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Jul 24th, 2014
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  1. Prefácio
  2.  
  3. Desde minha infância em Fortaleza, no Ceará, eu tinha uma grande fascinação por livros -- e talvez mais importante que isso, pela idéia de escrever um livro. Cresci lendo os clássicos de Monteiro Lobato, Michael Crichton e Tom Clancy; eu mergulhava na ficção deles e romantizava a idéia de me tornar um autor publicado. Afinal, foi o próprio Lobato que definiu que um homem não é um homem até escrever um livro; talvez o desejo latente de me tornar um autor era meu cromossomo Y exigindo seu reconhecimento.
  4.  
  5. Na quinta série, se a memória não me trai, a turma da minha sala foi atarefada com uma atividade interessante que instigou mais ainda minha fantasia de me tornar um escritor: nossa professora de redação nos distribuiu cadernos que deveríamos preencher com contos de nossa própria autoria. Um por dia, durante as aulas dela, até completar nossos "livros". Ela então nos daria a nota do bimestre se baseando na qualidade da nossa escrita.
  6.  
  7. Tenho minhas dúvidas que houve algum outro estudante mais engajado no trabalho dado pela professora de redação. Foi como se ela tivesse adivinhado minha fantasia.
  8.  
  9. Eu não me limitava a bolar historinhas na aula da mulher -- levava o caderno pra casa, me trancava no quarto, e passava a tarde inteira bolando histórias. Editava e reescrevia alguns trechos com tanta frequência que o atrito da borracha rasgava o papel. Lembro-me que eu trazia um dicionário a tiracolo em minhas sessões literárias e passava horas procurando palavras aleatórias na esperança de descobrir um vocábulo novo e elaborado que se encaixasse bem no meu texto. Se não li o Aurélio inteiro nessa brincadeira, devo ter chegado perto.
  10.  
  11. Minha mãe tinha tanto apreço por ver o filho enfiado nos livros que até se envolvia no meu projetinho. Ela me prometeu que um dia, quando terminasse o livro, ela escreveria pra Porta da Esperança (aquele antigo programa em que o Sílvio Santos realizava os pedidos de telespectadores que enviam cartas) pedindo que o Seu Sílvio nos arrumasse uma publicadora. Meus olhos até brilharam. Aparecer na televisão E publicar um livro?! Me meti ainda com mais vontade nas minhas historinhas.
  12.  
  13. Não lembro exatamente que fim levou aquele livro. Sem dúvida o terminei e ganhei a nota por ele, mas a idéia de publica-lo morreu por motivos que eu não recordo. Tenho certeza que envolve ter perdido o caderninho nas incontáveis mudanças de cidades que minha família sofreu, pois esse foi o mesmo trágico fim de praticamente todas as posses relevantes da minha infância.
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  15. E eu esqueci essa idéia de publicar histórias e a fantasia de ser lido -- e, por que não, admirado -- por milhares de pessoas. Até 2001, quando conheci os blogs.
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  17. Quem já estava online naquela época deve lembrar que os primeiros blogs não eram nada especiais: 99% deles se limitava a narrar a rotina desinteressante de seus donos, sem qualquer forma ou conteúdo interessante. Mas aquele 1% restante que era escritos por gente com originalidade e habilidade literária brilhante.
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  19. Me identifiquei imediatamente com aquela turma e, ao descobrir quão fácil era me tornar um autor virtual como eles, iniciei meu primeiro blog. E assim realizei minha fantasia (claro, em escalas muitíssimo menores do que eu sonhava) de me tornar alguém lido por várias pessoas.
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  21. O apoio de minha mãe sempre continuou. Moramos em países diferentes, mas até hoje ela me liga pra comentar sobre textos que eu publico no meu blog, o Hoje é um Bom Dia. E por ironia do destino, agora que finalmente escrevi meu livro não sei como contarei a novidade a ela, devido à natureza dos contos registrados nestas páginas.
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  23. E é por isso que este prefácio é meio dedicatória, meio pedido de desculpas.
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  25. Mãe, me perdoe pelo fato de que ao finalmente publicar meu livro, ele envolve bem mais vibradores anais e travestis do que você imaginava quando eu escrevinha aquelas minhas historinhas de criança.
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  31. Capítulo 1
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  33. São 2:25 da manhã. Mal cheguei à metade do meu expediente e já tive que explicar a um casal gay a diferença entre lubrificante a base de água e base de silicone, e ajudei uma senhora de aparentes 80 anos a escolher um vibrador pra substituir o que ela havia comprado em 1972 e finalmente quebrou. Menos de uma hora depois, recebi uma gorjeta de 20 dólares de uma prostituta de alta classe (mas com micro-vestido impossivelmente curto, cinta-liga e decote que ia quase até o umbigo) por indicar uma lingerie que ela gostou bastante -- e que ela se prontificou a vestir na minha frente mesmo, pra obter uma opinião mais embasada sobre o modelito, se eu não houvesse a convencido do contrário.
