir depois ao jornal. Vestiu o fato claro e a gravata preta e saiu. Apanhou o eléctrico até ao Terreiro do Paço e aí outro para a Alexandre Herculano. Quando entrou no Café Orquídea eram quase três horas e o empregado estava a arrumar as mesas. Sente-se, doutor Pereira, disse Manuel cordialmente, para o senhor há sempre um prato, imagino que ainda não almoçou, é dura a vida dos jornalistas. Lá isso é, respondeu Pereira, especialmente para os jornalistas que não sabem nada, como nunca se sabe nada neste país, que novidades há? Parece que bombardearam barcos ingleses ao largo de Barcelona, respondeu Manuel, e que um barco de passageiros francês foi seguido até aos Dardanelos, foram os submarinos italianos, os italianos são muito bons com os submarinos, é a especialidade deles. Pereira pediu uma limonada sem açúcar e uma omelete com salsa. Sentou-se junto da ventoinha, mas nesse dia a ventoinha estava desligada. Desligámo-la, disse Manuel, o Verão já acabou, ouviu o temporal desta noite? Não ouvi nada, respondeu Pereira, dormi de um sono só, mas para mim ainda está calor. Manuel ligou a ventoinha e trouxe-lhe a limonada. E vinho, doutor Pereira, quando é que me dá a satisfação de lhe servir um copo de vinho? O vinho faz-me mal ao coração, respondeu Pereira, tem um jornal da manhã? Manuel trouxe-lhe um jornal. O título da primeira página era: Construções na areia na praia de Carcavelos. O Secretário Nacional da Propaganda inaugura a exposição dos pequenos artistas. Havia uma grande fotografia de meia página que mostrava as obras dos jovens artistas de praia: sereias, barcos, navios e baleias. Pereira voltou a página. Nas páginas interiores estava escrito: Valorosa resistência do contingente português em Espanha. A entrada do artigo dizia: «Os nossos soldados distinguem-se em mais uma batalha, cobertos à distância pelos submarinos italianos.» Pereira não teve vontade de ler o artigo e pôs o jornal em cima de uma cadeira. Acabou de comer a omelete e bebeu outra limonada sem açúcar. Depois pagou a conta, levantou-se, vestiu o casaco que tinha tirado e dirigiu-se a pé para a redacção central do Lisboa. Quando lá chegou eram cinco menos um quarto. Pereira entrou num café, afirma, e pediu uma aguardente. É verdade que lhe ia fazer mal ao coração, mas pensou: Paciência. Depois subiu o lanço de escadas do velho edifício onde estava instalada a redacção do Lisboa e cumprimentou a menina Filipa. Vou anunciá-lo, disse a menina Filipa. Não vale a pena, respondeu Pereira, anuncio-me eu mesmo, são cinco em ponto e o senhor director marcou-me encontro para as cinco. Bateu à porta e ouviu a voz do director dizer para entrar. Pereira abotoou o casaco e entrou. O director estava bronzeado, bastante bronzeado, via-se que tinha apanhado banhos de sol no parque das termas. Aqui me tem, senhor director, disse Pereira, estou à sua disposição, diga-me tudo o que tem para me dizer. Tudo, que não é muito, Pereira, disse o director, há mais de um mês que não nos víamos. Vimo-nos nas termas, disse Pereira, e o senhor pareceu-me satisfeito. Férias são férias, cortou cerce o director, não falemos das férias. Pereira sentou-se na cadeira que estava diante da secretária. O director pegou num lápis e começou a fazê-lo rolar no tampo da mesa. Doutor Pereira, disse, gostaria de o tratar por tu, se não se importa. Como queira, respondeu Pereira. Olha, Pereira, disse o director, conhecemo-nos há pouco tempo, desde a fundação deste jornal, mas sei que és um bom jornalista, trabalhaste durante quase trinta anos como repórter, conheces bem a vida e tenho a certeza de que me hás-de compreender. Farei o possível, disse Pereira. Pois bem, não estava à espera desta última coisa. Que coisa?, perguntou Pereira. O panegírico da França, disse o director, causou um grande descontentamento nos meios que contam. Que panegírico da França?, perguntou Pereira com ar surpreendido. Pereira!, exclamou o director, publicaste um conto de Alphonse Daudet que fala na guerra contra os alemães e que termina com a frase Viva a França. É um conto do século dezanove, respondeu Pereira. Será um conto do século dezanove, continuou o director, mas a verdade é que fala de uma guerra contra a Alemanha e tu não podes ignorar, Pereira, que a Alemanha é nossa aliada. O nosso governo não fez alianças, objectou Pereira, pelo menos oficialmente. Ora, Pereira, disse o director, vê se raciocinas, se não há alianças há pelo menos simpatias, fortes simpatias, temos as mesmas ideias que a Alemanha, tanto em política interna como externa, e estamos a dar apoio aos nacionalistas espanhóis como a Alemanha. Mas na censura não levantaram objecções, argumentou Pereira, deixaram passar o conto sem problemas. Na censura são uns pacóvios, disse o director, uns analfabetos, o director da censura é um homem inteligente, é um amigo meu, mas não pode ler pessoalmente as provas de todos os jornais portugueses, os outros são funcionários, uns desgraçados polícias pagos para não deixarem passar palavras subversivas como socialismo e comunismo, não podiam compreender um conto de Daudet que termina com Viva a França, nós é que temos de estar vigilantes, que devemos ser prudentes, somos nós, os jornalistas, que temos experiência histórica e cultural, que devemos vigiar-nos a nós próprios. Eu é que sou vigiado, afirma ter dito Pereira, de facto estou a ser vigiado por alguém. Explica-te melhor, Pereira, disse o director, que queres dizer com isso? Quero dizer que tenho uma telefonista na redacção, disse Pereira, deixei de receber chamadas directas, têm de passar todas pela Celeste, a porteira do prédio. Em todas as redacções é assim, replicou o director, se estiveres ausente há sempre alguém que recebe as chamadas e que responde por ti. Sim, disse Pereira, mas a porteira é uma informadora da polícia, tenho a certeza. Deixa-te disso, Pereira, disse o director, a polícia é que nos protege, vela pelo nosso sono, devias estar-lhe grato. Eu não estou grato a ninguém, senhor director, apenas me sinto grato ao meu profissionalismo e à recordação da minha mulher. Devemos sempre estar gratos às boas recordações, condescendeu o director, mas tu, Pereira, deves mostrar-me a página cultural antes de a publicares, é isso que exijo. Mas eu tinha-lhe dito que era um conto patriótico, insistiu Pereira, e o senhor aprovou dizendo que nos tempos que correm há necessidade de patriotismo. O director acendeu um cigarro e coçou a cabeça. De patriotismo português, disse, não sei me entendes, Pereira, de patriotismo português, tu não fazes senão publicar contos franceses, e os franceses não nos são simpáticos, não sei se me entendes, mas ouve, os nossos leitores precisam de uma boa página cultural portuguesa, tens dezenas de escritores à escolha em Portugal, até do século dezanove, para a próxima vez escolhe um conto de Eça de Queiroz, que conhecia Portugal a fundo, ou de Camilo Castelo Branco, que falou da paixão e teve uma vida movimentada entre amores e prisões, o Lisboa não é um jornal estrangeirado, e tu tens de encontrar as tuas raízes, regressar à tua terra, como diria o crítico Ferreira Mendes. Não conheço, respondeu Pereira. É um crítico nacionalista, explicou o director, escreve num jornal da concorrência, defende que os escritores portugueses devem regressar à sua terra. Eu nunca abandonei a minha terra, disse Pereira, estou pregado à terra como um esteio. Está certo, concordou o director, mas tens de me consultar sempre que tomares uma iniciativa, não sei se percebes. Percebo perfeitamente, disse Pereira, e desabotoou o primeiro botão do casaco. Bem, concluiu o director, parece que podemos ficar por aqui, gostava que as nossas relações fossem boas. Com certeza, disse Pereira, e despediu-se.
