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Stanza

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Feb 1st, 2017
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  1. Meus olhar se alternava entre o relógio e a folha de papel. Meu turno começaria às seis da manhã, e eu estava cinco minutos atrasado. Porém não podia abandonar meu poema inacabado. O céu já se tornava azul com o amanhecer, os pássaros cantavam melodias que, embora sem ritmo, só poderiam ser comparadas à mais bela sinfonia, e a fraca luz da vela, posta ali apenas para acrescentar ao ambiente, se agitava sobre a folha. Faltava apenas uma estrofe, e eu não poderia terminá-la senão ali, durante aquele exato momento. Caso abandonasse, não seria por uma curta quantidade de tempo, mas sim por toda minha vida. Um poema com suas estrofes compostas em diferentes tempos perde seu valor, tornando-se fruto de emoções e condições diferentes.
  2. Após passar por dez longos minutos meditando sobre quais palavras usar no último verso, finalmente o poema foi concluído. Satisfeito, dobrei o papel, subi até meu quarto, e coloquei-o ao lado de minha esposa, que dormia. Com um beijo em suas bochechas, me despedi.
  3. Apenas por questão de costume, corri até a delegacia, onde trabalhava. Sem surpresa nenhuma, meu atraso passou despercebido. Poderia ter chegado até mesmo quase uma hora atrasado, que nem sequer uma pessoa haveria notado, ou caso houvessem, teriam tratado esse evento como um caso mais trivial do que a queda de uma gota individual entre uma tempestade, ou então como a formiga que carrega sua comida até o formigueiro. Um ato tão banal perante os olhos de um espectador humano, mas marcante para a sobrevivência do inseto. Sim, encaixava-me perfeitamente nessa lúgubre metáfora: não mais que um mísero inseto, sem importância alguma para os olhos dos verdadeiros humanos. Em certas noites, sonhava que eu era um desses humanos. Sonhava que meu júbilo era certo e garantido, sonhava que meu caminho estava traçado, sonhava que a infelicidade era um evento passageiro e banal. Sonhava que deixaria minha marca na história da humanidade, por mais insignificante que fosse.
  4. Já em outros momentos, acordado, minha inveja tinha seu lugar tomado pelo ódio e pelo orgulho. Sentia-me enfim iluminado, e os sonhos onde eu havia me tornado humano se tornavam patéticos. Que os humanos fiquem com suas longas e felizes vidas: as formigas os desprezam. Pois eu havia sacrificado meu júbilo pela sabedoria e pelo conhecimento, os prazeres terrenos pela erudição e poesia. Eu, em minha melancolia, me tornava feliz.
  5. Porém, acordado ou dormindo, não passava disso: um sonho. Uma ilusão.
  6. Fui acordado de meus pensamentos enquanto tomava café. O capitão da polícia entrou na sala. Eu, como mero oficial de polícia, era subordinado a ele. Desde o primeiro momento que o conheci, foi um grande espanto pra mim: ele despertou em mim amargas memórias que pensei ter enterrado nas partes mais escuras de minha mente, onde imaginava que jamais as visitaria novamente. Conforme eu lamentavelmente vinha a conhecê-lo melhor, pude notar que cada coisa odiada por mim estava presente nele, e logo ele mesmo se tornou o meu ódio. Como se não o bastasse, era invejado. Uma vida impecavelmente boa: a imagem do sonho americano.
  7. Felizmente mantive minha dignidade e não me permiti invejá-lo, mas de modo mais simples, odiá-lo.
  8. Não tive uma infância feliz, mas não o ouso dizer. Meus únicos momentos de alegria me foram concedidos por minha mãe. Os momentos em que sentávamos em frente ao forno de lenha, em nossa velha casa suja, e líamos todo tipo de livro. Ali nós rimos, choramos, mas principalmente, fomos felizes. Nunca conheci meu pai; ele havia morrido meses antes de eu nascer. Minha mãe, pobre, frágil e doente, se esforçou muito para que eu fosse feliz, e eu, mesmo como criança, entendia isso. Procurei nunca entristecê-la, mas era difícil. Sequer tínhamos o que comer, e ela não suportava me ver com fome. Ela fazia de tudo para nos conseguir dinheiro, trabalhando como faxineira em diversas casas, mas não era o suficiente. Sua condição de saúde instável a impedia de conseguir empregos facilmente, e quando conseguia, nunca nos dava sequer o necessário.
  9. Certo dia, minha mãe fora mandada embora de mais uma casa. Não tinha mais nenhuma maneira de conseguir dinheiro. No dia seguinte, de manhã bem cedo, quando saí de casa para ir até a escola, vi minha mãe chorando na escada. Não ousei lhe dizer nada, e saí.
  10. Bem mais tarde, quando voltei da escola, fui barrado ao tentar me aproximar de minha morada. A casa, de madeira, estava totalmente queimada. Haviam ambulâncias, carros de polícia, e curiosos por todo lado. Me informaram que minha mãe, ao tentar acender o forno de lenha, havia incendiado uma cortina. O fogo rapidamente se espalhou, e minha mãe, devido à sua condição, não havia escapado. Caída no chão, havia sido consumida pelas chamas infernais, tendo seu corpo totalmente carbonizado.