  34.  
  35. Tive que contabilizar mais de uma centena de DVDs com nomes um mais impublicável que o outro -- e alguns cujas "tramas" até tiram inspiração de fenômenos internéticos recentes, como Facebook e Twitter --, e espanei (e o que me assusta mais, vendi) consolos do tamanho do meu antebraço. Organizei uma prateleira de revistas masculinas tão extensa que contém pelo menos um exemplar iniciando com cada letra do alfabeto, de Asses Extreme até Zoophile Anonymous. Quando as coisas finalmente se acalmaram, tirei um carrinho de controle remoto da mochila e simulei uma corrida de obstáculos usando sex toys que antes de trabalhar aqui eu sequer sabia que existiam.
  36.  
  37. Usando como obstáculos, só pra deixar claro. Minha sexualidade permanece monoliticamente não influenciada pelo meio em que trabalho, ao contrário do que amigos brincalhões sugerem entre risos. Mas a culpa é toda minha - eu não precisava ter dito a eles que trabalho testando vibradores. A idéia mental causada pela frase é bem diferente do que realmente faço.
  38.  
  39. Eu trabalho em uma sex shop, caso não tenha ficado óbvio nos parágrafos anteriores. Sou um imigrante brasileiro morando em Calgary, no Canadá, e descolei esse emprego em 2009. Cabe aqui uma ressalva: usarei o fato de que moro no exterior há quase uma década como desculpa pra quaisquer erros ortográficos, gramaticais ou de estrutura. Como não tenho treinamento acadêmico de redação e sou um pobre expatriado, faça o favor de relevar meus prováveis deslizes com a língua-mãe com um condescendente meneio de cabeça e um sonoro "tsc tsc".
  40.  
  41. Pois bem. A essa altura já trabalho na sex shop há mais de dois anos; após vivenciar mais situações estranhas numa noite só do que em toda minha vida antes deste emprego, decidi que seria um crime não compartilhar essas experiências com vocês, os desconhecidos que agora estão lendo este relato.
  42.  
  43. É curioso pensar que há alguns anos, eu acreditava que ter qualquer relação com todas as atividades citadas acima (com exceção do carrinho de controle remoto) seriam faltas morais e espirituais passíveis de punição eterna nos quintos dos infernos. Meu emprego pode ser incomum, mas são minhas origens familiares que o tornam ainda mais improvável -- sou o filho mais velho de um ex-pastor evangélico. E de uma das denominações mais tradicionais, a Assembléia de Deus, ainda por cima.
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  45. Se há dez anos alguém me dissesse que um dia eu estaria colocando baterias num vibrador anal pra testar seu funcionamento antes da venda (uma política que usamos pra suprimir tentativas de devoluções) pra um trio de homossexuais que me lançavam olhares libidinosos sem qualquer pudor, eu tiraria a bíblia debaixo do suvaco, ergueria-a ao alto e berraria "está repreendido em nome de Jesus, irmão!" com indignação. Se a mera idéia do sexo pré-marital era algo inadmissível, imagine então uma orgia homossexual que eu -- de certa forma -- colaborei pra que acontecesse.
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  47. Por mais inacreditáveis que algumas de minhas histórias pareçam, confie em mim -- todos os eventos narrados neste livro são verídicos. Infelizmente não tenho nenhum talento pra ficção; é por isso que meu blog (http://www.hbdia.com) sempre fala de desventuras pessoais, ao invés dos contos imaginários que eu escrevia naquele caderninho da aula de redação quando era mais novo. Pelo menos pra alguma coisa essa minha falta de habilidade literária serve: é uma garantia de que as histórias que descreverei aqui realmente aconteceram.
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  49. E o estilo de vida notívago, então? Desde que comecei a trabalhar na sex shop, me vi obrigado a trocar a noite pelo dia e abraçar todas as vantagens e desvantagens que essa inversão no relógio biológico natural do ser humano me trouxeram. Mesmo depois de meses, às vezes me sinto como se o período de adaptação ainda não estivesse completamente terminado -- porém, mais pelos motivos sociais que biológicos. Talvez sejam os efeitos colaterais da rotina de dormir 4 ou 5 horas por dia e passar a noite inteira lidando com toda espécie de pervertidos.
  50.  