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  528. Quando saiu soprava um vento forte que fazia vergar as copas das árvores. Pereira começou por caminhar, depois parou para ver se passava algum táxi. Esteve vai-não-vai para ir jantar ao Café Orquídea, depois mudou de ideias e concluiu que era melhor tomar um café com leite em casa. Mas infelizmente não passava nenhum táxi e teve de esperar uma boa meia hora, afirma.
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  540. No dia seguinte, Pereira ficou em casa, afirma. Levantou-se tarde, tomou o pequeno-almoço e arrumou o romance de Bernanos, já que não seria publicado no Lisboa. Rebuscou entre os seus livros e encontrou as obras completas de Camilo Castelo Branco. Pegou numa novela ao acaso e começou a ler a primeira página. Achou-a enfadonha, faltava-lhe a leveza e a ironia dos franceses, era uma história sombria, nostálgica, cheia de problemas e pejada de tragédias. Pereira depressa se fatigou. Ter-lhe-ia apetecido falar com o retrato da mulher, mas adiou a conversa para mais tarde. Então fez uma tortilha sem salsa, comeu-a toda e foi-se deitar, adormeceu imediatamente e teve um belo sonho. Depois levantou-se e sentou-se numa poltrona a olhar para as janelas. Das janelas da sua casa viam-se as palmeiras do quartel fronteiro e de quando em quando ouvia-se um toque de clarim. Pereira não sabia decifrar os toques de clarim porque não tinha feito a tropa, e para ele não passavam de mensagens sem sentido. Ficou a olhar os ramos das palmeiras que se agitavam ao vento e pensou na sua infância. Passou uma boa parte da tarde deste modo, pensando na infância, mas é um assunto de que Pereira prefere não falar, porque nada tem que ver com esta história, afirma.
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  542. Por volta das quatro da tarde ouviu tocar a campainha. Pereira foi arrancado do seu torpor, mas não se mexeu. Achou estranho que alguém tocasse à sua campainha, pensou que talvez fosse a Piedade que tivesse voltado de Setúbal, talvez tivessem operado a irmã dela antes da data prevista. Voltou a ouvir-se a campainha, insistentemente, duas vezes, dois toques prolongados. Pereira levantou-se e puxou o fio que abria a porta da rua. Deixou-se ficar no vão da escada, ouviu a porta a fechar-se lentamente e passos apressados pelas escadas acima. Quando a pessoa que tinha entrado chegou ao patamar, Pereira não conseguiu distinguir quem era, porque estava escuro nas escadas e porque já não via muito bem.
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  544. Salve, doutor Pereira, disse uma voz que Pereira reconheceu, sou eu, posso entrar? Era Monteiro Rossi, Pereira deixou-o entrar e fechou imediatamente a porta. Monteiro Rossi deteve-se na entrada, tinha um saco pequeno na mão e vestia uma camisa de manga curta. Desculpe, doutor Pereira, disse Monteiro Rossi, depois explico-lhe tudo, há alguém no prédio? A porteira está em Setúbal, disse Pereira, os inquilinos de cima deixaram o andar vago, mudaram-se para o Porto. Acha que alguém me viu?, perguntou ansiosamente Monteiro Rossi. Estava a suar e gaguejava ligeiramente. Acho que não, disse Pereira, mas o que o traz por cá, de onde vem? Depois explico-lhe tudo, doutor Pereira, disse Monteiro Rossi, mas agora precisava de tomar um duche e mudar de camisa, estou exausto. Pereira acompanhou-o à casa de banho e deu-lhe uma camisa lavada, a sua camisa cor de caqui. Deve ficar-lhe larga, disse, mas paciência. Enquanto Monteiro Rossi tomava banho, Pereira dirigiu-se à entrada e deteve-se em frente do retrato da mulher. Teria querido dizer-lhe algumas coisas, afirma, por exemplo que Monteiro Rossi lhe tinha aparecido em casa e outras coisas mais. Mas não lhe disse nada, adiou a conversa para mais tarde e voltou à sala. Monteiro Rossi surgiu a nadar na camisa de Pereira, que lhe ficava larguíssima. Obrigado, doutor Pereira, disse, estou exausto, queria contar-lhe muita coisa mas estou mesmo exausto, precisava talvez de dormir um bocado. Pereira levou-o ao quarto e estendeu uma colcha de algodão em cima dos lençóis. Estenda-se aqui, disse, e tire os sapatos, não adormeça com os sapatos calçados porque o corpo não repousa, e esteja sossegado, eu acordo-o mais tarde. Monteiro Rossi deitou-se e Pereira fechou a porta e voltou para a sala. Arrumou os romances de Camilo Castelo Branco, pegou outra vez no livro de Bernanos e pôs-se a traduzir o resto do capítulo. Se não podia publicá-lo no Lisboa paciência, pensou, talvez pudesse publicá-lo em livro, pelo menos os portugueses teriam um bom livro para ler, um livro sério, ético, que tratava de problemas fundamentais, um livro que seria benéfico para a consciência dos leitores, pensou Pereira.