  11. O policial me levou até a delegacia, onde me encontrei com uma mulher que disse que ia me ajudar, e tentou me confortar. Não escutei nenhuma de suas palavras. Ainda não havia compreendido o que havia acontecido. Não, como aquilo poderia ter acontecido? A única pessoa presente em minha vida havia sido queimada viva. Eu não me lembro de ter chorado. Não estava em condições de apelar para lágrimas.
  12. Mais tarde, outra mulher muito mais velha me levou à sua casa. Ela falava de maneira torpe, parecendo ébria o tempo todo, seu rosto era hostil e enrugado. Seus cabelos estavam sempre bagunçados, e nunca cheirava bem. Me disse ser irmã de minha mãe. Naquele momento, larguei de suas mãos e tentei correr. Minha mãe nunca havia me contado sobre nenhuma irmã, algo que só muito mais tarde fui entender porquê.
  13. Quando ela finalmente me alcançou, bateu em mim com um pedaço de madeira. Logo depois me levou até sua casa, onde moravam cerca de seis ou mais pessoas com ela. Em minha mente, não conseguia diferenciá-la de nenhum dos outros: todos de voz torpe, aparência ébria e repugnante.
  14. Vivi em meio àquela devassidão por mais de cinco anos. Quando eu tinha dezesseis, aquela irmã de minha mãe morreu por dívidas de drogas. Então, meses depois de sua morte, fui informado que a antiga casa minha e de minha mãe tinha seguro: Mas como era menor de idade, todo o dinheiro havia ido para minha tia. Não foi preciso me dizer nada, já sabia com o que ela havia gasto. Exausto e entristecido com aquela vida no meio da perversidade , fugi da casa e fui morar nas ruas. Terminei meus estudos ainda morando na rua, e trabalhando em um pequeno armazém ali perto, juntando dinheiro. Quando obtive uma quantia considerável, comecei a morar de aluguel em um apartamento barato, de madeira. Ainda depois, me esforcei muito, e passei no exame da polícia com folga. Sem ter ninguém para comemorar comigo, festejei em um bar, tomando minha primeira cerveja, assim como a segunda, a terceira, e assim por diante. Ainda bêbado e meio inconsciente, conheci uma mulher linda; surpreendentemente, não se sentiu repugnada pelo meu estado de embriaguez, mas pelo contrário, parecia encantada. Alguns dias depois, quando eu estava melhor, nos encontramos de novo. Descobrimos que tínhamos muito em comum, e imediatamente me apaixonei: em menos de um ano de namoro nos casamos.
  15. Enquanto pensava sobre minha tia, notei um fato interessante: Não tínhamos cortinas em nossa antiga casa, e o fogão se encontrava longe das paredes. Foi então que entendi o porquê de minha mãe estar chorando na escada aquele dia: Estava decidida que o seguro da casa poderia me dar uma vida melhor. Ela se suicidou futilmente, já que o dinheiro havia sido gasto com drogas. O grande ódio que eu já sentia por minha tia havia aumentado ainda mais, e então também me irritei com minha mãe. Ela era a única pessoa que me fazia feliz, e ela sabia disso. Ela me negou essa felicidade, achando que eu ficaria mais satisfeito com o dinheiro.
  16. O outro oficial da patrulha bateu na porta e saiu, se dirigindo ao estacionamento sem dizer uma palavra. Já estava na hora. Puxei o casaco do cabide, vesti o chapéu, peguei a carteira e segui seu mesmo caminho.
  17. O resto de meu dia se resumiu a uma tarefa cansativa e tediosa: dirigimos pela cidade por horas e horas, vendo as luzes brilhando pelo caminho, atravessando o vale da perversão e maldade permanecendo incorruptíveis. Eventualmente parando jovens bêbados, expulsando vagabundos e prostitutas, e raramente cobrindo cenas de assassinatos até a chegada de detetives. Minha comunicação com o outro oficial se limitava ao necessário: informações sobre o que estávamos fazendo, e vez ou outra pedia que apagasse seu cigarro. Patrulhar comigo era considerado uma punição na delegacia.
  18. Enfim, ao início do anoitecer, estacionamos na delegacia. Entrei no escritório, cansado, me preparando para no mínimo mais uma ou duas horas de trabalho redigindo relatórios. Mas depois de pendurar o casaco e o chapéu, tive uma surpresa agradável: Não havia nada na minha mesa. Não seria necessário trabalhar mais. O dia seguinte era feriado, e ao menos eu poderia passar o dia em casa com minha esposa. Vesti novamente o casaco e o chapéu e sai, feliz. Entrei no carro e fui para casa.
  19. Realmente, era uma noite feliz. Os semáforos pareciam se abrir para mim, o céu, muito nublado, brilhava escarlate; os comércios começaram a fechar, e mal se encontrava pessoas na rua. Apreciando essas pequenas belezas, rapidamente cheguei em casa. Outro carro se encontrava parado do lado de fora, porém, sem pensar muito, estacionei atrás dele.