  51. "Pervertidos" é uma palavra muito forte, na verdade. Demorou um pouco, mas o meu ambiente de trabalho me ensinou a não julgar tanto as pessoas por causa de suas preferências incomuns no que diz respeito a sexo (salvo em casos extremos e ilegais, obviamente). Até porque, como acabei aprendendo, às vezes os caras com os desejos mais obscenos são pessoas completamente comuns em todos os outros aspectos. O fato de que eles precisam estar vestidos de palhaço pra atingir o orgasmo não me diz respeito e não pode ser usado pra medir a índole deles.
  52.  
  53. Entretanto, não sou assim tão tolerante -- de vez em quando faço uma careta mental diante dos pedidos de alguns fregueses. Algumas coisas são demais até mesmo pra um cara de mente aberta como eu.
  54.  
  55. As interações com os clientes aqui da loja, a propósito, são algo fora do comum e que mereceriam um livro inteiro só pra relata-las. Há algo muito peculiar na psique de um sujeito que sai de sua casa às três da manhã, se expondo às intempéries do clima canadense, em direção à uma loja de artigos adultos pra comprar uma boneca inflável. O tipo de pessoa que precisa de itens de natureza sexual com urgência suficiente pra vir à minha loja durante o turno da madrugada... bem, é todo tipo de pessoa, na verdade. O que torna a coisa ainda mais surreal às vezes -- ter que fornecer itens que você imagina que o comprador, por causa da sua postura e aparência, negaria sob tortura ter comprado.
  56.  
  57. E as coisas que eles me contam -- e que me perguntam -- são algumas vezes coisas que jamais ouvi na vida. O fato de que essas coisas vem de completos desconhecidos torna a situação ainda mais inusitada. Não é todo dia que você aprende a respeito dos desvios sexuais de alguém antes mesmo de conhecer o nome da pessoa.
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  59. Nem todos os aspectos do meu emprego são tão "glamurosos" -- e note que as aspas indicam um uso bem informal do termo. Além de presenciar situações completamente exdrúxulas que alguns julgarão fictícias, executo funções normais de manutenção da loja, como varrer o chão, aspirar o carpete, organizar produtos, limpar o banheiro (acalme-se -- o acesso a ele é permitido apenas aos funcionários) e às vezes navegar na internet enquanto empurro todas as atividades acima com a barriga ou as deixo pro dia seguinte. O ambiente de trabalho é extremamente descontraído e se eu passasse duas semanas sem sequer olhar pra vassoura, duvido que alguém notaria ou se importaria.
  60.  
  61. Mas mesmo assim eu exerço minhas tarefas com primor, porque não se pode desleixar por tempo indefinido no trabalho sem um dia encarar as consequências da irresponsabilidade. Foi assim que acabei indo parar lá na sex shop, aliás -- pisei na bola num emprego anterior e fui posto à rua sumariamente. Agir com profissionalismo pra evitar a punição máxima da demissão deveria servir como um alerta, mas o fato de que eu acabei gostando infinitamente mais do meu emprego atual do que daquele que perdi por incompetência acaba invertendo a lição de moral. "Faça merda e você será recompensado" não é uma filosofia que posso pregar com consciência limpa; meu caso deve ter sido uma exceção.
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  63. Mas este é assunto do próximo capítulo. Há não tanto tempo assim eu tinha um emprego mais, er, "convencional" -- no extremo oposto do espectro, quase. E coincidentemente, foi justamente fotos de um ato sexual (algo que se tornaria lugar comum no meu local de trabalho futuramente) que me custou meu ganha pão.
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  67. Capítulo 2
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  69. Vivo atualmente uma rotina que é o oposto da maioria de pessoas que eu ou você conhecemos.
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  71. O momento em que o relógio marca sete da manhã indica o fim da minha jornada de trabalho. Desligo meu laptop, recolho minhas tralhas e troco dois dedos de prosa -- às vezes mais por obrigação social do que por qualquer outro motivo -- com a turma do turno da manhã que chega pra tomar as rédeas. Informo-os de acontecimentos relavantes e/ou engraçados que se passaram durante meu turno e, com a mochila nas costas, me despeço da loja. Momentos mais tarde embarco no trem em direção à minha casa. "Another day, another dollar", como dizem os gringos denotando o fim de mais um lucrativo dia de trabalho, não é uma expressão que a maioria das pessoas costuma dizer cinco horas antes do meio-dia.
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  73. Até o comecinho de 2009, eu tinha um emprego "normal" - ou seja, eu iniciava meu expediente às sete da manhã, ao invés de termina-lo. E também não trabalhava cercado de pornografia: era um emprego do qual eu não apenas me orgulhava, mas não tinha problemas em anuncia-lo à família cristã.
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  75. Em 2007 eu trabalhava numa famosa rede fast food como "crew trainer". Aliás, creio que a essa altura nem faz sentido
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