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  546. Às oito horas Monteiro Rossi continuava a dormir. Pereira foi para a cozinha, bateu quatro ovos, juntou-lhes uma colherzinha de mostarda de Dijon e uma pitada de orégãos e de manjerona. Queria fazer uma boa omelete com ervas aromáticas, provavelmente Monteiro Rossi estava com uma fome de lobo, pensou. Pôs a mesa para dois na sala, com uma toalha branca, os pratos de loiça das Caldas que o seu amigo Silva lhe tinha oferecido pelo casamento e pôs duas velas nos castiçais. Depois foi acordar Monteiro Rossi, mas entrou pé ante pé no quarto porque no fundo não lhe agradava acordá-lo. O rapaz estava deitado de costas e dormia com um braço pendendo de fora. Pereira chamou-o, mas Monteiro Rossi não acordou. Então Pereira sacudiu-lhe um braço e disse-lhe: Monteiro Rossi, são horas de jantar, se continua a dormir depois à noite não dorme, era melhor vir comer qualquer coisa. Monteiro Rossi precipitou-se para fora da cama com um ar aterrorizado. Esteja sossegado, disse Pereira, sou o doutor Pereira, aqui está em segurança. Foram para a sala e Pereira acendeu as velas. Enquanto preparava a omelete ofereceu a Monteiro Rossi um pâté de conserva que tinha encontrado na despensa e perguntou da cozinha: Que lhe aconteceu, Monteiro Rossi? Obrigado, respondeu Monteiro Rossi, obrigado pela hospitalidade, doutor Pereira, e obrigado também pelo dinheiro que me enviou, a Marta mandou-mo. Pereira levou a omelete para a mesa e pôs o guardanapo à volta do pescoço. Então, Monteiro Rossi, perguntou, que se passa? Monteiro Rossi precipitou-se sobre a comida como se não comesse há uma semana. Devagar, senão ainda se engasga, disse Pereira, coma com calma, que depois ainda há queijo, e conte lá. Monteiro Rossi engoliu o que tinha na boca e disse: O meu primo foi preso. Onde, perguntou Pereira, na pensão que lhe arranjei? Qual quê, respondeu Monteiro Rossi, foi preso no Alentejo quando andava a recrutar alentejanos, eu escapei por milagre. E agora?, perguntou Pereira. Agora estou encurralado, doutor Pereira, respondeu Monteiro Rossi, acho que andam à minha procura por Portugal inteiro, apanhei uma camioneta ontem à noite até ao Barreiro, depois apanhei o barco, do Cais do Sodré até aqui vim a pé porque não tinha dinheiro para os transportes. Alguém sabe que está aqui?, perguntou Pereira. Ninguém, respondeu Monteiro Rossi, nem sequer a Marta, a propósito, preciso de a contactar, dizer-lhe pelo menos que estou em segurança, porque o senhor não me vai mandar embora, pois não, doutor Pereira? Pode ficar aqui o tempo que quiser, respondeu Pereira, pelo menos até meados de Setembro, até voltar a Piedade, a porteira do prédio que é também a minha mulher-a-dias, a Piedade é uma pessoa de confiança, mas é porteira e as porteiras falam com outras porteiras, a sua presença não passaria despercebida. Não faz mal, disse Monteiro Rossi, daqui até quinze de Setembro hei-de encontar outro sítio, agora devia talvez falar com a Marta. Olhe, Monteiro Rossi, disse Pereira, deixe lá a Marta por agora, enquanto estiver aqui em casa não comunique com ninguém, fique sossegado e descanse. E o senhor o que faz, doutor Pereira, perguntou Monteiro Rossi, ainda se ocupa dos necrológios e das efemérides? Em parte, respondeu Pereira, mas os artigos que me escreveu são todos impublicáveis, guardei-os numa pasta na redacção, nem sei porque não os deitei fora. É a altura de lhe confessar uma coisa, murmurou Monteiro Rossi, desculpe se só agora lho digo, mas aqueles artigos não são tudo farinha do meu moinho. Que quer dizer com isso?, perguntou Pereira. Bem, doutor Pereira, a verdade é que a Marta me deu uma boa ajuda, em parte foi ela quem os fez, as ideias fundamentais são dela. Acho isso muito pouco correcto, replicou Pereira. Oh, respondeu Monteiro Rossi, não sei até que ponto, mas o senhor, doutor Pereira, sabe o que gritam os nacionalistas espanhóis?, gritam viva la muerte, e eu não sei escrever sobre a morte, eu gosto é da vida, doutor Pereira, e só por mim não teria sido capaz de escrever necrológios, de falar da morte, creia-me, não sou capaz de falar da morte. No fundo compreendo-o, afirma ter dito Pereira, nem eu já posso.
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  548. Caíra a noite e as velas derramavam uma luz ténue. Não sei porque faço tudo isto por si, Monteiro Rossi, disse Pereira. Talvez por ser boa pessoa, respondeu Monteiro Rossi. É demasiado simples, replicou Pereira, o mundo está cheio de boas pessoas que não se põem a procurar sarilhos. Então não sei, disse Monteiro Rossi, não faço ideia. O problema é que nem eu sei, disse Pereira, até aqui há uns dias punha-me muitas questões, mas talvez seja melhor deixar de o fazer. Foi buscar a ginjinha e Monteiro Rossi encheu o cálice dele. Pereira serviu-se apenas de uma cereja com um pouco do licor, porque temia quebrar a dieta.
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  550. Conte lá como foi, pediu Pereira, o que andou a fazer até agora no Alentejo? Percorremos toda a região, respondeu Monteiro Rossi, parando nos sítios seguros, nos sítios onde há mais fermento. Desculpe, interrompeu Pereira, mas o seu primo não me parece a pessoa mais indicada, só o vi uma vez, mas pareceu-me um bocado inexperiente, diria mesmo um pouco ingénuo, e depois nem sequer fala português. Sim, disse Monteiro Rossi, mas na vida civil é tipógrafo, sabe lidar com documentos, não há ninguém como ele para falsificar um passaporte. Então podia ter falsificado melhor o dele, disse Pereira, tinha um passaporte argentino e via-se a milhas de distância que era falso. Esse não foi ele que o fez, objectou Monteiro Rossi, deram-lho em Espanha. E concluindo?, perguntou Pereira. Bem, respondeu Monteiro Rossi, em Portalegre encontrámos uma tipografia de confiança e o meu primo atirou-se ao trabalho, fizemos uma coisa com todos os efes e erres, o meu primo fabricou um bom número de passaportes, distribuímos uma boa parte, os outros fiquei eu com eles porque não tivemos tempo. Monteiro Rossi pegou no saco que tinha deixado na poltrona e enfiou a mão lá dentro. Olhe os que me sobraram, disse. Colocou em cima da mesa um maço de passaportes, deviam ser uns vinte. Você é doido, meu caro Monteiro Rossi, disse Pereira, anda por aí com esse material no saco como se fossem rebuçados, se o encontram com estes documentos ainda se lixa.
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  552. Pereira pegou nos passaportes e disse: Estes escondo-os eu. Pensou metê-los numa gaveta, mas pareceu-lhe um sítio pouco seguro. Por isso dirigiu-se para a entrada e enfiou-os ao alto na estante, mesmo por detrás do retrato da mulher. Desculpa, disse para o retrato, mas aqui ninguém os vem procurar, é o sítio mais seguro de toda a casa. Depois voltou para a sala e disse: Fez-se tarde, talvez seja melhor ir-se deitar. Tenho de contactar a Marta, disse Monteiro Rossi. Está em cuidados, não sabe o que me aconteceu, se calhar pensa que também fui preso. Olhe, Monteiro Rossi, disse Pereira, eu telefono à Marta amanhã, mas de um telefone público, por hoje é melhor estar sossegado e ir-se deitar, escreva o número do telefone neste papel. Vou dar-lhe dois números, disse Monteiro Rossi, se um não responder, o outro responde de certeza, se não for ela a responder peça para chamarem a Lise Delaunay, é assim que ela agora se chama. Eu sei, confessou Pereira, encontrei-a um dia destes, aquela rapariga está magra como um cão, está irreconhecível, esta vida não lhe faz nada bem, Monteiro Rossi, está a dar cabo da saúde dela, e agora boa noite.
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  554. Pereira apagou as velas e perguntou a si próprio porque é que se tinha metido em toda aquela história, porquê albergar Monteiro Rossi, porquê telefonar a Marta e deixar mensagens cifradas, porquê meter-se em coisas que não lhe diziam respeito? Seria por ver Marta assim tão magra com as omoplatas saídas nas costas, que pareciam duas asas de frango? Seria por Monteiro Rossi não ter pai nem mãe que o protegessem? Seria por ter estado na Parede e o doutor Cardoso lhe ter exposto a sua teoria sobre a confederação das almas? Pereira não sabia e ainda hoje não saberia responder. Preferiu ir-se deitar pois no dia seguinte queria levantar-se cedo e organizar bem o seu dia, mas antes de se ir deitar foi por um instante até à entrada dar uma olhadela ao retrato da mulher. Mas Pereira não lhe disse nada, fez-lhe apenas um aceno afectuoso com a mão, afirma.
