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a guest
Aug 1st, 2014
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  1. «Algumas semanas depois de ter sido instituído em Tokushima o serviço do tiro do meio-dia, isto é, na manhã do dia 2 de Outubro de 1916, num quarto de hospital da cidade, agonizava Ko-Haru, vitimada pela tuberculose. Imóvel sobre o leito, os braços esqueléticos estendidos, os olhos muito abertos e muito fixos, fixos não sei aonde – talvez no infinito, – a mísera gemia, gemia, gemia… gemidos leves, mas tão persistentes e prosseguidos durante tantas horas numa cadência sem descanso, que dir-se-ia que o ar todo, o espaço todo, o edifício inteiro, vibravam já com aquele arfar e gemiam também; sendo impossível fugir a gente por um momento àquela obstinação de angústia, que se ouvia em todo o recinto do hospital.
  2. «A mãe da moribunda, uma enfermeira, não sei se mais alguém, para ali estavam, quedas, em mudez, aguardando o final do drama. Amontoados pelo chão e sobre a mesa, em desordem, jaziam os copos com tisanas, os frascos com remédios, em que já se não pensava, por inúteis.
  3. «O sol, com essa soberba desdenhosa que a natureza inteira manifesta pela miséria humana, como por todas as misérias, ainda nos transes mais pungentes, havia iluminado o quarto todo, em resplandecências radiosas, que entravam a flux, pelas vidraças de uma única janela; avincando por este modo, pondo em relevo, os mais ínfimos detalhes do tristíssimo aspecto do aposento. Mas fora-se retirando pouco a pouco, com todo o seu vagar, na sua marcha para o zénite; substituindo-o uma meia-luz discreta, mais própria do momento e do lugar. De repente… puum! soou o tiro do meio-dia, fazendo estremecer os vidros do quarto e a casa toda. Meia-hora depois, Ko-Haru deixava de existir.
  4. «Ora, é a circunstância fortuita do tiro do meio-dia, a qual parecerá talvez insignificante, que vem ferir a minha sensibilidade, ao recordar o amargurado fim que teve aquela rapariga; porque eu estou convencido de que o estampido do canhão foi o estímulo para uma dor atroz – dor de alma, – a juntar à dor que Ko-Haru já sofria.
  5. «Eu me explico, se os termos me chegarem para me traduzirem as ideias.
  6. «É certo que Ko-Haru compreendeu o que significava aquele tiro? Sim, não resta dúvida; a moribunda conservou, até se finar, plena lucidez no raciocínio. Mais ainda: o tiro era então ainda uma novidade em Tokushima, alvoroçando toda a gente e por isso mesmo mais sugestivo em seus efeitos; Ko-Haru deveria ter experimentado idêntico alvoroço e idêntica intensidade sugestiva. Sentindo rapidamente a vida desfazer-se-lhe, Ko-Haru iria pensando… Ignora-se por certo em que vão pensando os moribundos; contam porém os náufragos, socorridos quando já quase expirantes, que, ao perderem de todo a esperança de salvar-se e quando as forças os abandonam por completo, à ideia da morte certa junta-se uma outra ideia, a elaboração do inventário perfeito, em nítido resumo, da existência que tiveram – infância, adolescência, juventude, esperanças, ilusões, desilusões, trabalhos, júbilos, revezes… – Em todos os moribundos, quando conservem a razão, deve dar-se um igual fenómeno. Sentindo rapidamente a vida desfazer-se-lhe, Ko-Haru iria pensando no dramazinho da curta existência que levara – a sua infância de quase miséria, os seus brinquedos de criança, as suas companheiras de jogos, os seus sobressaltos de adolescente, o prazer de estrear os seus kimonos novos, os seus amores, os seus sonhos, que sei eu!... – Então, soou o tiro do meio-dia, chamando-a o estrondo à recordação da existência prática, comezinha, dos últimos dias de saúdes que gozara. O tiro do meio-dia, ouvido no lar materno, era o sinal para ela dispor sobre a esteira o grande recipiente com o arroz cozido e fumegante e os pratinhos com os modestos acepipes acessórios, porque o irmãozito e a irmãzita não tardavam a regressar da escola, esfomeados, gritando pelo jantar. Jantava-se depressa; ela volvia às suas labutações caseiras; ou arrebicava-se, vestia um kimono catita e lá ia para a rua, ver as amigas, visitar conhecidos, palestrar, que é a predilecta ocupação das japonesas… Todas estas coisas, numa enfiada vertiginosa de ideias, lhe teriam passado pela mente, sugeridas pelo tiro do meio-dia. Após, deveria ter formulado a noção clara de que nunca mais ouviria aquele tiro; de que nunca mais se apressaria em servir o jantar a seus irmãos; de que o momento fatal havia chegado; de que ia já engolfar-se, inteira, corpo e alma, na tremenda imensidade do mistério, onde as horas não se contam senão por eternidades e onde o meio-dia não existe!... O irónico, o sarcástico, o crudelíssimo tiro do meio-dia!... isto era para os outros, que ficavam; não para ela, que se ia… E a angústia desta conclusão final tê-la-ia apunhalado com uma violência supina, que nós, vivos e sãos, somos incapazes de julgar. Assim pensava Ko-Haru, presumo; mas por outra maneira, por outros processos de dedução; não nos sendo dado adivinhar essa estranha filosofia, talvez iluminante, que guia na compreensão das coisas aqueles que vão soltar dos lábios o último suspiro. Em todo o caso, estas minhas divagações não passam de conjecturas. Mas como descobrir a verdade? Certamente, todos nós – eu e vós todos que me ledes – morreremos um dia; eu, provavelmente, primeiro do que todos. Então, possível é que algum de nós, nos seus últimos momentos, oiça o tiro do meio-dia, ou pelo menos as pancadas de um relógio, ou um pregão conhecido, ou o simples cantar de um galo, uma dessas insignificâncias, enfim, que possuem o condão de nos recordarem mil e mil coisas da própria existência decorrida; então, se a lembrança destas linhas lhe ocorrer, julgará se eu estou em erro, ou se acerto, ao escrevê-las.» (Wenceslau de Moraes)
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