  20. Assim que alcancei a porta de casa, a chuva começou a cair forte. Tirei a chave do bolso, e assim que encaixei-a na fechadura, notei que já se encontrava aberta. Tirei os sapatos. Entrei silenciosamente, fechando a porta de igual maneira, a trancando. Uma luz fraca vinha do quarto meu e de minha mulher, e já me encontrando extremamente nervoso e até de sobremaneira trêmulo, fui com passos silenciosos até a cozinha que se encontrava do lado oposto. Puxei, com um pouco de dificuldade e barulho, um pé-de-cabra encostado entre o armário e a parede. Arrastando-me, com o pé-de-cabra em minha mão direita, me encostei na parede exterior do quarto. Escutei barulhos vindos do quarto: gemidos femininos. Pus-me de pé, e entrei no quarto sem alarde. Ao lado da porta, observei petrificado a cena.
  21. Totalmente nu, um homem se posicionava sobre minha mulher, igualmente nua, em nossa cama, apenas um fino lençol os cobrindo. Ela o abraçava apaixonadamente enquanto realizavam o ato, alheios à minha presença. Em um ato meio inconsciente, bati o pé-de-cabra na porta de madeira.
  22. Os dois se viraram em minha direção assustados, e minha mulher boquiaberta se cobriu com o lençol, como se houvesse algo ali que eu nunca tivesse visto antes, ou melhor, algo que não mais me pertencesse. Ele, por sua vez, quase pulou da cama, e foi aí que pude ver seu rosto: era o chefe de polícia. Aquela figura odiosa. Meu medo natural ante sua presença surgiu naquele momento, mas antes que qualquer ato meu surgisse devido a esse sentimento, ele foi substituído por outro: o ódio.
  23. Eu permaneci parado, com minha expressão imutável. Mas dentro de mim, eu não sabia o que sentir. A mulher que eu tanto amava, a mulher à qual escrevia poesias pela manhã, a única pessoa além de minha mãe que um dia pareceu me amar. Porém mais uma vez eu estava sozinho. Mais uma vez, tudo o que era querido para mim se esvaiu em uma desilusão. E ainda com a criatura que eu mais odiava nesse mundo.
  24. Ela mexia a boca, raramente saindo sons ininteligíveis, tentando articular algo para me dizer, sem conseguir dizer o inexprimível. Quanto a ele, que permanecia na cama, sua expressão se alterou: de um medo, não, uma surpresa, um sorriso surgiu. Orgulhosamente me encarou.
  25. _Você é um covarde_disse em voz alta a mim_você nunca teve coragem de reagir a nada. Mesmo agora você pateticamente permanece de pé, olhando para nós. Mesmo se eu fizer isso_falou agarrando-a a força enquanto ela gritava_você não fará nada.
  26. Colocando-se sobre ela, enquanto ela lutava, continuou o que faziam antes, o tempo todo olhando para mim.
  27. Meu ódio, minha vergonha, e minha tristeza atingiram níveis extremos. Com o pé-de-cabra em mão, fui ao lado da cama. Ele permanecia olhando para mim. Tremendo, levantei a arma ao alto.
  28. _Vamos, ataque-me!_exclamou, sem nenhum medo, sem nenhuma hesitação em suas palavras_Você não é homem. É um covarde.
  29. Com um único golpe, finquei a ponta do pé-de-cabra em seu crânio. Perdeu os sentidos e caiu sobre ela, que o afastou gritando sem sair da cama. Arranquei a arma de sua cabeça, tirando lascas de osso. Acertei-o mais uma vez. E mais uma. Inconsciente, continuei-o atacando incontáveis vezes em uma onda de ódio. Quando voltei a mim, sua cabeça era apenas um amontoado de vísceras e pedaços de ossos. Havia sangue em minhas roupas, meu rosto, na cama, e minha mulher em um estado de puro terror estava completamente vermelha de sangue, embora totalmente intacta.
  30. Minhas mãos estavam grudadas à arma, devido à força com que a havia segurado. Minha mulher caiu, se afastando da cama com os pés, até a parede. Olhei para ela.
  31. Como que recobrando os sentidos, levantou-se e pôs-se a correr. Fui atrás dela. Ela, ainda completamente nua e coberta de sangue, tentava desesperadamente abrir a porta para a rua. Mas eu a havia trancado, e a chave estava em meu bolso. Com minha voz tremendo e falhando, pedi-a que se acalmasse e não contasse o que havia acontecido. Poderíamos então nos esquecer dessa traição estúpida e continuarmos vivendo perfeitamente. Ela permanecia encostada à porta, e enfim conseguiu pronunciar algo.
  32. _Você é insano…_ sussurrou_…nunca… me deixe ir…_terminou, murmurando.
  33. Enfim entendi que ela não ia aceitar aquilo. Nunca aceitaria. Com lágrimas em meus olhos, levantei o pé-de-cabra enquanto ela caia no chão, em prantos. De olhos fechados, acertei sua têmpora, e os soluços cessaram. Acertei-a mais duas vezes, então caí no chão, me afogando em minhas lágrimas.
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