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  566. Naquela manhã de fins de Agosto, Pereira acordou às oito, afirma. Durante a noite tinha acordado por várias vezes e ouvira o crepitar da chuva nas palmeiras do quartel fronteiro. Não se lembra de ter sonhado, tinha dormido intermitentemente, com um ou outro sonho esparso, é certo, mas que não recorda. Monteiro Rossi dormia no divã da sala, tinha vestido um pijama que de tão largo lhe servia praticamente de lençol. Dormia todo encolhido, como se tivesse frio, e Pereira cobriu-o com uma manta, delicadamente, para não o acordar. Circulou pela casa cautelosamente, para não fazer barulho, fez um café e foi fazer as compras à loja da esquina. Comprou quatro latas de sardinhas, uma dúzia de ovos, tomate, um melão, pão, oito pastéis de bacalhau daqueles já feitos, que bastava aquecer no forno. Pereira reparou então num pequeno presunto fumado coberto de colorau pendurado num gancho e comprou-o também. Parece que decidiu reabastecer a despensa, doutor Pereira, comentou o merceeiro. Pois é, respondeu Pereira, a minha mulher-a-dias só chega lá para meados de Setembro, está em casa da irmã em Setúbal, e eu tenho de me desenrascar, não posso fazer compras todos os dias. Se quiser posso arranjar-lhe uma pessoa jeitosa para as limpezas, disse o merceeiro, mora já aqui acima, quem vai para a Graça, tem um filho pequeno, o marido deixou-a, é uma pessoa de confiança. Não, obrigado, respondeu Pereira, obrigado, senhor Francisco, mas é melhor não, não sei como iria reagir a Piedade, as mulheres-a-dias são muito ciumentas e ela podia sentir-se desconsiderada, talvez para o Inverno, talvez seja uma ideia, mas agora é melhor esperar que a Piedade volte.
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  568. Pereira entrou em casa e meteu as compras no frigorífico. Monteiro Rossi dormia. Pereira deixou-lhe um recado. «Há ovos com presunto ou pastéis de bacalhau para aquecer, pode aquecê-los na frigideira mas com pouco azeite, senão ficam uma papa, almoce bem e fique sossegado, volto ao fim da tarde, vou falar à Marta, até logo, Pereira.»
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  570. Saiu de casa e dirigiu-se à redacção. Quando chegou encontrou Celeste no seu cubículo ocupada com um calendário. Bom dia, Celeste, disse Pereira, há novidades? Nem telefonemas nem correio, respondeu Celeste. Pereira sentiu-se aliviado, era melhor que ninguém o tivesse procurado. Subiu para a redacção e desligou o telefone, depois pegou no conto de Camilo Castelo Branco e preparou-o para a tipografia. Por volta das dez telefonou para o jornal e respondeu-lhe a voz suave da menina Filipa. Daqui é o doutor Pereira, disse Pereira, queria falar com o senhor director. Filipa passou a chamada e a voz do director disse: Está. Daqui é o doutor Pereira, disse Pereira, era só para saber se é preciso alguma coisa, senhor director. E fez muito bem, disse o director, porque ontem procurei-o mas o senhor não estava na redacção. Ontem não me sentia bem, mentiu Pereira, fiquei em casa porque estava mal do coração. Compreendo, doutor Pereira, disse o director, mas gostava de saber quais são os seus planos para as próximas páginas culturais. Vou publicar um conto de Camilo Castelo Branco, respondeu Pereira, como o senhor me sugeriu, senhor director, parece-me que um autor português do século dezanove é indicado para o jornal, o que é que o senhor acha? Acho bem, respondeu o director, mas também gostava que continuasse a rubrica das efemérides. Tinha pensado em fazer Rilke, respondeu Pereira, mas depois não fiz, queria a sua autorização. Rilke, disse o director, o nome diz-me qualquer coisa. Rainer Maria Rilke, explicou Pereira, nasceu na Checoslováquia, mas é praticamente um poeta austríaco, escreveu em alemão, morreu em vinte e seis. Olhe, Pereira, disse o director, como já lhe disse acho que o Lisboa está a ficar um jornal estrangeirado, porque não faz uma efeméride sobre um poeta da pátria, porque não faz uma sobre o nosso grande Camões? Camões?, respondeu Pereira, mas Camões morreu em mil quinhentos e oitenta, há quase quatrocentos anos. Sim, disse o director, mas é o nosso poeta nacional, é sempre actualíssimo, e não sei se sabe o que fez António Ferro, o director do Secretariado Nacional de Propaganda, enfim o Ministério da Cultura, teve a brilhante ideia de fazer coincidir o Dia de Camões com o Dia da Raça, nesse dia comemora-se o grande poeta épico e a raça portuguesa e o senhor podia fazer uma efeméride sobre isso. Mas o dia de Camões é a dez de Junho, senhor director, objectou Pereira, que sentido é que faz comemorar o Dia de Camões no fim de Agosto? Enfim, no dez de Junho ainda não tínhamos a página cultural, explicou o director, e você podia dizer isso no artigo, além disso é sempre altura para homenagear Camões, que é o nosso poeta nacional, e fazer uma referência ao Dia da Raça, basta uma referência para os leitores compreenderem. O senhor director desculpe, respondeu Pereira educadamente, mas deixe-me dizer-lhe uma coisa, nós na origem éramos lusitanos, depois tivemos os romanos e os celtas, depois tivemos os árabes, que raça é que nós portugueses podemos comemorar? A raça portuguesa, respondeu o director. Desculpe, Pereira, mas a sua objecção não me soa nada bem, nós somos portugueses, descobrimos o mundo, realizámos as maiores navegações do globo, e quando o fizemos, no século dezasseis, já éramos portugueses, é isso que nós somos e é isso que deve comemorar, Pereira. Depois o director fez uma pausa e continuou: Pereira, da última vez tratava-te por tu, não sei porque é que agora continuo a tratar-te por você. Como quiser, senhor director, respondeu Pereira, talvez seja efeito do telefone. Talvez, disse o director, mas ouve bem isto, Pereira, quero que o Lisboa seja um jornal bem português mesmo na página cultural e se não te agrada fazer uma efeméride sobre o Dia da Raça, deves ao menos fazer uma sobre Camões, já é alguma coisa.
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  572. Pereira despediu-se do director e desligou. O António Ferro, pois, pensou, o pior é que era um homem inteligente e arguto, e pensar que tinha sido amigo de Fernando Pessoa, bem, concluiu, também aquele Pessoa escolhia uns belos amigos. Tentou escrever uma efeméride sobre Camões, e esteve nisso até ao meio-dia e meia. Depois deitou tudo ao cesto dos papéis. Camões que fosse também para o diabo, pensou, o grande poeta que cantou o heroísmo dos portugueses, mas qual heroísmo, disse Pereira para si mesmo. Enfiou o casaco e saiu para ir ao Café Orquídea. Entrou e sentou-se na mesa do costume. Manuel acorreu solícito e Pereira pediu uma salada de peixe. Comeu devagar, muito devagar, e depois dirigiu-se ao telefone. Tinha na mão o papel com os números que Monteiro Rossi lhe tinha dado. Marcou o primeiro. Ouviu chamar durante muito tempo, mas ninguém respondeu. Pereira marcou-o de novo, para o caso de se ter enganado. Ninguém respondeu novamente. Marcou então o outro número. Respondeu uma voz feminina. Está, disse Pereira, queria falar com a menina Delaunay. Não conheço, respondeu a voz feminina com hesitação. Bom dia, repetiu Pereira, queria falar com a menina Delaunay. Mas quem fala, perguntou a voz feminina. Oiça, minha senhora, disse Pereira, tenho um recado urgente para Lise Delaunay, pode passar-ma por favor? Aqui não há nenhuma Lise, disse a voz feminina, deve ser engano, quem lhe deu este número? Quem mo deu não interessa, replicou Pereira, mas já que não posso falar com Lise, passe-me pelo menos a Marta. Marta?, exclamou surpreendida a voz feminina, Marta quê?, há tantas Martas neste mundo. Pereira lembrou-se que não sabia o apelido de Marta e por isso disse apenas: É uma rapariga magra, loira, que também dá pelo nome de Lise Delaunay, eu sou um amigo e tenho um recado importante para ela. Lamento, disse a voz feminina, mas aqui não há nenhuma Marta nem nenhuma Lise, bom dia. O telefone fez clique e Pereira ficou com o auscultador na mão. Desligou e voltou para a mesa. O que é que toma?, perguntou Manuel aproximando-se solícito. Pereira pediu uma limonada com açúcar, depois perguntou: Há novidades interessantes? Vou sabê-las hoje às oito, disse Manuel, tenho um amigo que apanha a Rádio Londres, se quiser amanhã conto-lhe tudo.
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  574. Pereira bebeu a limonada e pagou a conta. Saiu e foi para a redacção. Viu Celeste metida no seu cubículo, ainda a consultar o calendário. Há alguma novidade para mim?, perguntou Pereira. Houve uma chamada para o senhor, disse Celeste, era uma mulher mas não quis deixar recado. Disse o nome?, perguntou Pereira. Era um nome estrangeiro, respondeu Celeste, mas não me lembro. Porque não o escreveu?, disse-lhe Pereira em tom de censura, se a Celeste faz de telefonista, tem de escrever os recados. Já escrevo mal português, quanto mais os nomes estrangeiros, era um nome complicado. Pereira sentiu um aperto no coração e perguntou: E que lhe disse essa pessoa, o que é que ela queria, Celeste? Disse que tinha um recado para o senhor e que procurava o senhor Rossi, que nome esquisito, eu respondi-lhe que não havia cá nenhum Rossi, que aqui era a redacção cultural do Lisboa, por isso telefonei para a redacção central porque pensei que o senhor lá estivesse, queria avisá-lo, mas o senhor não estava e eu deixei um recado a dizer que o procuravam da parte de uma senhora estrangeira, uma tal Lise, lembrei-me agora. E disse para o jornal que procuravam o senhor Rossi?, perguntou Pereira. Não, doutor Pereira, respondeu Celeste com ar manhoso, isso não disse, pareceu-me inútil, disse só que uma tal Lise o procurava, não se preocupe, doutor Pereira, se precisam de o ver hão-de encontrá-lo. Pereira consultou o relógio. Eram quatro da tarde, desistiu de subir e despediu-se de Celeste. Olhe, Celeste, disse, vou para casa porque não me sinto bem, se telefonar alguém para mim diga-lhe que ligue para minha casa, amanhã talvez não venha à redacção, fique-me você com o correio.
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  576. Quando chegou a casa eram quase sete horas. Tinha-se demorado um bom bocado no Terreiro do Paço, sentado num banco, a olhar os cacilheiros que iam para a outra margem do Tejo. Estava um belo fim de tarde, e Pereira quis ficar a gozá-lo. Acendeu um charuto e aspirou o fumo avidamente. Estava sentado num banco em frente ao rio e junto dele veio sentar-se um mendigo com um acordeão que começou a tocar velhas canções de Coimbra.
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  578. Quando Pereira entrou em casa não viu logo Monteiro Rossi, o que o alarmou, afirma. Mas Monteiro Rossi estava na casa de banho a fazer as suas abluções. Estou a fazer a barba, doutor Pereira, gritou Monteiro Rossi, só cinco minutos e já vou. Pereira tirou o casaco e pôs a mesa. Pôs os pratos de loiça das Caldas, os mesmos do dia anterior. Dispôs em cima da mesa duas velas que tinha comprado nessa manhã. Depois foi para a cozinha e pensou no que poderia fazer para o jantar. Quem sabe porque lhe terá ocorrido fazer um prato italiano, apesar de não conhecer a cozinha italiana. Pensou em inventar um prato, afirma Pereira. Cortou uma boa fatia de presunto e dividiu-a em pequenos cubos, depois bateu dois ovos, misturou queijo ralado e juntou-lhes o presunto, acrescentou orégãos e manjerona, bateu tudo muito bem e depois pôs uma panela de água a ferver para a massa. Quando a água começou a ferver meteu o esparguete que tinha na despensa há algum tempo. Monteiro Rossi surgiu fresco como uma alface, vestindo a camisa de Pereira cor de caqui que o envolvia como um lençol. Pensei fazer um prato italiano, disse Pereira, não sei se será realmente italiano, talvez seja uma fantasia, mas pelo menos é massa. Que delícia, exclamou Monteiro Rossi, há séculos que não comia massa. Pereira acendeu as velas e serviu o esparguete. Tentei telefonar à Marta, disse, mas do primeiro número ninguém responde e do segundo responde uma senhora a fazer-se de parva, disse-lhe mesmo que queria falar com a Marta, mas não serviu de nada, quando cheguei à redacção a porteira disse-me que tinham perguntado por mim, provavelmente era a Marta, mas também perguntou por si, talvez tenha sido imprudente da parte dela, de qualquer modo agora talvez alguém já saiba que estou em contacto consigo, parece-me que isto nos vai criar problemas. Então que devo fazer?, perguntou Monteiro Rossi. Se tiver um sítio mais seguro é melhor sair daqui, senão fique e logo se vê, respondeu Pereira. Foi buscar a ginjinha e tirou uma ginja sem licor. Monteiro Rossi serviu-se de um cálice cheio. Nesse momento ouviram bater à porta. Eram pancadas enérgicas como se a quisessem arrombar. Pereira interrogou-se como teriam conseguido entrar pela porta da rua e ficou um momento em silêncio. As pancadas repetiram-se violentamente. Quem é?, perguntou Pereira, que é que quer? Abra, é a polícia, abra a porta ou rebentamo-la a tiro, respondeu uma voz. Monteiro Rossi recuou precipitadamente para o quarto, e apenas teve forças para dizer: Os documentos, doutor Pereira, esconda os documentos. Já estão em segurança, tranquilizou-o Pereira, e dirigiu-se para a entrada para abrir a porta. Quando passou em frente ao retrato da mulher deitou um olhar cúmplice àquele sorriso distante. Depois abriu a porta, afirma.
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  590. Afirma Pereira que eram três homens à paisana e que estavam armados com pistolas. O primeiro que entrou era um magricela baixo com um bigodito e pêra castanhos. Polícia política, disse o magricela baixo com ar de ser o chefe, temos de revistar a casa, procuramos uma pessoa. Mostre-me o seu cartão de identificação, opôs-se Pereira. O magricela baixo voltou-se para os seus dois acompanhantes, dois rufiões vestidos de escuro, e disse: Ei, rapazes, ouviram esta, que é que acham? Um dos dois encostou a pistola à boca de Pereira e sussurrou: Isto chega-te como identificação, gordaço? Então rapazes, disse o magricela baixo, não me tratem assim o doutor Pereira, é um bom jornalista, que escreve num jornal de todo o respeito, talvez demasiado católico, não o nego, mas que segue as posições certas. E depois continuou: Olhe, doutor Pereira, não nos faça perder tempo, não viemos para dar dois dedos de conversa, e perder tempo não é o nosso forte, e também sabemos que não tem nada que ver com isto, o senhor é uma pessoa de bem, simplesmente não percebeu com quem estava metido, deu confiança a um tipo suspeito, mas não quero criar-lhe problemas, deixe-nos só fazer o nosso trabalho. Sou o director da página cultural do Lisboa, disse Pereira, quero falar com alguém, vou telefonar ao meu director, ele sabe que estão em minha casa? Então, doutor Pereira, respondeu o magricela baixo com voz melíflua, o senhor acha que se fazemos uma operação policial vamos avisar primeiro o seu director?, tem cada uma. Mas vocês não são da polícia, insistiu Pereira, não se identificaram, estão à paisana, não têm nenhum mandado para entrar em minha casa. O magricela baixo voltou-se de novo para os dois rufiões com um sorrisinho e disse: O dono da casa é teimoso, rapazes, não sei o que será preciso para o convencermos. O homem que tinha a pistola apontada a Pereira deu-lhe uma estalada com toda a força e Pereira cambaleou. Então, Fonseca, não faças isso, disse o magricela baixo, não deves maltratar o doutor Pereira, senão ainda mo assustas de mais, é um homem frágil, apesar do volume, interessado pela cultura, é um intelectual, o doutor Pereira deve ser convencido com bons modos, senão ainda se acagaça. O rufião chamado Fonseca mandou outra bofetada a Pereira e Pereira cambaleou de novo, afirma. Fonseca, disse o magricela baixo com um sorriso, tens a mão demasiado lesta, tenho de te ter debaixo de olho senão ainda me dás cabo do trabalho. Depois voltou-se para Pereira e disse-lhe: Doutor Pereira, como lhe disse não temos nada contra o senhor, viemos só dar uma liçãozinha a um moço que está aqui em sua casa, uma pessoa que anda a precisar de uma liçãozinha porque não sabe quais são os valores da pátria, esqueceu-os, coitado, e nós viemos para lhos recordar. Pereira esfregou a cara e murmurou: Não está cá ninguém. O magricela baixo girou os olhos à sua volta e disse: Olhe, doutor Pereira, facilite-nos a tarefa, só temos de perguntar umas coisas ao seu jovem hóspede, vamos só fazer-lhe um pequeno interrogatório e ver se ele recupera os valores patrióticos, não queremos fazer mais nada, foi para isso que viemos. Então deixe-me telefonar à polícia, insistiu Pereira, eles que venham e o levem para a esquadra, lá é que se fazem os interrogatórios, não é em casa. Então, doutor Pereira, disse o magricela baixo com o seu sorrisinho, o senhor não é mesmo nada compreensivo, a sua casa é o ideal para um interrogatório privado como o nosso, a sua porteira não está, os seus vizinhos foram para o Porto, a noite está sossegada e este prédio é uma maravilha, mais discreto que uma esquadra da polícia.
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  592. Depois fez um sinal ao rufião a quem chamara Fonseca e este empurrou Pereira até à casa de jantar. Os homens olharam em torno mas não viram ninguém, apenas a mesa posta com os restos do jantar. Um jantarinho íntimo, doutor Pereira, disse o magricela baixo, vejo que fizeram um jantarinho íntimo com velas e tudo, mas que romântico. Pereira não respondeu. Olhe, doutor Pereira, disse o magricela baixo com ar melífluo, o senhor é viúvo e não anda com mulheres, como vê sei tudo sobre si, será que por acaso lhe agradam os rapazinhos novos? Pereira passou a mão pela cara novamente e disse: O senhor é infame, e tudo isto é infame. Vá lá, doutor Pereira, continuou o magricela baixo, um homem é um homem, o senhor bem o sabe, e se lhe aparece um belo rapazinho loiro com um belo rabinho a coisa compreende-se. E depois, em tom duro e enérgico, prosseguiu: Temos de lhe virar a casa do avesso ou prefere cooperar? Está ali, respondeu Pereira, no escritório ou no quarto. O magricela baixo deu ordens aos dois rufiões. Fonseca, disse, nada de mão muito pesada, não quero problemas, basta dar-lhe uma liçãozinha e saber o que queremos saber, e tu, Braga, porta-te bem, já sei que trouxeste a matraca escondida por baixo da camisa, mas lembra-te de que não quero pancadas na cabeça, quando muito nas costas e nos pulmões, que doem mais e não deixam marcas. Está bem, chefe, responderam os dois rufiões. Entraram no escritório e fecharam a porta atrás deles. Bem, disse o magricela baixo, bem, doutor Pereira, enquanto os meus dois assistentes fazem o trabalho deles podemos conversar um bocadinho. Quero telefonar à polícia, repetiu Pereira. À polícia, sorriu-se o magricela baixo, mas a polícia sou eu, doutor Pereira, ou pelo menos estou a fazer as vezes da polícia, porque mesmo a nossa polícia à noite está a dormir, sabe, temos uma polícia que nos protege todo o santo dia, mas à noite vai dormir porque está exausta, com todos os patifes que por aí andam à solta, com gente como o seu hóspede, que perdeu o sentido da pátria, mas diga-me lá, doutor Pereira, porque se meteu nesta encrenca? Não me meti em encrenca nenhuma, respondeu Pereira, apenas arranjei um ajudante para o Lisboa. Certo, doutor Pereira, certo, disse o magricela baixo, mas primeiro o senhor devia ter pedido informações, devia consultar a polícia ou o seu director, fornecer a identidade do seu possível ajudante, posso servir-me de uma ginjinha?
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  594. Pereira afirma que nessa altura se levantou da cadeira. Tinha-se sentado porque parecia que o coração lhe saltava do peito, mas nessa altura levantou-se e disse: Ouvi gritar, vou ver o que se passa no meu quarto. O magricela baixo apontou-lhe a pistola. Se fosse a si não ia, doutor Pereira, disse, os meus homens estão a fazer um trabalho delicado e não seria muito agradável para o senhor assistir, o senhor é um homem sensível, doutor Pereira, é um intelectual, e além disso sofre do coração, certos espectáculos não lhe fazem bem. Quero telefonar ao meu director, insistiu Pereira, deixe-me telefonar ao meu director. O magricela baixo fez um sorriso irónico. O seu director está a dormir, replicou, talvez esteja a dormir abraçado a uma bela mulher, sabe, o seu director é um homem a sério, doutor Pereira, um homem com colhões, não é como você, que anda atrás dos rabinhos dos rapazinhos loiros. Pereira inclinou-se para diante e deu-lhe uma bofetada. O magricela baixo, de imediato, bateu-lhe com a pistola e Pereira começou a sangrar da boca. Não devia ter feito isso, doutor Pereira, disse o homem, disseram-me para o respeitar, mas tudo tem um limite, não tenho culpa que o senhor seja um imbecil que recebe subversivos em casa, podia enfiar-lhe uma bala nas goelas e até o faria de bom grado, só não o faço porque me disseram para o tratar com respeito, mas não abuse, doutor Pereira, não abuse, porque posso perder a paciência.
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  596. Pereira afirma que nessa altura ouviu outro grito sufocado e que se atirou contra a porta do escritório. Mas o magricela baixo interpôs-se e deu-lhe um empurrão. O empurrão foi mais forte que o peso de Pereira, e Pereira recuou. Olhe, doutor Pereira, disse o magricela baixo, não me obrigue a usar a pistola, estava mesmo a apetecer-me enfiar-lhe uma bala nas goelas ou talvez no coração, que é o seu ponto fraco, mas não o faço porque não queremos mortos, só cá viemos para dar uma lição de patriotismo, e ao senhor também não lhe fazia mal um pouco de patriotismo, já que no seu jornal só publica escritores franceses. Pereira voltou a sentar-se, afirma, e disse: Os escritores franceses são os únicos que têm coragem nos dias de hoje. Deixe que lhe diga que os escritores franceses são uns merdas, disse o magricela baixo, deviam ser todos encostados a um muro e depois de mortos mijarem-lhes em cima. O senhor é uma pessoa reles, disse Pereira. Reles mas patriota, respondeu o homem, não sou como o senhor, doutor Pereira, que procura cumplicidade nos escritores franceses.
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  598. Nesse momento os dois rufiões abriram a porta. Pareciam nervosos e tinham um ar agitado. O rapaz não queria falar, disseram, demos-lhe uma lição, tivemos de usar métodos fortes, talvez seja melhor pirarmo-nos. Fizeram alguma asneira?, perguntou o magricela baixo. Não sei, respondeu o que se chamava Fonseca, acho melhor desandar. E precipitou-se para a porta seguido pelo outro. Olhe, doutor Pereira, disse o magricela baixo, o senhor nunca nos viu em sua casa, não se arme em esperto, não fale com ninguém, lembre-se de que isto foi uma visita de cortesia, porque da próxima vez pode ser que seja para si. Pereira fechou a porta à chave e ouviu-os descer as escadas, afirma. Depois precipitou-se para o quarto e deparou com Monteiro Rossi de costas no tapete. Pereira deu-lhe umas palmadas no rosto e disse: Monteiro Rossi, coragem, já passou. Mas Monteiro Rossi não deu sinal de vida. Então, Pereira foi à casa de banho, molhou uma toalha e passou-lha pelo rosto. Monteiro Rossi, repetiu, já passou, já se foram embora, acorde. Só nessa altura se apercebeu de que a toalha estava toda ensopada em sangue e reparou que o cabelo de Monteiro Rossi estava cheio de sangue. Monteiro Rossi tinha os olhos escancarados e fitava o tecto. Pereira deu-lhe mais umas palmadas, mas Monteiro Rossi não se mexeu. Então, Pereira tomou-lhe o pulso, mas nas veias de Monteiro Rossi a vida deixara de correr. Fechou-lhe aqueles olhos claros esbugalhados e cobriu-lhe o rosto com a toalha. Depois esticou-lhe as pernas, para não ficar assim encolhido, esticou-lhe as pernas como devem estar esticadas as pernas de um morto. E pensou que agora tinha de se despachar, despachar mesmo; já não tinha muito tempo, afirma Pereira.
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  610. Afirma Pereira que lhe ocorreu uma ideia louca, mas que talvez pudesse pôr em prática, pensou. Vestiu o casaco e saiu. Em frente à Sé havia um café que ficava aberto até tarde e que tinha telefone. Pereira entrou e olhou à sua volta. No café estava um grupo de noctívagos a jogar às cartas com o dono. O empregado era um rapaz sonolento que preguiçava atrás do balcão. Pereira pediu uma limonada, dirigiu-se ao telefone e marcou o número da Clínica Talassoterápica da Parede. Pediu para falar ao doutor Cardoso. O doutor Cardoso já foi para o quarto, quem é que fala?, disse a voz da telefonista. Daqui é o doutor Pereira, disse Pereira, preciso de falar com ele urgentemente. Vou chamá-lo mas tem de esperar uns minutos, disse a telefonista, é o tempo de descer. Pereira esperou pacientemente até vir o doutor Cardoso. Boa noite, doutor Cardoso, disse Pereira, queria contar-lhe uma coisa muito importante, mas agora não posso. Que se passa, doutor Pereira, perguntou o doutor Cardoso, não se sente bem? Realmente não me sinto bem, respondeu Pereira, mas isso não interessa, o que se passa é que houve um problema muito grave em minha casa, não sei se tenho o telefone vigiado, mas não interessa, agora não lhe posso dizer mais nada, preciso da sua ajuda, doutor Cardoso. De que maneira?, perguntou o doutor Cardoso. Olhe, doutor Cardoso, disse Pereira, vou-lhe telefonar amanhã ao meio-dia, o senhor tem de me fazer um favor, tem de fingir que é um dos manda-chuvas da Censura, e dizer que o meu artigo recebeu o visto, é só isso. Não percebo, replicou o doutor Cardoso. Olhe, doutor Cardoso, disse Pereira, estou a telefonar de um café e não posso estar a explicar, tenho um problema em casa que o senhor nem pode imaginar, mas vai ficar a saber quando ler o Lisboa à tarde, vai trazer tudo preto no branco, mas o senhor tem de me fazer um grandecíssimo favor, tem de declarar que o meu artigo tem a sua autorização, compreende?, tem de dizer que a polícia portuguesa não tem medo dos escândalos, que é uma polícia séria e não tem medo dos escândalos. Já percebi, disse o doutor Cardoso, fico à espera da sua chamada amanhã ao meio-dia.
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  612. Pereira voltou para casa. Entrou no quarto e retirou a toalha do rosto de Monteiro Rossi. Cobriu-o com um lençol. Depois dirigiu-se para o escritório e sentou-se em frente da máquina de escrever. Escreveu como título: Assassinado um jornalista. Depois mudou de linha e começou a escrever: «Chamava-se Francisco Monteiro Rossi, era de origem italiana. Colaborava no nosso jornal com artigos e necrológios. Escreveu vários textos sobre grandes escritores da nossa época, como Maiakovski, Marinetti, D’Annunzio, García Lorca. Os seus artigos não foram ainda publicados, mas talvez o sejam um dia. Era um rapaz alegre, que amava a vida e que todavia fora encarregado de escrever sobre a morte, tarefa a que não se furtou. Mas a noite passada a morte veio procurá-lo. Ontem à noite, quando jantava em casa do director da página cultural do Lisboa, o doutor Pereira, que escreve este artigo, três homens armados irromperam pela casa. Declararam pertencer à polícia política, mas não mostraram nenhum documento que o confirmasse. Inclinamo-nos a excluir a possibilidade de se tratar realmente da polícia, pois estavam vestidos à paisana e porque acreditamos que a polícia do nosso país não use tais métodos. Eram verdadeiros facínoras, que actuavam com cumplicidades que desconhecemos, e seria bom que as autoridades indagassem sobre este ignóbil acontecimento. Eram chefiados por um homem magro e baixo, de pêra e bigode, que os outros tratavam por chefe. Os outros dois foram identificados pelo chefe, que várias vezes os chamou pelo nome. Se os nomes não eram falsos, chamam-se Fonseca e Braga, são ambos altos e robustos, de tez escura e aspecto pouco inteligente. Enquanto o homem magro e baixo mantinha sob a ameaça de uma arma o autor deste artigo, o Fonseca e o Braga arrastaram Monteiro Rossi para o quarto para o interrogar, segundo eles próprios declararam. Quem assina este artigo ouviu pancadas e gritos sufocados. Depois os dois homens disseram que o trabalho estava feito. Os três abandonaram precipitadamente a casa do abaixo-assinado, ameaçando-o de morte caso divulgasse o que aconteceu. O autor deste artigo dirigiu-se ao quarto, mas já nada pôde fazer, limitando-se a constatar a morte do jovem Monteiro Rossi. Fora espancado brutalmente, e os golpes, desferidos com uma matraca ou a coronha de uma pistola, tinham-lhe fracturado o crânio. O seu corpo encontra-se actualmente no segundo andar do número 22 da Rua da Saudade, em casa do abaixo-assinado. Monteiro Rossi era órfão e não tinha família. Estava apaixonado por uma bonita e doce rapariga cujo nome desconhecemos. Apenas sabemos que tinha o cabelo dourado e que amava a cultura. A esta rapariga, caso nos esteja a ler, apresentamos os nossos mais sinceros sentimentos e a nossa afectuosa saudação. Apelamos às autoridades competentes para que investiguem atentamente estes episódios de violência que à sua sombra, e talvez com a cumplicidade de alguém, se perpetram hoje em Portugal.»
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  614. Pereira mudou de linha e em baixo, à direita, pôs o seu nome: Pereira. Assinou só Pereira, pois era assim que todos o conheciam, pelo apelido, como tinha sempre assinado as suas reportagens durante tantos anos.
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  616. Levantou os olhos para a janela e viu que já alvorecia por cima dos ramos das palmeiras do quartel fronteiro. Ouviu um toque de clarim. Pereira estendeu-se numa poltrona e adormeceu. Quando acordou era já dia claro e Pereira olhou alarmado para o relógio. Pensou que tinha de se despachar, afirma. Fez a barba, enxaguou a cara com água fria e saiu. Apanhou um táxi junto à Sé e mandou seguir para a redacção. No seu cubículo estava a Celeste, que o cumprimentou com ar cordial. Não há nada para mim?, perguntou Pereira. Nada de novo, doutor Pereira, respondeu Celeste, a não ser que me deram uma semana de férias. E apontando o calendário continuou: Volto no próximo sábado, durante uma semana tem de se arranjar sem mim, hoje em dia o Estado protege os menos favorecidos, enfim, as pessoas como eu, por alguma razão somos um Estado corporativo. Vamos tentar não sentir demasiado a sua falta, murmurou Pereira, e subiu as escadas. Entrou na redacção e retirou do arquivo a pasta em que tinha escrito «Necrológios». Meteu-a numa carteira de couro e saiu. Deteve-se no Café Orquídea e pensou que ainda tinha tempo para se sentar cinco minutos e tomar uma bebida. Uma limonada, doutor Pereira?, perguntou Manuel, solícito, enquanto ele se sentava. Não, respondeu Pereira, um porto seco, prefiro um porto seco. Grande novidade, doutor Pereira, disse Manuel, e para mais a esta hora, mas fico contente, quer dizer que está melhor. Manuel trouxe-lhe um copo e deixou-lhe a garrafa na mesa. Olhe, doutor Pereira, deixo-lhe a garrafa, se lhe apetecer mais um copo, sirva-se, e se quiser um charuto trago-lho imediatamente. Traga-me um charuto dos fracos, disse Pereira, mas a propósito, Manuel, disse-me que tem um amigo que apanha a Rádio Londres, quais são as novidades? Parece que os republicanos estão a levar porrada, disse Manuel, mas sabe uma coisa, doutor Pereira, disse baixando a voz, também falaram de Portugal. Ah sim, disse Pereira, e que dizem de nós? Dizem que vivemos numa ditadura, respondeu o empregado, e que a polícia tortura pessoas. E que acha, Manuel?, perguntou Pereira. Manuel coçou a cabeça. Que acha o senhor, doutor Pereira?, replicou, o senhor está nos jornais e percebe dessas coisas. Eu acho que os ingleses têm razão, declarou Pereira. Acendeu o charuto e pagou a conta, depois saiu e apanhou um táxi para ir à tipografia. Quando chegou encontrou o chefe da tipografia todo atarefado. O jornal entra nas máquinas daqui a uma hora, doutor Pereira, disse o tipógrafo, o conto de Camilo Castelo Branco foi uma boa ideia, é uma maravilha, li-o em miúdo quando andava na escola, mas ainda é uma maravilha. Vai ser preciso reduzir-lhe uma coluna, disse Pereira, tenho aqui um artigo para fecho da página cultural, um necrológio. Pereira passou-lhe a folha, o tipógrafo leu-a e coçou a cabeça. Doutor Pereira, disse o tipógrafo, é um caso muito delicado, o senhor traz-me isto no último momento e sem visto da Censura, parece-me que fala de factos muito graves. Olhe, senhor Pedro, disse Pereira, já nos conhecemos há quase trinta anos, de quando eu fazia os casos do dia no jornal mais importante de Lisboa, alguma vez lhe causei problemas? Lá isso nunca, respondeu o tipógrafo, mas agora os tempos mudaram, não é como dantes, agora há esta burocracia toda e eu tenho de a respeitar, doutor Pereira. Oiça, senhor Pedro, disse Pereira, já me deram a autorização oralmente da Censura, telefonei há meia hora da redacção, falei com o major Lourenço e ele está de acordo. Mas era melhor telefonar ao director, objectou o tipógrafo. Pereira deu um suspiro profundo e disse: Está bem, telefone lá, senhor Pedro. O tipógrafo marcou o número e Pereira ficou à escuta com o coração aos saltos. Compreendeu que o tipógrafo falava com a menina Filipa. O director saiu para o almoço, disse o senhor Pedro, falei com a secretária, só volta depois das três. Às três já o jornal está feito, disse Pereira, não podemos esperar até às três. Ah isso não podemos, disse o tipógrafo, não sei que faça, doutor Pereira. Olhe, sugeriu Pereira, o melhor é telefonar directamente para a Censura, talvez se consiga falar com o major Lourenço. O major Lourenço, exclamou o tipógrafo como se tivesse medo daquele nome, com ele directamente? É um amigo meu, disse Pereira fingindo um ar despreocupado, li-lhe esta manhã o meu artigo, está perfeitamente de acordo, todos os dias falo para lá, senhor Pedro, faz parte do meu trabalho. Pereira pegou no telefone e marcou o número da Clínica Talassoterápica da Parede. Ouviu a voz do doutor Cardoso. Está, major, disse Pereira, daqui é o doutor Pereira do Lisboa, estou aqui na tipografia para meter aquele artigo que lhe li hoje de manhã mas o tipógrafo está hesitante por não ver o carimbo com o visto, veja lá se o convence, vou-lho passar. Passou o auscultador ao tipógrafo e ficou a observá-lo enquanto ele falava. O senhor Pedro começou a anuir. Certo, senhor major, dizia, de acordo, senhor major. Depois pousou o auscultador e fitou Pereira. Então?, perguntou Pereira. Disse que a polícia portuguesa não tem medo destes escândalos, disse o tipógrafo, que andam por aí à solta uns patifes que devem ser denunciados e que o seu artigo deve sair hoje, doutor Pereira, foi o que ele me disse. E depois continuou: E também me disse: diga ao doutor Pereira que escreva um artigo sobre a alma, que é do que todos estamos a precisar, foi assim que ele disse, doutor Pereira. Se calhar estava a brincar, disse Pereira, mas amanhã falo com ele.
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  618. Deixou o artigo ao senhor Pedro e saiu. Sentia-se exausto e tinha os instestinos completamente desarranjados. Pensou ir comer uma sanduíche ao café da esquina, mas em vez disso pediu uma limonada. Depois apanhou um táxi e mandou seguir até à Sé. Entrou em casa cautelosamente, com medo que estivesse alguém à espera. Mas não estava ninguém em casa, apenas um enorme silêncio. Entrou no quarto e deu uma olhadela ao lençol que cobria o corpo de Monteiro Rossi. Depois pegou numa mala pequena, onde enfiou o estritamente necessário e a pasta com os necrológios. Foi à estante e começou a folhear os passaportes de Monteiro Rossi. Finalmente encontrou um que se lhe adaptava. Era um belo passaporte francês, muito bem feito, a fotografia era de um homem gordo com papadas debaixo dos olhos, e a idade correspondia à sua. Chamava-se Baudin, François Baudin. Pereira achou que era um belo nome. Meteu-o na mala e pegou no retrato da mulher. Levo-te comigo, disse-lhe, é melhor vires comigo. Meteu-o de cabeça para cima para que pudesse respirar bem. Depois passeou os olhos pela casa e consultou o relógio.
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  620. Tinha de se despachar, o Lisboa saía daí a pouco e não havia tempo a perder, afirma Pereira.
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  624. 25 de Agosto de 1993
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